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- Tão longe, tão perto: notas sobre a vitalização no atendimento em linha
Este artigo foi publicado no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (Cadernos de Psicanálise) em 2025, sob autoria de Marina F. Ribeiro e Fátima Flórido César. Resumo : Este trabalho aborda o atendimento on-line, aqui denominado “atendimento em-linha”, situando-o no contexto da psicanálise como intrinsecamente ligada à virtualidade. Refletimos sobre a importância de estratégias vitalizantes diante das transformações do enquadre e das particularidades de patologias não neuróticas. Para isso, recorremos às contribuições de Thomas Ogden e Anne Alvarez sobre o binômio vitalidade-desvitalização. O texto inclui ainda um relato breve de um encontro terapêutico, destacando o papel do analista como objeto vivificante. Palavras-chave: Atendimento em-linha. Vitalização. Thomas Ogden. Anne Alvarez. Virtualidade. Os teus olhos foram feitos para atravessar o invisível. (PEIXOTO, 2015, p. 95) Tão longe. Tão perto. Tamanha distância geográfica separando analista e paciente não impediu, entretanto, a proximidade de afetos, a tessitura de um lugar de intimidade. Apesar de tão longe, apesar da separação pela tela, do longínquo dos corpos, da ausência de cheiros e percursos de ida do consultório para casa e vice- -versa. Apesar do lenço impossível para acudir o choro de dor. Apesar do relevante adoecimento psíquico que poderia alertar para a impossibilidade de cuidado terapêutico à distância. Apesar de tantos pesares, Eros comparece. Eros, enquanto ligação, transcende distâncias e lancinantes dores, possibilitando que o encontro aconteça. O trecho com o qual iniciamos este artigo é representativo das diversas situações clínicas que foram surgindo a partir do momento em que atendimentos on-line passaram a acontecer com muito mais frequência, o que tem levado a questionamentos no campo da clínica psicanalítica. Afinal, estamos praticando psicanálise quando nos encontramos com nossos pacientes na tela, no áudio ou no Whatsapp? Podemos considerar que essa modalidade de atendimento estaria de acordo com a necessidade de elasticidade da técnica, como propôs Sándor Ferenczi? Ou, ainda, seria semelhante à análise modificada cunhada por Winnicott? “Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando psicanálise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim?”. (WINNICOTT, 1962, p. 155). A partir dessas perguntas, apresentamos neste artigo reflexões sobre o atendimento remoto, enfatizando a necessidade de dedicarmos maior atenção às estratégias vitalizantes. Seguimos também com breves relatos dos encontros de uma das autoras com a paciente que abre o texto, aqui chamada Lóri, que mora em outra região do país, sendo então a análise realizada remotamente desde o início da pandemia de COVID-19. Pensamos que o invisível da tela banha os encontros analíticos a partir do possível. Invisível este que habita brilhante escuridão, e cujos caminhos escapam à lógica explicativa. Eis aí a brilhante escuridão onde a transformação acontece atravessando o invisível. Linhas virtuais e a disposição de mente do analista: reflexões acerca de um (não tão) novo dispositivo clínico e suas implicações éticas e técnicas Diante de um novo cenário na clínica psicanalítica, que nos convoca a assumir novas posições ético-técnicas, surgiram importantes discussões acerca da terminologia a ser usada, de modo a precisar o alcance da modalidade de atendimento remoto, ou em-linha. A psicanalista Lia Pitliuk (2021), no livro A sustentação de uma clínica psicanalítica em-linha (online), justifica sua escolha, afirmando que há duas razões para isso – em primeiro lugar, para evitar mais um termo de outra língua, mas... [...] mais que tudo, pelo ganho da evocação da linha, do fio, do cordão que simboliza e sustenta, ao mesmo tempo, a união e a separação. No processo de amadurecimento psíquico, a exigência de contiguidade corporal para a sustentação das relações se estende, progressivamente, para formas de ligação cada vez mais simbolizadas; o mesmo vem se dando no âmbito dos processos analíticos – que, exatamente por isso, não merecem a designação de “remotos” ou “à distância”, como têm sido qualificados. Em-linha, declaremos interligados, conectados, vinculados (PITLIUK, 2021, p. 17, grifo da autora). Assim, a dimensão vincular é convocada: o paradoxo que se apresenta “distante e perto” ganha vigor quando a intimidade é possível no atendimento em-linha. Trata-se de uma recusa das polarizações, como bem destaca Ricardo Rodulfo no prefácio do referido livro de Pitliuk – o “verdadeiramente psicanalítico” (p. 10) não está ao lado do que se nomeia presencial; é preciso, pois, como quer a autora, libertar a presencialidade de um lugar priorizado, para que vá além de seu significado empírico. Afinal, adverte Rodulfo, os atendimentos em-linha apresentam uma presencialidade própria, não restrita ao compartilhar do mesmo espaço físico pelos pares do casal analítico. Compartilhamos com Lia Pitliuk a posição ético-técnica de abertura às demandas da contemporaneidade e à evitação da demonização das tecnologias de comunicação à distância: (...) a psicanálise vem se aproximando cada vez mais da “vida como ela é” (hospitais, prisões, equipamentos de saúde pública de modo geral, moradores em situação de rua etc.), e experiências analíticas entre pessoas geograficamente distantes não fogem à regra: constituem-se em desafio igualmente grande e nos demandam as mesmas atitudes – críticas e inventivas –, voltando sempre nossa atenção para a singularidade dos usos, dos processos e das relações (PITLIUK, 2021, p. 24, grifo nosso). Nessa direção, Luís Claudio Figueiredo (2021) também abre uma discussão interessante, pontuando a diferença entre “atendimento presencial” e “atendimento remoto”, mas não entre “atendimento presencial” e “atendimento virtual” [1] . Para o autor, a virtualidade se apresenta intrínseca ao dispositivo analítico (e à mente do analista) desde Freud até os dias atuais, estando presente em ambas as modalidades aqui em discussão: O trabalho do analista – fazendo psicanálise-padrão, psicanálise modificada ou essa alguma ‘outra coisa’ que ele faz a partir de sua capacidade de escuta – sempre se dá na virtualidade, pois depende, de um lado, dessa disposição de mente do analista e, do outro lado, da disposição de mente do paciente correlativa à atenção flutuante em seu sentido ampliado (FIGUEIREDO, 2021, p. 76). Figueiredo (2021) discorre sobre a mente do analista trabalhando fora dos enquadres convencionais, o que nos dirige de imediato ao tema da elasticidade da técnica, título de relevante trabalho de Sándor Ferenczi (1928), e em seguida à psicanálise modificada de Winnicott (1962), como já mencionado acima. Tais modificações no enquadre, considerando as propostas desses dois autores, se impunham em função das necessidades dos pacientes com sua agonia proveniente de traumas precoces [2] e/ou que não se adaptavam ao enquadre- -padrão da psicanálise. Tais razões para conduzir uma análise, fora da técnica clássica, nomeada “psicoterapia psicanalítica”, são, porém, muito distintas daquelas decorrentes da imposição do atendimento remoto em função da pandemia causada pela COVID-19. Na verdade, atendimentos remotos já eram realizados antes da necessidade imposta pelo vírus, quando pacientes se mudavam para outras cidades ou países ou eram transferidos por razões de trabalho, e desejavam continuar a análise com o mesmo profissional. No entanto, uma reflexão sobre essa modalidade de intervenção terapêutica ganha urgência a partir de um cenário que se desvela extensivamente para além dos limites de uma clínica presencial. A questão de Figueiredo (2021), que também é nossa, assim se mostra: será possível instalar a virtualidade nos atendimentos remotos? E com que ganhos? Com que perdas? Legitimando a elasticidade da técnica, Figueiredo (2021) aponta na direção de algo que julga essencial para a reflexão sobre os atendimentos remotos: o “enquadre interior” do analista, necessário para a instalação da matriz ativa, qualquer que seja o enquadre, inclusive o clássico (poltrona-divã): Trata-se da disposição de mente do analista em sua dimensão ética e “técnica” e em sua capacidade de escuta: em outras palavras, é a sua presença implicada e reservada (FIGUEIREDO, 2008), sua “mente própria” (CAPER, 1999), sua atenção flutuante operando em seu mais amplo espectro e englobando todas as modalidades de escuta em análise (FIGUEIREDO, 2014, p. 123). Figueiredo (2021) apresenta duas vertentes para o entendimento do que ele denomina enquadre interior. A primeira se refere à internalização da própria psicanálise como bom objeto interno: um vínculo amoroso com o próprio método analítico. O autor alerta para a ideia de uma “psicanálise amada” como fundamento de nossa posição técnica e ética. A outra vertente é entendida a partir do conceito de Green: a estrutura enquadrante (GREEN, 1967/1988, 1993), que também se refere a um processo de internalização – não de um bom objeto interior, mas sim de um vazio capaz de recepção e de produção. Figueiredo (2021, p. 79) esclarece: “[...] a presença do objeto bom interior propriamente dito é apagada para deixar em seu lugar uma estrutura enquadrante operativa: um vazio vivo e vitalizado”. Nos dois roteiros – da transferência com a psicanálise e da introjeção da psicanálise pelo psicanalista – se faz presente um enquadre interior. Não se trata, pois, da transferência com a pessoa do analista, mas sim da transferência com a introjeção da psicanálise, ela mesma como método: as escutas e o pensamento clínico psicanalítico. Daí podemos concluir que, sem um enquadre interior bem instalado, fica impossibilitado o trabalho analítico em qualquer dos estojos; seja no enquadre clássico – poltrona-divã –, seja na análise modificada. Estamos certas de que o enquadre interior é fator fundamental para que se leve com criatividade e ética o atendimento em-linha. Não há dúvida de que, nessa modalidade de atendimento, o inesperado fica mais presente ao faltarem os apoios materiais do enquadre interior com que o analista contava em sua prática habitual. Seguindo Figueiredo (2021, p. 81): “Talvez seja a parte mais frágil e vulnerável da mente do analista: a disposição de esperar o inesperado, manter-se no vazio, no incerto e no não saber”. E quanto às invasões da realidade? O enquadre interior do analista vai ter a função de moderar as turbulências, próprias e alheias, internas e externas de modo tal que será preciso estabelecer enquadres remotos sob medida, com funções de “estojo protetor” e montados caso a caso segundo as necessidades do paciente. O propósito fundamental é que seja possível a criação conjunta do espaço potencial: É preciso que a realidade externa possa ser atenuada, filtrada, reduzida e mesmo negada para que se abra o território virtual, o território do sonho, do jogo, da associação livre, da escuta flutuante, da criação e, assim, o espaço dos trabalhos psicanalíticos (FIGUEIREDO, 2021, p. 82). De fato, no atendimento remoto, fazemos o possível; entretanto, não podemos deixar de ressaltar as desvantagens. Para começar, as invasões de outras pessoas, o que Figueiredo (2021) denomina incidência de “realidades micro”, que podem prejudicar tanto a capacidade de escutar e pensar do analista, quanto a de associar livremente por parte do paciente: “[...] o excesso de realidade externa inibe, obstrui ou impede o acesso às realidades psíquicas, seus personagens, enredos, dinâmicas e climas emocionais, em especial, impede a realidade virtual compartilhada em uma sessão de psicanálise” (FIGUEIREDO, 2021, p. 83). A consequência de tal excesso pode conduzir à obstrução do sonhar e brincar em sessão. Precisamos nos manter no trabalho inconsciente para seguir com nosso enquadre interior, de modo a sustentar a virtualidade do dispositivo. Faltam, como adverte Figueiredo, as cores, os cheiros, os ritmos, por exemplo, a respiração de cada um da díade. Em tempos de pandemia, nos vimos à mercê da invasão, na situação analisante, de uma realidade que não podia ser negada ou desmentida, das depressões motivadas, de uma necessidade de lutos frente a perdas demasiado reais. Atravessamos tal excesso de realidade, mas um tanto do que vimos acima de “microrrealidades” se mantêm. Portanto, o enquadre interior não deve em condição alguma ser descartado, seja nos casos de análise-padrão, seja na análise modificada. E em algumas situações, como nos casos de pacientes neuróticos, pode se aproximar ao máximo da condição poltrona-divã, mediante a proposição do atendimento em-linha sem imagem e apostando na transferência do inconsciente reprimido para a fala. Já nos casos de adoecimentos não neuróticos, especialmente de pacientes apassivados, não há condições para o atendimento sem imagem, pois se trata de analisandos que precisam ser atendidos face a face. As palavras de Figueiredo (2021, p. 89) nos remetem à atenção das condições de tais pacientes e da situação analisante que se impõe: “as dimensões inconscientes envolvidas ultrapassam os domínios da linguagem, pois são experiências emocionais too deep for words (profundas demais para caberem nas palavras [3]), irrepresentáveis e inomináveis”. Aqui o atendimento em-linha cria mais dificuldades: nesses casos, para tentarmos dar conta dos obstáculos ao encaminhamento dos trabalhos psicanalíticos, propomos que lancemos mão de estratégias vitalizantes (considerando principalmente os adoecidos por passivação) que, nessa modalidade, requerem um investimento específico do analista. Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar... Com seu inesperado e tanto susto, a vida é a oportunidade da maravilha (MÃE, 2020, p. 30). Lóri e eu [4] estamos juntas desde o início da pandemia, atravessando ora desertos ressequidos, ora “ruas ladrilhadas com pedrinhas de brilhante”: um trabalho para ambas quando cada ação terapêutica é coconstruída para vitalizar não apenas o paciente, mas também o analista e a própria análise. Ruas nuas pedindo para serem enfeitadas pelo vivo dos barulhos das casas com suas luzes, o verde do florescer nas calçadas, o alarido das crianças a correr. Em nosso primeiro encontro, Lóri se apresentou com esta pungente e fundamental fala: “Eu sou tristinha”. É assim Lóri: ora rua empedernida, ora travessa chamando para a festa dos encontros. As sessões ocorrem segunda e sexta – intervalo de tempo assim estabelecido para que, na minha companhia, se sinta protegida do risco de cair num abismo sem fundo, caso as horas lentas do fim de semana venham a transformar-se em vazio e solidão. Assombrada por desamparo e despreparada para despedidas, fomos construindo modos de amortecer possíveis quedas – descobrimos que trocas vivificantes podem ocorrer mesmo à distância, seguindo com cuidado e salvaguardando um tempo de delicadezas. Assim, criamos uma espécie de senha que nos lembra da separação iminente: aviso Lóri que o fim se aproxima quando faltam 2 minutos para terminarmos, o que nela desperta uma preparação para a despedida. Findos os dois minutos, ela se esvai da tela, evitando, com isso, que eu desapareça antes dela e possibilitando-lhe tomar em suas mãos, ativamente, o momento do provisório adeus. Essa foi uma construção conjunta, na qual Lóri manifestou o gesto de sua necessidade, na direção do qual fui ao seu encontro, e criamos, assim, o ritual de despedida, de modo que a angústia de separação pudesse ser amortecida. Dessa maneira, vou desenhando Lóri e nossos modos de encontro num campo que requer cuidado e delicadeza. Faz pouco tempo veio para a sessão bastante sonolenta: e, tendo de resolver algo da casa, não pudera dormir. Eu aguardava, acreditando que algo de amortecido estava ali sendo encenado. Até que Lóri, em gestos de vida, simultâneos a um movimento de regressão até a criança desamparada, clama: “me conta uma história”. Sou assim chamada, e recém-chegada da minha casa de origem, alimentada das raízes anímicas, conto uma história para embalá-la num adormecer mais vivo: “Na minha cidade, no meu bairro, visitei uma escadaria lindamente feita de mosaico. Letras se escreviam nos degraus: se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar ...”. E então Lóri começa a cantar junto comigo: “com pedrinhas com pedrinhas de brilhante, para o meu, para o meu amor passar”. Ofereço-me como objeto vivificante, capaz de me envolver profundamente com ela. Geramos juntas algo distante do morto, nos aproximando de uma experiência espontânea, visceral e inovadora para ambas. Considerando que o que coube no encontro com Lóri foi único, faço uso aqui das palavras de Thomas Ogden (2016, p. 3, grifos do autor): “tal conversa é uma criação que somente esse paciente e esse analista (o analista que estou me tornando em análise) poderiam trazer à vida dessa maneira particular”. A fala com cada paciente é única – tanto o conteúdo, como a forma, com diferentes tons de voz, afinações, volume. Vamos assim testemunhando uma significativa mudança de direção na psicanálise contemporânea: da ênfase no luto do velho para a criação do novo; do desenterrar de conteúdos reprimidos para a geração de futuros; do soterrado para o emergente; da perda para a descoberta; do morto para o vivo. Essa mudança na teoria da técnica nos direciona para estratégias de vitalização. Trata-se da geração de um processo interno vivificante que surge de uma profunda troca de afetos entre paciente e analista. Importante ter em mente que vitalização não significa animar o paciente, mas sim propor estratégias que o auxiliem a entrar em contato com as várias facetas de seu ser, com sua capacidade de estar vivo, inclusive, caso seja necessário, com sua tendência a deixar de existir. Nesse processo de encontro de subjetividades, a alegria e o prazer autênticos podem emergir, dando vida a experiências até então pouco desenvolvidas, num movimento em direção à transformação. Sem negar as feridas do passado, ou experiências de morte, esperanças no devir podem se fazer presentes. O fato é que diante de pacientes não neuróticos, apegados à beira de abismos, estratégias de vitalização se fazem necessárias nos atendimentos em-linha, de modo que possamos facilitar que vivam a vida o mais plenamente possível. Constatamos então que cresce o número de psicanalistas que se dedicam ao esforço de definir o que seja vitalização e, de modo especial, o binômio vitalidade–desvitalização. Aqui, nos inspiramos em Thomas Ogden e Anne Alvarez, cujas ideias abordamos a seguir. A linguagem e o tornar-se o mais plenamente humano O que eu te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. (LISPECTOR, 1988, p. 14). Ogden (2013, p. 37) poderia mesmo sintetizar as várias reflexões a respeito do tema em questão com a relevante afirmativa: “No decorrer dos últimos anos, tive cada vez mais consciência de que, para mim, o sentimento de vitalidade e de desvitalização da transferência-contratransferência é, talvez, a medida mais importante do que ocorre a cada momento no processo analítico”. Priorizamos o papel fundamental dado à linguagem por este autor, como o uso de palavras que denominamos “palavras aladas” (CESAR; RIBEIRO, 2023), em razão de sua vocação de leveza e de abertura, de modo tal que seja possível a apreensão do sentido dessa sutil interação de vitalidade e desvitalização da experiência humana. Para tanto, com fins de transmitir em palavras algo da experiência de estar vivo, é preciso que as palavras estejam vivas – a condição para tal é que guardem imprecisão, distinta de sentidos fixos. Que a palavra e sua sombra cintilem em “brilhante escuridão”. É nesse lugar de “brilhante escuridão” que o vivo emergente das trevas pode fazer sua aparição: no que escapa, no que se esquiva de transparência e revelação, no que se inscreve em reticências, no não saber e sua abertura, sua concavidade e entrelinhas. O oposto do que aqui nomeamos palavras aladas é quando a linguagem do analista ou do paciente fica estagnada, perdendo, com isso, sua vocação de transmissão do sentido da experiência humana viva. Nessa medida, como nos lembra Ogden (2013), precisamos manter certa inexatidão nas palavras e ideias: o cultivo de uma mente imaginativa, mente que se desloca em voo de um lugar (emocional) a outro, sendo desse modo capaz de captar os mais tênues, sutis, delicados sinais de vida. Em torno da imaginação que, segundo Ogden (2010), é sagrada na sala de análise, é que vão se tecendo narrativas num diálogo que une o par analítico. Assim foi com Lóri, que, sedenta, me jogou garrafa ao mar com a mensagem: “conta uma história”, e eu recolhi seu pedido, na outra margem do largo oceano que nos banha, lançando mão da minha mente imaginativa, à deriva; entretanto, aportando no que poderia resgatar minha paciente de seu estado amortecido. A imaginação, sagrada imaginação, é assim vitalizadora. Retomando as ideias de Green (2002), podemos falar que aqui comparecem os estojos de proteção e, consequentemente, fazendo uso da elasticidade da técnica, devemos manter o enquadre interior da analista. Na medida em que a matriz ativa é preservada, também o é a virtualidade intrínseca ao analisar e, de modo especial, a mente do analista. Retornando a Ogden (2013, p. 202): “Sugiro que o analista deva lutar ativamente com a linguagem no empenho de criar ideias e frases e voz própria para pronunciá-las. A luta para transmitir a própria experiência com palavras, e com voz própria, é grande parte do que constitui estar vivo na relação analítica”. O autor destaca a linguagem como vetor de vitalização, possibilitada pela liberdade imaginativa do analista. A capacidade de estar vivo em análise e na vida comporta o experimentar o mais amplamente possível as emoções humanas, alegrias e tristezas, desde a descida aos infernos até o emergir de naufrágios. Para o autor, o principal objetivo da análise consiste em auxiliar o paciente na ampliação de sua experiência de estar vivo. Se acompanho Lóri em seu flerte com o abismo, em seu espreitar o fundo do poço sem fim, também somos capazes de retornar à superfície viva da realidade, a que pode fortalecê-la na fé de que a vida pode ser oportunidade de maravilha, embora com tanto inesperado e assustador – como bem diz Hugo Mãe (2020). É maravilha, assim, uma canção entoada por nós – canção que remete às origens e cativa as almas empedernidas com o propósito de um libertar nas águas do singelo. Uma posição ética – aqui destacamos – deve se constituir “o ser analista” em tal presença que seja capaz de proporcionar uma experiência nova e benéfica que é fundamentalmente generativa. Vale ressaltar a salvaguarda da assimetria na dupla, com a condução do processo em mãos do analista; a virada vivificadora – de estados anestesiados a trocas vivas – parte do trabalho conjunto, com o paciente também ativo ao oferecer alguma abertura para sair de seu estado entorpecido. Assim foi com Lóri. Destacamos que, como vimos em Ogden (2013), nos atendimentos de pacientes não neuróticos, no enquadre em-linha, a vitalização se faz ainda mais premente. A seguir, acompanharemos o conceito de reclamação de Alvarez (1994) e, por fim, a “sedução suficientemente boa”, de Cesar e Ribeiro (2023). Companhia viva Basta-me um pequeno gesto,/feito de longe e de leve, para que venhas comigo/e eu para sempre te leve… – mas só esse eu não farei./Uma palavra caída das montanhas dos instantes/desmancha todos os mares e une as terras mais distantes…/– palavra que não direi. Para que tu me adivinhes,/entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, / ponho vestidos noturnos, – que amargamente inventei./E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando/nos ares certos do tempo, até não se sabe quando…/– e um dia me acabarei. (MEIRELES, 1994, p. 171) Com Ogden, destacamos o lugar da linguagem como vértice de vitalização, o binômio vitalidade-desvitalização como porta-voz de como se encaminha o processo analítico, sendo o objetivo da análise auxiliar o paciente a tornar-se o mais plenamente humano. Seguimos agora com Anne Alvarez e sua clínica de crianças e adolescentes autistas, pacientes borderline, sujeitos abusados. Frente a tais pacientes em estados de quase morte psíquica, Alvarez (1994) desenvolveu estratégias de vitalização, especialmente a que ela denomina reclaiming [5]. Entendemos, porém, que as ideias da autora são esperançosas e aplicáveis aos demais pacientes que apresentam impasses terapêuticos – aqueles que lutam para se sentirem vivos emocionalmente, necessitando da “companhia viva” do analista, como é o caso de Lóri. No livro “O Coração pensante” (2021), a autora canadense, que se apresenta como psicoterapeuta e não como psicanalista, discorre sobre três modos de intervenção terapêutica de acordo com o grau de gravidade do paciente e de seu nível de desenvolvimento: o nível explicativo, o nível descritivo e um terceiro, aqui em destaque, o reclaiming. Segundo Alvarez (2021), no nível explicativo, o trabalho se dá com crianças capazes de estabelecer vínculos causais. O analista usa então interpretações “por quê – porque” (Freud e Klein). Nesse nível, as crianças têm relacionadas as emoções ao presente e ao passado. Já o trabalho descritivo se estende ao “quê” da experiência - com os pacientes podendo vir a identificar suas emoções, dando nome e ampliando seus sentimentos. Neste nível, Alvarez (2021) se refere ao conceito bioniano de continência, mais dinâmico, diferenciando-o da neutralidade, destacando o trabalho emocional que ocorre dentro do analista, de contenção e manejo em um jogo equilibrado de forças. Tal trabalho foi equiparado ao estado de reverie materno, quando a mãe recebe a projeção da angústia do bebê dentro dela, sendo capaz de contê-la e devolvê-la sob outra maneira. Em termos bionianos, o ocorrido na mãe e no analista a partir do impacto da contenção inicial, é denominado transformação. Apresentamos brevemente os dois níveis de intervenção terapêutica com o intuito de encaminharmos o leitor para o terceiro nível, o do reclaiming, que nos interessa de modo primordial por se referir à vitalização e, podemos ousar, à necessidade de usá-la no atendimento em-linha – muito embora, nessa modalidade, os três níveis possam ser usados com pacientes nos quais predominam níveis primários de funcionamento. Aprendemos com Alvarez (2021) que, para alcançarmos nossos pacientes, devemos ter muito tato e disponibilidade emocional, independentemente do nível simbólico, o que exige de nós diferentes estratégias de manejo. O reclaiming ganha destaque quando sentimos que o paciente está nos escapando, tal como no movimento de retraimento belamente descrito por Cecília Meireles (1994, p. 171): “...Uma palavra caída das montanhas dos instantes / desmancha todos os mares e une as terras mais distantes... / - palavra que não direi”. Para além do insight e de outros níveis mais primários, Alvarez (2021) postulou a necessidade deste terceiro nível – da palavra não dita –, considerando tanto a psicopatologia quanto a técnica. Essa necessidade se originou de seu trabalho com Robbie - atendido desde seus treze anos até completar trinta (com interrupções), um paciente gravemente adoecido, que apresentava retraimento severo, com ameaça de morte psíquica, demandando uma postura mais ativa e ágil da parte do analista. Surge assim a vitalização e o reclaiming - intervenções terapêuticas que colocam o analista oferecendo-se como objeto vivificante junto a pacientes dissociados, primitivos visando atrai-los para o mundo dos objetos e emoções. Robbie se aproximava mais de uma desistência do que de um refúgio defensivo - como uma ameba indefesa (ALVAREZ, 1994), não um crustáceo com suas defesas (TUSTIN, 1984), ele havia desistido, estava perdido mais do que escondido. Alvarez esclarece: “o refúgio ao menos oferece um lugar para ir; o deserto não oferece nada” (1994, p. 179). Na experiência do reclaiming, o mundo psíquico do paciente é chamado à vida, de modo análogo a terras improdutivas que são reivindicadas em seu potencial de florescimento. Em nota de rodapé, Alvarez (1994) amplia o sentido do termo: “incluir atrair (aves) com reclamo, instrumento que o caçador usa para imitar o canto das aves que deseja atrair”, e enfatiza que “o sentido de trazer de volta fica evidente” (p. 64). Sobre sua experiência de reclaiming com Robbie, Alvarez relata seu temor de tê- lo perdido de vez, pois nada o alcançava. Então ela colocou sua cabeça em sua linha de visão, e chamou seu nome. De repente, como emergindo das profundezas, ele disse “Hello-oo”, com admiração e doçura, como se estivesse cumprimentando um amigo, há tempos perdido. No processo clínico que se seguiu, Robbie passou a estabelecer contato com sua terapeuta e o seu mundo de sentimentos. Reconhecemos no trabalho de Alvarez esperança e compaixão, assim como no contato com Lóri, em que o uso da vivacidade da analista foi demandado – mesmo considerando que seu retraimento não era tão severo, foi necessária uma postura mais ágil e ativa, acompanhada de uma posição de reserva [6] . Outra fala de Alvarez cabe aqui: “o paciente não quer que o reivindiquemos - ele está doente demais ou distante demais para isso. Ele precisa que o reivindiquemos”. (1994, p. 128). É verdade que Lóri fez um tímido gesto, mas o identifiquei como uma necessidade. Também considerando a tela nos separando, a ausência do corpo, nossa hipótese é de que tal uso da vivacidade do analista faz-se mais premente no atendimento em-linha – trata-se de uma psicanálise mais voltada para o futuro. Nos tempos atuais, esse novo modo de atendimento, como vimos, veio requerer meios de atuação que vêm sendo gestados desde Ferenczi, encaminhando-se no seio do que Ogden (2020) denomina psicanálise ontológica [7], oferecendo instrumentos que nos aproximam, paradoxalmente em meio à distância, para que tenhamos condições de alcançar o paciente, tocá-lo, auxiliá-lo em seu movimento de tornar-se o mais plenamente humano. A sedução suficientemente boa no atendimento em-linha Entendi que minha função era acolher Lóri e tratar sua tristeza, mas também chamá-la para suas facetas saudáveis. Atravessamos sessões em que desertos de desesperança dominavam o cenário, outras em que a esperança despontava graças à potência do encontro. Certa vez, ela me falou de seu medo da loucura num contexto em que pude vislumbrar os aspectos saudáveis também presentes, porém, não integrados, ocultados pela sensação de estrago e empobrecimento no mundo interno. Disse-lhe então: “Do chão não passa”. Lóri se tranquilizou, e me lembrei de uma parlenda, que narrei como um acalanto – ela logo me acompanhou, e o acalento se espalhou na sessão: “Hoje é domingo. Pede cachimbo. O cachimbo é de ouro. Bate no touro. O touro é valente. Bate na gente. A gente é fraco. Cai no buraco. O buraco é fundo. Acabou-se o mundo”. Vislumbramos juntas que, nesse momento, uma espécie de fé na vida se acendia, que seu buraco não era desses, não era esse cair para sempre a que a aparentemente inocente parlenda se refere, talvez mais tenebrosa do que as agonias impensáveis nomeadas por Winnicott (1963/1994). O chão era, aqui, como lugar de descanso e solidez para o assentamento do vir a ser. A partir de investigações sobre a função vitalizadora e das estratégias vitalizantes do analista, nomeamos em outro texto (CESAR; RIBEIRO, 2023) a ideia de “sedução suficientemente boa”. Essa expressão tenta aproximar a reflexão sobre a sedução na sala da análise como vitalização necessária: seduzir para favorecer o processo analítico, seduzir como um convite à vida. Cunhamos tal termo a partir da “mãe suficientemente boa” de Winnicott; afinal, a mãe é quem primeiro libidiniza o bebê (RIBEIRO, 2011), e o convida para a vida. Estamos aqui falando de Eros para além de seu significado sexual – Eros como ligação, Eros-linha, Eros-cordão: Estar de um modo criativo junto ao paciente é elemento de força vital. O que aqui pensamos como presença erótica, que começa nas trocas mãe-infante, estende-se para além destas e do puramente sexual para uma “joie de vivre” – uma paixão pela vida em seus altos e baixos – o sexual aqui resgatado numa concepção ampla, a mente enraizada na dimensão erótica do corpo: o nascedouro do vivo entre ternuras e ardências (CESAR; RIBEIRO, 2023, p. 177). Assim, quando canto com Lóri ou recito a parlenda, convido-a para uma singular coreografia erótica (ELISE, 2017 [8]), lançando a linha-cordão para nos sentirmos vivas no encontro e podermos caminhar na direção da esperança depois de percorrermos áridos desertos, depois de descidas ao inferno. Uma interpenetrabilidade de mentes, de fragilidades e potências. Cenas acontecendo no atendimento em-linha. Afinal, como bem diz Pitliuk (2021, p. 52): De fato, não há nada mais sugestivo, e com tantas ressonâncias, do que a ideia de ligação por fio ou cabo (de telefone, de internet, de fones de ouvido): o cordão umbilical, o cabo que liga um astronauta à nave-mãe, o barbante do carretel do neto de Freud (1920,1976), o cordão do famoso menino do ecordão, atendido por Winnicott (1971,1975), os brincares das crianças com as latinhas unidas por um barbante...Brincares que vão se desdobrando e vão se simbolizando, ao longo da vida, e telefones sem fio das mais variadas formas e distâncias, na construção da capacidade de se separar e de ficar só. Telefones sem fio sim, mas lembremos: sempre ligados por ondas – sonoras, elétricas, eletromagnéticas, mnêmicas, simbólicas; ou seja, ligados, sempre, por pontes de alguma natureza, mesmo que não visíveis. Retomando a epígrafe com a qual abrimos este escrito: “Os teus olhos foram feitos para atravessar o invisível” (PEIXOTO, 2015, p. 95) – uma linha invisível une Lóri e a analista – laço, vínculo, cordão. Trabalhamos com os recursos possíveis, rodeando o impossível. Somos “nós, estreitos nós”, que ora se esgarçam, ora se enlaçam no campo de nossa possível humanidade. Uma experiência analítica vitalizante e transformadora, em-linha. Referências ALVAREZ, A. (1992). Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. ______. (2012). O coração pensante. São Paulo: Blucher, 2021. CAPER, R. (1999). Tendo mente própria: uma visão kleiniana do self e do objeto. Tradução de H. Pedreira. Rio de Janeiro: Imago, 2002. ______. Bion and thoughts too deep for words. London and New York: Ed. Routledge, 2020. CESAR, F. F.; RIBEIRO, M. F. R. Eros no encontro analítico: a sedução suficientemente boa. In: Chuva n’alma. 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NOTAS 1 É importante ressaltar que trabalhamos no “espaço potencial” (WINNICOTT, 1971/2016), no lugar do “entre” que corresponde a um plano de realidade simultaneamente real e fictício, verdadeiro e ilusório, presente e ausente, próximo e distante. 2 Figueiredo e Coelho Jr. (2018) propõem dois tipos de adoecimento: o adoecimento por ativação – matriz freudo-kleiniana – em que as defesas são ativas; e o adoecimento por passivação – matriz ferencziana – quando o trauma é precoce e as defesas são por passivação. 3 Figueiredo se refere aqui ao interessante nome do livro de Robert Caper (2020): Bion and thoughts too deep for words. 4 O uso da primeira pessoa do singular se justifica pelo fato de este atendimento ter sido realizado por uma das autoras do artigo. 5 Poderíamos traduzir por um ‘clamar, chamar, convocar’, mas preferimos manter o uso da palavra em inglês devido à importância que Alvarez dá ao termo. 6 Reserva no sentido da proposta técnica psicanalítica da posição de implicação e reserva do analista de Figueiredo e Coelho Júnior (2008): “...Trata-se de o analista manter-se em movimento entre presença implicada e presença reservada...” (p. 11). 7 “Segundo Ogden (2020), a psicanálise epistemológica está relacionada ao conhecimento e à compreensão, ou seja, ao campo das representações e diferenciações, tendo Freud e Klein como principais autores; por outro lado, a psicanálise ontológica tem Bion e Winnicott como referências, e é relativa ao ser e ao tornar-se - campo do não representado e do indiferenciado.” (RIBEIRO, 2024). 8 As ideias de Dianne Elise (2017) são apresentadas no capítulo Eros no encontro analítico: a sedução suficientemente boa, no livro Chuva n’alma. A função vitalizadora do analista. (CESAR; RIBEIRO, 2023).
- Dimensões vitalizantes da presença e o lugar do prazer no encontro analítico
Este artigo foi publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental em 2025, sob autoria de Marina F. Ribeiro e Fátima Flórido César. Resumo: No campo da psicanálise, a dor é comumente entendida como motor de transformação, em detrimento do prazer. Há, porém, psicanalistas que destacam que experiências prazerosas também podem gerar desenvolvimento, configurando-se como vetores de vitalização. Winnicott, Ferro, Civitarese, Anne Alvarez, Bollas e Rachael Peltz são alguns deles, com os quais nos alinhamos e dialogamos neste artigo. Nossa proposta é apresentar e dialogar com as ideias dos autores referidos que contribuem para a compreensão do termo vitalização no processo analítico e suas possíveis conexões com o prazer. Palavras-chave:Prazer; vitalidade; desvitalização; encontro analítico Meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver. ( Lispector, 2016 , p. 309). A parede cheia de grandes quadros de orixás emoldura nossos encontros on-line. A primeira fala de Rosa [1] anuncia o idioma de nossa relação: “gostei de você porque vi que você era louca que nem eu”. Sem renegar esse chamado para seu mundo mental, a acolho com um sorriso, contando com minha sanidade para circunscrever a doida coreografia que iniciava a envolver nós duas. A loucura de Rosa era mesmo encantadora. Também eu - como todo humano - não poderia fugir dos recantos d’alma mais insanos. Assim selou-se um pacto no qual Rosa, como suplicante, ansiava por transformação de um modo que oscilava entre queixas agudas e risadas cheias de graça pueril. Nossos encontros transcorriam entre pedidos de atenção para sua dor, entremeados por histórias coloridas de alegria e prazer que narrávamos mutuamente. Definitivamente, posso afirmar que uma experiência de prazer era partilhada por ambas . Os parágrafos com os quais iniciamos este artigo trazem um breve retrato do encontro que se deu entre Rosa e uma das autoras. Ali, o prazer parecia despontar vitalizando o campo analítico, direcionando-nos a lançar as questões: qual o lugar do prazer no trabalho de análise? Qual sua relação com a vitalidade, tanto do analista quanto do paciente? Para dialogar com essas questões, seguiremos compartilhando ideias de Donald Winnicott, Antonino Ferro, Anne Alvarez, Christopher Bollas, Giuseppe Civitarese e Rachael Peltz. É comum encontrarmos, no campo da psicanálise, certo destaque da dor psíquica como motor de transformação, em detrimento das experiências prazerosas. Porém, alinhadas com os autores citados acima, entendemos que o prazer também pode gerar desenvolvimento emocional, configurando-se como vetor de vitalização. Estamos falando do prazer do analista com seu trabalho, ainda que árduo, do prazer do encontro da dupla, do alcance de insights , enfim: do prazer de brincar e jogar junto. Nesta direção, Giuseppe Civitarese e Antonino Ferro ( 2022 ), na introdução do livro Playing and Vitality in Psychoanalysis , indicam a necessidade de “dar mais espaço em seu léxico analítico para palavras como prazer, sonho, criatividade, hospitalidade e crescimento” (p. 4). Propomos então, neste artigo, apresentar ideias que contribuam para a compreensão do termo vitalização, de modo a refletir sobre qual dimensão de prazer estamos nos referindo. As situações clínicas vividas no trabalho analítico desenvolvido com Rosa nos serviram, aqui, para dialogar sobre a função vitalizadora da analista, ou seja, sua ‘companhia viva’, ainda que sujeita a situações de desvitalização - em outras palavras, um disponibilizar de presenças vitalizantes favorecedoras da experiência de sentir-se vivo e o mais plenamente humano. Ressaltamos que faremos uma aproximação teórico-clínica do que denominamos vitalização. Estamos acompanhando Ogden (2013) , autor que dá extrema ênfase a esse tema, e que assim afirma: ... palavras e frases só estarão frouxamente “fixas à página” (Frost, 1929, p. 713). Usarei palavras como “vitalidade” ( aliveness ) e “desvitalização” ( deadness ), “humano” e “perverso”, “sincero” e “não autêntico” sem defini-las exceto na forma em que são usadas em frases, o que é uma enorme exceção. (p. 21) Reconhecemos assim uma tensão entre o esforço de compreensão de vitalidade e a manutenção de certa imprecisão, também, necessária. Tal abertura é capaz de salvaguardar a concavidade e o insaturado, a proximidade com o jogo, algo avesso ao aprisionamento teórico da experiência de vitalidade. O analista como presença vitalizante Se falamos da importância fundamental de oferecer presenças, o binômio mãe-bebê constitui paradigma que inaugura tanto a vitalização quanto o prazer como fontes para o vir-a-ser do bebê, similar ao ser e tornar-se do paciente - objetivo central do encontro analítico, segundo o vértice ontológico [2]. Nessa direção, Winnicott (1975) é um dos autores que pensa a relação analista-paciente a partir da relação mãe-bebê. Analista e mãe sendo presenças vitalizantes e afetivas, com o prazer circulando entre ambos, caso as ausências e ameaças de desencontro não predominem. O brincar é central na obra de Winnicott (1975) , na verdade, também em sua vida. Tanto que encontramos em seus relatos, com certa frequência, a revelação do prazer que sentia em exercer seu ofício: “eu participava ativamente nesta brincadeira que muito nos divertia” ( Winnicott, 1984 , p. 25), ou “estávamos os dois encantados em brincar juntos” (p. 61). Mas, com o mesmo cuidado em pensar a alegria, precisamos entender o brincar para além das brincadeiras; ou seja, como uma capacidade de o analista se colocar na posição subjetiva, de acordo com as necessidades psíquicas do paciente: é a esse jogo que se refere Winnicott. Como a alegria era uma escolha ética, esta tornou-se o centro da concepção de seu trabalho - e quanto ao brincar, ele enuncia: “se o terapeuta não pode brincar, isto significa que não é feito para este trabalho” (1975, p. 80). No texto “Os objetivos do tratamento psicanalítico” ( 1962/1982c ), Winnicott afirma: Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de:Me manter vivo;Me manter bem; me manter desperto.Objetivo ser eu mesmo e me portar bem. (p. 152) Tal vivacidade, atenção engajada, como veremos mais adiante em Peltz [3] (2020), se apresenta no amor materno que equivale à mãe tomando o bebê de forma viva, sem algo que perturbe a experiência, assim possibilitando um encontro vivo. Winnicott ( 1964/1982b ) também escreve que a mãe compreende o que o bebê sente porque está viva e tem imaginação. Ou seja: só seremos capazes, como analistas, de ir ao encontro analítico de nossos pacientes se estivermos vitalizados e em contato com nossa criatividade psíquica. Assim como a vivacidade, quando está presente na clínica, advém de ambos (analista e paciente), a comunicação mútua mãe-bebê, iniciada no útero, é experienciada com vivacidade pela dupla: “ao espernear, [o bebê] dá sinais concretos de vida e de vivacidade” ( Winnicott, 1964/1982a , p. 21). Porém, a vivacidade do bebê depende, de certa maneira, da mãe - ela mãe precisa estar bem para receber com alegria esses sinais de vida do bebê. Por isso, Winnicott incentiva as mães a se envolverem ativa, íntima e corporalmente com seu bebê, como vemos em uma de suas palestras, denominada “O bebê como organização em marcha”: Bem, faço votos para que se divirta! Divirta-se por a julgarem importante. Divirta-se deixando que as outras pessoas cuidem do mundo, enquanto você está produzindo um de seus membros. Divirta-se com a sua concentração interior, quase enamorada de si própria - o bebê e uma parcela tão próxima de si. Divirta-se com a maneira como o seu homem sente-se responsável pelo bem-estar tanto seu como do bebê. Divirta-se descobrindo coisas novas a seu próprio respeito. Divirta-se tendo mais direito do que jamais conseguira ter, antes de fazer justamente aquilo que acha bom. Divirta-se quando fica contrariada porque os gritos e prantos do bebê o impedem de aceitar o leite que você anseia por dar com generosidade. Divirta-se com toda espécie de sentimentos femininos que você não pode nem sequer começar a explicar a um homem. Em particular, sei que a leitora [mãe] vai adorar os sintomas que gradualmente irão aparecendo, de que o bebê é uma pessoa e de que você é reconhecida como uma pessoa pelo bebê. ( Winnicott, 1964/1982b , pp. 27-28) O prazer torna-se, assim entendemos, um elemento fundamental e vitalizador, como acontece no encontro analítico - a vitalidade do paciente está conectada à do analista. Se o contato da mãe com seu filho lhe dá prazer, este é “vitalmente importante do ponto de vista do bebê” (p. 28). O prazer sendo vitalizador, não pelo fato de o bebê ser cuidado com perfeição, por uma mãe mecânica, infalível e correta - e sim por ser ofertado com alegria. Assim, é importante que o alimento, por exemplo, seja oferecido por alguém que ‘ama’ alimentar seu bebê. O prazer da mãe surge, desse modo, como equivalendo “ao raiar do sol do bebê” (p. 28). O analista, como a mãe, precisa receber o paciente de forma viva, com alegria, como uma forma de recepção atenta, disponível e com interesse genuíno, possibilitando, nas palavras de Ogden (2020 , p. 26), caminhos para o paciente “tornar-se mais plenamente si mesmo”. Em cada bebê existe, para Winnicott ( 1964/1982b ), uma centelha vital, um impulso inato para a vida, sendo esta uma parte que impulsiona o bebê a seguir adiante em seu amadurecimento. Goldman (2012) vai além: “no coração da obra de Winnicott está uma persistente preocupação com o impulso para a vida e com a morte que resulta de falhas em criar e descobrir um mundo que pode tolerar sua própria vivacidade ( aliveness )” (p. 333). Na verdade, também acreditamos que nossos pacientes carregam, lado a lado ao impulso vital, a morte resultante de ausências inevitáveis da vida, algumas delas impeditivas talvez de encontrar um mundo que acolha sua vivacidade. Para que a centelha vital do bebê venha a se desenvolver, precisa de modo absoluto do amor da mãe; isso não significa que elas (as mães) sejam responsáveis pela vivacidade de seu filho. Algumas mães que assim o sentem, ficam no papel de animadoras, em vigília, aguardando aflitas que seus bebês deem sinais de vida - algo que indique que o processo vital na criança continue. De modo similar, o paciente necessita de nossa presença vitalizante, de nossa alegria ética. Devemos, pois, pensar a alegria como princípio ético e não restritamente como traço de humor: eis a interessante proposição de Macedo (1999) . Por outro lado, podemos lidar com tendências por parte de nosso paciente a ausentar-se do contato. Assim como as mães não põem vida em seu bebê, também o analista não põe vida em seu paciente, embora precise convidar para a vida. É essencial pontuar que a vitalização convoca à vida, por isso o prazer é tão fundamental. Seguindo Peltz (2020) , precisamos apostar nas dimensões de vida de nossos analisandos, embora nem sempre podendo resgatá-los dos infernos e desertos que atravessam. De modo a evitarmos ao máximo extravios e deslizes de morte psíquica, é fundamental que ofertemos uma atenção engajada na direção de cuidar para que nossos pacientes não sejam sugados pelos redemoinhos da vida, inclusive do que é vivenciado nos desencontros do par analítico. Assim como a vitalização, o prazer surge como ferramenta possante ao nosso alcance, considerando tanto o impulso vital quanto os assombros traiçoeiros de morte: o prazer como solo em que a dor psíquica seja passível de ser metabolizada. A celebração do analisando pelo analista: um olhar bollasiano A partir de ideias de Bollas (2021) , seguimos aqui nosso interesse por lançar luz às dimensões afirmativas da vida em detrimento de um pensamento que prioriza a análise dos processos destrutivos, do ódio, de uma concepção da realidade apontada como fundamentalmente dolorosa. Esse autor declara sua perplexidade diante da exclusão de uma tarefa psicanaliticamente mais difícil que a análise dos processos mentais destrutivos: a psicanálise dos instintos vitais do paciente e suas criativas e admiráveis realizações na vida e na análise. Bollas (2021) se refere à celebração do analisando pelo analista como um registro da presença do instinto vital do paciente. Da mesma forma que a análise dos instintos de morte não significa condenação, a análise dos instintos de vida não significa elogio. Afirma que, do mesmo modo que usa seus sentimentos no trabalho interpretativo ao confrontar seu analisando, usa-os também para celebrá-los: O analista que celebra a chegada das representações do instintual e verdadeiro self proporciona uma função importante de ligação entre o mundo exclusivamente interior e o mundo real. Nessa posição intermediária, o analista usa certa sensibilidade afetiva para conter e processar receptivamente os aspectos da realidade emocional do paciente, que este se sente compelido a guardar para si mesmo. É desnecessário dizer que isso envolve o analista em uma função um pouco diferente daquela em que o seu modelo tradicional é o da voz neutra; em relação ao que foi dito acima, a voz do analista é, sem dúvida, portadora de sentimentos. (p. 114) O que pretendemos ressaltar aqui é a ênfase que Bollas dá ao uso por parte do analista de certa sensibilidade afetiva que exige dele uma função diferente do modelo ‘clássico’. É muito interessante que, no lugar da voz neutra, a voz do analista possa ser portadora de sentimentos - não como descargas afetivas da personalidade do analista, mas de modo a usá-los em disponibilidade para o esclarecimento analítico. Pari passu ao fluxo das associações livres, aqui se destaca o fluxo dos sentimentos: “O psicanalista celebra o verdadeiro self por meio de sua resposta afetiva à sua presença!” (p. 114). Trata-se de interesse genuíno, atenção engajada, vivacidade. Pequenas, vigorosas e afetivas intervenções por parte do analista são como se o analista dissesse: “O verdadeiro self! Por este caminho! Por aqui!” (p. 114). Da mesma forma que valoriza a confrontação analítica frente à turbulência emocional derivada de relações familiares patológicas, Bollas considera que é de sua responsabilidade prestar cuidadosa atenção às aptidões do ego do analisando, apoiando-as pela celebração, e, em seguida, interpretando-as. O uso dos sentimentos do analista é aqui tão importante quanto o momento em que se dá a celebração da presença do analisando. Resposta afetiva e sentimentos estão no cerne do sentido do uso que Bollas faz do conceito de celebração, e que se liga à ideia que pretendemos transmitir neste artigo, em que as dimensões vitalizantes ganham destaque na coreografia do par analítico -tendo no centro a afirmação dos aspectos vitais tanto do paciente, quanto do analista, sem desconsiderar, no entanto, as ameaças de morte psíquica. Vinculado à celebração do analisando, Bollas (2021) também chama atenção para o lugar do prazer dentro da situação analítica. Primeiramente, parte do significado de prazer do dicionário Webster [4]: “a gratificação dos sentidos e da mente”, o que gera um problema, ao se chocar com a concepção clássica de que o analista não deve gratificar o paciente. Mas, então, analista e paciente não poderão encontrar prazer no processo analítico? Bollas vai na contramão dessa concepção, e a ele nos alinhamos. Considera veementemente que a análise gratifica a mente, e que ser compreendido é gratificante, assim como a associação livre, o deitar-se no divã. Em suma: falar com o analista é uma experiência diversa de qualquer outra conversa, como se no campo analítico as palavras valessem mais. Continuando com o dicionário Webster, Bollas destaca que o prazer é uma “sensação ou emoção agradável”, como de fato experimentamos no encontro analítico destacando, aqui, a transferência positiva. Também “excitamento, satisfação e felicidade gerados pelo gozo da expectativa do bem” é uma maneira de definir a resposta de prazer do analisando diante de determinadas interpretações. Quando o prazer surge, é importante que o analista se refira a ele, mostrando que o par analítico está trabalhando de forma proveitosa, e que isso gera prazer. Além do princípio do desprazer [5], a relevância do prazer na teoria e na técnica psicanalíticas. Vamos agora compartilhar ideias desenvolvidas por Anne Alvarez [6], psicanalista dedicada ao atendimento de crianças autistas, abusadas e com adoecimentos que beiram o inumano (o que não é pouco). Pensamos que suas reflexões sobre o jogo, no que ele envolve de vitalização e prazer, podem se estender ao atendimento de adultos. Interessante que Alvarez se remete ao conhecido exemplo do jogo do carretel do neto de Freud ( 1920/2010 ), o qual, inclusive, a autora considera como a primeira teoria psicanalítica do brincar. Frente ao seu sentimento de desamparo derivado de uma saída da mãe, o menino assim brincava: segurava o carretel pelo barbante e jogava-o sobre a borda do berço, de modo a fazê-lo desaparecer, ao mesmo tempo em que emitia um expressivo “o-o-o-o”. Puxava o carretel em seguida de volta para o berço e celebrava seu reaparecimento com um alegre “dá” (lá). Ou seja, o jogo condensava, de modo completo, desaparecimento e retorno. Freud o interpreta como uma grande renúncia instintiva que seu neto fizera ao permitir que a mãe saísse sem protestar. Alvarez ressalta, porém, que, embora Freud reconhecesse que a segunda parte do jogo era a maior fonte de prazer, ele enfatiza que a experiência desagradável é que estava sendo representada; e isso mesmo que o princípio do prazer ainda tivesse importância, já que uma experiência passiva fora transformada em ativa. Isso mostra que o prazer é visto por ele, principalmente, como uma defesa contra o desprazer, provavelmente devido à visão da realidade como fundamentalmente frustrante e dolorosa e, portanto, precisando ser enfrentada para se chegar a um acordo. Ao contrário, na visão da psicanalista, com a qual dialogamos, o jogo não indica fuga da realidade desagradável e sim um brincar que favorece a compreensão da criança do desaparecimento e retorno da mãe. Alvarez (1988) sugere que a brincadeira pode vir a ser uma preparação para realidades mais prazerosas, o que não quer dizer que constituam a negação do desprazer. E ressalta algo bastante relevante: a longa transição de uma psicanálise centrada no passado para o pensamento de que a técnica deve fundar-se num presente vivo, mais além, em direção ao futuro. De fato, esse direcionar para o presente e, ainda, para o futuro, traz importantes consequências para a técnica. Entretanto, Alvarez alerta que a noção de perda e frustração, também, atuam como estimuladores do pensamento. Como já afirmamos, podemos estender as ideias da autora à psicanálise com adultos [7]. No que se refere à técnica psicanalítica, entendemos que conduzir o encontro analítico na direção de vislumbrar futuros [8] abre possibilidades que vão além do retomar o passado, e demanda uma presença vitalizante que aposta na fé em uma realidade que é fonte de prazer e possibilidades. Trata-se de algo, sem dúvida, vitalizador. Retomando brevemente o caso da paciente Rosa, a mistura de crenças, desde umbanda, jogo de búzios, tarô e tantas outras, comunicava seu ardor por oráculos que decifrassem seu passado, mais que o futuro. Por sua vez, a analista a acompanhava nas instabilidades do presente, com os encontros seguindo entre prazer e risadas entremeados por choros imprevistos. A aposta era de que a oferta de futuros viesse a trazer-lhe esperança, bem como a possibilidade de renovação e de entrar na vida. Prazer legítimo [9]: um bom motivo para retornar à próxima sessão Por que continuamos seguindo juntas? O que nos unia? A minha entrada no mundo estético de Rosa nos aproximava (músicas, filmes, sua religiosidade), assim como nos divertíamos no encontro analítico. Podia o prazer amainar a dor, trazendo vitalidade ao encontro? Sigo apresentando algo mais da história do processo analítico com Rosa, clareando por que caminhos a leveza fazia sua aparição - intrigante, mas não impossível de acontecer no atendimento de um caso considerado difícil, pois reconheço o perambular sem rumo de Rosa e seus períodos de grande dor. Poderia o prazer metabolizar a dor? Que coreografia era esta que nos enlevava? Apresento, portanto, os enlaces que nos envolviam. Rosa segue com seus interesses esotéricos, mas também nos encontramos nas músicas e cantores. Por exemplo, quando no meio da sessão, distraidamente, recita o verso de Zé Ramalho da canção “Chão de giz”: “são meros devaneios tolos a me torturar, amiúde”. Surpreendo-me com a capacidade de pescar pérolas que Rosa tem, afinal, não havia ainda reparado na beleza e na eloquência do verso. Também pensei na sintonia com o temor de abandono - devaneios tolos decerto - que a rondavam. Foi um momento em que nos encontramos em torno de um objeto estético que remetia à juventude, mas de modo especial, às suas dúvidas de amor. São objetos culturais que nos unem, assim como ela traz de estrangeiro para mim os orixás e as demais crenças, apresentadas em palavras de difícil compreensão. São dialetos diversos que me atraem ao seu mundo psíquico enquanto nos esbarramos com delicadezas no encantamento comum pelas canções do tempo d’outrora. Em algumas sessões vivenciamos, portanto, momentos estéticos, no navegar de tempos sombrios, outros de leve brincar ou ainda cirandas em que as melodias emolduram as letras das canções pescadas por Rosa. São versos que me surpreendem ao me capturarem em meus devaneios - eu distraída da eloquência que veiculam. Sua mente, por sua vez, se mantinha viva, aberta e receptiva para a expressividade dos versos. O compartilhar de objetos culturais, assim como de boas risadas, banhavam algumas sessões de prazer e sua potência de transformação e elaboração da dor. Em seu texto “O prazer da hora analítica”[10], Antonino Ferro [11] (2017) reconhece que a dor, considerada como fator de transformação, é objeto de muitos estudos em psicanálise, ao passo que o prazer é pouco abordado. O autor retoma a afirmação de Bion [12]: como analistas, devemos fornecer ao analisando, em todas as sessões, um bom motivo para que volte no encontro seguinte. Enumera, também, outros prazeres: as transformações que vivenciamos na trajetória analítica, descritas por Freud, mas especialmente por Bion; transformações no jogar e no sonho, assim como na autobiografia, o prazer da descoberta e do insight . Interessante também a maneira como Ferro (2017) aborda o tema da criatividade, destacando o quanto é comum encontrarmos pessoas que têm medo do criar, por trazer à tona o desconhecido, quando, na verdade trata-se de um lugar de prazer e transformação. Ele nos conta de uma experiência pessoal com um colega psicanalista, que teria ficado escandalizado quando Ferro lhe disse que “gostava” de ser analista, como se isso significasse que estava desconsiderando a dor e o sofrimento de seus pacientes. E completa: “A criatividade é capaz de abrir, transformar, metabolizar até a dor, o sofrimento, a agonia, as coisas horríveis das quais também somos moldados” (p. 70; grifos do autor). Refere-se, também, a Ogden (2018) , quando este diz que o que não pode ser sonhado torna-se um sintoma que pode ser dissolvido ao ser sonhado pela dupla analítica. Por esse caminho, emerge o prazer por enigmas ( puzzles ), a curiosidade, o prazer da história e, antes disso, a reverie e as capacidades de transformação em sonho, em brincadeira e jogo. Vivenciar o brincar compartilhado com o analista, aqui entendido como favorecedor de longas travessias analíticas por experiências dolorosas, parece um bom motivo para que o analisando volte na sessão seguinte. Um aspecto do prazer analítico mencionado por Ferro é a conarração na sessão, da qual fazem parte tanto o analista como o paciente; ou seja, quando falamos em prazer legítimo, estamos nos referindo à experiência de que algo é partilhado pela dupla analítica. A oferta da vitalidade do analista: algumas ideias de Rachael Peltz O título do artigo de Rachael Peltz (2020) - “Ativando a vitalidade no encontro analítico: o fundamento do Ser em Psicanálise" [13] - condensa as ideias que ligam brincar, prazer e vitalização. Segundo a autora, “a ênfase aqui está na ativação de presenças vitalizantes ( vitalizing) e afetivas no campo do relacionamento analítico - transformação em ação, transformação em ser, em que nós ‘usamos tudo o que há para usar’ para estabelecer contato emocional” (p. 268). Embora não se refira diretamente ao prazer, ao destacar a noção de vitalização, Peltz parece relacionar tal experiência ao ato de ligação ( Bindung assim chamado em alemão por Freud) e a Eros (pulsão de vida). É importante destacar que Peltz (2020) sugere uma mudança de paradigma na psicanálise - de uma explicação causal para uma perspectiva fenomenológica, na qual o fundamento é o campo da relação, incluindo “todas suas dimensões não-simbólicas-incorporadas, pré-simbólicas-descritivas e simbólicos-representacionais” (p. 267). Somente assim podemos acessar “os assombros de morte mais traiçoeiros” (p. 267). Desse modo, será possível oferecer nossa vivacidade, acreditando também que venhamos a atravessar nossos próprios assombros, para que juntos possamos enfrentar “o objeto da morte” ( Durban, 2017 , p. 15). Será dentro deste paradigma que iremos trabalhar, predominantemente. Peltz (2020) sugere que devemos estar próximos aos nossos pacientes, atendendo suas experiências vividas a partir de uma abordagem mais fenomenológica do que explicativa; ou seja, algo diverso das dimensões causais dos porquês. Isso vai ao encontro do que Alvarez (2020) chama de dimensões descritivas e vitalizantes, e do que Ogden (1999) refere quando escreve sobre a música do que acontece na poesia e na psicanálise. Assim, no lugar de explicar, a prática clínica atual nos dirige ao ‘compreender’, entrando no campo do relacionamento analítico de um modo que podemos denominar corporificado. Peltz nos remete novamente a Alvarez (2020) , quando a autora denomina a aproximação de situações reais a presenças vitalizantes [14], como apontamos no título do artigo. Peltz (2020) levanta a questão: em que registro estamos quando a troca vitalizante ocorre? A resposta é a oferta de uma forma de engajamento que venha a gerar presenças diante das ausências vitais, incluindo as ausências em nosso próprio trabalho. No paradigma mencionado por Peltz (2020) , o chamado é, pois, para o engajar nas “dimensões afirmativas da vida” (p. 269). Também se referindo ao jogo do carretel do neto de Freud, e alinhada a Alvarez, como vimos anteriormente, ressalta que, até recentemente, ouvimos mais sobre o “fort” do que sobre o “da”. Argumenta ainda que não necessariamente nossos pacientes estão mais adoecidos, propondo que, na verdade - “(...) nossas metáforas estão mudando - de cavar para alcançar ‘profundidade’ em direção a receber profundamente, aprimorar, amplificar” (p. 269). Assim como Peltz (2020) , também perguntamos: “O que é uma presença vitalizadora?”. Trata-se de “uma presença que desperta momentaneamente a capacidade mais rudimentar em uma pessoa em se sentir viva com ela mesma” (p. 170). É aquela que permite a alguém se sentir vivo - nos casos mais graves, a ‘nascer de novo’. Mas como isso acontece? A resposta é simples e complexa ao mesmo tempo: auxiliamos o paciente a se sentir vivo ao nos importarmos autenticamente com ele! Algo semelhante ao reclaiming de Alvarez (2020) com seu paciente Robbie e sua expressão espontânea: “Ei!”, significando: “Ei! Você importa!”. Haverá algo mais profundo e fundamental em nosso estar com o paciente? Um extremo e complexo cuidado, assim compreendemos. Vemos aqui a importância do interesse genuíno do analista pelo paciente, manifesto em palavras com investimento afetivo simples e direto. Conseguir comunicar ao paciente essa simples e profunda mensagem, eis o solo em que se planta o trabalho analítico a partir dos autores que estamos dialogando. Peltz (2020) também leva em conta a linguagem como vetor de vitalização [15], referindo-se a interpretações insaturadas [16] que expandem o que é sentido e não perseguem o paciente. A autora fala, ainda, da tarefa nada simples de “salvaguardar a segurança de uma interpretação!” (p. 272) - como, quando e quanto interpretar. Ideias que também estão presentes no pensamento de Thomas Ogden (2018) : o mais importante é como falar, e não o que falar. A atenção engajada ( engaged attentiveness ) possibilita que detalhes vitalizantes da vida cotidiana venham a emergir ( Peltz, 2020 , p. 174). Portanto, estamos nos referindo a significados em comum: interessar-se, importar-se, oferecer atenção engajada. Consequentemente, tal atenção nos direciona à linguagem que se adapta a cada paciente. Para tal, é preciso salvaguardar uma dimensão atenta , propiciadora de trazer à vida o que o encontro analítico traz de desafiador. A atenção destacada por Peltz pode ser associada aqui à ideia de devoção de Winnicott [17] ( 1982a ). Mais importante do que estar ‘certa’, é que a presença do analista seja experienciada pelo analisando, pensamento do qual compartilhamos. Seguimos com Peltz (2020) , que aponta como a vitalidade ( lifeness) que emerge no encontro analítico serve como fundamento do ser na psicanálise. É a partir desse solo ontológico que se dá a possibilidade de nos aproximarmos das “assombrações de morte” (p. 270) do paciente. Afinal, quando estamos falando de Eros, a dimensão tanática também está presente. Da mesma forma que cuidamos dos recursos vitais do paciente, tal atenção vem imbricada com o olhar para o mortífero: é preciso considerá-lo para podermos afirmar a vida. As ideias de Peltz acompanham o texto de Ogden (2020) : “Psicanálise ontológica ou ‘o que você quer ser quando crescer’”, quando este identifica um movimento crescente na direção da psicanálise ontológica (tendo Bion e Winnicott como principais interlocutores). A psicanálise ontológica se refere a uma experiência na qual o paciente está engajado num processo de tornar-se mais plenamente humano. Ogden declara que algo mudou em seu pensamento com o direcionamento do enfoque nas relações inconscientes de objetos internos - o que ele denomina de psicanálise epistemológica, com Freud e Klein como principais referências - para “a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais reais e vivas” (p. 24). Essa mudança que Ogden e Peltz compartilham nos parece surgir vinculada ao resgate do lugar do prazer na psicanálise, a partir da qualidade da presença , tanto no encontro analítico como no encontro bebê-objeto primário. Referindo-se a Winnicott e Bion, Ogden (2020) afirma: na psicanálise ontológica a experiência ganha destaque em relação ao conhecimento. Seguindo o pensamento de Winnicott, nos diz que será fonte de alegria chegar à compreensão criativamente. Ou, nas palavras de Peltz (2020) : “Esses momentos fugazes de vitalidade ( lifeness ) animam nossas almas. Eles fazem a vida valer ser vivida” (p. 268). A palavra anterior ao entendimento, palavra-presença Assim como os autores que aqui visitamos, compreendemos que a celebração do analisando parece se relacionar ao prazer. Nessa perspectiva, é preciso que resgatemos o lugar da gratificação, não como forma de elogio, mas como uma parte fundamental da técnica analítica, como tão bem indica Bollas (2021) . Atravessamos com esses autores noções de prazer e vitalidade na esfera do afeto e do sentimento, derivando daí tanto as limitações como sua potência. No dizer de Civitarese (2018) , alguém que se sente vitalizado ou não, autêntico (ou não), não pode ser reduzido a uma fórmula conceitual. O autor retoma então este trecho de Ogden (1995) : Em qualquer forma de atividade psíquica o sofrimento resulta de uma limitação da capacidade do indivíduo de se sentir plenamente vivo como ser humano. O que estas associações imediatas dizem é que a tarefa da psicanálise é muito mais ampla do que resolver conflitos psíquicos, eliminar sintomas, ampliando a capacidade de refletir sobre si mesmo e tomar iniciativa, mas tem a ver com promover a experiência de sentir-se vitalizado e com o fato de que a dimensão da vitalidade deve ser considerada uma análise “em seus próprios termos”. (p. 700) Aqui, Civitarese (2018) lança a pergunta: “O que significa hoje quando falamos de cura em psicanálise?” (p. 129). E responde fazendo um paralelo com os textos psicanalíticos que considera mais interessantes, os quais seriam os mais vitais. Indiretamente ele associa cura com tornar-se o mais vivo possível. Existem textos que respiram e textos que oprimem. Nos primeiros, a linguagem é cotidiana - o analista expressa um interesse genuíno ao conhecer o paciente, reconhece suas emoções e usa a teoria com delicadeza. O vivo parecendo estar no aparentemente simples. Nos textos aprisionantes, ao contrário, se erguem muros de teoria e jargão, muitas vezes assumem um tom moralista, como um grilo falante, e frequentemente parecem frios e insensíveis. Circunscrevemos assim o processo analítico com vitalidade, simplicidade, o respirar como bem precioso que indica o iniciar da vida; assim como o não-respirar com o seu final. Estamos num momento da psicanálise em que nos encaminhamos para o resgate do prazer, da técnica do jogo, da delicadeza, da emoção e interesse pelo paciente; enfim, do sentir-se vivo na análise. O prazer comparece aqui como uma das facetas do humano, uma experiência factual, lado a lado com a dor, a alegria, de tudo que faz parte do humano e das vivências relacionais. Podemos supor uma dimensão ontológica do prazer baseando-nos na afirmativa de Ferro, de que o mesmo é fator de transformação, concepção partilhada pela maioria dos autores aqui apresentados. Assim, podemos abrir como questão, caminho para novas pesquisas, o lugar do prazer na vida, na relação mãe-bebê (como vimos em Winnicott) e na hora analítica; buscando melhor compreender a dimensão ontológica da experiência humana. Vitalidade não é idêntica a sentir prazer e não se encontra circunscrita a determinados momentos, nem a uma experiência uniforme. Estar vivo implica inclusive a vivência de dor e sofrimento, é estar vivo para a experiência, também de prazer. Vitalidade não é algo estático, podendo até incluir momentos de desvitalização ou a tendência a deixar de existir. Como sugere Boraks (2008 , p. 115) em seu artigo “A capacidade de estar vivo”: viver é a capacidade de sustentar alternâncias, sendo que, se estas ficam restritas a agonias e/ou medo, o paciente se torna sobrevivente, não tendo alcançado a vida. Viver inclui deslocamentos entre vários aspectos do núcleo do ser e da existência, podendo até ser capaz de desistir momentaneamente da vida, abandonando o impulso para existir e, portanto, acolhendo toda a amplitude de vivências subjetivas. Devemos abandonar o mito da “inteireza” e de um funcionamento harmônico: a capacidade de estar vivo implica o trabalho psíquico com nossas ambivalências - “a partir, inclusive, da nossa ambivalência em relação à capacidade de estarmos vivos”, como diz Boraks (p. 122). Acreditamos que cresce o interesse pela compreensão do que aqui nomeamos vitalização; ousamos referirmo-nos que se trata de uma pesquisa relativamente recente: é um debate atual que caminha pari passu com o pensamento do vértice ontológico da psicanálise, referido acima. Testemunhamos na psicanálise contemporânea uma virada significante de uma ênfase no luto do velho para uma criação do novo, distanciando-nos do desenterrar de conteúdos reprimidos e caminhando na direção da geração de futuros. A transição da ênfase no passado para o futuro, do soterrado para o emergente, da perda para a descoberta, do morto para o vivo vai constituir uma mudança relevante na teoria da técnica, direcionando-nos para o que aqui chamamos de vitalização, que significa a geração de uma nova experiência e de um processo interno vivificante que pode surgir através de uma profunda troca de afetos entre os pares da dupla analítica. O encontro das subjetividades no processo analítico pode ser gerador do novo, dando vida a experiências não desenvolvidas, num propulsor movimento em direção à transformação. Várias questões despontam: como pode dar-se o encontro analítico, de tal forma que as feridas do passado não sejam negadas, mas ao contrário insuflem esperanças para o futuro? Como dar vida aos estados de morte? O que podemos fazer com a experiência de morte, para que seja possível o advir de uma nova vida? Considerando que cada vez mais nos procuram pacientes agarrados em penhascos, à beira de abismos, lutando pela vida, o tema da vitalização ganha centralidade na teoria da técnica; é algo fundante que remete à constituição do eu e se faz necessário. O termo “técnica” se faz restrito para descrever os vários caminhos acessados pelo analista, as intervenções vitalizantes, para auxiliar o paciente a viver a vida do modo mais pleno possível. Finalizamos com o texto de Civitarese (2018) , que nos convoca a reconhecer a dimensão vitalizadora do analista. Nela vislumbramos a prevalência do Ser, o vértice ontológico guiando os novos passos da psicanálise, paradoxalmente em suplementaridade [18] com a psicanálise epistemológica: Só posso me sentir vital aos olhos de alguém. Nesses olhos, você deve ser capaz de se reimaginar de uma forma que o faça sentir-se satisfeito, em essência, amado. Você se torna você mesmo por meio desse espelhamento. Se você se sentir friamente refletido, algo dentro de você permanecerá silencioso, inerte, estéril e indefinido. Às vezes isso acontece. (p. 132) 1 Rosa é uma vinheta clínica ficcionalizada de uma das autoras deste texto, por esse motivo o uso do pronome no singular. 2 O vértice ontológico da psicanálise será abordado mais adiante no texto. 3 Rachael Peltz, Ph.D., psicanalista, co-diretora do Psychoanalytic Institute of Northern California em 2019 (PINC), Editora associada da revista Psychoanalytic Dialogues , exerce suas atividades clínicas em Berkeley, California. 4 https://webstersdictionary1828.com/ . 5 “Além do princípio do desprazer” (Beyond the unpleasure principle: Some preconditions for thinking through play, 1988) é o título do artigo de Anne Alvarez no qual nos apoiaremos neste item. 6 “É psicanalista de crianças e adolescentes, foi copresidente do setor de autismo na Clínica Tavistock, em Londres, foi professora visitante no departamento de neuropsiquiatria infantil na Universidade de Turin. Atualmente é professora visitante e palestrante na Clínica Tavistock e no Curso de Formação de Analistas de Crianças e Adolescentes da Sociedade Psicanalítica de São Francisco. É autora em português dos livros Companhia viva e Coração Pensante .” ( https://www.blucher.com.br/autor/detalhes/anne-alvarez-1727 . Acesso 14 set. 2024). 7 No texto de Peltz que apresentamos neste artigo, a autora compartilha da mesma concepção. 8 Trabalhamos sobre futuros em outro texto. 9 Esse termo foi inspirado na música Oração ao tempo: “tempo, tempo/Peço-te o prazer legítimo/E o movimento preciso/tempo, tempo/Quando o tempo for propício”. Compositor brasileiro Caetano Veloso, segunda faixa do álbum Cinema Transcendental (Philips/PolyGram), lançado em 1979. 10 “The pleasure of the analytic hour”. 11 Antonino Ferro é “médico, psiquiatra e psicanalista de crianças, adolescentes e adultos, é analista didata e supervisor na Società Psicoanalitica Italiana (SPI), da qual foi presidente (2013--2017), e membro da American Psychoanalytic Association (APsaA) e da International Psychoanalytical Association (IPA). Autor de vários livros e inúmeros artigos sobre clínica, técnica e teoria da técnica publicados em revistas de psicanálise na Itália e em outros países, é um analista internacionalmente conhecido, com profundas contribuições em relação ao trabalho analítico e ao encontro analista/paciente.” ( https://www.sbpsp.org.br/blog/homenagem-a-antonino-ferro/ . (Acesso em 14 set. 24). 12 Bion aborda essa questão em vários de seus seminários clínicos ocorridos na década de 1970. 13 “Activating lifeness in the analytic encounter”, todos os textos em inglês utilizados neste artigo são tradução nossa. 14 O nome do artigo se refere a essa expressão de Alvarez (2020) : presenças vitalizantes. 15 Em trabalho anterior ( Cesar & Ribeiro, 2023 ) compartilhamos de ideias semelhantes. 16 Insaturado refere-se a uma interpretação que favorece a expansão para uma rede múltipla de significados. 17 Estendemos aqui o termo devoção usado por Winnicott ao se referir aos cuidados iniciais da mãe com seu bebê e que inclui seu envolvimento total, aos cuidados terapêuticos - excluindo qualquer tipo de sentimentalismo. Visamos destacar o uso que o autor faz do relacionamento mãe-bebê como inspiração para desenvolver seu pensamento sobre o par analítico, com suas devidas diferenças. 18 Fazendo referência ao pensamento de Derrida, Coelho Junior e Figueiredo (2004) compreendem a suplementaridade das dimensões intersubjetivas, argumentando que “cada dimensão é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos” (p. 24). Referências Alvarez, A. (1988). Beyond the unpleasure principle: Some precontitions for thinking through play. Journal of Child Psychotherapy, 14 (2), 1-13. Alvarez, A. (2020). Companhia viva. (Hirschhorn, trad.). Blucher. Bollas, C. (2021). A celebração do analisando pelo analista. In Forças do destino (pp. 105-120). Escuta. Boraks, R. (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanál [online]. 42 (1), 112-123. Cesar, F. F., & Ribeiro, M. F. R. (2023). Chuva n'alma. A função vitalizadora do analista Blucher. Civitarese, G. (2018). Vitality as a theoretical and technical parameter in psychoanalysis. Rom J Psychoanal, 11 (2), 121-138. DOI: 10.2478/rjp-2018-0022. » https://doi.org/10.2478/rjp-2018-0022 . Civitarese, G., & Ferro, A. (2022). Playing and Vitality in Psychoanalysis (Ian Harvey, transl.). Routledge. Durban, J. (2017). Facing the death-object: Unconscious phantasies of relationships with death. In Not Knowing, Knowing, not Knowing: Festscrift Celebrating the Life and Word of Samuel Erlich (M.Erlich-Ginor, Ed., pp. 85-115). International Psychoanaytic Books. Coelho Junior, N. C., & Figueiredo, L. C. (2004). Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações, IX (17), 9-28. Ferro, A. (2017). The pleasure of the analytic hour. The Italian Psychoanalytic Annual, 11 , 67-78. Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 161-239). 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- Do superego insone/insano ao acalanto criativo de si
Este artigo foi publicado no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (Cadernos de Psicanálise) em 2025, sob autoria de Marina F. Ribeiro e Bruno O. Marte. Resumo: Neste trabalho, serão investigados os empecilhos e as condições para que a função psicanalítica da personalidade do analista esteja operante. Com esse intuito, propomos uma noção espectral do superego, visando a apreensão da amplitude de suas manifestações, para então, verificarmos em que medida, aquilo que denominamos de superego insone/insano do analista, possa se transformar qualitativamente e passar a ter uma função protetora, sonhadora e criativa, favorecedora do ofício psicanalítico. Palavras-chave: Psicanálise. Superego. Reverie. Sonho. Criatividade. Função psicanalítica da personalidade. A imaginação é um impulso voraz; ela encontraria alimento para o pensar mesmo no deserto. (MELTZER; WILLIAMS, 1988/1995). Bem se pode imaginar experiências protoestéticas começando in utero: “amparado no berço do profundo” [rocked in the craddle of the deep [1] ]do gracioso andar de sua mãe; ninado pela música de sua voz confrontada com a sincopada batida de seu coração e do coração dela; respondendo em dança como uma pequenina foca, brincalhão como um cachorrinho. (MELTZER; WILLIAMS, 1988/1995). Seria possível ensinar um psicanalista a alcançar o estado de mente propício ao trabalho clínico? Como a psicanálise e o ensino se localizam no terreno dos ofícios da ordem da impossibilidade [2] , tendemos a responder negativamente a essa indagação. Acreditamos, porém, ser possível discorrer sobre esse tema mesmo assim. Pensamos que a impossibilidade da psicanálise deve ser transformada em força motriz pelo psicanalista para que ele realize o possível em cada sessão. Com isso, temos conosco que a impossibilidade inerente à psicanálise, às vezes, pode gerar no analista uma melancolia estéril que precisaria ser transformada em luto frutífero. Obviamente não temos a pretensão de ensinar; entretanto, se isso nos é impossível, ao menos tentaremos elucidar os processos pelos quais o trabalho do analista pode ser (in)viabilizado. Para trilharmos esse caminho, será preciso evidenciar, a partir da exposição de uma noção espectral [3] do superego, seus diferentes funcionamentos para verificarmos em que medida aquilo que denominamos de superego insone/ insano do analista – aquele que não permite o sonhar, o florescer da criatividade e o encontro com a experiência emocional – pode se transformar e passar a ter uma função protetora, sonhadora e criativa. Estamos, portanto, no campo da observação dos empecilhos e das possibilidades para que a função psicanalítica da personalidade [4] esteja operante, especialmente, em sua função sonhadora e sonhante no que diz respeito à noção de reverie, como foi denominada por Bion. Geralmente quando nos referimos ao superego, a tendência é imaginarmos uma instância com atributos hostis, repressivos, ameaçadores e aniquiladores das potencialidades de vida. No entanto, neste trabalho propomos a seguinte investigação: é possível ao superego favorecer o desenvolvimento da criatividade, bem como exercer função [5] protetora, encorajadora e acalantadora ao ego? Com essa indagação entendemos que os impasses ou impossibilidades existentes no encontro psicanalítico, entre analista e analisando, não dependem apenas da gravidade de alguns casos que nos chegam, mas também dos estados psíquicos do próprio analista com os quais pode estar familiarizado ou não. É a partir daí que levantamos a hipótese de que as diferentes dimensões superegoicas do analista exercem importante influência no seu ofício clínico por propiciarem, ou não, sua capacidade de sonhar os fatos que se apresentam no encontro entre duas mentes. Para iniciar a investigação, temos que nos remeter prontamente a uma breve passagem em que Freud (1927/2006) em seu texto sobre o humor nos surpreende por apresentar uma dimensão superegoica pouco explorada em sua obra. Nas palavras do autor: Se é realmente o superego que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego. Ademais, nem todas as pessoas são capazes de atitude humorística. Trata-se de um dom raro e precioso, e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem do agente paterno. (FREUD, 1927/2006, p. 169). Com essa passagem instigante, Freud nos abre a possibilidade de observar as diversas faces do superego contidas em sua obra: como uma identificação direta e imediata que se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia de objeto (1923/2006); como pura cultura da pulsão de morte que impulsiona o ego à morte (1923/2006); como uma interdição edípica interiorizada e, também, como uma face protetora que profere bondosas palavras de conforto ao ego (1927/2006) e que permite a criatividade e o prazer humorístico. Entretanto, não foi apenas Freud que constatou tal face bondosa do superego. Em consonância com as diversas faces superegoicas propostas por Freud, Melanie Klein (1929/1996; 1958/2006) também demonstra à sua maneira os diferentes aspectos do funcionamento do superego. Já no texto intitulado A personificação no brincar das crianças, Klein (1929/1996, p. 234) propõe, em uma nota de rodapé, que a criança muitas vezes tem um amplo leque de figuras paternas e maternas, que vai desde as aterrorizantes “Mamãe-gigante” e “Mamãe-que-esmaga” até a generosa “Mamãe-fada”. A autora afirma que também já se deparou com uma “Mamãe-média” e uma “Mamãe-três-quartos”, que representavam um meio-termo entre os exemplos mais extremos. Interessante notar que quase trinta anos depois, em Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental (1958), Klein ainda manteve sua visão espectral do superego e nos propõe que: [...] o âmbito de ação do superego vai desde o refrear do ódio e de impulsos destrutivos, da proteção do objeto bom e autocrítica, até ameaças, queixas inibitórias e perseguição. O superego – estando vinculado ao objeto bom e até empenhando-se por sua preservação – aproxima-se da mãe boa real, que alimenta a criança e cuida dela. (KLEIN, 1958/2006, p. 274). Esse fragmento de Klein (1958/2006) nos leva a pensar: quem cuida do analista em seu ofício enquanto está em contato emocional no aqui e no agora do encontro com seu analisando? Em que medida ele pode estar bem acompanhado de uma mãe cuidadora e criativa enquanto exerce sua escuta? Optamos por expor um breve fragmento clínico cotidiano e recorrente aos analistas, vivenciado por um de nós, para elucidarmos a complexidade dos diversos movimentos e funcionamentos que operam na mente do analista enquanto está com seu analisando. O analisando, de aproximadamente quarenta anos, contava várias histórias com muitos detalhes; enquanto isso, fui me apercebendo intrigado, preocupado em entender a narrativa e em ligar os fatos relatados para ver se faziam sentido. Estava angustiado e me ocorriam ideias do tipo: Será que ele está me contando a mesma história ou será que já mudou de assunto!? As coisas não estão se encaixando… O que será que eu perdi que não estou conseguindo pegar o fio da meada? Será que estou muito distraído? Será que ele vai se sentir menosprezado e furioso caso eu lhe diga algo que demonstre minha incompreensão? Permaneci operando psiquicamente desse modo durante um tempo razoável do encontro, de repente me pergunto: mas por que eu estou tão curioso? Por que estou tentando entender o que se passa? Por que e do que estou com medo? Nesse momento pude me acalmar e me permitir abrir mão da curiosidade, do controle e da exigência, e, então, passei a funcionar de maneira mais propícia ao trabalho clínico, isto é, atingi um estado psíquico muito mais próximo do onírico do que do entendimento. Foi assim que me surgiram imagens de uma criança indignada, humilhada, com intensos sentimentos de ódio e ciúmes pelo fato de sua mãe ter a sua irmã como preferida. Essas imagens me permitiram dizer ao analisando que, talvez, ele alimentasse a esperança de ter sua mãe só pra ele. Ele se emociona, se entristece e depois de um breve momento diz que não gostaria mais de ser injusto consigo mesmo. Quais seriam os diferentes funcionamentos superegoicos operantes na mente do analista que se podem constatar nessa ilustração clínica? Arriscaremos algumas hipóteses. Num primeiro momento, tratava-se de um superego operando de maneira ameaçadora cujo mandato poderia ser traduzido da seguinte maneira: preste atenção no que ele está te dizendo, você não pode deixar passar nada, é necessário entender tudo, se não vai sobrar para você! Isso nos indica que neste momento o analista estava operando a partir de uma dimensão superegoica arrogante, ameaçadora e onipotente que exigia uma resposta do analista a qualquer custo como tentativa de se evadir da experiência emocional angustiante que pairava no encontro da dupla. Se pudéssemos expor minuciosamente os diversos funcionamentos superegoicos operantes naquele momento seriam a) insone, por não permitir, num primeiro momento, ao analista sonhar a sessão; b) persecutório, por gerar o medo de ser atacado pelo analisando; c) arrogante, no sentido de precisar ter uma resposta a qualquer custo; d) punitivo, relacionado ao suposto castigo que receberia do analisando por não entender o que ocorria; e) autocrítico, no momento em que o analista se pergunta por que se sente tão persecutório e exigente e f) criativo, quando o analista pode se desprender da persecutoriedade ameaçadora e atingir um estado psíquico sonhante que lhe permite a abertura para a criação da cena que foi comunicada ao analisando. Nesse exemplo fica clara a oscilação que ocorreu na mente do analista: num primeiro momento, predominavam as características psicóticas de sua personalidade, que prejudicam e inviabilizam o estado sonhante necessário ao psicanalista; já, num segundo momento, o funcionamento não psicótico contribuiu para a operação da função psicanalítica da personalidade. Propomos esse exercício ao analista para que se possa compreender os efeitos das diferentes faces superegoicas que são convocadas em sua mente enquanto está na presença dos analisandos. A impossibilidade criativa é um indício de que o funcionamento psíquico do analista está prejudicado. Com o intuito de expandir nossa visão sobre (in)viabilizações do superego ao trabalho do analista, adentraremos mais detalhadamente na noção de reverie e nos conceitos e ideias adjacentes. Enxergar o invisível e afinar a observação Pensamos a reverie , a partir de Bion (1962/2021), como um estado de abertura receptiva por parte do adulto cuidador a quaisquer objetos provenientes da identificação projetiva do bebê. Ribeiro (2023), em seu trabalho intitulado A intuição psicanalítica e a reverie: captando fatos ainda não sonhados, nos diz que a reverie é um estado de receptividade amorosa em que opera uma abertura para sermos habitados pelo outro. Esse estado psíquico é um facilitador para a criação, na mente da mãe/analista, de imagens pictográficas ou ideogramas, como assim os denominou Bion. Percebe-se que a mãe pode captar estados emocionais primitivos e trazê- -los à vida a partir desse processo de abertura e de simbolização. É assim que o bebê pode ser contido em suas angústias primitivas e ser compreendido por uma mãe que tem a capacidade de atingir esse estado psíquico receptivo, criativo e transformador. Trazendo o uso da reverie para a clínica psicanalítica, podemos vislumbrar as condições específicas da mente do analista para isso. Deixar-se afetar, vivenciar as inúmeras nuances qualitativas da experiência emocional, tolerar a desorganização e o desconhecido são algumas das condições para que o analista possa trabalhar. É devido a isso que a teoria psicanalítica não deve atuar em primeiro plano em sua consciência enquanto estiver em contato com seus analisandos, ao contrário disso, é essencial que a teoria corra em segundo plano nas veias do analista enquanto pratica a psicanálise. Ribeiro (2023) nos diz, ainda, que a teoria do analista faz parte do seu acervo inconsciente, precisa estar incorporada e esquecida, assim como os exercícios técnicos de um músico. Seguindo esta ideia, a teoria psicanalítica tem uma função de continente metaforizante [6] que propicia ao analista afinar a sua capacidade de observação quando não estiver em contato com seu analisando, isto é, num momento em que não esteja em sessão com o analisando. É importante notar que essa noção está baseada na proposição metodológica de Bion sobre o estado psíquico propício à observação analítica, isto é, que ele possa trabalhar a partir de uma opacidade de memória, sem desejo e sem compreensão prévia. Bion diz que a memória é sempre enganosa por ser distorcida pela influência de forças inconscientes, assim como os desejos distorcem o julgamento através da seleção e supressão de material a ser julgado (1967/1988). Advém daí a necessidade de o analista se ater à experiência emocional que ocorre no aqui e agora do encontro. Percebe-se que, se por um lado a proposta é de uma postura de abertura radical e despretensiosa, por outro lado ela exige uma posição ética por parte do analista, uma vez que não se propõe um estado fusional entre analista e analisando, e sim um trânsito entre as dimensões inconsciente/consciente enquanto condição para o analista captar e transformar, imaginativamente, elementos brutos, dando-lhes forma e inscrição psíquica. Isso está de acordo com Freud (1912/2006) ao colocar a importância da comunicação entre inconscientes e também da atitude necessária para a captação dessa comunicação. Segue a clássica recomendação sugerida ao analista por Freud: [...] ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor. Assim como o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações elétricas na linha telefônica, que foram criadas pelas ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente (1912/2006, p. 129). Acreditamos que Bion propõe a mesma atitude que Freud, embora descreva minuciosamente esse processo e acrescente a importância do sonhar enquanto instrumento do analista. Pensamos que a reverie pode ser uma forma de captar as oscilações elétricas com o intuito de transformá-las em ondas sonoras. As oscilações elétricas representam os elementos sensoriais que serão transformados, a partir da reverie do receptor – analista – em elementos alfa, que representam as ondas sonoras. Trata-se de uma captação transformadora. Levando-se em conta que primeiramente pensamos por pictogramas e imagens, tomamos a reverie como estado psíquico sonhante do analista que “fabrica” o pensamento/imagem a partir de sua receptividade às emanações do inconsciente do analisando. Isso nos indica que Bion propõe uma função ao estado onírico de vigília: captar e transformar o elemento inaudível em audível, sendo o inaudível representado pelas oscilações elétricas e o elemento audível, as ondas sonoras. Pode-se afirmar, então, que a função do sonhar envolve o processamento e a metabolização das experiências emocionais. Sobre esse movimento, acompanhemos uma síntese proposta por Ribeiro (2023): [...] a imagem que surge a partir da capacidade de reverie do analista é apenas o aspecto visível de uma forma de pensamento amplamente inconsciente. Em outras palavras, refere-se à capacidade do analista de tornar visível o invisível da experiência, de tornar apreensível o pensamento onírico de vigília, função diuturna da mente. A reverie é a captação do inaudível e do imperceptível da experiência. Algo captado pela intuição psicanalítica e transformado pela função alfa em uma forma, uma imagem sensorial: a reverie. (Ribeiro, 2023, p. 124). Um exemplo de reverie que teve a função de ser uma bússola – termo usado por Ogden (2013) – para o processo analítico é citado por Ribeiro (2023, p. 127) que afirma que, ao se deparar com o analisando, é tomada por um pensamento/imagem de sapatos de um morto e se sente paralisada. A analista não comunicou nada sobre essa imagem, mas com o passar do tempo foi constatando que ela condensava e revelava o mais íntimo e intenso sofrimento do paciente. A autora defende que a imagem que surge é uma evolução da intuição do analista, uma vez que a capacidade de reverie é sustentada pela intuição psicanalítica. Isso nos remete a uma diferenciação a respeito do uso da reverie. Ela pode ser usada pelo analista enquanto imagem ou narrativa a ser comunicada ao analisando, enquanto interpretação ou construção em análise, ou outra possibilidade, é que seja usada para compreender o sofrimento psíquico inconsciente do paciente, sem que a reverie precise ser comunicada a ele. Interessante constatar que os termos reverie e sonhos de vigília foram usados pela primeira vez por Breuer em 1893, enquanto descrevia o caso Anna O. (BUSCH, 2023) Breuer relacionou o termo a um estado hipnoide, ou melhor de auto-hipnose, que ocorria espontaneamente de forma alternada com estados de vigília mais habituais. Nas palavras de Busch (2023): Breuer e Freud (1893) equipararam devaneios a rêveries e os ligaram aos estados hipnoides, que “ao que parece, muitas vezes, surgem devaneios, bastante comuns até em pessoas saudáveis” [...]. Assim, algum tempo antes de Bion introduzir o termo rêverie, já existia uma longa história psicanalítica associada a ele. Além disso, o estado mental descrito como rêveries por Freud e Breuer era muito parecido com os estados mentais identificados como rêveries por bionianos. [...] No entanto, o que Bion introduziu foi o vínculo da rêverie com a mente do analista e, dessa maneira, abriu uma nova direção para como um analista pode compreender melhor seus pacientes. (BUSCH, 2023, p. 13-28). Uma vez exposto isso, não podemos deixar de nos inquietar a respeito dessa vinculação da reverie, agora voltada à mente do analista, e não apenas como algo relacionado ao estado psíquico do analisando. Inquietações inevitáveis: num encontro analítico, seria possível o analista se permitir alucinar e fazer um bom uso do conteúdo psíquico dessa alucinação? Como um devaneio ou uma alucinação podem ser utilizados pelo analista em seu trabalho? O que podemos compreender quando Freud, em Construções em análise, (1937/2006, p. 286), aproxima os delírios dos pacientes como equivalentes às construções que o analista cria em análise? Neste momento tentaremos nos aproximar de hipóteses que nos deem alguma luz para essas inquietações. A princípio, podemos nos utilizar da referência que Ribeiro (2023, p. 133) faz a Ferro (1995) e a Rocha Barros (2000) para os quais a reverie seria, respectivamente, um pictograma emotivo-sensorial ou um pictograma afetivo primeiramente “alucinado [7]” pelo analista. Tal alucinação pode encontrar um sentido que resgate o analista do caos, que é paradoxalmente enlouquecedor e seminal. Vinculada a essa proposta, está a noção de intuição enquanto um instrumento necessário ao psicanalista. Ribeiro (2023) investiga a conexão entre intuição e reverie e defende que o analista precisa enxergar o invisível a partir de sua imaginação. Terreno incerto esse em que o analista transita pois como medir, quantificar e classificar a angústia, a tristeza, o ódio? A angústia não tem cor, cheiro, não pode ser tocada, mas segundo Bion (1970/2007), ela precisa ser intuída: [...] o psicanalista depende de experiência que não é sensorial. O médico pode ver, tocar e cheirar. O psicanalista lida com realizações que não podem ser vistas ou tocadas; a ansiedade não tem forma, cor, odor, ou som. Proponho, por conveniência, usar o termo “intuir” como um paralelo, no âmbito do psicanalista, ao uso de “ver”, “tocar”, “cheirar” e “escutar”. (1970/2007, p. 24). De maneira mais direta, Bion coloca a importância de que sejamos capazes de intuir qual é a informação que o paciente está tentando transmitir uma vez que considera ser possível enxergar coisas que não se podem tocar, bem como ouvir sem ter contato físico com um corpo ou objeto. Percebe-se que o foco do analista está o tempo todo em tentar captar a brutalidade da experiência para transformá-la em comunicações possíveis a partir do uso de sua intuição. Daí advém a hipótese de Ribeiro (2023) ao defender que as imagens, os pictogramas e seus derivados criados a partir do estado psíquico de reverie seriam uma evolução da intuição do analista. Isso nos permite esclarecer que a intuição é uma forma de conhecimento imediato, sem apoio sensorial, que favorece o estado de reverie para que o analista crie e ofereça elementos – imagens, pensamentos, narrativas, cenas, músicas, melodias, etc. – que sejam continentes à experiência emocional no momento do encontro analítico. Pensando na imbricação conceitual entre intuição, reverie e função alfa, cujas fronteiras não conseguimos diferenciar nitidamente, compreendemos tais conceitos, a partir de Bion (1970/2007) e Ribeiro (2023), de forma espectral: Dessa forma, a intuição teria tanto um polo na capacidade de observação psicanalítica, como um polo inconsciente, no qual a função alfa trabalha: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie, um pensamento imaginativo (RIBEIRO, 2023, p. 141). Para que esse movimento favorecedor do pensamento imaginativo – atrelado à noção espectral da intuição – seja mais bem compreendido, é necessário vinculá-lo à noção de cesura. O que muito nos interessa é a cesura entre estados mentais, que pode ser representada por um estado de indiferenciação momentânea e fugaz, assim como quando, por um instante, não sabemos se estamos dormindo ou acordados, isto é, uma cesura entre o sonho noturno e a vigília em que ocorre ao mesmo tempo uma continuidade e uma ruptura. A cesura é um evento que tanto conecta quanto separa outros eventos (SANDLER, 2021). De modo simultâneo e paradoxal, ela promove um espaço que ao mesmo tempo cria conexão, ruptura e movimento entre duas dimensões diferentes que se caracterizam por movimentos oscilatórios, como, por exemplo, uma cesura entre funcionamento psicótico e não psicótico da personalidade. Seguindo o pensamento de Ribeiro (2023, p. 139), a autora propõe a cesura intuição/alucinação no sentido de que a intuição promove uma afetação enigmática [8] que pensamos evocar no analista uma estranheza sinistra. A intuição acontece na oscilação entre a área indiferenciada da mente, ainda sem forma, e a área diferenciada, evoluindo para uma reverie. Especificamente sobre essas oscilações, a autora levanta a hipótese de que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito [9] ; eu/outro; o formar/deformar; as transformações em K/ as transformações em O [10]. (p. 138) Podemos nos utilizar do exemplo de pessoas que têm “ouvido musical” e escutam notas musicais que poucos escutam para exemplificarmos a capacidade intuitiva (RIBEIRO, 2023 p. 144): Essa é uma boa metáfora para o analista: aquele que capta, por meio da intuição, elementos psíquicos inaudíveis e imperceptíveis para alguns. Para os que têm ouvido analítico intuitivo e capacidade de observação treinada, é possível captar notas inaudíveis ou o silêncio imperceptível entre as notas. E, se não estamos alucinando, estamos intuindo elementos psíquicos em estado bruto. Constata-se, então, que uma mente em constante movimento – que pode vivenciar e transitar desde os mais terroríficos e assustadores até os mais suaves, belos e harmoniosos estados psíquicos – é condição para o método de observação psicanalítico, no qual o analista abdica de sua condição de saber objetificante a respeito do analisando. Ao contrário, o analista está submetido, conscientemente ou não, à experiência emocional do encontro com o outro, cabendo a ele escolher entre enfrentar e aproveitar a navegação em águas turbulentas para criar e oferecer construções, ou escolher ficar imune às turbulências emocionais, como se isso fosse possível, com o propósito de encontrar uma causalidade objetificante, para explicar hipoteticamente a origem do sofrimento do sujeito. Esta última postura mantém o analisando em profunda solidão estéril que pode reforçar sua persecutoriedade e contribuir para uma relação fria e explicativa. Como não estamos de acordo com essa postura, fiquemos com as palavras de Meltzer (1988/1995, p. 13) a respeito da beleza do método psicanalítico: Ao celebrar a beleza do método, estamos na realidade celebrando a beleza no método pelo qual a mente [...] opera sobre as experiências emocionais de nossas vidas para lhes fornecer uma representação através da formação simbólica, que torna possível o pensar a respeito destas experiências. Fica claro que este “pensar sobre” gera o “aprender através da experiência” cuja consequência são as alterações e reorganizações estruturais através das quais a mente cresce. [...] Afinal de contas, não são apenas os poetas, mas também o punhado de pessoas criativas de cada época que compõem os “legisladores não-reconhecidos do mundo” dos quais falava Shelley. (MELTZER, 1988/1995, p. 13). Com a finalidade de avançarmos em nossa temática, após o recorte expositivo do trabalho de Ribeiro (2023) para a pavimentação de nossa proposta, não podemos deixar de nos remeter novamente às seguintes indagações: Quais são as viabilizações e inviabilizações que a mente do analista é capaz de propiciar para que se possa atingir tal estado psíquico receptor, metabolizante, metaforizante, criativo e sonhante? Muito se tem falado sobre a importância da intersubjetividade para a psicanálise, da postura de um analista implicado, menos rígido, menos explicativo, e muito mais aberto aos estados emocionais operantes no encontro psicanalítico. Somos defensores dessas transformações que vêm ocorrendo na psicanálise desde Ferenczi (1928/2021), porém, é de alguma maneira raro os analistas relatarem os empecilhos para que essa postura sonhante, imaginativa e afetiva se efetive. Dito de outra forma, pensamos que antes de propormos o estado de abertura hospitaleira ao analista, devemos nos ater aos vários obstáculos a essa postura que operam intrapsíquica e intersubjetivamente. Não se pode propor um estado de reverie ao analista sem que ele conheça razoavelmente os perenes estados antivínculo operantes em sua relação consigo mesmo e também em seu contato para com o outro. Superego insone ↔ Superego sonhante Cassorla (2015) nos traz uma contribuição valiosa a respeito de uma visão espectral: sonho ↔ não-sonho. Trata-se de dois extremos de um espectro no qual se tem num extremo áreas de simbolização mais íntegras, e, noutro, áreas que aparentam não ter qualquer tipo de representação, fato discutível. Vejamos de maneira detalhada a proposta do autor: Se utilizarmos um vértice clínico podemos imaginar, num extremo, pacientes autistas ou catatônicos, que não são capazes de se expressar. Caminhando no espectro, próximo a esse extremo, poderemos encontrar um paciente somatizador, cujo não-sonho se manifesta por queixas físicas repetitivas. [...] Seguem-se, nesse espectro, pacientes capazes de estimularem imagens ou cenas, mas estas são estáticas e sem ressonância emocional. O analista poderá utilizá-las como matéria para seu sonho próprio. Flashes oníricos da vigília (FERRO, 1998), sonhos noturnos, enredos e narrativas simbólicas indicam o outro extremo, onde elementos alfa se manifestam em sua evolução para pensamentos mais complexos, melhor ou pior trabalhados pelos aparelhos de sonhar sonhos e pensar pensamentos (CASSORLA, 2015, p. 150). Gostaríamos de chamar atenção para esse espectro proposto por Cassorla, porém relacionando-o à mente do analista. Exemplo disso são os momentos em que o analista fica “catatônico”, isto é, paralisado em sua capacidade de sonhar/pensar; momentos em que o analista é tomado por manifestações psicossomáticas, como arrepios, vertigens e enjoos; aqueles em que se sente perseguido por objetos assassinos, com medo de ser atacado ou assassinado pelo analisando; quando está preso numa postura controladora anal-obsessiva em que operam julgamentos morais higienizantes no sentido de tratar o analisando como se fosse um animal que precisa ter o seu comportamento formatado, desconsiderando sua subjetividade; quando assume uma postura expulsiva e excretória em que atribui toda sua aflição ao analisando; momentos em que sente-se um analista sem valor, desvitalizado e inferiorizado; em que sente uma necessidade arrogante de oferecer um caminho ao analisando ou ainda quando, automaticamente, triunfa narcisicamente sobre o analisando a partir de racionalizações intelectualoides. Em todos esses estados, cada qual com sua peculiaridade, em diferentes graus, há uma ineficácia maior ou menor da capacidade de sonhar do analista. Partindo da concepção de Bion sobre a função do sonhar, podemos conjecturar uma impossibilidade do sonhar devido à operação de objetos superegoicos que denominamos de insones/insanos por exercerem ataques à mente do analista, e que promovem, com isso, uma destruição psicótica dos meios de compreensão e do sentido da experiência vivida. Como consequência, impossibilitam a construção da barreira de contato que permite, ao mesmo tempo, a ligação e a separação entre consciente/inconsciente, realidade interna/externa e sonho/não-sonho. Algumas das características desses objetos superegoicos são, por exemplo: onipotência, arrogância, superioridade, moralidade, controle, ódio ao casal parental criativo e autossuficiência. Em Cogitações (1992), Bion nos esclarece: Assinalei que a capacidade de “sonhar” uma experiência mental corrente, independentemente dela ocorrer na vigília ou no sono, é essencial para a eficiência mental. Com isso quero dizer que fatos, à medida que forem representados pelas impressões sensoriais da pessoa têm que ser convertidos em elementos equivalentes às imagens visuais encontradas usualmente nos sonhos, como os sonhos em geral nos são relatados.[...] Para que se leve a cabo esse trabalho de conversão, são necessárias certas condições: [...] o analista precisa ter condições para o seu trabalho, pois é essencial que a função-alfa (α) opere sem impedimentos. Ele precisa ser capaz de sonhar a análise conforme ela vai ocorrendo, mas, é claro, ele não deve dormir. (BION, 1992/2000, p. 216). Com o intuito de esclarecer as condições e os empecilhos para que o analista seja capaz de sonhar a sessão, propomos uma noção espectral do superego no que diz respeito às interconexões, oscilações contínuas e cesuras operantes entre parte psicótica ↔ não psicótica da personalidade; posição esquizoparanoide ↔ posição depressiva; processo primário ↔ processo secundário; eu ↔ outro; princípio de prazer ↔ princípio de realidade. Como uma tentativa de ilustrar as qualidades e funções superegoicas, propomos: consciência moral primitiva [11] ↔ objetos bizarros ↔ objetos assassinos ↔ canibais ↔ insones/ insanos ↔ invejosos ↔ hostis ↔ esfincterianos ↔ persecutórios ↔ perfeitos ↔ arrogantes ↔ estupidificantes ↔ sedutores ↔ sádicos ↔ mafiosos ↔ sabotadores ↔ inibidores ↔ possessivos ↔ controladores ↔ punitivos ↔ culpabilizantes ↔ melancólicos ↔ excitantes ↔ maníacos ↔ restritivos ↔ delimitadores ↔ reparadores ↔ gratos ↔ autocríticos ↔ pensantes ↔ criativos ↔ sonhantes ↔ acalantadores ↔ encorajadores ↔ esperançosos ↔ amigos ↔ protetores. Importante ressaltar que essas qualidades superegoicas [12] não são constituídas necessariamente de maneira cronológica. Nesses termos, estamos de acordo com a ampliação de Bion quando coloca a simultaneidade entre processos inconscientes e conscientes, no sentido de que não são temporalmente consecutivos, mas sim coexistem desde o início, assim como consideramos a coexistência entre parte psicótica e não psicótica da personalidade. Também é importante esclarecer que consideramos, a partir de Malcolm (1984), que todos os objetos internos funcionam como superego, e que, ao propormos o esquema acima não acreditamos na possibilidade de uma delimitação clara entre os diferentes funcionamentos superegoicos, uma vez que o superego exerce várias dessas funções concomitantemente. O que está sendo colocado é a noção espectral do superego tendo em vista a diferenciação e oscilação constante entre a parte psicótica e não psicótica da personalidade. Isso nos indica que tanto as qualidades superegoicas pré-simbólicas quanto simbólicas/representacionais coexistem e determinam relações mais ou menos amistosas com o ego e com o outro. Podemos tentar esclarecer essa diferença espectral da seguinte forma: a) partículas superegoicas b) aglomerações superegoicas antipensamento c) organizações patológicas, d) superego mantenedor da civilização – enquanto herdeiro do complexo de Édipo e refreador do ódio – viabilizador da auto-observação crítica e) superego genital [13] criativo. Importante esclarecer que o funcionamento insone pode operar a qualquer momento, em diferentes intensidades, dependendo das condições específicas da realidade vivida por cada sujeito. Esse esquema pode ser um instrumento útil para o analista captar e observar as péssimas companhias internas que o acompanham na sessão para que não as atribua automaticamente apenas à identificação projetiva advinda do analisando. Com isso, podemos nos perguntar se é possível diferenciar os conluios superegoicos, entre analista e analisando, do funcionamento superegoico antivínculo e insone do analista. Já que o encontro com o analisando muitas vezes desperta no analista operações superegoicas primitivas e põe em atividade seu funcionamento insone/insano, antes de propor o estado intuitivo propiciador da rêverie, devemos ter em mente que, tanto o funcionamento superegoico do analista quanto as identificações projetivas advindas do analisando geram forças antivínculo, antissonho/pensamento, antiuníssono, cuja fonte e origem provavelmente não se pode discriminar. Talvez não seja possível discriminar claramente o que advém do analista e o que advém do analisando; por isso, reiteramos a proposta de que o analista seja capaz de se ater às inúmeras manifestações de forças – hostis, estéreis, vampirescas, assassinas – geradas em si mesmo quando se encontra na presença do outro, para que possa sonhá-las e fazer um bom uso disso. Daí a importância de se observar a cesura. Como dissemos, o analista pode apresentar seu pensamento criativo ao analisando ou então mantê-lo para si como uma diretriz ao seu trabalho analítico. A respeito dos empecilhos para a criatividade do analista, Bion (1992/2000, p. 53) nos diz que aquilo que ele denominou de “superego assassino”, evita a posição depressiva não sonhando ou sonhando com precauções. É a esse funcionamento superegoico que referimos o termo superego insone. Sua função é proferir ataques destrutivos ao trabalho de pensamento onírico, bem como impedir o trabalho de sonho enquanto guardião do sono. Dito de outro modo, entendemos que a operação da face insone/insana do superego impede o pensar, a criatividade e o adormecer, tratando-se, portanto, de um ataque à função alfa. Entretanto, gostaríamos de propor uma ampliação da proposta de Bion – citada acima, sobre o superego assassino – pois acreditamos que a função insone do superego pode irromper a qualquer momento, inclusive, em funcionamentos não psicóticos. Se o sonho tem uma função digestiva para a mente, sua efetividade vai depender também da intensidade de estímulos que alguém esteja vivenciando. Com isso, nossa hipótese é que podemos ser visitados a qualquer momento por operações ligadas ao superego insone/insano. Podemos exemplificar isso servindo-nos dos ataques advindos do superego invejoso como uma maneira de atacar o que é bom, belo, e, principalmente, criativo. A inveja tem como meta destruir, desvincular e depositar maldade no que é considerado bom, inclusive na boa relação do par analítico. Para que haja criatividade, é necessário que dois objetos, duas dimensões, ou melhor, que um casal fértil – interno ou externo – seja capaz de gestar um novo objeto: uma dádiva. Sobre a relação entre inveja e criatividade, Klein (1957/2006) nos diz: A capacidade de dar e preservar a vida é sentida como o dom máximo e, portanto, a criatividade torna-se a causa mais profunda de inveja. [...] Minha experiência psicanalítica tem me mostrado que a inveja da criatividade é um elemento fundamental na perturbação do processo criativo. O estragar e destruir a fonte inicial do “bom” logo conduz à destruição e ataque aos bebês que a mãe contém, e tem como resultado a modificação do objeto bom, que passa a ser hostil, crítico e invejoso. A figura superegoica na qual muita inveja tenha sido projetada torna-se particularmente persecutória e interfere nos processos de pensamento e em toda atitude produtiva, em última instância na criatividade (KLEIN, 1957/2006, p. 234). Percebe-se que nos referimos, a partir de Klein e de Bion, à relação direta entre pensamento e criatividade, ou senão, ao pensamento onírico de vigília e suas (im)possibilidades. O que (in)viabiliza o sonhar, o pensar e a criatividade é o predomínio da operação das várias faces superegoicas num dado momento, principalmente aquelas ligadas à parte psicótica da personalidade. Com isso, propomos que o estado insone/insano não é apenas um atributo ligado ao superego assassino. Qualquer manifestação de ansiedade, sejam elas caracte-rísticas da posição esquizoparanoide ou depressiva, pode possibilitar o não sonho do analista. Bion (1992/2000, p. 56) nos diz que “a ansiedade do analista é um sinal de que ele está se recusando a “sonhar” o material do paciente: não (sonhar) = resistir = não (introjetar)”. Depreendemos disso que a ansiedade suscitada pode prejudicar a capacidade do analista de sonhar a experiência emocional da sessão e, então, estragar o contato criativo consigo mesmo e com o outro. Consequentemente, essa ansiedade impossibilita a função psicanalítica da personalidade do analista à medida que impede a capacidade de sonhar a experiência com o analisando. É nesse sentido que o superego relacionado à parte psicótica da personalidade não permite a abertura hospitaleira ao outro, a auto-observação construtiva e muito menos o sonhar enquanto pensamento imaginativo do analista. Dito de maneira direta: é essencial ao analista ter consigo a compreensão de que todo encontro com a alteridade desperta intensa turbulência emocional pela operação de um terror sem nome, provavelmente de origem filogenética, que precisa ser metabolizada a partir do sonhar. Com isso reiteramos as condições específicas para a capacidade de pensar, de sonhar e de auto-observar-se. Atribuímos à evitação da posição depressiva um grande empecilho para que a vivência da triangularidade – constitutiva do funcionamento tridimensional da mente – se estabeleça. Para que a capacidade de simbolização se realize, é necessário o encontro e a elaboração das angústias inerentes à vivência da triangulação edípica, pois é dessa forma que se pode constituir a barreira de contato que promove a discriminação entre eu/ outro, eu/mundo, consciente/inconsciente, dormir/acordar, psicose/não psicose e, consequentemente a capacidade de observação e transformação da experiência em pensamento. Acreditamos que o que mantém o analista ativo em seu trabalho é sua capacidade de sonhar e acordar numa oscilação constante, movimento que requer uma auto-observação continente. Sem isso, ele fica refém de estados não propícios à análise como, por exemplo, alucinose compartilhada, saber arrogante, paralisia, excitação, uso de interpretação evacuatória. O trânsito psíquico entre sonho/não sonho, mundo interno/externo, consciente/inconsciente, psicose/não psicose pode ser comparado às mesmas condições para o trabalho artístico. Impossível não lembrarmos do que Freud (1908/2006) colocou sobre o escritor criativo. Ele nos diz que o escritor criativo faz a mesma coisa que a criança que brinca: cria um mundo de fantasia que leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade. E ainda nos questiona: acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao “sonhador em plena luz do dia” [14], e suas criações com os devaneios? Segal (1991) nos ajuda a esclarecer: Freud comparou o artista com um devaneador. E é verdade que o poeta é um devaneador – mas ele não é só um devaneador. Freud enfatiza que o artista volta à realidade. A meu ver, o artista nunca deixa inteiramente a realidade. Em primeiro lugar, ele tem consciência aguda de suas realidades internas, da realidade interna que busca expressar. Mas uma apreensão da realidade interna caminha sempre com a habilidade de diferenciar o que é interno do que é externo e, portanto, também um senso de realidade externa – uma diferença básica entre criatividade e delírio. [...] Alcançar algo no mundo externo é essencial para seu sentimento de ter uma reparação concluída [...] Um aspecto crucial da reparação, bem como do progressivo senso de realidade, é o de que a criança pouco a pouco renuncie às suas fantasias de controle onipotente e, em sua mente, aceite a existência independente da mãe, incluindo a relação dela com o pai [...] Assim, se minha suposição é correta – que o artista em seu trabalho está novamente elaborando sua posição depressiva infantil –, então ele tem não apenas de recriar algo em seu mundo interno que corresponda à recriação de seu mundo e de seus objetos internos, mas também de externalizá-lo, para dar-lhe vida no mundo externo (p. 105-106). Por isso associamos o trabalho do analista como uma reparação constante, interna e externa, em que os objetos internos reparadores do analista – a partir da função alfa – semeiam e fazem brotar, criativamente, as interpretações, construções e reveries que serão oferecidas ao analisando numa tentativa de contribuir com o fortalecimento do vínculo emocional entre os dois. É dessa maneira que pode haver a introjeção, na mente do analisando, da qualidade dessa relação, bem como a introjeção da função sonhante, pensante, e criativa que, provavelmente, ficou deficiente na relação com seu objeto primário. O analisando pode ter tido, por exemplo, uma mãe insone, intensificadora do terror sem nome, fato que o fez permanecer um bebê insone para poder cuidar de si e de sua mãe. Por isso propomos que, se há sonho, há acalanto e criatividade, se não há sonho, há terror. Nesse aspecto, o papel continente por parte do analista é o que pode contribuir para a transformação do superego do analisando, abrandando o terror e a ameaça, a partir de uma relação que Bion (1962) denominou de comensal. Trata-se de uma relação que envolve um benefício mútuo tanto para o continente (mãe/analista) quanto para o contido (bebê/analisando): um acoplamento hospitaleiro, cuidadoso e transformador. A esta altura, cabe-nos perguntar, porém, em que medida a operação insone/insana do superego pode ser transformada em acalanto criativo? Acreditamos tanto na possibilidade de transformação da natureza e da função dos objetos internos como também na impossibilidade de modificação com relação a alguns objetos em específico. As transformações podem ocorrer com a repetição de boas experiências durante o início da vida do bebê, quando ele passa a introjetar o bom objeto no núcleo de seu ego. Assim, as identificações projetivas tendem a perder intensidade e os objetos internos passam a ligar-se uns com os outros, ocorrendo a transformação de objetos internos parciais em objetos totais. Essa integração marca as características da posição depressiva. Sobre esse movimento de desenvolvimento do superego Malcolm (1994, p. 90) nos diz: Na medida em que o bebê fica mais integrado, essa integração o introduz na posição depressiva. Esses objetos, ao ficarem mais integrados, fortalecem o ego. Ele começa a tomar consciência maior de si e, portanto, de suas ações como dele próprio. Também toma maior consciência da mãe. Esse aumento de percepção da condição de ser separado permite o início de uma noção rudimentar de espaço, que traz a noção de tempo e, portanto, de memória. [...] O bebê evolui da polaridade absoluta entre relações ideais e persecutórias para o sentimento de amar a mãe e se sentir amado por ela. Pode agora começar a perceber seu próprio ódio, ou seja, não se sente automaticamente perseguido, mas, de maneira rudimentar, começa a tomar consciência do que faz para a mãe. A percepção de que ama e odeia a mesma pessoa traz uma nova série de emoções. Ele sente ambivalência. O fato de odiar a mãe significa que seu ódio se dirige à mesma pessoa que ama, o que o faz ficar preocupado com ela, de forma a se sentir culpado e com medo de perdê-la. É neste ponto do desenvolvimento que surge a tendência à reparação em que o bebê pode reparar a mãe e seus objetos internos, aliviando seu sentimento de culpa e responsabilizando-se por isso. Passa a desenvolver relações mais amistosas consigo e com os outros, uma vez que pode enxergar o mundo e os objetos de maneira mais realista e menos radical. É assim que a gratidão brota e pode ser vivenciada. O reconhecimento por ter recebido carinho, amor, alimento e cuidado é, então, sentido como o recebimento de uma dádiva. A criatividade pode ser o meio pelo qual ele retribui e devolve a dádiva à mãe e ao mundo. Por outro lado, seguindo Melanie Klein (1958/2006), acreditamos que alguns tipos de objetos não podem ser transformados. No texto já citado Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental, ela nos diz que esses objetos são excindidos de maneira diferente daquela pela qual o superego se forma e são relegadas a camadas mais profundas do inconsciente. Portanto, haveria um limite entre o que pode ser transformado intrapsiquicamente pela influência do meio, das relações e da educação. Meltzer (1988/1995) nos traz uma provocação a respeito da forma como os adultos tendem a educar as crianças e esclarece a contradição existente entre os desejos e os atos dos adultos envolvidos neste processo: Desejamos preparar nossas crianças para as belezas da intimidade mas nossas ansiedades pela sua sobrevivência ultrapassam nosso julgamento de tal modo que acabamos nos juntando ao processo de treinamento, sabendo muito bem que este irá secar sua sede por conhecimento e causar constrições à sua abertura frente às belezas das quais são herdeiros. (MELTZER, 1988/1995, p. 37). Depreendemos a partir disso que há no mínimo dois empecilhos para as transformações do superego: o primeiro estaria vinculado à proposta de Melanie Klein sobre os objetos que atuam em camadas profundas do inconsciente e que não estão ao alcance de serem transformados. O segundo estaria relacionado ao que Meltzer (1988/1995) e Bion (1992/2000), cada qual à sua maneira, nos propõem a respeito da influência das ansiedades, incontinências e indisponibilidades dos adultos que acabam por impedir ou dificultar o encontro das crianças com as belezas da intimidade, aniquilando a possibilidade de uma educação voltada ao aprender da experiência. Daí a importância de o psicanalista se permitir entrar em contato com as belezas turbulentas do encontro com o outro, pois é só assim que poderá propiciar o aprendizado a partir da experiência. Como muitas mães [15] não estão aptas ao contato íntimo para oferecer alimento, afago e acalanto para seus bebês, acreditamos que a postura do psicanalista envolve manter-se acordado para sonhar criativamente os estados emocionais terroríficos, inférteis e hostis presentes no encontro com esses bebês/analisandos. Ao funcionar assim, o analista tem a esperança de que o bebê/analisando sinta que não destrói a criatividade e a integridade do analista/mãe. Consequentemente, sua persecutoriedade pode diminuir e, então, quem sabe, ele possa se permitir aos poucos se entregar a uma boa soneca restauradora e vitalizante. Obviamente, não se trata apenas de esperança por parte do analista, mas sim de um esforço constante para atingir, na medida do possível, um estado sonhante que contribua para que o analisando possa brincar, criar e dormir. Lutamos para que o analisando desenvolva a capacidade de ouvir, receber e de introjetar as verdades e as cantigas de ninar que lhe são oferecidas. Tais cantigas podem ser as sementes introjetadas que, ao fecundar, proporcionarão a expansão e o crescimento da árvore da vida em si mesmo e, como retribuição, poderá gerar frutos criativos a si mesmo, aos outros e ao mundo. Acreditamos que é assim que o superego pode referir palavras bondosas de conforto ao ego, como nos indicou Freud (1927/2006), e como consequência, possibilitar ao bebê/analisando oferecer cantigas de ninar acalentadoras à sua mamãe, a si próprio e ao mundo. Referências BION, W. R. (1962). Aprender da experiência. Tradução de Ester Hadassa Sandler. São Paulo: Ed. Blucher, 2021. BION, W. R. Atenção e interpretação. Tradução de Paulo Cesar Sandler. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2007. BION, W. R. (1992). Cogitações. Tradução de Ester Hadassa Sandler e Paulo Cesar Sandler. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2000. BION, W. R. (1967). No entanto… pensando melhor. Tradução de Paulo Cesar Sandler. São Paulo: Ed. Blucher, 2022. BION, W. R. (1967) Notas sobre memória e desejo. In: Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica. Editado por Elizabeth Spillius; Tradução de Belinda Piltchen Haber. Rio de Janeiro: Ed Imago, 1988. BRAGA, J. Developments on the concept of super-ego on the Bion’s work. 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NOTAS 1 William Wordsworth. 2 Em Análise terminável e interminável, Freud (1937/2006, p. 265) afirma: “Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas [...] são a educação e o governo”. 3 “Os diferentes lados de um mesmo fenômeno são como dois polos em que cada par implica uma cesura e cada cesura implica a possibilidade de uma perspectiva espectral” (BION, 1948). O primeiro modelo espectral, sinalizado por Bion pela dupla flecha, é o espectro narcisismo ↔ social-ismo. (TRACHTENBERG, 2023, p. 182). 4 “A função psicanalítica da personalidade tem no método analítico um lugar privilegiado de realização e expansão; uma função que é humana e que nos torna humanos; um ser com uma mente em constante criação e expansão. Em outras palavras, considero que a função psicanalítica da personalidade realiza o humano em nós”. (RIBEIRO, 2025). 5 Utilizamos o termo função superegoica neste trabalho para nos referir às diferentes operações superegoicas que podem proporcionar tanto a união dos objetos (superego protetor, acalantador) quanto a desunião ou destruição de vínculos (superego insone/insano). Função aqui, portanto, refere-se a funcionamento, por exemplo, o funcionamento superegoico insone perturba ou impede o aprender com a experiência e a criatividade. Em seu artigo intitulado Desenvolvimentos sobre o conceito de superego na obra de Bion (2020), João Carlos Braga nos esclarece que “As contribuições de Bion podem ser vistas como dando sequência a esta linha de desenvolvimento do pensamento psicanalítico, levando a uma desconstrução da compreensão do superego de uma estrutura mental para um grupo de funções mentais”. Tradução livre. 6 Continente metaforizante é um termo criado por Ribeiro (2023) a partir da leitura de Ogden (2023, p. 216): “Acho que a teoria psicanalítica não é algo separado da minha experiência com pacientes no consultório. Ao trabalhar com pacientes, as ideias analíticas estão sempre à mão. Mesmo quando a teoria psicanalítica está fora de meus pensamentos conscientes, ela constitui uma ‘matriz’ (um contexto psíquico, um útero metafórico) que dá forma à maneira como mantenho uma experiência enquanto trabalho com um paciente”. 7 Imaginação criadora (CHUSTER, 2019, 2020) e pensamento imaginativo (RIBEIRO, 2023). 8 Expressão que corresponde a Luís Claudio Figueiredo em comunicação pessoal (2021). 9 Ribeiro (2023) esclarece sucintamente que Bion sugere os termos finito para consciente e infinito para inconsciente. 10 Não adentraremos na complexa construção de Bion a respeito dessas transformações. Podemos indicar, muito brevemente, que transformações em K estão ligadas às transformações em conhecimento, do mundo e de si-mesmo, e, transformações em O, trata-se de tornar-se si mesmo. 11 “[...] parece existir uma forma de moral inata. A esse respeito, eu penso, por exemplo: a Igreja Católica Romana fala sobre o pecado original. Eu penso que é isto o que ela quer dizer. Nascemos com um sentimento de culpa, nascemos com isto que um dia se tornará em uma forma de consciência.” (BION, Supervisão S12, 1978/2018). 12 Chuster (2021) também propõe uma visão espectral do superego, porém enfocando o espectro Narcisismo ↔ Social-ismo, nas palavras do autor: como herdeiro do complexo de Édipo, o superego forma um espectro com as diversas concepções e conceitos produzidos pelas experiências, e com isso podemos descrever distintos superegos com as possibilidades de superego assassino, ladrão, traficante de drogas, corruptor da ética, contrabandista moral, até o ponto em que atravessamos para o espectro do social-ismo e passamos pela educação platônica, socrática, arte e ciência, e finalmente a consciência social complexa, que seria um outro extremo do superego assassino, o extremo do narcisismo. 13 Quanto mais o desenvolvimento do superego e o desenvolvimento libidinal avançam em direção ao nível genital [...] mais as identificações fantásticas e realizadoras de desejos (cuja fonte é a imagem de uma mãe que oferece gratificação oral) se aproximam dos pais reais. (KLEIN, 1958/2006, p. 233). 14 “Der Träumer am hellichten Tag”. 15 Com o termo mãe nos referimos à função materna executada por qualquer pessoa que assuma o papel de objeto primário.
- Ateliê de sonhos e não-sonhos: uma reflexão sobre o conceito de enactment a partir do filme Trama Fantasma
Este é um capítulo do livro "Entre sombas e luzes: o cinema e a experiência estética do psicanalista", publicado em 2025 pela Editora Zagodoni. O artigo foi escrito por Marina Ribeiro, Camila Young e Luan Ricardo. No vai e vem da agulha, exploramos o conceito de enactment a partir dos estudos de Roosevelt Cassorla, articulando-o ao filme Trama Fantasma . Embora originado no contexto clínico, buscamos expandi-lo para pensar as dinâmicas intersubjetivas que o cinema permite entrever - e que tentamos costurar neste ensaio. Das costuras no nosso ateliê: a teoria O enactment é um conceito psicanalítico contemporâneo que se refere a atuações geradas pela comunicação inconsciente entre paciente e analista, nas quais ambos participam de um conluio que interrompe a capacidade de simbolizar. Nesses momentos, experiências não elaboradas emergem como padrões imobilizadores, que ao mesmo tempo ocultam e revelam conteúdos inconscientes - como num teatro mudo. Diferentemente do acting out descrito por Freud (1905), o enactment implica uma dinâmica intersubjetiva, na qual paciente e analista participam, inconscientemente, de uma cena co-construída. As particularidades do analista - sua história, contratransferência, estilo clínico - influenciam suas reações, favorecendo conluios e não-sonhos [1] que demandam elaboração no processo analítico. Como destaca Marina F. R. Ribeiro (2016), o conceito de enactment tem raízes nos estudos sobre identificação projetiva desenvolvidos por Melanie Klein (1955) e se insere em uma “era” da psicanálise marcada pela ênfase na interação entre analista e analisando. Valoriza-se aqui a intersubjetividade, evidenciando a implicação do analista nos pensamentos e afetos que atravessam o campo transferencial-contratransferencial. As contribuições de Roosevelt Cassorla: enactment s crônicos e agudos Cassorla (2016) descreve o enactment como um fenômeno intersubjetivo no qual ambos os membros da dupla analítica, a partir da indução emocional mútua, se envolvem inconscientemente em dramatizações que expressam vínculos primordiais. Propõe, ainda, uma distinção entre dois tipos de enactment: crônico e agudo. Os enactments crônicos referem-se a uma indiferenciação prolongada entre analista e paciente, dificultando a simbolização. O campo é dominado por cenas [2] e repetições estagnadas que encobrem o traumático. Esse conluio pode surgir sob idealizações mútuas - com gratificação excessiva e ilusões de compreensão - ou dinâmicas sadomasoquistas, marcadas por dominação e submissão. Forma-se, então, um vínculo resistente, que suspende a capacidade de sonhar. Palavras e gestos deixam de promover elaboração e passam a funcionar como defesas contra a verdade emocional - são não-sonhos-a-dois , sustentando a paralisia psíquica. O enactment agudo, por outro lado, rompe essa fusão e permite o contato com a alteridade e o traumático. O campo se reorganiza, restabelecendo a diferenciação inconsciente entre os membros da dupla. Em consonância com as ideias de Bion [3], é nesse momento que pode emergir uma verdade emocional capaz de ser sonhada. No entanto, esse enfrentamento nem sempre é tolerável. O conluio atua como defesa e obstáculo - escudo e prisão - e sua dissolução exige preparo de ambos para metabolizar a experiência. Do contrário, o campo pode retornar ao enactment crônico, repetindo a paralisia até que haja disponibilidade psíquica para o trabalho analítico. Assim, embora interrompa momentaneamente o processo, o enactment pode inaugurar um novo ciclo de simbolização. Ao se abrir novamente à experiência do sonho-a-dois , o analista se deixa afetar, oferecendo imagens, intervenções e narrativas que ampliam o campo simbólico. Quando essas contribuições se articulam ao universo interno do paciente, um novo sonho emerge - mais autêntico, mais próprio. Nesse movimento, o que antes se condensava em conluios transforma-se em apropriação subjetiva, permitindo que ambos reconheçam e elaborem aquilo que antes apenas encenavam. O campo se revitaliza e a capacidade de pensar e sonhar é recuperada. Os pontos de alinhavo: reflexões teóricas a partir de fragmentos cinematográficos A partir dessa tessitura teórica, propomos um deslocamento do setting analítico para a sala de cinema. É nesse novo cenário que o enactment pode se apresentar sob formas diversas - gesto, atmosfera, silêncio - revelando-se como um modo de escuta para além das falas. Escolhemos o filme Trama Fantasma como matéria para costurar, à mão e com escuta analítica, pontos de contato entre o conceito de enactment e os fios que atravessam sua narrativa. O encontro com a obra foi vivido como experiência - no sentido proposto por Ogden (2014) - em que o espectador psicanalista mobiliza uma percepção singular, capaz de iluminar estados emocionais complexos. Logo no título, a obra anuncia uma trama fantasmagórica que, sem se revelar de forma explícita, permeia toda a narrativa. A narrativa do filme se distancia de propostas que mastigam os sentidos ou impõem uma leitura saturada, marcada por uma forma única de olhar (ou escutar); ao contrário, propõe um encadeamento de cenas marcadas por silêncio e ambiguidade, que permitem entrever comunicações inconscientes. Dirigido e roteirizado por Paul Thomas Anderson, Trama Fantasma acompanha Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), renomado estilista da elite britânica dos anos 1950, cuja vida é rigidamente controlada. Embora envolvido com várias mulheres, é com Alma (Vicky Krieps), uma garçonete do interior, que estabelece uma relação intensa - na qual algo de sua própria alma vem à tona de forma inesperada. O estilista incrível e a manequim perfeita: o enactment crônico Alma é uma mulher de vida simples. Vive em uma cidadezinha pequena nos arredores de Londres e trabalha como garçonete em um café. Uma pessoa pouco vista pelos outros e por si mesma. Alta, esbelta, bochechas coradas e uma autoimagem que, em seus gestos e falas, sugere fragilidades. Woodcock é um estilista de sucesso, vaidoso e impenetrável. Proprietário e criador de um ateliê de alta costura que veste a elite inglesa. Woodcock tira uns dias de descanso da árdua rotina de trabalho e é atendido por Alma em um café da pequena cidade próxima a Londres. Enquanto é atendido, trocam olhares, sorrisos e ele a convida para jantar. Na cena seguinte, em um espaço íntimo, Woodcock pede que Alma vista um de seus vestidos e, com entusiasmo e uma fita métrica, mede cada parte de seu corpo, como se fosse uma manequim. Um corpo (im)perfeito submetido à arte da costura para se tornar impecável. Cria-se um laço, um interesse, um afeto que os aproxima. Alma passa a viver na mansão em uma sobreposição de papeis: mulher, amante, funcionária do ateliê, manequim, enquanto Woodcock se dedica avidamente à atividade da alta costura. No cotidiano dos acontecimentos da mansão, quem dita o tempo e as regras é Woodcock, de tal modo que Alma se submete a passar horas em pé como sua manequim, além de trabalhar como costureira junto às outras funcionárias. Além do casal dormir em quartos separados, Alma vive na sombra, à disposição dos desejos e vontades de Woodcock. Por outro lado, e de forma contraditória, nos holofotes, desfila seus exclusivos vestidos em eventos comerciais e sociais. A jovem, paramentada por tecidos sofisticados de altíssima qualidade, experimenta ser vista por Woodcock e por todos ao redor. Alma vive situações nas quais se sente investida, talvez reconhecida; ela diz: “ Reynolds realizou os meus sonhos e eu lhe dei o que ele mais desejava em troca: cada pedaço de mim. ” Um encontro de almas A vivência do encontro a dois, é nela que os afetos atravessam e os diálogos ganham forma. Sob os elementos que emergem da relação, cada membro da dupla sente, pensa, age ou paralisa. No encontro de Alma e Reynolds existe uma relação que cursa o caminho da mutualidade e expansão? Ou, ao contrário disso, estamos diante de uma relação que traduz a lógica opressor-oprimido; dominador-submisso? O que os mantêm nessa dinâmica? E qual a percepção que cada um deles debruça (ou não) sob a relação? A fala de Alma sobre o seu encontro com Reynolds carrega a “realização de um sonho”, um possível estado de satisfação, e talvez gratidão, que se reflete em atos de entrega afetiva, com aspectos de submissão. A jovem tímida e invisível, sem sobrenome, residente em uma cidadezinha nos arredores da capital, vive momentos em que encarna uma bela modelo que desfila roupas de grife em Londres, fica visível, recebe doses de importância e, quem sabe, um lugar de reconhecimento. Para Woodcock, importa a criação de seus lindos vestidos. É vê-los ganharem fama carregados pelo corpo de sua bela e jovem manequim - Alma. Que com sua delicadeza e doçura lhe faz companhia sempre que deseja. Uma presença para preencher suas expectativas. Cada qual abastecido no seu sonhar, mas que sonho é este que impede o pensar e perturba a caminhada da vida? Estamos diante de um conluio de idealização e gratificação que, se por um lado representa uma aparente harmonia, por outro, carrega os perigos da estagnação. Tanto no que diz respeito à expansão dos processos subjetivos de cada pessoa envolvida, como da própria relação. Quando a capacidade de reconhecer e atribuir sentido à experiência está deteriorada, estamos diante de conexões frágeis, simbolizações precárias e, portanto, na área de não-sonhos . De acordo com Cassorla (2016) o enactment crônico nasce no terreno do não-sonho , como consequência da incapacidade de simbolização do que está sendo vivido e da necessidade de se reviver vínculos primordiais. Na atmosfera do filme, assistimos à formação de uma relação fusional ativada pela fragilidade, que expressam formas de enactment crônico entre eles. “O espalhamento apaixonado se revela como conluios de idealização mútua” (CASSORLA, 2014, p. 4) sem que a dupla envolvida perceba o que está ocorrendo. A aparência de um sonhar-a-dois camufla paralisações inconscientes, que esbarram em situações traumáticas e embaralham a produção de sentidos que desperte para alteridade. A psicanálise contemporânea tem se voltado a pensar a vida onírica e a falta dela nas análises, Cassorla, em seus estudos, dedicou-se a compreender o contínuo movimento de sonho↔não-sonho nas análises, com todas as possibilidade intermediárias que se manifestam no campo a partir da rede simbólica que se amplia ou se atrofia nas travessias dos processos analíticos (CASSORLA, 2014, 2016). Assim como na relação da dupla Alma e Woodcock, que em um conluio de idealização e excessos de gratificações empobreceu o pensar e, consequentemente, o rumar para as transformações e alteridade, a relação analítica, também pode se embrenhar em conluios inconscientes de resistências e favorecer a formação de enactments crônicos. Para Cassorla (2016) os enactments crônicos têm algumas funções, tais como: evitar a revivência do trauma tamponando a ansiedade; imobilizar o analista para que ele não traumatize o paciente; promover uma relação profunda (inconsciente) entre a dupla que levará o analista para as áreas traumatizadas; esperar tempo suficiente para que a mente dê conta de elaborar novos conteúdos. Neste percurso, o analista pode perceber os impasses e buscar estratégias de elaboração, ou não, sendo arrastado para área de não-sonhos, paralisações, podendo viver longos períodos de retraimento de sentidos. A situação em que o não sonho do paciente ataca a capacidade de pensar do analista constitui-se em um não-sonho-a-dois. De modo geral, são formadas em terreno onde não há uma rede simbólica suficiente para viver a realidade triangular (CASSORLA, 2013), ou seja, a diferenciação eu-outro e todos os percalços resultantes desse processo. Cabe salientar que, no paradigma intersubjetivo, a pessoa do analista participa da sessão [4], com seus aspectos conscientes e inconscientes, sua história pessoal e profissional, suas possibilidades e limites. O analista é parte do campo analisante, ele sofre as identificações projetivas do(s) paciente(s) e participa desse processo a partir da sua condição psíquica, que pode operar em um bom funcionamento ou em disfuncionamento (TAMBURRINO, 2016). No filme, Woodcock dá prestígio e visibilidade para Alma, um aparente lugar de reconhecimento, de mulher-esposa. Alma, por sua vez, lhe oferece seu corpo-manequim, seu corpo-mulher, seus serviços, seus cuidados. Em uma análise, assim como destacado na dinâmica do filme, a dupla pode funcionar de modo inconsciente, em complementaridade de desejos e expectativas, podendo se afastar, por ora, do movimento da transformação. Alma! Não se mova: o enactment agudo Alma chega à cozinha para tomar o seu café da manhã: o ambiente está silencioso e Woodcock e sua irmã estão sentados à mesa. Ruídos irrompem no ambiente, Alma se movimenta, faz barulho para descascar o pão, para despejar água morna na xícara de chá, para mastigar o alimento que leva à boca. Woodcock, nitidamente incomodado, dirige seu olhar para ela: “ Por favor, não se mova tanto. Alma , é movimento demais no café da manhã ”. O estilista irritado se retira da mesa e sua irmã aconselha Alma a fazer o seu desjejum em outro horário ou no próprio quarto. Em uma cena posterior, a jovem Alma está inquieta, quer transformar o ritmo das coisas. Então, dispensa os funcionários, pede para que a irmã de Woodcock passe uma noite fora e prepara uma surpresa romântica, um jantar a dois. Woodcock chega em casa, que está vazia e silenciosa, e se depara com Alma bela e sorridente, esperando-o no alto das escadas. Por sua vez, Woodcock apresenta um semblante descontente e sombrio, questiona a iniciativa de Alma e pergunta por sua irmã. A moça, com as mãos para trás, semelhante à postura de uma garçonete, pergunta se ele aceita uma bebida e ele recusa a oferta e diz que vai tomar um banho. Nota-se, mais uma vez, contradição de afetos em cena. Alma ousa causar uma transformação, mas seu corpo é tomado por ações que retomam o sentido das posições estagnadas na relação [5]. Alguns minutos mais tarde, na mesa de jantar, Alma, ao mesmo tempo que tenta ser doce com amado, pergunta com tom de ciúmes sobre o seu encontro com a princesa da Inglaterra, uma bonita e especial cliente. Então, ele olha firme para ela e não responde, apenas toma um gole de sua bebida. A cena segue com um desentendimento entre eles. Alma está nervosa e desapontada. O jantar romântico tem gosto de hostilidade. Ela observa Woodcock espalhar uma grande quantidade de sal em cima dos aspargos que ela preparou com carinho. Apreensiva, pergunta a ele se gostou da comida. Em um primeiro momento ele diz que sim, mas pressionado por ela, Woodcock admite que ela não cozinhou os aspargos da maneira como gosta, apenas no azeite. Com mais doses de tensão, onde paira um clima de aniquilamento, uma discussão eclode. Nesta, Alma diz estar cansada dos jogos de Woodcock e ataca seu jeito cínico de viver e se relacionar. Ele a agride (e humilha) pontuando que ela não é obrigada a viver ali e que pode voltar para o lugar de onde veio. Alma tem alma! Alma tem sons próprios! Há uma disritmia na mesa do café da manhã. Alma tem ideias próprias! Planeja e organiza um jantar surpresa. Alma tem alma! Sofre de ciúmes e profere cobranças. Incomodado com o descompasso das coisas, Woodcock sugere que ela volte para o lugar de onde veio, a cidadezinha pequena, o lugar submisso. Como continuar na relação, de maneira discriminada e, ao mesmo tempo, relacional? As atitudes da jovem esboçam mudanças na trama, uma tentativa de redefinição de lugares. Entre a iniciativa de organizar um jantar a dois na mansão e oferecer uma bebida posicionada como serviçal, ela rabisca uma saída criativa para se diferenciar e encontrar um lugar de reconhecimento. Simultaneamente, Woodcock tenta driblar o movimento de transformação, se coloca de maneira autoritária a fim de manter o status quo , a configuração de dominação de um sobre o outro. À essa altura, entramos em contato com o seu sofrimento, que se origina desse não-lugar, um não-sonho com trajes de sonho. A fantasia simbiótica que sustenta o enactment crônico traça caminhos para ser desfeita. Cassorla explica que durante a cronicidade dos conluios, “o contato momentâneo com a triangularidade pode ser marcado por micro- enactments agudos (tentativas de diferenciação) quase imperceptíveis, quando a organização defensiva retrocede imediatamente para enactments crónicos ” [6]. Assim, assistimos Alma tentar se libertar do conluio simbiótico de perfeição na busca de uma relação de amor na qual ela pudesse ser em função de quem se é. Na sequência, fortalece um vínculo sadomasoquista, onde a jovem volta a acatar aos comandos de seu amado, que, por sua vez, continua a ditar sadicamente o que deve ou não existir no campo da relação. Desse modo, os movimentos escancaram as faces complementares do conluio inconsciente: proteção da verdade emocional traumática e aniquilamento das subjetividades. Enquanto o enactment crônico é sutil e se constitui em uma zona de resistência, o enactment agudo marca uma encenação aguda, abrupta, com caráter de denunciar a estagnação e o sofrimento. De acordo com Cassorla (2016, p. 97-98) o fenômeno tem “por objetivo demonstrar seu valor comunicativo para o processo analítico, estimulando sua compreensão.” Ou seja, embora o enactment agudo se apresente com características de impasse ou conflito, como o desentendimento frente ao jantar romântico, ele tem o aspecto comunicativo, evoca o entendimento para um vínculo adoecido, para o sofrimento. Na clínica, nos deparamos a todo momento com impasses no processo analítico. De tal modo, é função do analista identificar e desfazer os enactments com uma certa frequência [7]. Quando há o imbróglio do enactment crônico, onde as paralisações se estendem e se localizam em zonas inconsciente o enactment agudo pode se impor, obrigando o analista a “abrir os olhos para o que estava acontecendo”, trata-se de um momento construído après coup (posteriormente à sessão ou ao acontecimento) e que permite a compreensão do impasse. (CASSORLA, 2014, p. 22). Nas análises, o enactment agudo se apresenta de maneira performática, onde o paciente convoca o analista para encenação e ambos se envolvem na cena dramatizada sem que percebam, a priori , toda a rede de significados que está por trás da atuação. Cassorla (2014, 2016) descreve uma sequência de etapas que caracteriza o fenômeno. O primeiro momento é marcado por uma atuação abrupta (aguda), no qual elementos sem significados ou com significados deteriorados são eliminados via identificação projetiva, são fatos que não se conectam à rede simbólica e se constituem em zonas onde a simbolização está prejudicada. Em seguidas, o campo é inundado por intensidade de afetos e estados confusos, difíceis de descrever ou entender. Neste momento, o analista pode sentir que exagerou, falhou, sentimentos de culpa, raiva, entre outros, podem estar presentes. Entretanto, com a sequência dos fatos analíticos e a implicação do analista sobre os acontecimentos [8], caminha-se para que os pontos cegos sejam desfeitos, havendo uma ampliação da rede simbólica e um momento analítico mais criativo. Um aspecto importante de destacar é que o “ enactment agudo é aproveitado quando existe cerzimento suficiente para que o trauma seja suportado e sonhado.” (CASSORLA, 2014, p. 25), ou seja, o paciente precisa ter recursos psíquicos suficientes para se deparar com a realidade e simbolizá-la. Caso contrário, podemos nos deparar com regressões aos conluios iniciais, agravamentos de resistências e até rompimentos na análise. Assim como ocorre na cena do filme, marcado por um movimento de mudança seguido de contra ataque. Cabe ao analista seguir no processo de formação e/ou construção da rede simbólica, até que novos movimentos de transformação possam ser vivenciados e introjetados na relação da dupla. Da mesma forma, Alma continua sua busca por novas tentativas. Uma casa que não muda é uma casa morta: o enactment agudo como abertura ao sonho “ Às vezes, é bom para ele desacelerar um pouco ”, pensa Alma . Neste momento, a câmara foca na imagem de um livro de medicina aberto em um capítulo específico sobre cogumelos comestíveis e venenosos. Woodcock fica alguns dias de cama após a ingestão de cogumelos, ninguém suspeita da causa do seu adoecimento. Em uma situação de fragilidade, Woodcock se submete aos cuidados de Alma, que exerce a função com carinho e dedicação. Acamado, sozinho no quarto, Woodcock tem uma espécie de sonho em alucinação com sua falecida mãe. Em sonho, ele conversa com ela, diz sentir saudades, que pensa nela o tempo todo e acorda com lágrimas no rosto. É a primeira vez que o espectador percebe a fragilidade de um homem vigoroso e controlador. Alma entra no quarto de Woodcock que, sob o efeito do sonho e entremeando as imagens da mãe e de Alma, se entrega ao cuidado. Ao melhorar do seu estado entorpecido, novos elementos entram em cena. Woodcock desperta mais leve e feliz, acorda Alma, que está dormindo em um sofá ao lado da sua cama, e pede sua mão em casamento. Após o casamento, o casal começa a passar mais tempo juntos: vão em festas, fazem viagens, etc. Alma passa a auxiliar mais diretamente nos processos produtivos da fabricação de vestidos. Partindo desse novo contexto, o casal recebe o convite para uma festa de Ano Novo em um clube de renome da cidade, Alma quer muito ir, mas Woodcock desaprova o convite: “ Está brincando. Eu não vou dançar ”. Alma decide ir sozinha, apronta-se e Woodcock a observa saindo de casa. Após um tempo em silêncio olhando a porta fechada, resolve ir até a festa. Há uma multidão de pessoas comemorando a chegada de um novo ano, um novo ciclo. Woodcock, do mezanino, lança seu olhar sobre Alma, cujo semblante é paradoxal, está animada e desconcertada em meio à folia. Com o olhar de preocupação e determinação, Woodcock vai ao seu encontro. Entre os foliões há um encontro ambíguo entre o casal, no qual circula sentimentos de ódio e amor, eles se beijam e dançam. O semblante indecifrável de Alma durante a folia também revela uma percepção que escapa à compreensão de Woodcock. Quem ela é, além dele? O impulso do estilista em protegê-la do desconhecido evidencia a turbulência emocional criada por um novo tipo de vínculo. Há movimentos de retração e expansão, há circulação de sentimentos ambíguos. Uma outra cena desnuda com sutileza aspectos dessa trama: enquanto Alma prepara o jantar para Woodcock, ele a observa da mesa onde rabisca seus vestidos em um pequeno bloco de notas. Entre olhares, ela corta os cogumelos com um farto tablete de manteiga, contrariando o gosto do marido, que os prefere refogados apenas no azeite. Serve-lhe um copo de água marcado por intenso barulho do líquido se acomodando no copo, não tem qualquer preocupação em não incomodá-lo com os seus sons. Ela coloca uma porção dos cogumelos no prato de Woodcock, que os cheira antes de levar até a boca, seu olhar encontra os olhos de alma de forma penetrante, em seguida, os engole lentamente. Abre-se um sorriso no rosto de Alma e eclode um pensamento sem comunicação em palavras, uma espécie de monólogo: “ Eu quero você sem forças para se levantar. Desamparado. Frágil. Aberto. Somente comigo para ajudar.” O garfo é colocado sob o prato e Woodcock diz, docilmente: “ Me beije, minha garota, antes que eu adoeça ”. A última cena do filme mostra Woodcock sentado em um banco, em um ambiente arborizado, e Alma empurrando um carrinho de bebê. Dissolução dos enactments - novos ciclos Em um ambiente asséptico, onde a capacidade de trocas afetivas dos protagonistas se revelam inexistentes, nos deparamos com áreas de simbolização precárias. Nessas circunstâncias, emerge uma situação extrema - um entorpecimento pela ingestão de cogumelos. Este acontecimento impele mudanças na trama e irriga os sentidos para o telespectador. Estamos diante de um movimento abrupto (no caso, agressivo) que oxigena e recupera o sonhar (conferem novos sentidos) ou de uma inversão de papéis que preservam a lógica dominação-submissão? Independente da resposta à questão, a reflexão floresce. Os enactments agudos se apresentam como descargas de comportamentos em áreas de não-sonhos que, de certa maneira, estão em busca do sonhar, pois tem um caráter comunicativo (CASSORLA, 2016). Alma forja uma condição de fragilidade que favorece sua entrada. Isto resulta em um pedido de casamento, um ato que anuncia mudança na relação, seja ela uma inversão da lógica dominador-submisso ou novos modos de relação e de subjetividade. Do mesmo modo, o sonho noturno de Woodcock o coloca às voltas com os cuidados maternos, uma condição humana na qual precisamos do outro para sobreviver. Acordado, sonha em ter um casamento ao lado de Alma. A condição do adoecimento e entrega (ou submissão) aos cuidados da jovem mulher traz um novo olhar sob o vínculo. Em outro momento do filme, Reynolds encontra Alma na festa de Ano Novo. O casal (agora, se constitui como casal) dança em meio à bagunça dos foliões e ao anúncio da chegada de um novo ciclo. A atmosfera do vai e vem dos corpos sugere a circulação de afetos, talvez amor pelo reencontro, ou raiva pela nova condição - casados, ou ódio pela própria inversão de papéis. Novos acontecimentos, novos sentidos. Na sutileza e profundidade da troca de olhares na cena em que Woodcock se alimenta dos cogumelos, paira nas entrelinhas, um certo consentimento ao novo modo de encontro, no qual, em circunstâncias provocadas de fragilidade, a entrega ao outro pode existir. Evidentemente, não podemos deixar de mencionar a falta de reciprocidade do casal e o tom de subjugamento que se revela na cena. Os elementos que se apresentam na cena final do filme têm uma fotografia cinematográfica diferente, marcada por um espaço aberto, arborizado, enquanto atravessa um carrinho de bebê conduzido por Alma. Esse cenário poderia apontar para uma possibilidade de sonhar-a-dois? Talvez, vislumbremos que “o desenvolvimento da capacidade de sonhar e pensar, por sua vez, permitirá maior capacidade de lidar com frustrações e aprender com a experiência emocional.” (CASSORLA, 2014). A capacidade de sonhar com a experiência e novos futuros favorece o trânsito em áreas simbólicas. Nesse caminho, pensar ou simbolizar diz respeito a uma qualidade do psiquismo que se dá através da constituição dos símbolos, sejam eles imagéticos ou verbais. No contexto das análises, os enactments agudos podem ser a via régia para a abertura de uma cadeia de sentido. O analista atento se dá conta que as descargas e explosões que se manifestaram no campo analítico permitem a recuperação do pensar e do sonhar. Com isso, percebe-se a esterilidade e conluios que estavam sendo vividos e cria-se caminhos de ressignificação, a dupla vive momentos de proximidade e criação. Da mesma forma que “uma casa que não muda é uma casa morta”, uma análise sem movimento perde sua função onírica, ou seja, a capacidade de gerar conexões simbólicas, novos significados, maior desenvolvimento emocional, em uma contínua ampliação da mente. (CASSORLA, 2017). Os arremates da nossa costura: considerações finais Para além do setting clínico, a leitura do conceito de enactment em obras cinematográficas permite pensar movimentos de estagnação e transformação na relação entre personagens. Como vimos em Trama Fantasma , as reações dos protagonistas não se dirigem apenas ao outro, mas ao sentido que a dupla cria inconscientemente no vínculo. O cinema, assim, revela aquilo que a psicanálise formaliza teoricamente. Ao mobilizar a imaginação do espectador, a sétima arte torna-se uma via potente para a reflexão psicanalítica. Pensar um filme é também confrontá-lo com o que há de mais íntimo em nós - e essa operação se intensifica quando a obra preserva sua ambiguidade, abrindo espaço para múltiplos sentidos. Tal como o campo analítico, o campo cinematográfico convida a sonhar, revelando tramas singulares e afetivas em cada espectador. Referências bibliográficas CASSORLA, R. O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment ; São Paulo: Editora Blucher. 2016. CASSORLA, R. Estupidez no campo analítico: vicissitudes do processo de desprendimento na adolescência. Internacional Journal of Psychoanalysis. Open. 1 (28), 1-37. 2014. CASSORLA, R. Afinal, o que é esse tal de enactment? Jornal de Psicanálise 46 (85), 183-198. 2013. CASSORLA, R. O campo analítico como campo do sonhar: O lá, o aí, o aqui, o acolá como vértices de observação participante. Jornal de Psicanálise 50 (93), 53-65. 2017. FREUD, S. Análise fragmentária de uma histeria. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6). Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1905. 2016. KLEIN, M. Sobre identificação. In: —. Inveja e gratidão e outros trabalhos . Rio de Janeiro: Imago, 1991. (Publicado originalmente em 1955). OGDEN, B. & OGDEN, T. O ouvido do analista e o olho do crítico: repensando psicanálise e literatura. São Paulo. Escuta. 2014. RIBEIRO, M. F. R. Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment : O analista implicado. Cad. psicanal., Rio de Jeneiro, v. 38, n. 35, p. 11-28, dez. 2016. TAMBURRINO, G. Enactments e transformações no campo analisante. São Paulo, SP: Ed. Escuta. 2016. TRAMA FANTASMA. Paul Thomas Anderson. Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville. 2017. Universal Studios. DVD (130 minutos). Legendado em português. 2016. NOTAS [1] Cassorla, seguindo o pensamento de Bion, compreende que sonhar e o pensar inconsciente são processos equivalentes, ou seja, sonhar é pensar. [2] Vamos exemplificar essas cenas na reflexão do filme. [3] Cassorla segue o pensamento de Bion, como já dito, no entanto, o conceito de enactment é da década de 80 e não está presente na obra de Bion com esta nomenclatura. [4] O interesse e estudo pela vida mental do analista e sua implicação na análise é uma contribuição à psicanálise a partir da obra de Bion. [5] Essa é uma cena estanque, paralisada, como mencionado na parte inicial do texto. [6] IPA - Inter-Regional Encyclopedic Dictionary of Psychoanalysis online. Recuperado em 4 de janeiro de 2024 de https://online.flippingbook.com/view/544664/270 . Capítulo Enactment - entrada tri-regional, tradução de João Bicudo Keating, p. 9. [7] Cassorla (2016) denominou enactments normais os impasses gerados pelo trânsito das identificações projetivas, que são percebidas e acompanhadas de elaborações. [8] O analista busca a compreensão a posteriori através de reflexão, escrita do caso e auxílio de interlocutores (colegas de profissão, supervisores).
- Potencialidades transformativas do encontro estético: um estudo de caso
Este artigo foi publicado em 2025 na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Autores: Janderson Farias Silvestre Ramos e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar, a posteriori, uma experiência clínica vivida em um contexto institucional. Trata-se de um paciente que frequentava um grupo centrado em torno da música e que apresentou transformações subjetivas e relacionais. Investigamos os elementos da experiência vivida com esse paciente, que propiciaram as transformações. Nossa hipótese é de que esses elementos são principalmente de caráter estético, de modo que consideramos que foram as experiências estéticas vividas por ele que levaram às transformações. Consideramos a dimensão estética da experiência musical e também aquela que faz parte do encontro interpessoal vivido entre o paciente e o coordenador do grupo. A estética é aqui compreendida não em seu caráter restritivo à filosofia do belo ou da arte, mas sim em seu sentido mais primário, isto é, como experiência vinculada ao campo do sensível. Palavras-chave:Experiência estética; transformações psíquicas; Christopher Bollas; Michael Balint Jorge, o desconhecido “Nunca teve amor, não sentiu o calor de alguém/ Nem sequer ouviu a palavra carinho, seu ninho não existiu. Sinceramente eu chorei de tristeza ao ouvir/ Tanta coisa que a vida oferece/ Que a gente padece/ Sem querer”. Esse é o refrão da música A desconhecida , do cantor Fernando Mendes, uma das preferidas de Jorge [1], um paciente de uma instituição psiquiátrica na qual trabalhei durante algum tempo. Jorge era um homem sisudo, de quem pouco se sabia, um tipo de “desconhecido”. Falava pouco, e com muita resistência participava de qualquer grupo, dos diversos oferecidos na instituição. Caminhava lentamente com os braços flacidamente pendidos para baixo. Raramente sorria e podia passar horas dormindo, sentado em uma poltrona no saguão. A instituição em questão era um Hospital-Dia no qual o paciente realizava tratamento. Ele lá permanecia durante o dia, de segunda a sexta-feira, do início da manhã ao fim da tarde, participando de atividades semanais, tais como ateliês de pintura de livre expressão, grupos verbais, visitas a instituições culturais como museus e cinemas, além das consultas psiquiátricas periódicas. Durante seis meses organizei [2] um grupo que se reunia em torno da música. Em cada encontro algum paciente propunha a música que cantaríamos na semana seguinte. A letra impressa era distribuída para cada um; uma caixa com instrumentos de percussão era colocada em cima da mesa, de modo que os pacientes podiam tocá-los, se quisessem, e cantávamos a música algumas vezes, acompanhados por um violão. Por fim, um espaço era aberto para que, quem quisesse, falasse sobre o que pensou ou sentiu ao cantar a música, ler a letra etc. Jorge não se empolgou inicialmente para participar dos encontros, cuja participação era voluntária. Durante as primeiras semanas eu ia encontrá-lo em “sua” poltrona e o convidava para se juntar ao grupo. Ele relutava, enquanto eu insistia argumentando que poderia ser uma boa atividade, que ele poderia gostar. Por fim, ele dizia: “Tá, daqui a pouco eu vou”, com um esboço de sorriso no rosto. Eu sorria de volta e dizia, num tom brincalhão: “Beleza, vou te esperar. Se você não for, eu venho te chamar de novo, heim?”. Alguns minutos depois, eu o avistava entrar no espaço onde o grupo se realizava. Após cerca de um mês, uma virada aconteceu. Quando o início do grupo era anunciado, Jorge aparecia, sem necessidade de ser chamado, sentava-se e pedia um pandeiro para tocar. Via-se a animação em seus olhos. Entretanto, quando eu lhe pedia que propusesse uma música para que cantássemos na semana seguinte, ele retrucava que não lembrava de nenhuma. Em certa ocasião, eu participava de um grupo diferente, o grupo de ateliê de pintura, coordenado por outra pessoa da equipe, quando Jorge, sentado ao meu lado, começa a cantarolar baixinho uma canção. Tratava-se de A desconhecida . Após perguntar o título da canção, eu lhe digo: “Vamos cantar essa no próximo encontro?” Ele concorda. Na semana seguinte cantamos a música de Jorge. Depois disso ele se torna visivelmente o membro mais interessado e que conduz os outros participantes nos encontros posteriores, dando a deixa para iniciar a cantoria. Pouco a pouco Jorge vai revelando pequenas lembranças de sua vida: os bailes que gostava de frequentar, os shows de um cantor romântico que adorava, o fato de ter tocado violão na juventude e o desejo de voltar a tocar. Um dia ele me pergunta se eu poderia ajudá-lo a procurar escolas de música, pois queria fazer aulas de violão. Procuramos juntos, na internet , telefones de escolas próximas de sua casa. Ele anota alguns números, decidido a entrar em contato. Duas ou três semanas depois, ele revela o desejo de comprar um violão e fala do desânimo ao ver os altos preços daqueles que encontrou na internet . Eu digo: “Não, Jorge, têm violões muito mais baratos”, e indico um lugar onde ele poderia encontrar violões de menor custo. Ele pergunta se eu posso acompanhá-lo na procura. Como naquela mesma semana as minhas férias se iniciariam, eu lhe digo que quando eu voltasse eu poderia acompanhá- lo. Duas semanas depois, quando retorno, ele me diz que já havia comprado um violão e se matriculado numa escola de música perto de sua casa. Depois disso o grupo seguiu por aproximadamente dois meses, pois tive que encerrá-lo em virtude de minha necessidade de deixar a instituição. Nesse período, Jorge passou a trazer seu violão e muitas vezes o utilizei para acompanhar o grupo. Jorge observava, com expressão alegre. Eu o convidava a tocar junto comigo, mas ele recusava, tímido, dizendo que ainda não sabia. Quando precisei sair da instituição, eu lhe presenteei com um DVD do cantor romântico que ele gostava. Ele abriu um sorriso largo e me deu um abraço afetuoso. O que pretendemos neste artigo é analisar alguns elementos da experiência com Jorge envolvidos nas transformações observadas. Nossa hipótese é de que a fenomenologia de sua condição psíquica se devia a falhas precoces de caráter estético e de que os elementos estéticos da experiência de Jorge com o coordenador do grupo e com as próprias músicas e instrumentos tocados (por ele e pelo coordenador) facilitaram o caminho de alguma reparação estética. Adiante procuramos refletir teoricamente sobre o que se passou nessa experiência. Antes, no entanto, é pertinente que apresentemos algumas considerações metodológicas, apontando de que maneira analisamos a experiência em questão. Apontamentos metodológicos A análise da experiência com Jorge foi realizada de acordo com o que Ribeiro, Flores e Ramos (2022) descrevem como a leitura de um fragmento intersubjetivo . Os autores pontuam que a pesquisa psicanalítica é sempre realizada a partir do que André Green (1987/2017) denomina o mito de referência do psicanalista, noção que se refere a um conjunto formado pela leitura dos psicanalistas que nos antecederam, pelos diálogos com os colegas, pela escuta dos pacientes, e pelos vestígios de nossa análise pessoal, aos quais os autores acrescentam as supervisões realizadas e as experiências de vida do pesquisador-psicanalista. Neste sentido, em qualquer tipo de pesquisa psicanalítica, este mito de referência que compõe a subjetividade do pesquisador precisa ser levado em consideração. Para exemplificar este modo de compreender a pesquisa em psicanálise, os autores refletem sobre a forma como Freud (1914/1996b) interpretou o Moisés de Michelangelo e como Ogden (2013) lê os poemas de Robert Frost. Tanto Freud quanto Ogden deixam-se afetar pelas obras, permitindo-se ser impactado por elas, para depois tentarem captar algo que expandirá a compreensão da obra e de si mesmos. Estes exemplos levam-nos a pensar na experiência com Jorge. O encontro com Jorge tratou-se de uma experiência de profunda afetação e, em grande medida, o que nos moveu na direção da produção deste texto foi o ímpeto de tentar compreender o que se passou. Do ponto de vista das teorias utilizadas neste artigo, seguimos a proposição de Christopher Bollas (2007/2024) a respeito do modo de usar as teorias psicanalíticas. O autor defende uma visão pluralista da psicanálise, comparando as teorias a formas de percepção: Uma teoria é um fenômeno metassensual. Ela permite que se enxergue coisas não vistas por outras teorias; para obtê-la como uma possibilidade inconsciente, é necessário que uma necessidade clínica surja. Se declarar contra uma escola de pensamento, é como afirmar que se é alguém de visão e não gosta do que ouve, ou dos dados sensoriais auditivos, ou alguém que declara que confia no que escuta, mas nunca confia no que fareja. (p. 62; nossos itálicos) Sublinhamos um trecho da citação que consideramos importante para nossa justificativa metodológica. Bollas fala da emergência de uma necessidade clínica que evoca uma teoria capaz de explicá-la. No decorrer da análise da experiência com Jorge, fomos guiados, muitas vezes de modo tácito, por nossas experiências clínicas, pessoais e pela própria lembrança da experiência com o paciente, de maneira que as teorias foram se concatenando em virtude da necessidade de explicitar facetas dessas experiências, tal como ocorre em uma escuta clínica orientada pela atenção livremente flutuante ( Freud, 1912/1996a ). Considerando a complexidade da experiência, orientamo-nos na tentativa de construir um trabalho que respeite essa complexidade, transitando entre as diferenças e aparentes paradoxos das teorias, sem almejar necessariamente dirimi-los. Penso que, trilhando este caminho, seguimos uma diretriz proposta por Bollas, que considera um dever ético “que todos os psicanalistas tenham uma imersão na orientação teórica das maiores escolas de psicanálise” ( Bollas, 2007/2024, p. 61 ), pois na visão do autor, “tal imersão pode aumentar a capacidade perceptiva, expandir a mente, para receber pacientes com uma sabedoria que apenas pode ser obtida pela passagem entre as diferenças” p. 61). Evidentemente a sabedoria obtida e colocada em texto, é restringida pela limitação de nosso conhecimento das teorias psicanalíticas. Portanto, o que o leitor verá, é claro, não é uma passagem por todas as teorias psicanalíticas, mas por aquelas que conhecíamos e, especificamente, aquelas que foram surgindo em nossa mente evocadas pela experiência com Jorge. Jorge, Balint e as três áreas da mente A música que Jorge escolhe é bastante emblemática. Ela fala de desalento, falta de carinho, de amor e de ninho. Terá sido o grupo um novo ninho para Jorge? Michael Balint pode nos ajudar nesta reflexão. Balint (1968/1993) propõe uma topografia da mente em que esta seria formada por três áreas: a área edípica, a área da falha básica e a área de criação. A área edípica se instaura com a emergência da triangularidade. A área de criação seria uma área em que não haveria objetos. Esta seria uma área difícil de observar ou descrever o que nela acontece, visto que nossos métodos analíticos seriam destinados à análise do que se passa no campo relacional. A área da falha básica seria relativa à relação dual. Deste modo, a fim de facilitar a compreensão dessas áreas, Balint associa cada uma a um número. A área de criação corresponde ao um, a falha básica ao dois , e a edípica ao três. Expandiremos um pouco mais a definição e características de cada uma das áreas, mas primeiro queremos destacar um ponto da conceituação de Balint (1968/1993) . Para o autor a primeira área a se constituir seria a da falha básica, visto que ela se estrutura logo após a ruptura provocada pelo nascimento. A área edípica se configuraria como uma complexificação da área da falha básica (do dois para o três), enquanto a área de criação se constituiria como uma simplificação desta (do dois para o um). Deste modo, entende-se que primeiro é necessário haver o encontro com o outro para que seja possível a constituição de um psiquismo capaz de criação. Voltemos o olhar para a área da falha básica. Esta seria a área onde o bebê se encontra logo após o nascimento. Seria o campo de uma relação dual, no qual o outro começa a se apresentar ao bebê com seus contornos, sua diferenciação, o que cria no bebê o sentimento de uma falta, já que, cada vez mais, certas lacunas passam a limitar a sensação anterior de uma completude absoluta. A origem da falha básica seria uma discrepância entre as necessidades biopsicológicas do indivíduo em suas fases formativas mais precoces, e “o cuidado material e psicológico, e a afeição disponível em momentos relevantes” ( Balint, 1968/1993, p. 20 ). Balint (1968/1993) usa a palavra falha, pois, segundo ele, muitos pacientes utilizam essa palavra para se referir à sensação de uma falha dentro de si. Eles não a sentem como um conflito ou um complexo, mas sim como uma falha causada por alguém que falhou ou descuidou-se deles. A força dinâmica que se origina dessa área não tem a natureza de um conflito, mas sim de uma espécie de deficiência a ser corrigida. O acréscimo do adjetivo “básica” tem por objetivo apontar que essa área pertence a um nível mais elementar do que o edípico, fazendo parte do terreno da psicologia bipessoal. Além disso, o termo serve para marcar o fato de que essa área envolve tanto o corpo quanto a mente em diferentes níveis, de maneira que sua influência provavelmente se estende pelo todo psicobiológico do indivíduo. Em certo nível, a falha básica seria inevitável, pois após o nascimento haveria um desencontro entre a provisão ambiental e as necessidades do indivíduo. Do ponto de vista clínico, ao trabalharmos na área da falha básica de um paciente, não teríamos como objetivo criar canais de descarga para uma pulsão insatisfeita ou ajudá-lo a elaborar um conflito, como se daria no nível edípico. Ao invés disso, a função analítica deve se voltar a preencher uma lacuna, a oferecer os meios para que uma ferida cicatrize. Seria o conceito de falha básica um bom operador para pensar na vivência de Jorge? Infelizmente meu trabalho com Jorge durou apenas seis meses, de maneira que não pude conhecer mais de sua história pregressa. O que soube, durante esse período, em uma comunicação a conta gotas, é que há muitos anos ele havia migrado do Nordeste, e que havia frequentado muitos bailes na juventude. Falava com saudade da música, da dança e das moças que conheceu. O que aconteceu que o teria feito sair dessa vida erotizada, vitalizada, para a imobilidade sonolenta nas poltronas do saguão? Alguns aspectos da fenomenologia clínica de Jorge levam-nos a refletir que é pertinente pensá-lo como um paciente da falha básica ( Balint, 1968/1993 ). Em primeiro lugar, a própria canção escolhida por Jorge aponta para uma fratura psíquica precoce. A composição fala de alguém carente de amor, calor, carinho e ninho, elementos que remetem às necessidades primordiais de um ser humano. Em que momento de nossa existência esses elementos estão mais vivamente presentes do que no estágio intrauterino? Qual o ninho mais caloroso do que o útero materno? Através dela parece que Jorge nos fala de uma perda e separação primitivas e fundamentais. Figueiredo e Coelho Junior (2018) inserem a concepção de falha básica no que eles intitulam de matriz ferencziana , considerando-a uma noção que serve à compreensão de pacientes adoecidos por passivação . Os autores propõem a existência de duas grandes categorias de adoecimento. No caso dos adoecimentos por ativação , tratar-se-ia de um psiquismo experienciando angústias e se defendendo ativamente delas. Por outro lado, no caso dos adoecimentos por passivação , teria havido uma interrupção ainda mais precoce e radical dos processos de saúde. Neste caso, tratar-se-iam de (...) traumatismos precoces, experiências de ruptura que produzem (...) uma verdadeira aniquilação das capacidades de defesa e resistência. As angústias não chegam a se formar, são liminarmente evitadas por uma verdadeira extinção de áreas do psiquismo que morrem, ou melhor, deixam-se morrer. (p. 15) Essa situação provoca “no traumatizado um processo de passivação, evocando nele uma condição de passividade , inércia” (p. 16; itálicos dos autores). Nestes casos a situação de adoecimento leva ao entorpecimento, à paralisia, à anestesia, ao vazio e ao tédio. A imobilidade de Jorge, a ausência quase completa de reações e de interesses, levam-nos a hipotetizar que ele faria parte do grupo desses pacientes precocemente traumatizados, adoecidos por passivação, em quem se inscreveu uma profunda falha básica. É neste contexto que consideramos que as transformações ocorridas se devem, em grande parte, aos elementos estéticos das experiências de Jorge na instituição, pois entendemos, seguindo concepções de Balint e Bollas, como apresentaremos adiante, que são as experiências de caráter estético que são capazes de propiciar transformações psíquicas em tais pacientes. Neste ínterim, a noção de uma área de criação também se apresenta como um bom operador para refletir sobre Jorge. Em certo sentido, a área de criação se constituiria num movimento que objetiva retornar ao ninho, ao carinho, calor e amor absolutos. A constituição da área de criação teria como passo inicial a retirada regressiva dos objetos, esses percebidos como desagradáveis e frustrantes, e, em seguida, haveria a tentativa de criar algo novo, melhor, mais amistoso e mais bonito do que a realidade frustrante ( Balint, 1968/1993 ). Infelizmente, Balint ressalta, nem sempre essa tentativa é bem-sucedida, de modo que muitas vezes o que é criado pode ser pior do que a realidade amarga. As criações patológicas se situariam aqui. Balint chama atenção ainda para outros fenômenos próprios da área de criação, talvez não tão evidentes quanto as criações artísticas, como a matemática, a filosofia, o discernimento e a compreensão de algo (no qual podemos incluir os insights obtidos no tratamento analítico), as primeiras fases de ficar doente (física ou mentalmente) e as recuperações espontâneas da doença. Estes últimos exemplos são particularmente interessantes, pois associam criação e processos patológicos. A referência às primeiras fases da doença remete ao fato de que na área de criação o indivíduo pode criar uma patologia, um conjunto de sintomas etc. Teria sido este o caso de Jorge? Talvez, na tentativa de consertar uma falha que se tornou uma grande ferida, Jorge tenha regredido à área de criação. No entanto, não encontrando lá elementos que lhe servissem de matéria- prima para criações benignas, ele caiu no vácuo, o que, talvez, se apresente em sua passividade constante. É dos encontros com os objetos que o indivíduo retira os insumos para criar quando regressa à área de criação. Se o encontro é traumático, o retorno a essa área vai culminar em criações patológicas. Mas se é um encontro acolhedor, que repara em certo nível a falha básica ao invés de exacerbá-la, então o retorno ao Um pode levar à criação benigna, na forma, por exemplo, de obras de arte, mas não apenas. Balint compara a falha básica com a noção de falha na geologia (1968/1993), dizendo: O termo “falha” tem sido utilizado em algumas ciências exatas para indicar condições que lembram o que estamos discutindo. Assim, por exemplo, em geologia e cristalografia, a palavra “falha” é utilizada para descrever uma súbita irregularidade na estrutura total, uma irregularidade que, em circunstâncias normais, estaria escondida, mas, se houver pressões ou forças, pode levar a uma ruptura, alterando profundamente a estrutura total. (p. 19) Podemos pensar que também em um ser humano, se tudo corre bem, a falha básica está escondida ou não tão aparente, permanecendo como uma marca constitucional e não como uma grande rachadura. O excesso de pressões ou forças agindo sobre a falha leva ao alargamento patológico desta, de modo a transformá-la em um grande cânion psíquico. Talvez isto tenha se dado com Jorge. Talvez seu sono prolongado fosse uma maneira de tapar essa fenda ou, ainda, de retornar a um momento em que ela não existia. A celebração do idioma O que, no encontro de Jorge com o grupo de música, pode tê-lo despertado e feito consentir em movimentar-se, saindo do sono e indo ao encontro dos instrumentos, do grupo, das pessoas, das músicas, enfim, de tudo o que era disponibilizado naquelas reuniões semanais? Ferenczi (1924/2011) propõe uma relação entre o sono e a situação de nutrição. O autor afirma: De dia os animais ocupam-se em obter alimento e em digeri-lo; mas a verdadeira absorção do alimento, ou seja, sua assimilação pelos tecidos, faz-se, a acreditar nos fisiologistas, mais durante a noite. Há um velho aforismo francês que diz “Qui dort, dîne” [Quem dorme, janta]. Assim, o sono daria a ilusão de absorção de alimento sem esforço, o que se assemelha ao modo de nutrição intrauterino. (p. 339; grifos do autor) A relação entre o sono e a vida intrauterina nos aponta para a mais primordial das relações humanas: a da mãe com seu bebê; esse sendo nutrido por aquela desde o princípio. Algo da experiência de nutrição intrauterina é revivida quando dormimos, mas também, se tudo corre bem, em nossas experiências primevas com o objeto materno. Ferenczi (1913/2011) aponta que com o nascimento, tendo o bebê sido privado das condições ambientais do útero materno, restar-lhe-ia ansiar por um retorno a esse estado perdido. Assim, haveria um reinvestimento alucinatório nessa condição tão almejada. Se houver, nos termos posteriormente descritos por Winnicott (1971/2019) , um ambiente suficientemente bom que se ocupe do bebê, essa condição alucinada realmente se efetiva. Dormimos na esperança de encontrar o regaço materno. Mas se esse está disponível também na vida de vigília, o sono não precisa tomar a totalidade da vida do indivíduo, já que a nutrição potencial está presente também no mundo desperto. Será que foi algo desta natureza que aconteceu com Jorge? Ele pôde encontrar no grupo de música a nutrição que precisava, o que lhe permitiu dirigir a esperança do sono para a vida desperta? Tendemos a responder afirmativamente a estas perguntas. No entanto, algumas questões permanecem em aberto: o que havia de diferente nesse grupo em particular? Se é de nutrição psíquica que estamos falando, que tipo de alimento psíquico Jorge pôde encontrar no grupo? Os conceitos de idioma e de objeto transformacional, de Christopher Bollas, podem nos ajudar na tentativa de resposta. O conceito de idioma é central na metapsicologia de Bollas, que o define como “um conjunto das possibilidades pessoais únicas, específicas desse indivíduo e sujeitas, em suas articulações, à natureza da experiência vivida no mundo real” ( Bollas, 1989/1992, p. 22 ). Ele aponta, por exemplo, como cada bebê é orientado para diferentes formas sensoriais, o que tem a ver, em parte, com predisposições inatas determinadas fisiologicamente. Nettleton (2018) , ao discutir esse conceito, comenta: Alguns bebês podem ter uma tendência a responder aos estímulos visuais, sua atenção é mais facilmente atraída por cores e formas em movimento. Outros podem ser mais intensamente auditivos, ficando perdidos no som de um eletrodoméstico, de vozes humanas ou de música. Outros respondem quimicamente, seu humor transformado pelo balançar, revirar ou dançar nos braços de sua mãe. Assim, as crianças naturalmente ressoam com formas particulares de experiência. (p. 40; grifo no original) Uma parte importante da tarefa materna é oferecer ao bebê objetos (entre os quais a própria mãe se inclui) com os quais ele ressoe instintivamente, de modo que “à medida que a mãe oferece a seu bebê objetos e estes atraem o interesse dele e lhe dão prazer, ela dá forma ao idioma da criança” ( Nettleton, 2018, p. 41 ). Em um ambiente facilitador, a criança é, por um lado, protegida das intrusões do mundo exterior e, por outro, é oferecida a ela objetos por meio dos quais ela pode elaborar seu idioma pessoal. A mãe suficientemente boa se deixará ser usada pelo bebê conforme a necessidade desse, propiciando, gradualmente, a formação da estética do ser do indivíduo, isto é, seu modo de ser e se relacionar. A maneira de ser e de se relacionar, de cada um, com os outros e consigo mesmo, levará, portanto, vestígios do idioma de cuidados materno. Deste modo, na concepção de Bollas (1987/2015) os pais transmitem ao bebê certa estética de cuidados, e este, ao internalizar a lógica de cuidados dos pais, passará a cuidar de seu próprio self tal como outrora foi cuidado. A confiança básica no mundo e na vida se desenvolve não apenas à medida que a criança é atendida em suas necessidades físicas, tais como sono e alimentação ou quando recebe continência às pulsões agressivas e sexuais, mas também à medida que seu idioma é reconhecido e celebrado. Isto vai depender de que a mãe esteja em sintonia com as expressões idiomáticas da criança. Neste cenário, a mãe sente “os gestos expressivos de necessidade e desejo” do bebê e, a partir disso, fornece objetos que servem “como elaboradores experienciais de seu potencial de personalidade” ( Nettleton, 2018, p. 41 ). Esses gestos expressivos são, muitas vezes, sutis como o cantarolar de Jorge ao meu lado. Talvez, quando me surpreendi e me alegrei com a cantoria de Jorge, e transpareci a ele meu estado de animação, ele tenha sentido que um traço de seu idioma pessoal foi reconhecido e celebrado. Esta situação nos traz à mente uma experiência semelhante relatada por Safra (1999) . O autor narra uma experiência vivida com um menino a quem ele chama de Ricardo, que poderia ser diagnosticado como autista. Ele conta como depois de anos de análise foi possível estabelecer uma comunicação com Ricardo a partir de uma melodia que ele entoava e que Safra começa a repetir. Nesse momento, pela primeira vez, o menino olha em seus olhos, bate palmas e emite a melodia para que o analista repetisse. Safra prossegue: “Devolvi-lhe a melodia e, em resposta, ele pulou alegremente pela sala, criou uma outra melodia, e o jogo se repetiu. Estávamos nos comunicando! Estabelecia-se o objeto subjetivo” [3] (p. 34). Para Safra (1999) , cada pessoa constitui os fundamentos de seu self a partir de determinadas formas sensoriais que foram predominantes em seu mundo enquanto bebê. De acordo com o autor, é pela forma sensorial específica que se abrirá para cada um a possibilidade de constituição do objeto subjetivo e seu estilo particular de ser. No caso de Ricardo (e, arriscamos dizer, também no caso de Jorge) a sonoridade era sua forma particular; para outros é a visão, o tato, o olfato, a musculatura, dentre outros. Quando a pessoa cria formas sensoriais que veiculam sensações diversas, como agrado ou terror, e essas formas são atualizadas por um outro, como nas experiências com Ricardo e Jorge, surge o fenômeno estético e constitui-se o objeto subjetivo. Cria-se, na visão de Safra (1999) , a possibilidade de o indivíduo conhecer, de uma só vez, a si mesmo e ao outro. Assim foi com Ricardo, que após ter sido reconhecido em sua estética própria, passou a procurar, nos momentos de angústia, outras pessoas com quem pudesse realizar o jogo da melodia. Safra descreve que isto indica a saída do menino de um funcionamento autístico para a consciência de si e de seu sofrimento. Parece-nos que algo desta natureza aconteceu também com Jorge. Quando não deixo que a canção balbuciada se perca no espaço vazio, eu a reflito a Jorge, funcionando como uma espécie de caixa de ressonância, ao tacitamente reconhecer em seu cantarolar o tremular da vida. Não há neste encontro entre nós, nenhum tipo de interpretação, o que se passou não foi da ordem da representação, e sim um encontro estético, na medida em que pela via da sensibilidade, da aisthesis , o reconheço em sua estética particular. Talvez tenha sido esta a nutrição psíquica que Jorge recebeu neste grupo, não apenas nesse momento específico, mas também nas ocasiões em que ele podia escutar e cantar as músicas escolhidas pelos outros membros, quando tocava o pandeiro, quando falava de seu interesse pelo violão e de seu cantor favorito. Encontro estético e objeto transformacional Na primeira fase da vida da criança a relação desta com o mundo é primordialmente de caráter estético, isto é, da ordem do sentir (do grego aisthesis , conforme aponta Santaella, 1994 ), da “sensação ou percepção sensível” ( Vázquez, 1999, p. 8 ). Indo nesta linha de leitura, Nettleton (2018) aponta que nessa fase a realidade da criança é governada principalmente pela forma como o meio ambiente responde a ela (...). Os atos cotidianos de cuidar de seu bebê — a alimentação, a limpeza, o ninar, as brincadeiras — podem transmitir reciprocidade ou desconexão, incentivo ou embaraço. Uma extensão do conceito de Winnicott de “mãe-ambiente”, Bollas sugere que esses atos diários comuns produzem alterações no estado de self do bebê. (pp. 40-41) Na extensão da concepção winnicottiana, à qual Nettleton se refere, Bollas (1987/2015) cunhou o conceito de objeto transformacional. No início da vida o bebê passa por muitas transformações, que ele identifica com a mãe: Este conceito de mãe sendo vivenciada como uma transformação é sustentada em diversos aspectos. Em primeiro lugar, ela assume a função de objeto transformacional porque modifica constantemente o ambiente do bebê para ir ao encontro das necessidades dele. (...) ela transforma o mundo dele. Em segundo lugar, as próprias capacidades egoicas emergentes do bebê — de motilidade, percepção e integração — também transformam o mundo dele. (p. 51) Bollas (1987/2015) argumenta que no início da vida o bebê não percebe o outro como um objeto propriamente dito. Embora o autor utilize o termo objeto transformacional para descrever a experiência que o bebê tem do outro, essa experiência é, na verdade, de caráter processual. Trata-se de experiências estéticas, não representacionais. Isto é, não se trataria, na perspectiva do bebê, da relação com um objeto de representação e sim de um processo que ele identifica com as múltiplas transformações do self . Uma comparação com a experiência que temos do sol pode nos auxiliar na compreensão. Imaginemos alguém que nunca tenha olhado para o sol ou mesmo soubesse de sua existência. Ainda assim, essa pessoa saberia da existência de algo que a transforma, algo que está fora dela, pois sente diuturnamente as variações de temperatura. Tratar-se-ia, portanto, de uma relação de caráter estético com o objeto-sol. De acordo com Bollas (1987/2015) as experiências primordiais de transformação se inscrevem em nós e nos impulsionam para a busca de experiências semelhantes ao longo da vida. No entanto, não se trata apenas de nostalgia. Não se trata somente de um anseio de retorno a uma experiência passada. Essas experiências primevas inscrevem em nós a esperança de sermos novamente transformados. E, de fato, vivemos tais transformações no encontro com a arte, com a natureza, em viagens que fazemos, e, também, na relação com os outros. O cerne de tais experiências transformacionais reside no encontro com um objeto através do qual possamos progredir na infinda articulação de nosso idioma pessoal. A busca da pessoa, portanto, não seria por um retorno à experiência primeira com o objeto materno, e sim pela continuidade da elaboração do idioma com os objetos do mundo, processo iniciado na díade mãe-bebê e que se estende por toda a vida. Consideramos que a falha básica, quando muito severa, interrompe o vir a ser do indivíduo. A articulação do idioma, este potencial da personalidade, depende do encontro com objetos, mas para que esses possam ser usados eles precisam estar disponíveis em um ambiente que ofereça segurança para que o indivíduo se abra à exploração deles. Isso permite que o indivíduo use tais objetos para, através deles, transformar-se. A falha básica como falha estética e a possibilidade de reparação estética Segundo Balint (1968/1993) , a área edípica e a área da falha básica estariam no fundamento de dois níveis de trabalho analítico. Os acontecimentos relativos à área do conflito edípico seriam trabalhados principalmente por via indireta, por meio dos relatos verbais dos pacientes. Nessa área, paciente e analista estariam interagindo no mesmo campo: o da linguagem simbólica. Assim, mesmo que o paciente se incomode com uma interpretação do analista, a rejeite, se assuste ou se magoe, ainda assim, ele compreendeu que foi uma interpretação, pois ambos estariam falando a mesma linguagem. No nível da falha básica, contudo, as palavras estariam despidas de sua camada simbólica e passariam a ser apenas transmissoras de sensações. Assim, podem ser sentidas como ataque, insinuação, insulto ou, ao contrário, serem experimentadas como algo de natureza muito prazerosa, gratificante, confortante, ou como sedução. O paradigma aqui é o do bebê no colo da mãe, em uma relação dual, ainda sem compreender o simbolismo das palavras pronunciadas por ela, mas profundamente afetado pela tonalidade, o ritmo, o timbre etc. Podemos dizer que a relação primordial do bebê com seu objeto primário é de caráter estético. Nesse sentido, acreditamos que não é incorreto afirmarmos que no nível da falha básica, as experiências fundamentais são de caráter estético. Estamos no terreno das sensações, da aisthesis. Bollas (1987/2015) afirmara que o estilo materno de transformar o bebê constitui a primeira estética humana. A transformação, nesse nível, portanto, não advém da linguagem e sim da forma como a mãe afeta seu bebê. A partir dessa lógica, consideramos que a falha básica é uma falha estética . Essa expressão é utilizada por Bollas em um sentido que a aproxima do conceito de falha básica. Bollas (1987/2015) relata a experiência com um paciente a quem ele chama de Jonathan. Esse era um jovem de 23 anos, primogênito entre quatro filhos, que nasceu em uma família de intelectuais que o entregaram aos cuidados de uma babá enquanto estudavam. Ele desenvolveu um self precoce que deixava seus pais satisfeitos com seu progresso escolar e com o que eles consideravam um “caráter pessoal cativante” (p. 108). Na visão de Bollas, Jonathan só conseguiu esse feito, pois cindiu de seu caráter “os aspectos de sua vida de fantasia que expressavam sua necessidade desesperada ou uma raiva aguda” (p. 108). Essa cisão se expressava em sua vida onírica, de maneira que recorrentemente aparecia em seus sonhos uma contradição entre a temática e a estética. No seguinte sonho vemos essa contradição: Jonathan pegou um objeto antigo quebrado, embrulhou-o em um saco de celofane e o colocou delicadamente em um pequeno lago. Isso foi feito em seu jardim. Depois desse ato, sentiu que as sementes que tinha plantado no jardim iriam crescer e que ele seria incluído em sua família. (p. 109) Bollas (1987/2015) diz que interpretou para o analisando, ligando esse sonho a anteriores em que ele se representava como o “discriminado”, que parecia que Jonathan queria colocar seu self em um recipiente que se assemelhava a um útero, de modo que lá ele seria curado. No entanto, chama a atenção de Bollas o “ato quase autista dentro do sonho, ato que não foi apoiado pelo contexto do sonho” (p. 109). O analista percebe que uma característica dos sonhos de Jonathan é que ou ele “simbolizava sua necessidade em um ambiente que não lhe oferecia apoio” (p. 109), ou o “Outro lhe oferecia um bom contexto de socorro, mas ele não podia participar” (p. 109). Em uma série de sonhos semelhantes essa segunda característica mostrava- se evidente. Por exemplo, Jonathan sonhava que estava no deserto, próximo de um lago, algumas vezes ele estava com sua irmã, outras com sua mãe ou sua esposa. Ele não parecia prestar atenção no lago, ele apenas relatava sua presença, mas nunca bebia água dele. A interpretação de Bollas é que a mãe, a irmã ou a esposa representavam uma nutrição potencial que ele não poderia aproveitar (o que é representado pela ausência da ação no sentido de beber a água do lago), transformando-a em experiência onírica (uma característica desse paciente é que ele nunca fazia associações aos seus próprios sonhos, de modo que Bollas precisava depreender interpretações a partir da estrutura ou estética do sonho como um todo [4]). É nesse contexto que Bollas (1987/2015) afirma que a falha na estrutura do self de Jonathan era uma “falha estética” (p. 109), pois essa falha “muito mais do que um tema de uma fantasia específica — surgiu no cenário do sonho como um problema estético: sua experiência onírica estava fora de sincronia com o contexto do sonho” (p. 109). Apresentamos agora brevemente a relação que pensamos existir entre essa ideia de Bollas e o conceito de falha básica. Essa última surge de uma discrepância (até certo ponto inevitável) entre o que o ambiente pode oferecer e as necessidades do indivíduo. No caso de Jonathan essa discrepância é clara. Ele consentiu com a ausência parental arcando com o custo de uma cisão psíquica, deixando parte de suas necessidades insatisfeitas. Podemos pensar, então, que em Jonathan (assim como em Jorge, como parece, embora em níveis diferentes e se expressando de modos diversos) a falha básica se expandiu para além do inevitável. Jonathan internalizou uma estética de cuidados parentais que exclui uma parcela de suas necessidades, inclusive a necessidade de expressar e elaborar seus próprios afetos. Para ser o filho cativante dos pais ele precisava ser perenemente complacente e jamais reclamar atenção para o que necessitava. É isso que é representado em seus sonhos: ele não pode jamais se satisfazer. É com base nisso que reafirmamos que a falha básica é uma falha estética. Reafirmamos isso considerando que o que se dá na relação precoce é uma transmissão da estética, da forma/ paradigma de cuidados parental, não de um conteúdo ( Bollas, 1987/2015 ). Levando em conta as postulações de Balint (1968/1993) , podemos considerar que o conteúdo será transmitido principalmente no nível edípico, quando aquilo que os pais transmitem em nível simbólico se tornará cada vez mais relevante. Na relação primordial há uma falha estética do entorno. O ambiente falhou com Jonathan, potencializando a falha básica e transmitindo a ele uma estética de cuidados que é falha. Desse modo, a maneira como Jonathan cuida de seu próprio self como um objeto (inclusive nos seus sonhos) carrega essa estrutura falha, na medida em que é uma estrutura que exclui parte de suas próprias necessidades. Nesse ponto retornamos a Jorge. Identificamos algumas semelhanças entre ele e Jonathan, guardadas, evidentemente, as devidas proporções. Jorge também não vai ao encontro da satisfação de suas necessidades. Ele está em um ambiente (institucional) que se propõe a cuidar dele, apresentando-lhe uma série de ofertas que podem, eventualmente, satisfazê-lo. É claro que Jorge aproveitava algumas delas, como a própria poltrona onde ele frequentemente se instalava, a alimentação oferecida, o espaço acolhedor e os grupos que, com alguma insistência, ele terminava por participar, assim como Jonathan também aproveita parte do que o analista lhe oferece. No entanto, tal como Jonathan em seus sonhos, Jorge permanece à margem de parte do que está à sua disposição, como se não pudesse beber a água simbólica que está ali disponível. Talvez a minha insistência em, amorosamente, convocá-lo a participar do grupo, tenha permitido que ele depositasse em mim o ímpeto de aproveitar o que de bom lhe era oferecido. Aqui recordo-me de Klein (1946/1991) e sua teoria da identificação projetiva, particularmente quando a criadora da análise infantil afirma que muitas vezes o paciente deposita no outro suas partes boas para serem cuidadas fora dele, em um ambiente (o mundo interno do outro) que é sentido como menos hostil do que o seu próprio. Talvez Jorge tenha depositado em mim, parcial e temporariamente, parte de sua capacidade de cuidar de si mesmo, processo que talvez tenha sido permitido em função de eu expressar constantemente e genuinamente que me interessava por ele e gostaria que ele estivesse no grupo. Se, como dito, a falha ocorrida com Jorge, assim como supomos, foi de natureza estética, o tratamento também deve ser da mesma natureza. Se houve uma falha na relação com os objetos transformacionais primários, que transmitiram uma estética falha, logo, é necessário que o tratamento proceda a uma reparação estética. O próprio Bollas (1987/2015) associa a busca pelo objeto transformacional na vida adulta ao conceito de falha básica, afirmando que essa busca seria movida pelo anseio de estabelecer uma relação objetal específica que repare a falha. Associando essa busca ao reconhecimento, por parte do sujeito, de uma deficiência na experiência egoica, ele afirma: “A procura [do objeto transformacional] (...) é (...) um ato semiológico que significa a busca da pessoa por uma relação objetal específica, que está associada à transformação e à reparação da ‘falta básica' [5]” (p. 54). Em outro momento, referindo-se particularmente ao trabalho com pacientes narcísicos e esquizoides, Bollas enfatiza a dificuldade de esses pacientes se relacionarem com o analista enquanto um outro real, dificuldade que convive, no entanto, com uma grande possibilidade de eles manterem uma relação intensa com o analista como objeto transformacional: “esses pacientes buscam um ambiente especial com o analista, em que as interpretações deste são inicialmente menos importantes por seu conteúdo e mais importantes pelo que é vivenciado como presença materna, uma resposta empática” (p. 58). Poderíamos traduzir esta afirmação dizendo que, nesses casos, o que importa para o paciente é a natureza do encontro estético, isto é, a maneira como o analista o afeta sensivelmente, tal como a mãe afeta o seu bebê. Algumas páginas adiante, apontando que a busca por transformação que encontramos em ideologias extremistas e revolucionárias estaria relacionada ao objeto transformacional, Bollas utiliza o conceito de falha básica de modo relativamente expandido, referindo-se a uma “certeza coletiva de que sua ideologia revolucionária fará uma transformação ambiental total, que libertará cada um de uma série de faltas básicas: pessoais, familiares, econômicas, sociais e morais” ( Bollas, 1987/2015, p. 63 ). Tudo isto leva-nos a pensar nas possíveis falhas básicas sofridas por Jorge, e o espaço institucional, o do grupo de música e os demais que ele participava 6 , a própria relação comigo, com a música e com os instrumentos, como possibilidades de reparar suas falhas básicas/estéticas. A esse respeito, observamos que embora Balint (1968/1993) não aborde diretamente a questão da falha básica pela perspectiva da estética, ao discutir o tratamento de pacientes em regressão a essa área, suas considerações a respeito do tipo de relação que precisa ser construída nestes casos podem ser lidas como indicações da importância de um encontro que é, fundamentalmente, estético. Ao apontar a inconveniência do método interpretativo na abordagem dos momentos de regressão, por exemplo, e ao focalizar a importância da relação com o analista, Balint enfatiza a pertinência de certos aspectos que, ele admite, são nebulosos e difíceis de descrever adequadamente, como atmosfera e clima. Ele afirma que enquanto o insight surge como consequência de uma interpretação correta, estando mais relacionada com o “ver”, “a criação de uma relação adequada é decorrente de uma ‘sensação’ (...) a ‘sensação’ está relacionada com o tato, isto é, com a relação primária” (p. 149). Parece, portanto, que ele está se referindo ao campo da aisthesis. Voltando a Jorge, parece-nos adequado supor que a relação comigo, com o grupo de música, com os demais grupos e mesmo com a instituição como um todo, pode ter sido vivida por ele como um retorno a um momento anterior à falha básica. Esses elementos estavam lá para ele, convidando- o à vida pela oferta de um espaço que o suportava, tal como “a água suporta o nadador, ou a terra, o caminhante” ( Balint, 1968/1993, p. 154 ), isto é, oferecendo apenas o “atrito suficiente para o avanço” (p. 154), a resistência essencial para que ele pudesse se sentir em movimento, mas não muito mais, o que tornaria o progresso “muito difícil, devido à resistência do meio” (p. 155). Aliás, talvez possamos pensar que o próprio fato de o entorno sustentá-lo no seu sono, permitindo que ele repousasse calmamente nas poltronas do saguão, suportando-o de modo “calmo, pacífico, seguro e não importuno” (pp. 165-166), tenha tido um papel fundamental no estabelecimento da confiança em mim e no grupo de música. Considerações finais Para finalizar, evocamos uma citação de Bollas (1987/2015) que, recorrendo novamente ao conceito de falha básica, afirma que a regressão do paciente a esse nível “aponta para a região da doença dentro da pessoa, [e] sugere a demanda da cura” (p. 58). Ele prossegue, afirmando que, para o bom andamento do tratamento, é necessária “uma experiência inicial de sucessivas transformações do ego que sejam identificadas com o analista e com o processo analítico” (p. 58). Bollas parece estar se referindo, indiretamente, ao que Balint (1968/1993) chamou de “o poder cicatrizante da relação” (p. 147). Algo dessa ordem parece ter ocorrido na experiência com Jorge. Considerando que o encontro com o objeto transformacional é um encontro estético e que a busca pelo objeto transformacional é uma busca por um objeto que repare a falha básica ( Bollas, 1987/2015 ), podemos concluir que a busca é, fundamentalmente, por um encontro estético. O encontro com Jorge parece ter sido dessa natureza, o que parece ter propiciado algum nível de reparação/cicatrização de sua falha básica/estética. Notas 1 Nome fictício. 2 O paciente foi atendido por apenas um dos autores deste artigo, de maneira que ao abordarmos esta experiência nos referimos no singular. 3 O objeto subjetivo é o objeto criado pelo próprio bebê, o objeto que surge da necessidade do bebê, estando sob o controle onipotente dele ( Winnicott, 1962/1983 ). No entanto, o objeto é o próprio bebê, já que nesse momento ele ainda não é capaz de se relacionar com um mundo fora de si mesmo. Para exemplificar este paradoxo Fulgêncio (2011) propõe a imagem de uma linha curva que forma ao mesmo tempo o côncavo (o self do bebê) e o convexo (o objeto subjetivo, o seio). Quem faz o traço que origina o self e o objeto é o próprio bebê em sua necessidade nos estados de inquietude, desde que haja a adaptação adequada do ambiente. 4 A ausência de associações tinha a ver com a própria cisão efetuada por Jonathan, em função da necessidade de manter a aparência do self amadurecido. 5 A expressão basic fault presente no texto original de Balint é traduzida por alguns tradutores como falha básica e por outros como falta básica. Na tradução do livro de Bollas que estou utilizando nesta tese, o tradutor optou pela última versão. 6 Durante todo este artigo estamos focalizando a participação de Jorge no grupo de música e a relação que estabelecemos. No entanto, Jorge estava na instituição muito antes de minha chegada nela, de modo que as transformações observadas em Jorge não podem, de modo algum, serem atribuídas somente à participação no grupo de música e à nossa relação. Evidentemente, para uma apreciação mais completa dessa transformação precisaríamos incluir nesta reflexão as demais relações que ele entretinha na instituição, sua presença nos demais grupos etc. Uma investigação desta envergadura foge, no entanto, de nossas possibilidades, pois o que temos como elementos observáveis são aqueles oriundos do encontro com ele. Referências Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Artes Médicas (Trabalho original publicado em 1968). Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano Imago (Trabalho original publicado em 1989). Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado Escuta (Trabalho original publicado em 1987). Bollas, C. (2018). 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- Linguagem, pensamento e capacidade imaginativa: Fundamentos epistemológicos em W. R. Bion [1]
Este artigo foi publicado em 2023 no Jornal de Psicanálise. Autores: Péricles Pinheiro Machado Jr. [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3] Resumo: O autor elabora um debate sobre o uso das contribuições de Bion na elaboração de trabalhos científicos. Propõe que a premissa epistemológica enunciada por Bion em Aprender da experiência e aprofundada ao longo de sua extensa obra revela uma lógica abdutiva pela qual procura-se apreender o fenômeno humano no contato direto com o objeto de pesquisa, confiando-se na experiência intuitiva do pesquisador-analista como fundamento para o desvelar daquilo que se busca descrever. Palavras-chave: Bion; epistemologia; objeto psicanalítico; intuição; dialogismo Neste ensaio, dedico-me a sustentar uma reflexão consistente o bastante acerca do modo como as contribuições de W. R. Bion à psicanálise podem ser pensadas na elaboração de trabalhos científicos. Que fundamentos devem orientar um método de pesquisa que tenha como premissa epistemológica a obra de Bion compreendida não como um conjunto de teorias que se dão à aplicação prática, mas como um estilo vivo de experiência e investigação do objeto psicanalítico ( Bion, 1962 , 1963 , 1970 ) em um horizonte sempre inconclusivo de publicação? Encontro na obra de Bion um pensamento original e esclarecedor para examinar fenômenos da clínica psicanalítica, não obstante a complexidade peculiar desse autor. Ler Bion requer descobrir, por meio da atividade clínica, da análise pessoal e da experiência viva no cotidiano social, aquilo que o autor habilidosamente discute ao longo de sua extensa obra voltada aos fenômenos do pensamento e ao aprimoramento das capacidades de observação e intervenção do psicanalista. Deixarmo-nos acompanhar por Bion requer a disposição para uma constante tempestade. Seus trabalhos, quando examinados em um estado mental de atenção e leveza, despertam-nos sentimentos vertiginosos, pois requerem liberdade para nos estranharmos com realizações inéditas, por vezes perturbadoras, capazes de modificar significativamente nossas concepções sobre fenômenos psíquicos e as possibilidades de análise. Ao penetrar e nos deixarmos penetrar pelo pensamento bioniano, somos invariavelmente pegos de surpresa por aspectos da experiência comum que sempre estiveram presentes, mas que subitamente nos revelam dimensões nunca percebidas. É algo semelhante ao que experimentamos nos sonhos em que acidentalmente nos deparamos com uma porta que se abre para um cômodo que até então ignorávamos existir em nossa própria casa. A busca da linguagem viva e mobilizadora constitui um eixo importante das contribuições de Bion à psicanálise. Paulo César Sandler assim sintetiza: Mais que qualquer outro (com exceção, talvez, de Winnicott), Bion devolveu vivacidade à psicanálise, resgatou a linguagem coloquial que o jargão expulsara das sessões e criou um método de examinar as vicissitudes da apreensão da realidade psíquica: verdades imateriais subjacentes aos fenômenos sensorialmente apreensíveis. Ele deixou um exame detalhado das limitações da comunicação verbal, pois as palavras escondem, como observou Voltaire, e revelam, como percebeu Freud. E mostrou que elas o fazem paradoxal e simultaneamente. ( 2009 , p. 439) Em Bion, a linguagem e suas transformações na sessão de análise demandam um estado de atenção sensível aos detalhes insUSPeitos, sutis, microscópicos que revelam aspectos da realidade psíquica pulsante, captada e transformada pela dupla analítica em constante interação. A realidade psíquica cuja natureza é da ordem do númeno, inapreensível pelos sentidos, somente pode ser apreendida em suas transformações fenomênicas, a expressão sensorial que se manifesta, dentre outros modos, por meio da linguagem em toda sua plasticidade ( Bion, 1965 , 1970 ). O contato humano é mediado por uma linguagem social , com vocabulário coloquial, ordinário, compatível com o universo simbólico em que habita o analisando. O analista precisa ser capaz de se comunicar com espontaneidade, ao mesmo tempo em que procura com o analisando alcançar uma qualidade afetiva que torne aquela conversa um encontro transformador, que abra possibilidades de engendrar pensamentos oníricos a partir dos resíduos e impressões sensoriais captados no encontro analítico, e experimentar o ser onde usualmente persiste um saber sobre . Embora os trabalhos de Bion lancem luzes a muitas questões relativas à linguagem, é curioso observar que não encontramos nesse autor a preocupação em formular uma teoria da linguagem enquanto sistema de códigos comunicacionais em qualquer perspectiva semiótica ou epistemológica. Ao contrário, por exemplo, do que encontramos em Jacques Lacan (1968) , que discute em profundidade os trabalhos de linguistas e filósofos como Émile Benveniste, Louis Althusser e Ferdinand de Saussure para desenvolver sua teoria de que o inconsciente se estrutura como linguagem, Bion discute a linguagem de forma abrangente e fluida para designar as maneiras como analisando e analista se expressam e o teor de comunicabilidade das formas expressivas utilizadas no trabalho psicanalítico. Essa ausência de definições teóricas taxativas é contrabalançada com claras descrições fenomenológicas das correlações clinicamente observadas entre a linguagem como meio de comunicação e os processos de pensamento, como em sua formulação da Linguagem de Alcance ( Bion, 1970 ), ou seus trabalhos dos anos 1950 que discutem a linguagem como ação mecânica para a identificação projetiva na descarga de estímulos pulsionais ( Bion, 1967a ). Bion demonstra que as comunicações do analisando podem servir a diferentes usos. Por meio da observação psicanalítica e do refinamento das capacidades intuitivas do analista ( Bion, 1970 ), podemos deduzir o elemento psíquico a ser conhecido na sessão. Associação livre e escuta livremente flutuante ganham outros contrastes em sua obra, particularmente em função de suas experiências nas duas Guerras Mundiais ( Bion, 1997 ) e no trabalho com pacientes esquizofrênicos e borderlines em sua clínica. Em tais contextos, Bion trabalhava sob condições bastante arriscadas, sujeitas a constante bombardeio, tanto nos campos de combate, como no campo das identificações projetivas massivas que caracterizam o trabalho com pacientes psicóticos pela abordagem inaugurada por Melanie Klein ( 1946/1991a ). A coloração imaginativa e alucinatória que caracteriza o pensamento psicótico leva a atenção de Bion à percepção do caráter concreto, duramente impregnado de sensorialidade e pobremente embrutecido das equações simbólicas , conceito introduzido por Hanna Segal ( 1957/1991 ) para descrever a maneira como o pensamento psicótico equipara o símbolo com a coisa simbolizada, indicando a falta de uma noção de separação que possibilite a representação do objeto ausente. As proposições kleinianas deixaram marcas significativas no que viria a constituir o sistema conceitual bioniano, especialmente no tocante aos processos psíquicos, tais como a teoria das posições esquizoparanoide e depressiva, o conceito dinâmico das fantasias inconscientes como base de toda experiência, a visada kleiniana da pulsão de morte como impulso destrutivo presente na vida psíquica desde a mais tenra infância, e a fenomenologia da identificação projetiva e suas relações com a atividade mental psicótica, mesmo em pacientes não-psicóticos. Na década de 1950, Bion publica uma série de trabalhos posteriormente compilados em Second thoughts ( 1967a ). Esse período de sua produção escrita revela o despertar de um modo de apreensão da realidade psíquica e da função onírica do pensamento que são contribuições originais suas. Nessa coletânea, Bion analisa a concretude da linguagem do psicótico e a impossibilidade de simbolização de experiências no contato com o mundo interno e o mundo externo, bem como as ansiedades decorrentes da intolerância à frustração. Desde os anos 1960, diversas proposições de Freud e Klein são transformadas por Bion em formulações muito mais abstratas que podem ser utilizadas pelo psicanalista para pensar fenômenos psíquicos para além daqueles a que tais teorias foram originalmente concebidas. Essa característica do pensamento bioniano pode ser compreendida como um movimento de abstração em funções e fatores psíquicos ( Bion, 1962 ) a partir de fenômenos que, em Klein, eram elaborados com base em descrições imagéticas, impregnadas de representações do funcionamento mental de crianças pequenas. Em Aprender da experiência (1962), Bion aprofunda sua descrição dos processos psíquicos formulados no seminal artigo “Uma teoria sobre o pensar” ( 1962/1967b ). Ao introduzir a premissa de que a capacidade de pensar se desenvolve a partir da necessidade psíquica de dar conta dos pensamentos (estes antecedem o pensador), Bion desenvolve uma metapsicologia dos processos do pensar, tomando por modelo a relação do bebê com o seio. Nessa obra, conceitos fundamentais do enfoque bioniano são apresentados e discutidos de forma paradoxalmente breve e complexa, evidenciando o refinamento de uma forma de expressão linguística na composição de seus escritos. Em Elementos de psicanálise , Bion (1963) aprofunda sua epistemologia psicanalítica e introduz a chamada grade , sua representação de um instrumento que serve para categorizar de forma insaturada a qualidade imaterial do que ocorre em uma sessão de análise (movimentos, comunicações, pensamentos, interpretações etc.). Bion esclarece que todo relato clínico sofre deformações especialmente por carecer de uma linguagem que consiga veicular a dimensão afetiva da experiência originalmente vivida com o analisando - isto é, a realidade psíquica, não sensorial. Esse trabalho também apresenta uma formulação ampliada de seu conceito de objeto psicanalítico , um modelo que serve como ponto focal para favorecer ao psicanalista a intuição daquilo que ocorre no plano da realidade psíquica. Em Transformações , Bion (1965) descreve a passagem da experiência não verbal, não representada dos processos primários, para formulações de diferentes naturezas características dos processos secundários descritos por Freud em A interpretação dos sonhos ( 1900/2001 ). Bion recorre a modelos da matemática e da geometria projetiva para examinar as “interpretações do analista … [e as] reações e comunicações do paciente, de acordo com a égide sob a qual sejam feitas.” ( Sandler, 2009 , p. 447). Finalmente em Atenção e interpretação (1970), Bion formula sua concepção da Linguagem de Alcance, “uma linguagem que está em contato com a origem da realidade psíquica, com o não sensorial, indiferenciado, irrepresentável de O” ( Vermote, 2019 , p. 140). Os trabalhos de Bion em sua última década de vida aproximam-se cada vez mais de uma forma psicanalítica de fenomenologia em que questões caracteristicamente ontológicas são discutidas sempre de forma dialógica, expositiva e impregnada de um forte apelo ao imaginário como recurso para levantarmos hipóteses e examinarmos fenômenos psíquicos relacionados aos níveis mais arcaicos da experiência. É o que ocorre, por exemplo, em seu modelo da mente primordial e outras captações do não representável que não se dão a interpretações analíticas, mas requerem do analista o desenvolvimento de uma sensibilidade muito aguçada para estar com o analisando em momentos de desamparo absoluto. A calibração do compasso Pensar a epistemologia seguindo os passos de Bion é uma proposta complexa, não apenas pela natureza do objeto de pesquisa, mas também pela maneira como seu pensamento se desenvolve em movimentos não lineares e com raríssimas concessões a qualquer forma de didatismo. É necessário, portanto, calibrar o compasso e suportar as incompletudes para navegar as águas ora turvas, ora terrivelmente cristalinas de Bion - isto é, assumir essa mesma complexidade como vértice de investigação ( Chuster, Soares & Trachtenberg, 2014 ) para descobrir em Bion a possibilidade de esclarecimento de fenômenos clínicos. Isso implica reconhecer que estamos diante de um objeto multifacetado, afetado por infinitas variáveis, ondas e turbulências que confundem a navegação. Qualquer tentativa de reduzi-lo a algo simples e conhecido está fadada ao naufrágio. Particularmente em seus trabalhos que discutem a importância crucial da acuidade da observação no trabalho psicanalítico, Bion nos leva a rever velhos hábitos clínicos até então tidos como pedras angulares da psicanálise. Isso se revela em seu estilo como uma mistura de respeito e crítica pelo saber adquirido. Ele tinha um talento especial para abordar de maneira idiossincrática tópicos essencialmente tradicionais: atenção flutuante, sonhos, linguagem da interpretação, associação de ideias, transferência. Isso significava não apenas um saudável desdém em relação a formalismos rigorosos, mas também uma informalidade genuína na maneira de pensar e comunicar o pensamento. ( Chuster et al., 2014 , p. 23) Tal informalidade consiste em um modo peculiar de transmissão de ideias originais e comunicação de suas intuições ao longo de seus textos. Sua obra tem fortes tonalidades pessoais - “escrevo sobre mim” ( Bion, 1982 , p. 8) - e perpassa seus textos na forma de um “decantado de reflexões sobre suas experiências pessoais”, mesmo quando adota uma linguagem altamente abstrata inspirada na matemática para elaborar um pensamento científico ( Braga, 2018 , p. 152). Esse aspecto do estilo bioniano põe o leitor em posição desconfortável, caso tenha expectativas de encontrar grandes formulações prescritivas sobre fenômenos psíquicos e a prática analítica ao modo de definições metapsicológicas. Seu pensamento evolui em torno de questões com as quais se depara na experiência pulsante da clínica psicanalítica e que são tratadas por diferentes vértices, deixando o campo sempre aberto a novas indagações. Chuster et al. (2014) propõem tratar a obra de Bion a partir de uma leitura de saltos de pensamento, isto é, com base na premissa de que uma questão apresentada em dado momento de sua obra abre-se para a elaboração de novas questões formuladas e discutidas em outro instante, seguindo uma lógica interna consistente, mas sempre permeável a outras conexões que podem ser reveladas pelo leitor que se deixar inundar pelo pensamento de Bion desapegado de exigências hermenêuticas ou exegéticas de definição e compreensão. Conforme observa Braga (2018) : É fundamental pensar na obra de um autor olhando seu todo. Neste sentido, poderíamos pensar a obra de Bion como uma obra com uma extraordinária coerência interna: não há nada sobrando, não há nada rejeitado, contribuições de diferentes períodos se complementam e vão surgindo, na sequência, como novas elaborações. Qualquer ponto dela pode ser identificado como pertencendo ao todo. Não perdem o sentido com o passar do tempo. É uma obra que está à nossa frente no tempo, mesmo passado meio século de suas principais formulações. (p. 153) Os trabalhos de analistas dedicados à obra de Bion podem fazer as vezes de carta náutica para navegar a complexidade de suas conceituações. Não fornecem soluções, explicações, tampouco respostas prontas. Bion não está aprisionado nos livros, como um gênio da lâmpada que pode ser evocado e libertado para atender a desejos de entendimento. É preciso algo mais para acessá-lo, ou seja, a experiência viva de cada leitor que se proponha a iluminar um aspecto de seu texto por vértices únicos e tonalidades particulares, sem perder de vista a trilha marcada pelo autor e a flutuação de suas elaborações paradoxais. Nas palavras de Chuster (2018) : Penso que a principal ferramenta para auxiliar a nossa navegação com tal sentido consiste em aplicar o vértice da teoria da complexidade, e este, por sua vez, depende de acionar nossa capacidade imaginativa. Isso significa que, em primeiro lugar, precisamos nos preparar para entrar em contato com a enorme capacidade intuitiva de Bion, geradora de ideias avançadas, que nos coloca no futuro, cujo acesso se faz apenas pela imaginação. (p. 15) A capacidade imaginativa proposta por Chuster consiste na possibilidade de captarmos com a passada do texto algo que nos toca emocionalmente e mobiliza nossa sensibilidade para a formação de imagens visuais e se traduz em uma experiência pessoal que pode então ser pensada e elaborada para alçar à condição de conhecimento vivo. Ao leitor, é necessário apreço à liberdade no sentido de não nos deixarmos submeter a possíveis exigências de racionalismo ou de falácias intelectualistas que teriam o efeito de reduzir a complexidade da leitura de Bion a compreensões simplistas. Modelos, abstrações e lógica abdutiva O psicanalista francês Pierre-Henri Castel (2014) , em seu estudo sobre as fontes filosóficas que conferem unidade e coerência à obra de Bion, propõe que Para Bion, os olhos não servem primeiro para ler: eles servem para ver, e ver no sentido do contato psíquico e intelectual sem mediação com o real - em uma palavra, a intuição … [Portanto,] pensar com Bion não pode … se resumir a articular coerentemente textos, ou comentários autorizados, nem qualquer coisa que se apoie na linguagem: isso representaria “nada mais que palavras” e significações superficiais… . Pensar com Bion é penetrar, ao contrário, na espessura propriamente conceitual tanto dessas palavras como dessas significações, ou seja, naquilo que lhes confere seu valor lógico e epistêmico. (pp. 259-260) Assim, pela natureza de sua concepção da prática psicanalítica, uma pesquisa desenvolvida no eixo epistemológico bioniano não obedece à lógica indutiva ou a aproximações dedutivas, uma vez que estas se inscrevem fundamentalmente em um ordenamento cartesiano que é próprio de (e mais coerente com) as ciências da objetividade. A psicanálise como disciplina e método de investigação ocupa-se essencialmente da realidade psíquica, o campo da subjetividade, que requer do pesquisador aptidão e disponibilidade para suportar paradoxos, os quais não coadunam com a lógica cartesiana que visa a conhecer os fenômenos a partir de suas relações causais. Os fenômenos com os quais Bion se ocupa são concebidos pela experiência direta do analista com a realidade do outro, seja um indivíduo, um grupo de pessoas, um fenômeno social, ou mesmo uma composição textual que resulta de experiências vividas por um autor-analista-pesquisador em sua prática cotidiana. Esse modo de apreensão da realidade atende àquilo que tradicionalmente denominamos de lógica abdutiva , um modo epistêmico de inferência que revela em seu bojo o caráter estrutural não só das hipóteses, mas das crenças, julgamentos e da investigação científica, [noções estas que] são de grande importância, uma vez que se encontram na base não apenas do pensamento criativo em geral, como também da disciplina de interpretação (incluindo a psicanálise e a hermenêutica moderna). ( Silver, 1983 , p. 285) Entende-se por lógica abdutiva uma forma de pensamento em que se busca a melhor explicação para problemas que escapam ao convencional, o que requer, portanto, o suporte da intuição e do repertório de conhecimentos pessoais do pesquisador para introduzir novas ideias e possibilidades de investigação. Procura-se apreender o fenômeno no contato direto com o objeto de pesquisa, confiando-se na capacidade imaginativa do pesquisador-analista como fundamento para o desvelar daquilo que se busca descrever. Essa posição epistemológica é necessariamente incompleta, precária e vinculada à capacidade perceptiva do pesquisador que participa implicitamente com sua história, seu ethos e suas condições subjetivas. Portanto, as limitações e qualificações singulares do pesquisador delimitam os contornos de um campo de investigação imperfeito e incompleto, mas que preza pelas possibilidades intuitivas individuais como instrumento de organização da realidade examinada. Segundo Sandler (2013) , Bion está entre os pensadores que, ao lado de Kant, Einstein e Bergson, procuram as coincidências entre os conceitos e objetos através da observação e intuição do todo. A intuição sobre o todo pode ser feita através de modelos e analogias, mas nunca por observação direta. A partir dessa intuição emerge a necessidade de tolerar paradoxos [dada a natureza da realidade psíquica investigada]. (p. 140) O estado de mente do analista-pesquisador capaz de suportar paradoxos é descrito por Bion (1970) na formulação da capacidade negativa - a capacidade do analista se manter em um estado de dúvida, sem buscar apressadamente explicações para o fenômeno investigado - e, antes disso, em sua conceituação da visão binocular (1962). Esta configura uma espécie de inflexão subjetivamente treinada para que o observador consiga conceber a si próprio como continente de suas observações, em paralelo e concomitantemente àquilo que pode observar no contato com o analisando e em suas conjecturas imaginativas ( Bion, 1978/2014b ) acerca do objeto psicanalítico, foco de sua investigação. Tais conjecturas são necessariamente parciais, pois aquilo que o analista consegue apreender é sempre limitado à sua própria constituição edípica, sua singularidade como ser humano. Disso decorre que a visão binocular de Bion (1962) se traduz em um interjogo de pares simétricos: eu/outro, sensorial/psíquico, consciente/ inconsciente, finito/infinito, lógica dos processos secundários/lógica dos processos primários, mas que sempre é apreendido apenas parcialmente e de forma transitória. Visão binocular é uma metáfora de guerra que traduz a ideia original de se justapor duas lunetas (monovisão) como recurso para enxergar mais longe e com melhor nitidez. A noção de visão binocular refere-se a um estado mental apropriado para levar a atenção à apreciação multidimensional do objeto por meio do confronto e relacionamento de diferentes vértices de observação em busca de uma captação viva e dinâmica do objeto investigado. A capacidade negativa ( Bion, 1970 ), por sua vez, diz respeito às condições requeridas do analista para favorecer a apreensão daquilo que é mais significativo em uma observação, os lampejos da realidade não sensorial que podem ser captados apenas sutilmente naquilo que se apresenta discursivamente como um pequeno detalhe banal, um gesto, um movimento fugidio, fato selecionado que organiza a percepção e a significação do objeto psicanalítico ( Bion, 1962 ). No que concerne ao papel epistemológico dessa proposição, a visão binocular representa a oportunidade de captar elementos dispersos no fenômeno observado por vértices distintos de observação, incluindo a experiência pessoal do analista em justaposição com a experiência do analisando. Diferentemente da visão monocular, que tenderia a buscar o fenômeno por meio de expressões objetivas e sensorialmente delimitadas, o modelo da visão binocular conjuga elementos que seguem a lógica do princípio de prazer/desprazer com elementos ligados à lógica do princípio de realidade como eventos simultâneos. Vigia-se o gato ao mesmo tempo em que se limpa o peixe, segundo o adágio popular. Nesse sentido, “o consciente e o inconsciente, assim produzidos constantemente, funcionam de fato em conjunto, como se fossem binoculares, portanto, capacitados para correlação e autoconsideração” ( Bion, 1962/2021 , p. 98). Em Transformações , Bion (1965/2004) cita o físico Werner Heisenberg, que formulou em 1920 o princípio da incerteza : De acordo com Heisenberg, surgiu uma situação na física atômica: o cientista não pode se fiar na visão comumente aceita de que o pesquisador tenha acesso a fatos, pois os fatos a serem observados são distorcidos pelo próprio ato da observação. Além do mais, as dimensões do campo no qual o pesquisador tem que observar a relação de um fenômeno com o outro são ilimitadas; não se pode, entretanto, ignorar nenhum fenômeno “neste” campo, pois todos interagem entre si. (p. 61) Na investigação do objeto psicanalítico, Bion evoca a incerteza para afastar “a crença em uma interpretação completa, ou a mitologia de uma interpretação correta, ou a existência de uma interpretação que se pense resolutiva” ( Chuster, 2018 , p. 64). Tais condições são necessárias à elaboração de modelos de aproximação com a realidade de O ( Bion, 1965 ) a partir de suas expressões fenomênicas. Uma vez que o contato direto com a realidade psíquica é impossível ao observador, podemos apenas nos aproximar de aspectos dessa realidade por meio da captação de suas transformações em parte sensorialmente apreendidas, em parte intuitivamente concebidas. Os modelos e abstrações viabilizam o pensamento abdutivo, no sentido de possibilitar a investigação do fenômeno pelo cotejamento de elementos parciais que podem ser observados em uma sessão de análise. O analista está, portanto, na posição daquele que, “graças à força da visão binocular e da consequente correlação” que a fruição dessa capacidade de observação lhe confere, é capaz de formar modelos e abstrações que servem para “esclarecer [o fenômeno, diante da] incapacidade do paciente de fazer o mesmo” ( Bion, 1962 , p. 104). Embora o foco de Bion (1962) se volte ao modo como a dupla analítica pode se dispor a aprender com a experiência de psicanálise, suas formulações conceituais se abrem para concebermos o trabalho do analista-pesquisador ao adentrar a investigação epistemológica pela ótica bioniana. Seguir as proposições de Bion implica, a rigor, um longo tempo de preparo que possibilite ao pesquisador-analista sustentar a capacidade negativa e a visão binocular como instrumentos subjetivos para a investigação a que se propõe. É uma posição desconfortável, desconcertante e assustadora, quando empreendida com amor e respeito à verdade. Há também o risco de que o princípio de incerteza nesse caso seja tomado como uma espécie de passe livre para leituras descoladas ou apartadas daquilo que Bion se propõe a descrever em seus trabalhos, os quais são usualmente muito complexos e requerem não uma postura dogmática, mas antes uma paciência e um espírito de perseverança científica para suportar a própria experiência de contato com o texto. Dialogismo, paradoxos e capacidade de observação Sandler (2013) destaca a importância do treino de observação científica do analista na apreensão dos fenômenos clínicos enunciados pelas teorias psicanalíticas desde Freud. Para apreender a essência de uma teoria psicanalítica é fundamental que o analista tenha experiências com sua própria mente em situações que possam aproximá-lo do fenômeno e alcançar a realização daquilo que está conceitualmente descrito em uma formulação. Tal aprendizado é conduzido de forma a tomar a mente do analista como seu laboratório e instrumental de aproximação com a realidade psíquica - o vértice da autoconsideração a que Bion se refere quando descreve o modelo da visão binocular. Isso implica a vivência de uma dupla analítica capaz de pensar pensamentos impensáveis , isto é, de adentrar a noite escura da alma, de que trata São João da Cruz, citado amplamente por Bion em Transformações (1965) e Atenção e interpretação (1970) ao ressaltar o arrebatamento experimentado na relação psicanalítica quando analista e analisando se dispõem a encarar a verdade psíquica conquanto esta possa emergir e ser apreendida em formulações transientes no aqui e agora da sessão de análise. Não há como se alcançar a linguagem bioniana, especialmente em seus escritos do período que compreende os quatro grandes livros de 1962 a 1970, sem se viver suficientemente a experiência psicanalítica. Do contrário, os riscos de se produzir uma leitura solipsista do texto bioniano podem conduzir a uma deformação intelectualizada dos fenômenos humanos que Bion discute, resultando frequentemente em uma interpretação cartesiana ou mesmo comportamental do objeto psicanalítico. Acerca de leituras que se afastam do vértice dialógico característico de Bion, e que podem resvalar tanto em um “realismo ingênuo” como em um “idealismo ingênuo”, ambos de caráter totalitário dado que reduzem a complexidade do pensamento, Sandler (2013) nos alerta que estas “culminam em uma legislação de opiniões individuais, uma postura de leitura-über-alles que enaltece a imaginação realizadora de desejos como a única verdade a que outros possam aspirar” (p. 153). O dialogismo bioniano pressupõe um movimento de concepções tendendo ao infinito (±Y) que transitam por um espectro de possibilidades que têm em um polo o narcis-ismo (-Y) e no outro o social-ismo (+Y). A letra Y é pronunciada como why em inglês, o que pode nos indicar que no polo narcisista ocorre uma redução do questionamento de tal modo que faça coincidir o pensamento apriorístico com a realidade - isto é, impõe a imaginação como soberana à realidade -, ao passo que no polo social-ista pode haver um excesso de questionamento vazio que leva a generalizações em detrimento do fenômeno singular - isto é, que se prestam à manutenção do status quo . O modelo é inicialmente utilizado por Bion em Aprender da experiência (1962) em sua enunciação do objeto psicanalítico. Adotar Bion como eixo epistemológico em uma pesquisa científica implica um exercício constante de atenção, indagação e diálogo de tal modo que seja possível utilizar suas formulações conceituais e fenomenológicas não como objeto-fetiche disponível na prateleira para a reprodução de afirmações ingênuas ou para sustentar opiniões pessoais, mas como instrumento de conhecimento que se presta ao exame dos fenômenos psíquicos que suas teorias pretendem descrever. Encontro nas figuras do outro analista, do colega leitor e da comunidade científica os destinatários de toda comunicação elaborada com esforço de precisão na observação de fenômenos psicanaliticamente apreendidos. No movimento que tende a +Y, as concepções são dialogadas com uma comunidade de leitores-analistas dedicados a compor uma rede permanente de pensamento crítico que, não obstante, está também sujeita ao risco do dogmatismo. E na inclinação a -Y encontramos o caráter autêntico da criatividade do autor-analista que se baseia em suas experiências pessoais para dar voz aos fenômenos analisados, ainda que corra o risco de eventualmente subverter as configurações formais de conhecimento a que se visa em uma pesquisa. Trata-se de uma tensão dinâmica que requer do analista-autor-pesquisador a paciência para transitar entre momentos de incerteza e momentos de elaboração do pensamento que emerge com o trabalho que se realiza e se expande à medida que novas concepções são levadas à prática clínica e proporcionam ligações inusitadas para se aproximar da complexidade do fenômeno examinado. O horizonte está sempre em um ponto inalcançável e é sempre uma pré-concepção em busca de realizações , como assinala Bion (1962) . Conforme Castel (2014) : Eu me esforçaria, de preferência, a levar radicalmente a sério a postura bioniana de uma modificação psíquica do leitor-analisante, de maneira que ele possa mudar seu estado interior e ver psicanaliticamente o que ele nunca tinha visto nem concebido … Porque se acede assim às formas de ligação ( linking ) dos pensamentos entre si, invisíveis de outra maneira. Melhor, acede-se assim a formas de ligação que só a psicanálise descobre, não somente a partir de seus procedimentos clínicos, mas, ainda mais além, porque ela demonstra aí sua marca epistemológica própria e, talvez mesmo, sua cientificidade. (p. 260) É nesse sentido que o terceiro elemento do conhecido adágio de Bion ( 1967/2014a ) sem memória, sem desejo, sem busca de entendimento requer ser pensado. O entendimento pode se tornar o maior obstáculo para se estabelecer aproximações com a realidade não sensorial. Assim, uma proposição de Freud, Klein, Winnicott ou qualquer outro autor fruto da árvore psicanalítica ficaria ela mesma sujeita a leituras ora idealistas, ora hiper-realistas, repetindo-se assim a lógica cartesiana do ou isto/ou aquilo, das verdades totalizantes que impedem o conhecimento do fenômeno observado. Um estado de atenção delicada é necessário para sustentar a postura epistemológica de uma pesquisa pautada pelo dialogismo bioniano a fim de se mitigar o risco da arrogância do conhecimento. Ao longo de sua obra - não apenas seus escritos, mas também nas transcrições de seminários e supervisões - Bion faz usos muito peculiares das palavras e da escrita. Suas elaborações podem despertar no leitor um desconforto desorganizador que demanda disposição para tolerar a aparente confusão da linguagem por ele empregada. Se for possível sustentar essa atitude, podemos eventualmente alcançar uma realização daquilo que Bion discute. Do contrário, a tendência a buscarmos formas conhecidas no texto de Bion nos conduzirá fatalmente a uma distorção, a uma substituição da experiência de turbulência por outra de falsa calmaria , aquilo que Bion designa como o domínio de -K, o vínculo de anticonhecimento (1962, 1965). Suas comunicações, adverte o próprio Bion, “devem ser consideradas como formulações verbais de imagens sensoriais construídas para comunicar em uma forma o que provavelmente é comunicado em outra forma; por exemplo, como uma teoria psicanalítica” ( 1967a , p. 2). A ambiguidade do objeto de estudo - a realidade não sensorial - se inscreve na maneira como Bion (1962) se expressa e em suas construções sintáticas que visam a sustentar deliberadamente, no plano verbal, o paradoxo característico do fenômeno psíquico. Ele nos propõe abraçar o paradoxo como elemento indissociável do propósito de seus escritos, sem o qual torna-se impossível fazer uma comunicação que seja bem-sucedida em mobilizar no leitor um estado de mente peculiar. Entendo que o grande problema de se produzir um trabalho científico tomando Bion como referencial reside justamente em seu eventual achatamento epistemológico, isto é, em sua submissão a uma lógica de causa e efeito, dedutiva ou indutiva, em que a leitura particular se torne um descolamento da experiência e do diálogo com uma comunidade de analistas-pesquisadores que se dedicam a pensar juntos o impensável, indagar e discutir as experiências sempre em sua qualidade de incompletude. Retomando Sandler (2013) : Uma fonte primária de erro me parece ser a subserviência ao desejo e ao prazer que se manifesta, em diferentes graus, como um mix de ódio à verdade e ao amor, e um desprezo sensório-concreto pela mente e pela vida. Não tolerar que o seio real [a experiência incompleta] difere de modo frustrante do seio que é desejado (ou talvez, de que se necessita) pode ser a base tanto para um idealismo ingênuo - ao alucinar o seio ideal - ou a um realismo ingênuo - ao tornar concreto o seio que não poderia oferecer consolo ou, quando se pode oferecê-lo, este não pode ser experimentado devido a traços inatos de inveja narcisista e paranoica, forçando a uma cisão. (p. 156) Em suma, a linguagem do autor-analista-pesquisador, em tais condições características do vínculo -K (ou da tendência a -Y no espectro do objeto psicanalítico), assume a guisa de objeto concreto e saturado que se supõe solapar a própria necessidade de viver a experiência inusitada do texto para saber de que se tratam tais concepções. Isso resultaria em uma leitura e uma escrita vazias, desprovidas do elemento variável que designa o objeto psicanalítico que se oferece para ser conhecido em múltiplos, infinitos e incompletos vértices de observação. Notas 1 O artigo é parte da tese de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) sob orientação de Marina F. R. Ribeiro, que assina a coautoria institucional. Pesquisa realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 2 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Social pela USP & Birkbeck College, University of London. São Paulo 3 Psicanalista, professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro fundador e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC). São Paulo Referências Bion, W. R. (1962). Learning from experience . Karnac. Bion, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis . Karnac. Bion, W. R. (1965). Transformations . Karnac. Bion, W. R. (1967a). Second thoughts . Karnac. Bion, W. R. (1967b). A theory of thinking. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 110-119). Karnac. (Trabalho original publicado em 1962) Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation . Karnac. Bion, W. R. (1982). The long weekend. Fleetwood. Bion, W. R. (1997). War memoirs. 1917-1919 (F. Bion, ed.). Karnac. Bion, W. R. (2004). Transformações (P. C. Sandler, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1965) Bion, W. R. (2014a). Notes on memory and desire. In W. R. Bion, The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 203-210). Karnac. (Trabalho original publicado em 1967) Bion, W. R. (2014b). Clinical seminars. In W. R. 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- Destinatários do amor - Continentes para a função psicanalitica da personalidade
Este artigo foi publicado em 2025 na Revista Ide (São Paulo). Autora: Marina F. R. Ribeiro [1] Francesca [2] e Bion em Brasília, 1975 (Acervo da SBPSP). Ah… a delicadeza do amor… força e fragilidade… o vivo requer espaço e tempo… é água que escorre, transborda e se espalha no espaço consentido. Em um depoimento gravado em vídeo, Octavio Paz diz: Eu não sei se o amor é conhecimento, como pensava Platão. Creio que o amor é reconhecimento, reconhecemos uma imagem muito antiga que tínhamos gravado no íntimo do nosso ser. E, também, e isso talvez seja o mais importante, nos sentimos reconhecidos, sentimos que alguém nos reconhece, que alguém nos vê de verdade.… O reconhecimento de uma pessoa única, singular. Não uma pessoa única para todos, mas para mim. E eu sou uma pessoa única, singular para ela. Isto para mim é, eu creio, o amor. (tradução livre da autora) Ao compreendermos a psicanálise como uma habilidade humana em potencial (Chuster e cols., 2011) amalgamada a uma matriz amorosa, consideramos que a contínua construção autobiográfica está presente da cesura do nascimento à cesura da morte. A psicanálise, como a vida, é uma atividade autobiográfica, todos os textos são autobiográficos (Bion, 1965/2014c). Anne Lise Scappaticci [3] (2023) escreve sobre o tesouro da linguagem na odisseia da vida: “somos sempre passageiros do desconhecido, não importa quanta análise façamos. Nunca saberemos quem somos”. Como um passageiro do desconhecido, Bion parece ter buscado em seus escritos autobiográficos um continente para suas intensas turbulências. Sim, um texto pode ser um continente, uma forma de pensar. Conforme a autora “a autobiografia é uma transcrição de uma realidade interior, do psíquico, sobre o qual nunca se tem conhecimento direto e completo” (p. 136). Penso que a capacidade de sofrer a dor e a arte de realizar nas palavras sentidos para as turbulências fazem parte da função psicanalítica da personalidade. Francesca Bion escreve: “O que interessava, antes de tudo, era estimular a reflexão e a curiosidade do outro. Ele sabia que não havia ‘respostas’, mas só perguntas” (Associação Francesa de Psiquiatria, 1991/2022, p. 35). É o que tentarei fazer neste texto, estimular a reflexão e a curiosidade a partir de uma parte da obra de Bion pouco referida, as cartas a Francesca. Penso que esse vínculo foi uma verdadeira cesura na vida de Bion, e fundamental para o homem e sua obra. Encontrei apenas um artigo sobre as cartas, de Janet Sayers (2002), nomeado: “Darling Francesca: Bion, love-letters and madness” (Querida Francesca: Bion, cartas de amor e loucura). Francesca (Bion, 1985/2014a) , cinco anos após a morte de Bion, relata na introdução do livro autobiográfico All my sins remembered: another part of a life & The other side of genius: family letters (Todos os meus pecados lembrados: a outra parte de uma vida e O outro lado do gênio: cartas de família): Este testemunho triste e introspectivo, por si só, apresentaria uma imagem falsa da vida de um homem que obteve grande felicidade e recompensa no seu casamento, família e trabalho. A evidência mais clara disso é fornecida por suas cartas para nós, escritas sem nenhum público em mente e sem necessidade de enfatizar seus pecados de omissão, confiantes em nosso amor e compreensão. Quase todo o seu pensamento criativo e escrita foram feitos durante esses anos, quando ele foi finalmente libertado dos confins da guerra, do luto e de um sentimento de desesperança. Tornamos públicas algumas dessas comunicações privadas porque elas dizem muito ao leitor - não sobre nós, a sua esposa e filhos, mas sobre ele, o marido e pai. Temos orgulho de ter sido sua família e destinatários de seu amor. (Bion, 1985/2014a, p. 7; tradução livre) Destinatários do amor Construindo conjecturas teóricas e imaginativas, pergunto: será que Francesca publicou as cartas movida pelo desejo de apresentar a “substância humana [4] Bion”? O outro lado do gênio que compõe o gênio? Será que esse significativo vínculo foi o favorecedor da função psicanalítica da personalidade para Bion? Considero que a substância humana do analista compõe a sua função psicanalítica da personalidade. Escrevo em texto anterior: O sonhar, por meio da reverie/função alfa, é um dos principais processos por meio dos quais a função psicanalítica da personalidade se manifesta. Bion propõe que a mente é equipada com essa função geradora, criadora de sentido, no infindável processo de elaboração das experiências emocionais, e da necessidade humana de encontrar o sentido e a verdade, única a cada um.Nos textos de Chuster e colaboradores (2011, 2014), encontramos a ideia de que a análise está dentro das pessoas como uma habilidade humana em potencial; ou seja, o processo analítico pode expandir uma função que é humana, a função psicanalítica da personalidade, que consiste no interesse e na ética do conhecimento de si, o conhecimento da verdade da experiência emocional, sustentado pelo setting analítico, como vimos com Ogden (2010) e também com Chuster (2003, 2011, 2014 e 2018), uma forma inédita de relacionamento humano criada por Freud. (Ribeiro, 2019, p. 181) Figueiredo (2022) compreende essa função como “uma universal capacidade humana de hospedagem, afetação, ligação, representação, simbolização, transformação e compartilhamento das experiências emocionais” (p. 11). Somos feitos da mesma matéria que os sonhos, escreve Shakespeare. Somos sonho. A aptidão para o sonho é substância humana, é função psicanalítica da personalidade. Destinatários do amor são continentes para a amorosidade da função psicanalítica da personalidade, essa é a ideia que sigo nas próximas páginas, a partir de uma carta de Bion de 14 de agosto de 1952, 15 dias após o nascimento de Julian (30 de julho de 1952), seu primeiro filho. Lembrando ao leitor que, quando Bion escreve sobre reverie em 1962, ele usa a palavra “amorosidade”, ou seja, a matriz amorosa é fator da função psicanalítica da personalidade. Francesca, meu amor … Eu tive a melhor sessão até agora com a minha criança-problema, e, embora tenha havido razões externas para isso, também é um sinal de um bom trabalho aqui. Meu querido amor, tudo isso é graças a você. Se não fosse pelo pensamento do seu amor por mim, eu não acredito que conseguiria curar ninguém ou qualquer coisa (nada) - certamente não no estado de mente que tenho estado no último mês. (Bion, 1985/2014a, vol. II, p. 121; tradução livre) Ao ler as cartas, é imediata a percepção da amorosidade de Bion, e é possível captar suas ideias de forma livre, constatando como leitores sua apurada e sensível observação da vida. Francesca considerou importante publicar a qualidade da substância humana Bion: uma capacidade amorosa encantadora, que não submergiu nem com o afastamento precoce da família aos 8 anos, nem nas duas guerras de que participou. Uma invariância da sua personalidade? Penso que sim, o amor à vida, fonte de todas as outras formas de amor, a matriz amorosa da função psicanalítica, como escreve Chuster (2024). Francesca narra: “Se eu tenho hoje um pouco de sabedoria e coragem, eu as aprendi com ele, como tomamos sol pelos poros da pele” (Associação Francesa de Psiquiatria, 1991/2022, p. 30). A força do pensamento de Bion emana em nós a partir das suas ideias publicadas, palavras que entram pelos poros da pele do leitor. Na leitura dos textos também podemos ser afetados e transformados pela turbulência do encontro com a personalidade do autor. Ou, como escreveu Bion, a leitura de um texto precisa ser uma experiência transformadora. Será que, quando alguém tão querido morre, nasce com intensidade dentro de nós? E permanece como uma presença viva e vitalizante nos anos vindouros? Somos feitos de sonhos e de presenças psíquicas, a autobiografia dos vínculos que nos constituem. Escutemos a voz de Francesca: As palavras de um poema de John Donne (apenas muda o sexo) exprimem meus sentimentos de maneira bem mais emocionante do que eu pudesse jamais esperar fazer: “Tu não saíste, depois de tua partida: onde quer que estejas./Tu deixaste nela teus olhares atentos, e nela teu coração amoroso”. (Associação Francesa de Psiquiatria, 1991/2022, p. 36) O ato de fé de que nos fala Bion, penso ser um côncavo amoroso da substância humana do analista, é uma aposta no humano; a confiança em que o sentido possa emergir da turbulência do encontro entre duas personalidades. Faz parte do humano o amor pela vida que é a fonte de todas as inúmeras e surpreendentes formas de amor, a matriz amorosa (Chuster, 2024). A substância humana da função psicanalítica da personalidade precisa ter essa qualidade de uma hospitalidade ao outro, de uma amorosidade que em si comporta o ódio, a ambivalência dos primórdios da vida. A capacidade negativa é essa receptividade côncava e amorosa ao outro, uma capacidade virtuosamente expectante, uma empatia suprema, como escreve Chuster (2019). Qualidade psíquica que contém e sustenta a violência dos estados psicóticos, que atacam e destroem os vínculos: a guerra, fora e dentro, sem fronteiras e sem continente. A função psicanalítica da personalidade é parte da substância humana, ela dá forma às emoções que transbordam constantemente do vivido, do experienciado. A substância humana está em constante ebulição, como escreve Rocha Barros (2023), demandando um trabalho transformativo pela função psicanalítica da personalidade. Conheci essa expressão - “função psicanalítica da personalidade” - primeiramente nos textos de Chuster (2011), depois a busquei em Bion e depois a reencontrei em Ogden (2009/2019). Existem livros que são nascedouros de ideias, como O objeto psicanalítico, que continua produzindo reverberações no meu pensamento. [5] Chuster (2024) relata que o amor não está presente no mito de Édipo, e sim a arrogância, a crueldade, a busca da verdade sem amor e sem consideração. O amor, um componente fundamental da substância humana e seus destinatários, é uma transcendência da situação edípica. Transcendência contínua ao longo da vida, pois a situação edípica é o barro que constitui o humano. Criamos constantemente diferentes formas para o barro, a odisseia acaba apenas na cesura da morte. Emanações da presença da nossa personalidade, nosso modo singular de exercer a função psicanalítica, no entanto, permanecem nos vínculos e nos textos, lembrando novamente o comentário de Bion (1965/2014c): todos os textos são autobiográficos. São um legado que atravessa gerações, uma forma de presença em palavras e nas palavras, que não são apenas marcas pretas no papel, são vivas e delas emana vida. Do barro que somos besuntados e constituídos, nossas intensas paixões edípicas, transcendemos pela criação contínua de formas; algo novo emerge do barro bruto. Criar implica desmanchar-se e emergir renascido, em uma odisseia única, passageiros do desconhecido, como escreve Anne Lise. Os estados psicóticos da mente são o campo do indiferenciado, do desmanchado, do absoluto, da guerra. Aprisionados pelas paixões edípicas, somos cruéis e estamos no campo da desumanização. Transcendendo nossas paixões edípicas, criamos a nós mesmos e ao mundo. Os estados não psicóticos de mente são o campo da substância humana, do amor à vida. Há um espectro entre o humano e o não humano, em movimento contínuo. A função psicanalítica da personalidade realiza o humano em nós, torna o barro de que somos constituídos um objeto de arte e cultura, uma criação, um texto, um vínculo amoroso, uma palavra terna. Nas cartas à família encontramos a substância Bion que transcendeu à guerra, por habitá-la em outros textos e em outros lugares. Habitar e transcender são verbos conjugados em simetria: habitar para transcender; transcender para habitar novos lugares. Conjecturando, talvez seja isso que Francesca desejou mostrar publicando as cartas, o intenso amor à vida, exposto nos pequenos detalhes do cotidiano descritos por Bion. Ela nomeou tudo isso “o outro lado do gênio”, poderíamos então pensar na substância humana do gênio revelada na diferença de temperatura ao sol e na sombra, os pássaros, os lugares, a luminosidade do dia, a temperatura da água. Relatos da sensibilidade de Bion na sua forma de apreciar a vida, o seu amor à vida, a matriz amorosa da sua função psicanalítica da personalidade. Em 1975 Bion menciona nos seminários clínicos em Brasília, algo provocativo, como era seu estilo: Com esse paciente pode ser muito importante mostrar-lhe, quando chegar a hora, que existe alguma capacidade de afeto, simpatia, compreensão - não apenas diagnóstico e cirurgia, não apenas jargão analítico, mas interesse pela pessoa. Você não pode formar médicos ou analistas - eles têm que nascer. (Bion, 1975/2014b, p. 24; tradução livre) Um analista nasce a cada sessão a partir da sua substância humana, sua matriz amorosa, sustentada pela função psicanalítica da personalidade. Precisamos habitar e transcender nossas paixões edípicas a cada sessão, nossa equação pessoal. Bion iniciou sua análise com Klein em 1945, permanecendo oito anos com ela. Melanie Klein, de quem eu tinha ouvido falar e tive a oportunidade de observar à distância em uma ou duas ocasiões, era uma mulher bonita, digna e um tanto intimidadora. Minha experiência de associação com mulheres não foi encorajadora nem propícia ao crescimento de qualquer crença num resultado bem-sucedido. No entanto, fui vê-la. (Bion, 1985/2014a, pp. 71-72; tradução livre) Será que, ao habitar a guerra com Klein, foi possível o emergir da sua capacidade amorosa? Bion foi grato a Klein, considerando-se e declarando-se um analista kleiniano em vários seminários, até o final da sua vida. Bion escreve sobre o final da análise com Klein: Não me tornei mais receptivo aos seus pontos de vista, mas mais consciente da minha discordância. Mesmo assim, havia algo naquela série de experiências com ela que me fez sentir gratidão por ela e um desejo de ser independente do peso do tempo e das despesas de dinheiro e esforço envolvidos. Finalmente, depois de alguns anos, nos separamos. Ela, eu acho, sentiu que eu ainda tinha muito a aprender com ela, mas concordou com o término - em parte, sem dúvida, por perceber que o suficiente para wrb era o suficiente. (Bion, 1985/2014a, pp. 72-73; tradução livre) Impossível dimensionar os efeitos de uma análise, mas parece ter sido uma experiência transformadora para ele, se considerarmos tudo que ele realizou depois de ter iniciado a análise e após o seu término. Bion, quando conheceu Francesca, tinha publicado apenas os artigos compilados no livro Experiências com grupos, e estava apresentando o Gêmeo imaginário para se tornar membro da Sociedade Britânica (Sayers, 2002). Alguns dias antes de a conhecer, em março de 1951, ele escreveu: Mas que melhoria? … Uma esposa, claro. Não preciso de um psicanalista para me dizer isso. Mas que esposa? Eu não conhecia ninguém, não queria alguém como Betty, não queria alguém como a garota que optou por não me escolher (Bion, 1985/2014a, p. 74; tradução livre) Bion conheceu Francesca em um jantar na Tavistock; ela tinha 28 anos e ele, 53. As realizações que se seguiram na vida de Bion fazem pensar que algo no encontro com Klein foi transformador para ele, especialmente a relação com Francesca, que começou no início de 1951, seguida pelo casamento alguns meses depois. Bion escreve na ocasião: “É difícil perceber o quanto isso significa. Para todo o sempre, minha querida, eu a amo. Espero que você seja feliz, independentemente do que possa surgir em nosso caminho, e que eu possa torná-lo assim” (Bion, 1985/2014a, p. 113). Francesca faleceu em 2015, após a conclusão da edição das Obras Completas de Bion , publicadas em 2014. Foram casados por 28 anos, e 36 anos entre a morte de Bion e a de Francesca, nos quais ela dedicou parte do seu tempo à publicação, organização e transmissão da obra dele. Francesca revelou sua amorosidade ao publicar as cartas, e um extremo cuidado com a obra de Bion em vida e após a morte dele. Ela foi nomeada membro associado da Sociedade Britânica de Psicanálise pela sua significativa contribuição à psicanálise. Após 16 anos de casado, Bion escreve em uma das últimas cartas a Francesca, em Los Angeles (18 de outubro de 1967), um amor que permaneceu vitalizado ao longo dos anos: E eu me pergunto como está, minha querida? Estou tão nervoso quanto um gato esperando você chegar. Não me atrevo a contar as horas e não posso deixar de fazê-lo. Então, se você estiver lendo isso antes de eu a ver, lembre-se de que estou muito nervoso. Eu não acho que posso ter-me apaixonado antes. Acredite em mim, é horrível e adorável ao mesmo tempo. (Bion, 1985/2014a, p. 171) Após a leitura das cartas, escrevo uma grade imaginativa amorosa de Francesca para Bion, um brinde à luminosidade desse vínculo que continua nos alcançando: Do vertical ao horizontal eu o encontrei, e foi macio e terno, uma visita a um lugar único, um privilégio ter estado lá. Fui tomada por emoções intensas e uma sensação de ter entrado no sagrado. Entre a penumbra e a claridade extrema do dia, não deu tempo de os meus olhos se adaptarem, e, quando olhei, você já não estava mais lá, partiu antes de partir, e eu fiquei, me sentindo intrusa, sentindo que toquei em folha de dormideira, que ao vento se fecha, coração apertado. Entrar e sair de terrenos sagrados talvez sejam atos heroicos, da penumbra à claridade em segundos, sem degraus para apoiar a alma em vertigem. Busco em mim a sensação da entrega, do toque macio e próximo, da horizontalidade do sagrado, e sou grata por ter vivido quase o impossível: ter habitado a ternura dos seus olhos. Pelo sertão (Lívio Abramo, xilogravura, 1946-1948) Notas 1 Psicanalista, professora livre-docente, orientadora de mestrado e doutorado no Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica do IP-USP. Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LiPSic). Autora de vários livros e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais ( www.marinarribeiro.com ). São Paulo. 2 “Francesca Bion é a viúva de Wilfred Bion e a transcritora e primeira editora de seus seminários e palestras e de muitos de seus trabalhos publicados. Ela foi nomeada Associada da British Psychoanalytical Society em reconhecimento à importância de sua contribuição para a transmissão da psicanálise” (Mawson, 2014, p. XV; tradução livre). 3 Agradeço a Anne Lise Scappaticci o convite para comentar seu inspirador livro Psicanálise: uma atividade autobiográfica , na Febrapsi, em novembro de 2023. Momento no qual apresentei algumas ideias presentes neste texto, que evoluíram a partir da leitura do livro de Anne Lise. 4 “Substância humana” é um termo usado por Elias da Rocha Barros (2023). 5 Esse foi o primeiro livro que li do Arnaldo Chuster, estava voltando do encontro internacional Bion 2011 em Porto Alegre, no qual apresentei um trabalho sobre Transformações . Referências Associação Francesa de Psiquiatria (2022). W. R. Bion. Uma teoria para o futuro (L. H. S. Barbosa & U. S. Ramos, Trads.). Blucher. (Trabalho original publicado em 1991) Bion, W. R. (2014a). All my sins remembered: another part of a life & The other side of genius: family letters. In C. Mawson (Ed.), The complete works of W. R. Bion (Vol. II, pp. 1-79). Karnac. (Trabalho original publicado em 1985) Bion, W. R. (2014b). Clinical Seminars Brasilia. In C. Mawson (Ed.), The complete works of W. R. Bion (Vol. VIII, pp. 1-125). Karnac. (Trabalho original publicado em 1975) Bion, W. R. (2014c). Transformations. In C. Mawson (Ed.), The complete works of W. R. Bion (Vol. 5, pp. 115-280). Karnac. (Trabalho original publicado em 1965) Chuster, A. (2024). Linguagem de alcance psicanalítico. A diferença transcendental em W. R. Bion. Col. Academia de Psicanálise. Blucher. Chuster, A. e cols. (2011). O objeto psicanalítico. Fundamentos de uma mudança de paradigma na psicanálise. Ed. do Autor. Chuster, A. e cols. (2019). Capacidade negativa. Um caminho para a luz. Zagodoni. Figueiredo, L. C. (2022). A mente do analista. Escuta. Mawson, C. (2014). About the editor. In C. Mawson (Ed.), The complete works of W. R. Bion (Vol. I, p. XV). Karnac. Ogden, T. H. (2019). Os quatro princípios do funcionamento mental segundo Bion. In T. S. Candi (Org.), Diálogos psicanalíticos contemporâneos: Bion e Laplanche - do afeto ao pensamento . Escuta. (Trabalho original publicado em 2009). Paz, O. “Sobre o amor”. Vila dos Poetas . https://www.instagram.com/reel/C5OELnJrnCm/?igsh=MTNsYmhvejQwc2FraA== . Ribeiro, M. F. R. (2019). Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico. A narrativa do analista e a do escritor. Cadernos de Psicanálise, v. 41, n. 40, 169-187, jan./jun. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S1413-62952019000100011 . Rocha Barros, E. (2023). Implicações epistemológicas em contraponto a uma interpretação simplista do enunciado de Bion: sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia. In M. F. R. Ribeiro & E. M. de U. Cintra (Orgs.), Vastas Emoções e pensamentos imperfeitos. Diálogos bionianos. Cap. I. Blucher. Sayers, J. (2002). Darling Francesca: Bion, love-letters and madness. Journal of European Studies, XXXII, 195-207. Scappaticci, A. L. S. (2023). Psicanálise. Uma atividade autobiográfica . Blucher.
- Cuidar, berço do humano: reflexões sobre a clínica da perinatalidade
Este artigo foi publicado em 2025 na revista Primórdios do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Autores: Renata Rocha Lima de Almeida Orlando e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro. Resumo: Este artigo busca discutir os elementos fundamentais que devem comparecer na clínica da perinatalidade, para além das diferentes especializações. O artigo se inicia com o relato de um parto acompanhado por uma das autoras como doula e psicanalista. A análise começa problematizando a assistência obstétrica no contexto brasileiro, permeada por atuações embasadas em ideologias provenientes da polarização entre atuações mais e menos intervencionistas. A reflexão segue investigando a insurgência da doula em busca de compreender os elementos que a propiciaram. Por fim, através de exploração de base psicanalítica e em contato com o campo da ética do cuidado, investigamos as bases fundamentais do cuidar na clínica perinatal. Palavras-chave: Clínica perinatal. Ética do cuidado. Doulagem. Psicanálise. ÍRIS [1] O plano era: um parto hospitalar com uma equipe obstétrica particular humanizada [2] de São Paulo. Quando as contrações estivessem ocorrendo de dez em dez minutos eu iria para a casa da gestante. Posteriormente, quando o trabalho de parto estivesse em uma fase mais ativa, com aproximadamente cinco minutos de intervalo entre as contrações [3] , viria a obstetriz [4] . Esta auscultaria o coração do bebê e, se necessário, faria um exame de toque para medir a dilatação, ou seja, compreender os parâmetros fisiológicos do processo. Assim, quando todos achassem pertinente, iríamos ao hospital. Lá, encontraríamos a médica obstetra e ficaríamos na sala de parto humanizado [5] até o bebê nascer. No dia não foi assim. Verdade seja dita, os partos são sempre distintos do que se imagina. Serão qualquer coisa que nunca espelhará precisamente a prévia imaginação dos que os vivem. Mas este – o primeiro que acompanhei – foi especialmente incomum. Diferentemente de todos os outros que vieram de pois (ao longo dos 10 anos subsequentes em que trabalhei como doula [6]), nesse dia o restante da equipe não chegou. Íris era uma mulher alta, esguia e chamava atenção por sua beleza. Vivia a sua primeira gestação. Este parto, o nascimento de Antônio, marcou uma divisão clara entre a vida que levava antes e a que passou a ter depois que seu filho nasceu. Tatuou em seu braço a data e o horário do parto. Sua trajetória profissional transformou-se e consolidou-se nos anos que se seguiram, tornando-se referência em educação antirracista, prática ancorada em situações e preconceitos que ela mesma vivenciou em sua infância, sendo uma das únicas crianças negras na escola particular tradicional onde estudou. Íris participava de um grupo de trocas entre mulheres facilitado por mim e algumas colegas em uma ONG em São Paulo; foi lá que a conheci. Tínhamos um vínculo forte e em um dado momento, no final do segundo trimestre de gestação, me disse: “Eu gostaria que você estivesse no meu parto, veja como soa essa ideia para você”. Respondi que essa possibilidade me encantava muito, entretanto, ponderei: “Mas não sou doula”. Coincidentemente, fazer a formação em doulagem já era uma vontade minha, apesar de ela não saber disso. Contei sobre este meu interesse e começamos a pensar nos caminhos possíveis. Durante a gestação, fui junto com Íris a uma consulta com a obstetriz e em outra com a médica obstetra, para conhecê-las e entender como trabalhavam. Na ocasião, a médica orientou, sobre o dia de trabalho de parto: “Nas comunicações, você se reporta à obstetriz e a obstetriz se reporta a mim.” A gravidez não fora planejada e desenvolveu-se atravessada por rupturas e reconciliações entre ela e Mauro, o pai do bebê. Desentendimentos e questões referentes ao abuso de álcool e drogas por parte dele conturbavam o relacionamento. Chegamos a vislumbrar a possibilidade de contratação de uma doula e eu ocupar o lugar de acompanhante [7]. Ao final da gestação, pai e mãe estavam juntos e combinaram que ele estaria presente no dia do nascimento. Após esta decisão, encontrei-os um dia para conhecê-lo e falarmos sobre o parto. Poucos dias passaram dessa conversa e Íris entrou em trabalho de parto. Era madrugada, de uma noite de lua cheia, quando recebo um SMS: as contrações estavam começando. Eu havia finalizado o curso de doula quatro dias antes. Por saber que o bebê poderia nascer a qualquer momento, tomara muitas notas e participara das aulas com toda a minha atenção. Após algumas trocas de mensagens, em um dado momento Iris me disse que as contrações estavam acontecendo de dez em dez minutos; havia um ritmo. Decidi arrumar as minhas coisas para ir vê-la. Reportei à obstetriz tudo o que a gestante havia me dito e informei que eu estava indo para a casa de Íris. Eu morava em uma região de alta altitude da cidade de São Paulo. As nuvens amarelas e brancas brilhantes no horizonte e a imagem do sol nascendo laranja atrás dos prédios ainda é uma memória viva daquela manhã. Mauro, o pai do bebê, era seu vizinho e tinha passado a noite com ela – foi ele quem me recebeu, agitado e alegre, quando toquei a campainha. A mãe de Íris estava na sala. Era possível notar a sua tensão pelo seu tom de voz e sua organização corporal. Conversei um pouco com ela, que me perguntou se não era a hora de ir ao hospital. Respondi que eu iria vê-la, contar o tempo das contrações e passaria tudo para a obstetriz; que conversaria com a médica e então elas nos orientariam sobre o momento de irmos. Bati na porta do quarto e Íris me recebeu com um leve sorriso e um olhar cansado de quem já sentia dor há um tempo. Perguntei como ela estava e me respondeu que estava bem, mas com muita dor e que ainda precisava arrumar sua mala de maternidade. Falei que a ajudaria com isso e que mediria a duração das contrações e o tempo de intervalo entre elas para passar ao restante da equipe. Fui me dividindo entre massageá-la e acalmá-la no momento da contração, marcar a duração e os intervalos entre as mesmas e solicitar a sua mãe e ao Mauro os itens que era preciso separar e colocar na mala de maternidade, tais como documentos, roupas etc. Eles estavam aflitos e dispersos com toda a situação – e por vê-la sentindo dor; então, eu tentava tranquilizá-los enquanto os ajudava a separarem as coisas que levaríamos para o hospital. Depois de marcar alguns minutos, com mais de quatro contrações anotadas, liguei para a obstetriz para informá-la sobre os parâmetros. Ela me respondeu: “Veja, Renata, não há ritmo ainda apesar de estarem próximas entre si. Isso provavelmente é pródromo, proponha que ela tome um banho”. Íris estava vocalizando alto durante as contrações de forma que a obstetriz pôde ouvi-la através do telefone e disse: “Nossa, essa gestante está assim desde já, vai nos dar trabalho! Relembre a ela que a média de duração dos trabalhos de parto é 10 horas e que estamos apenas no começo”. Transmiti à Íris, ao pai do bebê e à sua mãe o que a obstetriz havia dito, retirando a parte que dissera, de que nos daria trabalho, obviamente, por entender que isso poderia desorganizar ainda mais o ambiente e abalar a confiança de Íris na obstetriz, o que no meu entendimento poderia ser muito prejudicial para o trabalho de parto. Ela foi para o banho e segui dividindo-me entre o banheiro, para ajudá-la a lidar com as dores, e a arrumação da mala de maternidade nos intervalos. Depois de um tempo, saiu do chuveiro, irritada e séria, e disse: “Se forem 10 horas disso aqui eu não vou aguentar! Preciso saber se está tudo bem e com quanto de dilatação eu estou, está doendo demais! 10 horas disso aqui eu vou pedir uma cesárea”. Eu, como doula [8] , não poderia dar essas informações a ela. Então liguei para a obstetriz novamente: “Ela está com muita dor e sem saber se está tudo bem com os parâmetros dela e do bebê, está querendo ter uma noção da dilatação. Como doula, não posso garantir isso para ela”. Continuei para a obstetriz: “Talvez seja importante examiná-la mesmo que ainda esteja no começo, pois não saber está deixando-a ansiosa, viver o processo sem estas informações está impedindo que ela confie e se entregue ao processo…mesmo que ainda não haja tanta dilatação”. A obstetriz disse que iria tentar se ajeitar para ir nos encontrar, mas que estava com algumas questões pessoais e caso não conseguisse ir, mandaria uma colega. Mais uma vez ouviu os lamentos de dor de Íris e reclamou de sua postura: “Nossa, mas essa gestante não se informou? Ela não sabe que isso é apenas o começo?”. Lembro de me sentir indiretamente questionada neste momento, pois está entre uma das atribuições da doula o fornecimento de explicações sobre a fisiologia e dinâmica do trabalho de parto. Resolvi não responder ao seu apontamento; o foco era tentar dar um jeito de Íris ser examinada. De todo modo, Íris era bem estudiosa, lera muitos livros e assistiu a muitos filmes sobre o universo da parturição. Além das conversas que tivemos sobre fisiologia, frequentou rodas de gestantes com diferentes especialistas [9]. Falei para Íris que a obstetriz viria ou mandaria alguém em seu lugar. Ela concordou com a cabeça, aliviada. As contrações seguiram fortes; ela estava séria e silenciosa. As dores se intensificaram e Íris começou a se apavorar. Apoiei minhas mãos em seus ombros e falei firme: “Sua gestação foi muito saudável, confie. É intenso, sabíamos que seria. Em breve será examinada e Antônio chegará”. Essa firmeza me parecia importante naquele momento. Ao mesmo tempo, eu também precisava saber se estava tudo bem, justamente para seguir oferecendo-lhe apoio e segurança. Saí do quarto e decidi ligar mais uma vez para a obstetriz. A profissional disse para irmos ao consultório da obstetra, que ficava bem próximo da residência, dizendo que lá a médica a examinaria e completou: “Tenho praticamente certeza de que ela mandará vocês de volta para casa após examinar, mas se ela achar que é o caso de já ir ao hospital, encontrarei vocês lá. Avisarei a médica que estão indo”. Ao desligar o telefone, falei o que a obstetriz havia dito e perguntei se ela queria que eu ligasse para Mauro, pai do bebê para ir com a gente (ele havia ido tomar um banho em sua casa, que era ao lado; passara a madrugada ajudando- -a). Íris pediu apenas que eu lhe avisasse que estávamos indo à clínica com o pai dela, o avô do bebê, e disse que após ter sido examinada, lhe avisaríamos se voltaríamos para casa ou se ele iria nos encontrar no hospital. Assim fiz. Antes de sair, Íris foi ao banheiro e ao voltar disse que a bolsa havia rompido. Avisei a obstetriz e com a mala de maternidade pronta fomos, Íris e eu, no banco de trás do carro, com o avô do bebê dirigindo. Ainda no carro, a vocalização de Íris mudou de padrão e o gemido que anteriormente era um lamento de dor, transformou-se em um som de quem faz força, o que poderia indicar o início do período expulsivo. Nesse momento, me lembrei de uma professora, médica obstetra do curso que eu havia feito, que nos contou que orientou o acompanhante de uma gestante, sua paciente, em um parto emergencial através do viva-voz do celular. Este pensamento me fez ligar para a médica, rompendo a hierarquia que ela havia proposto (de me reportar apenas à obstetriz). A médica atendeu e contei que Íris estava fazendo força. Me respondeu apenas: “Renata, só posso examiná-la se ela estiver aqui”. A clínica era realmente perto, o trajeto todo foi muito rápido, deve ter durado menos de cinco minutos, mas a sensação foi de uma eternidade. Estacionamos e fui rápido até a recepção explicar a situação, a recepcionista disse que ligaria para a médica. Voltei para pegá-la no carro e nos direcionaram até uma sala de atendimento que estava vazia, onde ficamos aguardando a médica. O pai de Íris preferiu ficar na sala de espera, juntando-se a pessoas que aguardavam para serem atendidas. Entramos na sala apenas nós duas e ela logo apoiou-se em uma maca, colocando-se na posição de quatro apoios, evacuou um pouco. Fui ao banheiro, peguei álcool e papel-toalha para limpar a maca e me lembrei que aprendi em uma das aulas que era muito comum a mulher evacuar no período expulsivo, pela pressão que a cabeça do bebê exerce sobre o reto. Falei para ela que eu iria mais uma vez à recepção para saber da médica. Voltei para a sala e Íris estava tendo outra contração. Reparei por sua postura corporal que tentava segurar o movimento de saída do bebê. Estava com a mão na saída de sua vagina e os ombros altos em oposição à saída do bebê, o corpo todo tensionado. Aquilo não me parecia certo. “Eu senti o cabelo dele”, me disse. Respondi que iria avisar mais uma vez a recepcionista. Fui correndo ofegante até a recepção e falei enfaticamente do outro lado da sala de espera – o que fez com que os pacientes que aguardavam olhassem para mim assustados: “Ela sentiu o cabelo! Fale para a médica descer agora, por favor!”. Voltei correndo para a sala e uma senhora, muito doce e simpática, funcionária da clínica, estava ajudando Íris. Naquele intervalo, que deve ter durado entre um e dois minutos, avisei a gestante que eu havia informado na recepção que ela sentira a cabeça do bebê. A funcionária disse enquanto prendia o cabelo de Íris: “Nossa! e estamos na lua cheia, hein…”. Sorri e contei sobre o lindo nascer do sol que eu vira naquela manhã e brinquei: “É cabeludo, então, o Antônio?”, rimos as três. Eu sabia que me desesperar diante de Íris não ajudaria. Eu sentia que precisava preservar o ambiente em torno dela e garantir-lhe que eu estava fazendo tudo ao meu alcance para que a médica viesse. Outra contração começou e a funcionária saiu da sala. Íris voltou a fazer os mesmos gestos que fizera na contração anterior, em oposição ao nascimento. Falei então: “A médica já está mais do que avisada, estamos em uma clínica cheia de médicos, não está certo este movimento de impedir o nascimento, respeite o seu corpo, deixe ele vir, deixe que a dor te conte o caminho para ele nascer”. Ela olhou em meus olhos: “Tem certeza?”, “Sim, Íris, ela já está chegando e eu estou aqui, vá fazendo as posições que seu corpo estiver pedindo, não segure mais”. Começou a procurar posições em cima da maca. Fui incentivando a sua busca e oferecendo suporte até que se estabilizou. Sola do pé esquerdo e joelho direito apoiavam na superfície da maca: meio de joelho, meio de cócoras. Vestia um vestido longo, cuja barra torci colocando dentro do top que usava. Me me sentei em uma escadinha baixa de dois degraus ao lado da maca, para que eu pudesse ver a saída do bebê. Um grito gutural e libertador. Gradualmente, vi a cabeça começando a sair até que ficou toda para fora. Contei para ela sorrindo: “A cabeça, que é o mais difícil, já saiu. Antônio está aqui, ele está falando!” – ele emitia uns sonzinhos que ela também ouviu, demos risada emocionadas. Mais um intervalo, o último: “Espere a próxima contração e faça força para sair o corpinho, mas a maior força você já fez”. Eu havia assistido muitos vídeos de parto e sabia deste intervalo entre a cabeça e o corpo do bebê. Ela me perguntou: “Você segura ele, Rê?”, “claro que seguro.” – respondi com as minhas mãos posicionadas. Na contração seguinte, o corpo de Antônio deslizou e minhas mãos o ampararam. “Deixa eu ver, deixa eu ver!” – ela disse. Acomodei-o em seu peito. Retirei a barra do vestido que estava dentro do top e usei-a para envolvê-lo. Ajudei-a a sentar-se e apoiar-se na parede em que a maca estava encostada. Os dois estavam bem. A feição dela era suave e afetuosa, estava serena conhecendo o filho em seu colo. Sentei-me ao lado. Nos olhamos profundamente em cumplicidade e arrebatamento – sorrimos aliviadas e emocionadas. A médica então entrou na sala e nos viu sentadas com o bebê; falou abismada: “Nasceu???”. A resposta era óbvia. Me pediu que fosse até seu consultório e pegasse uma lista de coisas para a saída da placenta. A funcionária, que antes tinha estado na sala, voltou com um dos pediatras que trabalhava na clínica. Examinaram o bebê e tiraram as suas medidas, estava tudo bem. Orientaram que ela e Antônio ficassem lá por algumas horas, em observação, e depois poderiam voltar para casa, caso tudo continuasse bem. Disseram que se fôssemos ao hospital, provavelmente fariam uma série de exames protocolares desnecessários e invasivos para o bebê. Íris pediu que eu avisasse Mauro e que seu pai ligasse para a sua mãe e seus irmãos, que começaram a chegar pouco a pouco para conhecer Antônio. Ficamos naquela mesma sala e a médica e o pediatra vinham, eventualmente, vê- -los entre um paciente e outro e ajudar com o posicionamento do bebê no peito. Após um tempo, a obstetriz chegou também. Ela e a médica nos diziam: “Que parideira você, hein? Maravilhosa! E você como doula, que estreia!”. Um dos irmãos estava tirando algumas fotos e Íris pediu: “Nada de redes sociais, hein?”. A médica disse então efusiva: “Ah, eu já postei! Não falei seu nome e nem coloquei foto, falei apenas que aconteceu um parto acidental aqui na clínica e que o bebê Antônio chegou!” – nesta postagem, que teve muitos comentários, a médica dava a entender que ela havia assistido o parto. Íris e o bebê voltaram para casa. Eu e Íris tivemos alguns encontros nas semanas que se seguiram. Em um deles, disse que começou a se dar conta da dimensão da situação apenas um tempo depois. Falou ter se sentido incomodada com a postura da equipe obstétrica. A médica cobrou pelo parto. Quando Íris tentou negociar, a profissional foi irredutível em relação ao pagamento, alegando que o trabalho de parto não é apenas da saída do bebê, mas também a da placenta. A puérpera tentou conversar sobre a forma como os acontecimentos se deram, mas disse que a médica não deu abertura para desenvolverem o assunto e, por conta de tudo que estava passando, falou não ter forças de questioná-la, mas disse sentir muita coisa entalada. O relacionamento com o pai do bebê continuava difícil e Íris decidiu afastar-se, mudando-se ainda no primeiro mês para o litoral de São Paulo, para casa de sua avó paterna, de quem Íris era bem próxima. Ela cuidava da puérpera e ajudava-a muito nos cuidados com Antônio. Por volta de sete meses depois, encontrei-a em uma de suas vindas a São Paulo, quando me disse: “Sabe aquela coisa que todo mundo fala de que puerpério é horrível, aquela sobrecarga? Eu não vivi isso. Claro, fiquei muito sensível, foi um período em que fiquei muito mexida, mas me sentia muito protegida e cuidada pela minha avó, em um ninho. A praia também me fez muito bem”. Íris conheceu Miguel e casou-se com ele quando Antônio ainda era bebê. O novo companheiro construiu uma relação muito próxima e íntima com Antônio, o qual o chama de pai. Posteriormente, o casal veio a separar-se, mas mantém uma relação de muito respeito e amizade e compartilham a guarda da criança. Atualmente, Miguel tem a intenção de colocar o seu nome ao lado do do pai biológico no documento de Antônio, por meio da possibilidade de reconhecimento da paternidade afetiva. ASSIMILAÇÃO DA EXPERIÊNCIA A experiência vivida neste primeiro parto e todas as compreensões que vieram com ela foram de tal intensidade que qualquer tentativa de teorizar não cessa de me escapar. Algo no sentido do que diz Simone Weil (2020, p. 163): “Nós sabemos, por meio da inteligência, que é mais real aquilo que a inteligência não apreende do que aquilo que ela apreende” Paradoxalmente, a forma contundente como os acontecimentos se deram levantou questões que me acompanharam ao longo da minha trajetória como doula e que podem ajudar a refletir sobre a clínica [10] perinatal. Essa primeira vivência, com uma equipe que se dizia humanizada, permitiu que eu problematizasse o campo sem aderir cegamente a nenhuma ideologia. A partir desse posicionamento, minha intenção é contribuir com o movimento da humanização pelo parto através de um lugar cauteloso e não maniqueísta. Iaconelli (2013) aponta para o fato de que frequentemente as pautas do movimento da humanização generalizam questões complexas, transformando-as em protocolos. Pregam, por exemplo, a superioridade do parto natural em comparação a um parto com intervenções; a expectativa fixa de que a puérpera amamente, dentre outros tantos ideais. Esses princípios são embasados em evidências científicas e têm fundamentos importantes. Mas ocorre que frequentemente essas bandeiras tornam- -se cobranças enrijecidas e qualquer desvio do que seriam essas normas, acaba sendo vivido pelas puérperas como fracassos, o que gera sofrimento. No parto narrado, a impressão que tenho é de que as profissionais pautaram suas ações seguindo uma cartilha própria da lógica da humanização. Estavam fixadas no que seria o tempo padrão esperado de trabalho de parto e o momento certo de examinar a gestante, assim como pareciam ter preconcepções sobre a forma adequada de a parturiente se portar. Na medida em que Íris se afastava dessa lógica, as profissionais não se mostravam disponíveis para atendê-la em suas particularidades e demandas específicas. Com o desfecho dando-se da forma como se deu: um parto natural e sem intervenções, a mãe torna-se então uma parideira, adequando-se aos modelos da linha da humanização. Se por um lado, a assistência intervencionista ignora as subjetividades a partir do excesso de intervenções que em geral são empregadas de maneira universal e protocolar; no relato apresentado, a parturiente tampouco foi escutada pela equipe obstétrica, nesse caso por uma lógica não intervencionista. Nos diz Iaconelli (2013, p. 73): Os movimentos de humanização do parto, herdeiros da ofensiva das mulheres contra a repressão na parturição promovida por movimentos sociais que se rebelaram contra a ingerência médica, funcionam como pendulares, alcançando o outro extremo, mas revelam-se suspensos pela mesma corda: ambos os movimentos, da humanização e da biotecnologia, operam a supressão da subjetividade, em nome de uma humanização (que seria algo generalizável) e de um saber (sobre o corpo) que ignora o sujeito. O surgimento da doula no cenário de assistência perinatal é fruto desses movimentos e compreendo que a chegada dessa profissional carrega em si uma função social importante. Ao mesmo tempo, há de se cuidar para que os modos de atuação das doulas e dos demais profissionais não incorram em novos protocolos, conforme a citação supracitada de Iaconelli (2013). Para desenvolver essas questões, a seguir investigaremos a função social da doula a partir da análise sobre os aspectos que propiciaram a aparição dessa nova personagem no cenário perinatal, ou seja, os aspectos que a demandaram. Refletir sobre esse surgimento pode nos auxiliar na compreensão sobre o que está em defasagem na assistência na atualidade, o que pode nos ajudar a pensar sobre as atuações dos profissionais perinatais, em suas diferentes especialidades. O SURGIMENTO DA DOULA E SUAS RAÍZES Encontramos o primeiro registro de nomeação da palavra doula no artigo The Midwife as Doula: A Guide to Mothering the Mother [11] escrito pela antropóloga médica americana Dana Raphael (1981). O termo doula, explica a autora, foi emprestado de uma tradição presente no mundo grego antigo que se referia à mulher que ia à casa da puérpera quando um bebê nascia e se ocupava com as outras crianças, cozinhava, trocava o bebê, e ajudava-a com as questões referentes ao pós-parto. A antropóloga remete à escolha desse termo para designar esse tipo de cuidado, o qual ela deseja explorar. Em seu artigo, a autora busca compreender uma problemática (a qual também observei em minha prática clínica) que se relaciona à dificuldade de algumas mulheres em amamentar. Diante desse fenômeno, a autora estuda 278 artigos antropológicos sobre a amamentação em diferentes culturas ao redor do mundo, entrevista centenas de mulheres e encontra um denominador comum nas diferentes experiências: para que ocorra a amamentação e vinculação da mãe com o bebê, é crucial que alguém se preocupe com a mãe. Este alguém, Dana Raphael chamou de doula. No artigo, o uso do termo não se relaciona ao surgimento de uma nova profissão, mas refere-se a uma qualidade de cuidado que a autora julga ser fundamental, à qual nomeou “maternar a mãe” [12]. Para que isso aconteça, propõe um guia direcionado a parteiras e obstetras com orientações de atitudes de cuidado que extravasam atribuições técnicas, como por exemplo a preocupação em ligar e escutar a puérpera e fazer visitas, ou seja, formas de oferecer um suporte contínuo e afetivo após o nascimento. A conclusão da autora em relação às raízes das problemáticas investigadas foi de que fatores como pouca informação sobre amamentação durante a infância, o desaparecimento das famílias estendidas e a distância ou isolamento das famílias contribuem para a dificuldade de vinculação mãe-bebê. Outro problema assinalado foram as rotinas das maternidades, que em seus protocolos e dinâmicas tinham efeitos prejudiciais para a relação da dupla mãe-bebê, com práticas protocolares que ela nomeou como “anti-doula”. A ocupação começa a se formalizar e ganhar força a partir dos estudos de dois irmãos e médicos americanos na década de 1990, Klaus e Kennell (1997). Eles diziam que uma pessoa sem função obstétrica técnica durante o trabalho de parto, além do acompanhante, com atenção voltada ao suporte emocional e físico da parturiente reduzia significativamente tanto o tempo de duração do trabalho de parto como o uso de analgesia, aumentava a incidência de parto vaginal e contribuía para a vinculação mãe-bebê. Os irmãos também a nomeiam como doula e entendem que a sua presença no parto é o redescobrimento de um ingrediente essencial ao cenário da parturição que se encontra em falta no modelo assistencial hospitalar vigente. Esse foi o começo de uma série de estudos a esse respeito, de forma que cada vez mais as doulas têm angariado espaço no cenário da assistência perinatal e na produção científica sobre perinatalidade. Tanto no artigo de Dana Raphael (1981), quanto no trabalho de Klaus e Kennell (1997), o termo é usado para designar um tipo de cuidado oferecido à parturiente/puérpera que se distancia de um fazer técnico e protocolar. Em ambas as propostas, os autores o relacionam ao resgate de algo que se perdeu na contemporaneidade e que precisa ser resgatado. Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista inglês, nessa mesma direção, desenvolve a sua teoria entre as décadas de 1940 e 1970 dando grande ênfase na problematização da entrada dos especialistas na relação mãe-bebê. No texto intitulado “A cura”, fruto de uma palestra ministrada a médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, o autor propõe-se a pensar sobre o cuidar problematizando o excesso de especialização. Inicia a comunicação discorrendo sobre as raízes etimológicas da palavra cura. Brinca Winnicott (1970/1999, p. 105): “[As palavras] como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade”. O autor explica que, em suas raízes, o significado de cura estaria atrelado a cuidado, mas que com o passar dos séculos passou de cuidado para um outro extremo, o de tratamento. Na concepção de tratamento, o que está em jogo é a erradicação da doença, perspectiva que se sobrepôs à de cuidado com o passar dos anos. Essa transformação, segundo o autor, está diretamente associada à tecnicização do saber médico, que cada vez mais torna-se especializado, fenômeno que, para o autor, é inevitável, devido à vastidão do campo. No texto, o pediatra inglês entende a importância de que estes dois elementos estejam presentes na prática clínica: tanto o cuidado-cura, como denominou, quanto o cuidado-tratamento. Refletindo sobre a questão do excesso de tecnicização que vivemos, Winnicott (1970/1999, p. 113) nos diz que o conceito de cuidar-curar, precisa ser recuperado: “Em termos da doença social, o “cuidar-curar” pode ser mais importante para o mundo do que a “cura-tratamento” e do que todo diagnóstico e prevenção que acompanham aquilo que geralmente se denomina abordagem científica.” O autor abre então os seguintes questionamentos à audiência: “O que as pessoas querem de nós, médicos e enfermeiros? O que queremos de nossos colegas, quando somos nós que ficamos imaturos, doentes ou velhos?” (WINNICOTT, 1970/1999, p. 106). Discorre então, sobre os pontos fundamentais para que a atuação se assente no que denominou como cuidado-cura. Winnicott esclarece que os assuntos centrais da sua palestra são a dependência e a confiabilidade, fenômenos que se apresentam sempre que necessitamos do cuidado de alguém, em diferentes momentos de nossas vidas. Entendemos a perinatalidade como um desses momentos. O autor esclarece que o uso da psicanálise para pensar sobre o cuidado-cura não se resume à interpretação do inconsciente reprimido, mas sim a compreensão da transferência como possibilidade de que se estabeleça um contexto profissional para a confiança. Em seu texto As contribuições da psicanálise para a obstetrícia , Winnicott (1957/2020), ao falar sobre a experiência de parto, assinala a importância de os profissionais aceitarem a dependência da gestante em relação a eles, para que a partir daí se estabeleça uma relação de confiança. Segundo o autor, a confiança está ligada à compreensão de que, se houver algum erro, há a possibilidade de perdão. Para isso, os profissionais devem permitir serem conhecidos. Parece-me que no parto de Íris, em algumas situações que demandavam que lidássemos com a sua dependência, a obstetriz esquivou-se. Ainda, as profissionais tiveram pouca abertura para se afetarem com o que a gestante manifestava e para manterem uma relação de horizontalidade e porosidade. Desconfiaram e, em alguns momentos, julgaram o que ela dizia. Winnicott (1970/1999, p. 110) reflete a respeito dos efeitos sobre nós, cuidadores, ao adotarmos um posicionamento ancorado no que denominou como cuidado-cura, em mutualidade e horizontalidade. Nos diz que se trata de estarmos expostos e vulneráveis, recomendando que sejamos honestos e verdadeiros, dizendo que não sabemos quando realmente não soubermos de algo, alertando que “uma pessoa doente não suporta nosso medo da verdade”. No parto narrado, em um dado momento, ao perceber que não poderia ser ofertado à Íris o cuidado de que ela necessitava a partir da posição de doula, a atitude foi ligar para a obstetriz e falar justamente isso. O mais importante era que ela fosse examinada. Isso estava para além dos parâmetros fisiológicos (obviamente, os incluía) mas era importante também pela referência que os dados poderiam fornecer, dada a forma aflita como a parturiente vivia aquela experiência, aquilo estava excessivo para ela. Em nosso entendimento, a equipe deve adaptar-se à parturiente, e não o oposto, esse é um importante aspecto que garante a confiabilidade. Winnicott (1970/1999, p. 109) problematiza a questão das hierarquias no cuidar, nos dizendo que quando estamos face a face com alguém, as hierarquias devem cair. Segundo o autor: “Há um lugar para hierarquias na estrutura social, mas não no confronto clínico”. O autor, entretanto, faz uma ressalva: a de que essa postura (de mutualidade, horizontalidade e dizer que não se sabe quando não se sabe) não deve alienar-se do fato de que há ali um paciente e um cuidador, o que não implica sentido de superioridade, mas sim de reconhecimento da dependência, sendo fundamental nos despirmos de moralismos e não julgarmos os nossos pacientes em condição de vulnerabilidade, uma postura por parte do profissional que deve responder às necessidades de seu paciente a partir da adaptação e da confiabilidade. Para tal, Winnicott diz que é preciso que protejamos os nossos pacientes de imprevistos. Não se trata de adotarmos uma postura onipotente, mas sim de resguardo e proteção para com eles. No acompanhamento de Íris, era primordial a preservação de seu entorno, protegendo-a de possíveis elementos que pudessem desequilibrá-la demasiadamente, de forma a desestabilizá-la. A esse respeito, Winnicott (1970/1999, p. 110) diz: “Atrás da imprevisibilidade está a confusão mental e, atrás dela, pode-se encontrar o caos, em termos do funcionamento somático, isto é, uma ansiedade impensável que é física” – afirmação que é embasada pela teoria do desenvolvimento emocional primitivo (1945/2000). A atuação direcionou-se no sentido de garantir uma mínima estabilidade para Íris, dentro do que fosse possível e de toda a intensidade inerente da experiência de parto e da forma que os acontecimentos transcorriam. Desesperar-se diante de Íris (da forma como ocorria na sala de espera) poderia afetá-la negativamente, ela que se encontrava em situação de vulnerabilidade e dependência. Manter-se firme, como referência de cuidado, era muito importante. Winnicott (1956/2000), trouxe uma grande contribuição à psicanálise ao relacionar o cuidar intrinsecamente ao ambiente do bebê, e não o restringir apenas à mãe, o que é observável no relato nos manejos com o pai e avós do bebê e na constante atenção ao contexto. O olhar esteve permanentemente voltado à compreensão de como Íris e os familiares estavam vivendo aquele momento: é possível se distanciar? Melhor se aproximar? Como apoiar o desenvolvimento do trabalho de parto? Como garantir que estejam seguros e amparados? Questionamentos como esses atravessavam e guiavam as ações, a partir do discernimento do que seria importante para Íris e o ambiente como um todo, tentando assegurar que o entorno da gestante estivesse preservado e buscando qualquer tipo de estabilidade dentro do caos, da maneira que fosse possível. Uma atuação que só é possível a partir de um cuidado que esteja amparado no que Winnicott (1970/1999) denominou como cuidado cuidado- -cura. Como Winnicott, outros autores têm pensado sobre as dimensões fundamentais do cuidado. Alguns chamaram o campo de “ética do cuidado”. Não se trata de propor a psicanálise como linha de atuação, mas sim compreender sobre os aspectos fundamentais do cuidar a partir de uma investigação de base psicanalítica. ÉTICA DO CUIDADO Partindo da mesma problemática que instigou os autores anteriormente trazidos, o campo desenvolve-se diante da problematização do excesso de tecnicização e os seus efeitos clínicos. Figueiredo (2007) reflete sobre a questão lembrando como é comum a experiência de ter um parente ou amigo internado no hospital e a insatisfação com a forma que o cuidado se deu, apesar de todos os aparatos e recursos tecnológicos. Segundo Figueiredo (2013), a exploração sobre uma ética do cuidado aposta no potencial do pensamento psicanalítico para além das formas e enquadres tradicionais, propondo interface com outras disciplinas. O enfoque é a atenção aos elementos essenciais que devem ser preservados nas diferentes práticas a partir do entendimento de que essa reflexão pode fornecer uma plataforma básica para diferentes frentes que envolvem o cuidar. O próprio surgimento da doula como profissão me parece uma tentativa de restabelecimento das bases essenciais do cuidado na assistência perinatal. Safra (2004), desenvolve sua teoria em busca da compreensão dos elementos fundamentais que devem comparecer na clínica psicanalítica contemporânea a partir do contato com os sofrimentos que os seus pacientes vivenciam na atualidade. O autor entende que em alguns momentos históricos a condição humana é aviltada, e, quando isso se dá, vive-se uma fratura ética, afirmando que vivemos em um desses momentos. O autor alerta que as problemáticas apresentadas pelos pacientes na atualidade colocam como foco e urgência uma clínica que restabeleça o ethos, ou seja, que possibilite o acontecer da condição humana a partir da compreensão do que é ontológico no ser humano. Exploremos esses conceitos para compreender do que fala o autor. Comecemos pelo conceito de ethos. Safra (2004) apresenta esta palavra a partir da etimologia da palavra ética que, proveniente do grego, pode ter dois sentidos: o primeiro é o de práxis, costume; o segundo refere-se a morada, pátria. O segundo sentido é o que o autor adota. A partir dessa perspectiva, buscou compreender as condições necessárias para que o ser humano encontre morada no mundo, investigando “os elementos fundamentais que possibilitam, ou não, ao ser humano morar no mundo entre os homens” (SAFRA, 2004, p. 26). Nos diz o Safra (2004, p. 27): “A fragmentação do ethos-morada leva a um tipo de sofrimento que, apesar de alcançar o registro psíquico, não tem sua origem no psíquico. São sofrimentos que acontecem no registro ontológico!”. Para que possamos compreender do que fala o autor, é importante discriminarmos o conceito de ontológico do de ôntico. Safra (2006) faz essa diferenciação na companhia de Heidegger, a partir da diferenciação entre os registros de ser e de ente, respectivamente. O ôntico refere-se aos fatos da existência humana, aos acontecimentos biográficos vividos ao longo da vida, enquanto o ontológico diz respeito às estruturas a priori que definem as possibilidades realizadas em cada existência humana, ou seja, a condição originária. Nos diz Safra (2006, p. 22): O ser humano tem em seu modo de ser a possibilidade de mover-se continuamente em meio aos acontecimentos de sua vida ao longo do tempo (registro ôntico), ao mesmo tempo em que a sua própria condição original lhe revela os fundamentos de si mesmo (registro ontológico). Desse modo o ser humano pode ser visto como um ente ôntico-ontológico. A partir daí, o autor afirma que o profissional deve situar-se em registro ôntico-ontológico. Ou seja, nos situando entre os acontecimentos biográficos e particulares que nos são apresentados, mas sem perder de vista a dimensão humana, que transcende as contingências. No trabalho clínico feito a partir desse viés, nos colocamos frente ao paciente de modo a deixar-nos ensinar pelo que ele apresenta, nos posicionando como humanos. Trata-se de um paradoxo: ao mesmo tempo que estamos diante da singularização, estamos também diante de aspectos fundamentais da existência de todos. O autor entende que o encontro ético é possibilitado na medida em que reconheçamos o universal no singular. A partir desse paradigma, Safra afirma que o único modo de atuação possível que contemple a condição humana é uma perspectiva que acolha a dimensão paradoxal da existência, alertando sobre o perigo das teorias e discursos universais, entendendo-os como uma forma de doutrinação e de violência, promovendo fraturas éticas e aniquilamento do ser. Nos diz: “Onde há o achatamento do dizer singular, do gesto e do idioma pessoal do Outro há um abuso de poder” (SAFRA, 2004, p. 123). A TRANSFERÊNCIA ASSENTADA NA EXPERIÊNCIA, NO CORPO E NA CONFIANÇA Safra (2004) e Guerra (2013), ao pensarem sobre a ética na experiência clínica, a exploram em contato com o que chamam de experiência estética. Tomam esse conceito a partir da etimologia do termo estética: proveniente do grego, aisthesis, que significa percepção. Compreendem a experiência estética como experiências corpo-sensoriais muito primitivas ancoradas em um sistema de comunicação pré-verbal. Safra (2004, p. 50-51) entende o fenômeno como uma resposta sensível do indivíduo ao ambiente: Quando estamos diante de alguém, estamos em presença da maneira como essa pessoa organiza o espaço, o tempo, a relação com o outro. Os sons, os cheiros, enfim, tudo contribui para que possamos “intuir” o jeito do outro, seus sofrimentos, pois todas essas organizações plásticas nos afetam em nosso corpo. No parto narrado, entendemos que a atenção intuitivamente voltava-se para as comunicações, verbais e não verbais, que Íris veiculava, ou seja, as suas experiências estéticas. O termo intuição a partir da concepção de Gilberto Safra (2005) é compreendido como algo que não deve ser tomado como enigmático ou dependente de um estado de graça para ser alcançado. O uso da intuição no encontro clínico se relaciona a uma leitura que é feita a partir da corporeidade de alguém, a qual expressa os símbolos do seu self. Trata-se da veiculação de experiências pré-verbais e muito primitivas que são ancoradas no registro ontológico e não psíquico. Diante das experiências estéticas, devemos nos posicionar a partir de um referencial ontológico e não apenas como um outro subjetivo, mas como alguém representante da humanidade, assentado no que o autor chama de comunidade de destino: Trata-se do fato de que o ser humano é ontologicamente nós! Na clínica, ao acompanharmos um analisando estamos, ao mesmo tempo, ontologicamente, frente a uma família, a gerações, à comunidade, à humanidade! Respondemos, em nosso ofício, como ser singular, mas pertencentes a uma família, a uma comunidade, à humanidade. A fundação da situação transferencial ocorre, em registro ontológico, em comunidade de destino (SAFRA, 2004, p. 68-69). O autor (2005) entende que a partir da experiência estética cria-se uma forma imagética e sensorial que veicula sensações de agrado, encanto, temor, horror etc. Essas imagens, quando utilizadas na presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos ou aspectos de seu self, podendo então existir no mundo humano. Neste paradigma, a clínica é compreendida pelo autor como campo constitutivo, de acontecimento, em detrimento de uma clínica com ênfase na interpretação e no saber sobre. Safra diz que a ética da clínica situada em comunidade de destino demanda alteridade e comunidade. Para Safra (2004, p. 73), estar em comunidade de destino com alguém é estar posicionado, solidariamente, frente às grandes questões existenciais próprias do destino humano: “A instabilidade do outro, a ignorância frente ao futuro, o sofrimento decorrente do viver, a mortalidade, entre outros”. Na clínica perinatal, entendemos que as vivências contundentes que envolvem o nascimento de um bebê são grandes oportunidades e um campo fértil para que se possa dar seguimento ao processo de amadurecimento. Isso desde que haja alguém que oferte essa qualidade de cuidado, em falta na atualidade. São possibilidades que se efetivam desde que quem cuide coloque-se em alteridade e comunidade, possíveis apenas se em estado de vulnerabilidade, e fornecendo contexto para que o campo clínico seja lugar de acontecimento e insurgência do inédito. No dia do parto, as experiências estéticas expressaram-se na materialidade do corpo e suas sensações. Diante da urgência do tempo, da vivência das dores das contrações e seus intervalos e de tantos elementos que nos atravessaram. A atenção a elas possibilitou que os caminhos de cuidado fossem intuídos. Muitos nascimentos aconteceram naquela manhã: o de Antônio, o de Íris- -mãe, o meu como doula: campo constitutivo. Seguiram-se abertos a um devir permeado pelo cuidado que a puérpera recebeu de sua avó e que lhe deu força para se desvencilhar de uma relação que tanto a consumiu e enredou durante a gestação; pela linda trajetória profissional que se desenvolveu nos anos seguintes; pela relação que estabeleceu com Miguel e também pela trajetória de doula que se desenvolveu permeada por muitas questões que acompanharam e inquietaram ao longo dos últimos anos, provocando reflexões sobre a perinatalidade na contemporaneidade, dentre elas algumas expressas neste trabalho. Notas 1. Para que as identidades fossem preservadas, as experiências foram ficcionalizadas de tal forma que os envolvidos não pudessem ser reconhecidos e, concomitantemente, os elementos a serem trabalhados fossem mantidos – como, por exemplo, as experiências emocionais, as questões referentes à assistência obstétrica e situações culturais próprias da contemporaneidade. As vinhetas clínicas apresentadas a partir deste viés enquadram-se na resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. 2. As equipes obstétricas que se dizem “humanizadas” se alinham a um movimento político mundial intitulado Movimento pelo Parto Humanizado que teve seu início por volta da década de 1950 e segue até os dias atuais. Essa corrente vem promovendo mudanças significativas no modelo tecnocrático de assistência obstétrica. 3. O desenvolvimento do parto é marcado por fases: pródromos, fase latente, fase ativa, período expulsivo e saída da placenta. Os pródromos são marcados pelas primeiras contrações (podendo ou não desencadear de fato um trabalho de parto). Na fase latente, as contrações já têm um ritmo e já há certa dilatação do colo do útero. Na fase ativa, as contrações duram mais de um minuto, a dilatação passa dos 5 centímetros, o intervalo entre as contrações é menor e a dor costuma ser mais intensa. No período expulsivo, acontece o nascimento do bebê e em seguida a saída da placenta. Estas fases sofrem variações de pessoa para pessoa, mas alguns elementos são comuns a todos os trabalhos de parto que atingem todas essas fases mencionadas. 4. As obstetrizes compõem a equipe perinatal. Podem ter formação em obstetrícia ou em enfermagem com especialização em obstetrícia. Podem assistir a partos domiciliares e em casas de parto sem que haja a presença de um/uma médico/a. Nos hospitais, devem sempre atuar em conjunto com os/as médicos obstetras. 5. Estas salas possuem uma série de elementos para facilitar o trabalho de parto, como por exemplo regulagem de luz, caixas de som para música, aparatos corporais, banheira. Além desses, há toda a aparelhagem técnica médica. 6 A doula é uma profissional que promove amparo emocional, físico e informacional às famílias que vivem a chegada de um bebê e os fenômenos próprios do ciclo gravídico-puerperal. 7 A Lei 3.367/2022 prevê que a assistência da doula durante o trabalho-parto não impede a presença de um acompanhante, garantido que ambos possam estar nas instituições acompanhando a gestante durante todas as fases de parto e pós-parto. 8 Não é parte da alçada da doula medir os parâmetros fisiológicos das gestantes e dos bebês. 9 A informação, em especial sobre o contexto obstétrico brasileiro e sobre os processos corporais, costuma ajudar. Entretanto, em nosso entendimento, não consideramos que estudar deva ser uma prerrogativa para quem está gestando. E ainda mais, notamos que, em alguns casos, informações em excesso eventualmente podem atrapalhar. 10 A partir da teorização sobre objetos e fenômenos transicionais, transpostos para a clínica através do conceito de espaço potencial, Winnicott (1975) desprendeu-se dos settings tradicionais permitindo que a clínica se ampliasse a outros enquadramentos. A partir desta conceituação, o fundamental é que a experiência clínica se constitua como campo de acontecimento, para além de representações. 11 Em tradução livre, “A parteira como doula: um guia para maternar a mãe”. 12 . “Mothering the mother”. Referências FIGUEIREDO, L. C. A metapsicologia do cuidado. Psyche, São Paulo, v. 11, n. 21, p. 13-30, dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2024. ______. Cuidado e saúde: uma visão integrada. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, Brasília, v. 29, n. 2, p. 11-29, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2024. ______. Cuidado e saúde: uma visão integrada. In: ARAGÃO, R. 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- A escuta do campo analítico: ressonâncias e manejos na análise de crianças [1]
Este artigo foi publicado em 2023 na Revista Brasileira de Psicanálise . Autoras: Camila Young Vieira [2] e Marina F. R. Ribeiro [3]. Resumo: A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve o paciente e seu entorno. Nesse contexto, privilegiar a circularidade da escuta analítica significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais no campo em uma trama complexa que envolve a criança e, de acordo com a situação, os pais, os irmãos e os profissionais da escola e de saúde. O conceito de campo analítico, de Madeleine e Willy Baranger, ganha lugar na psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, fantasias e baluartes, que produzem impasses-transformações na análise. Para mostrar isso, as autoras apresentam um fragmento clínico de uma sessão familiar realizada numa análise de criança, na qual os elementos experienciados no campo conferem uma narrativa que contribui para a análise. Por fim, consideram que o conceito de campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza a clínica da infância. Palavras-chave campo analítico; análise de criança; manejo; fantasia compartilhada. Os ventos e as marés Vento que levanta a onda Que carrega o barco, que ondula o mar É o mesmo que vai dar na praia Que levanta a saia rodada de Oiá ... Às vezes o vento muda Sai batendo a porta, faz tudo voar O vento é o temperamento do ar Sopro, sopra, soprará. MARISA MONTE E JORGE DREXLER, “Vento sardo” A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve não só o paciente, mas também os pais, os irmãos e outros profissionais. Na caminhada desse ofício, vi colegas de profissão deixarem de atender crianças em razão do desconforto causado pelas tensões imanentes ao trabalho. Também presenciei jovens analistas e psicoterapeutas iniciarem com a clínica da infância, como se fosse uma intervenção indicada para o início da prática profissional. Contudo, o que se experimenta é que é uma área que convoca o analista a compreender as condições climáticas todas as manhãs antes de lançar o barco ao mar, adquirindo assim prudência (ou experiência clínica e teórica) para não naufragar. O pescador, com o tempo, reconhece a importância de considerar as forças da natureza, das marés e dos ventos para ora seguir e se embrenhar mar adentro, ora nem lançar o barco ao mar. Ele precisa viver a alegria de uma temporada abundante de peixes e a escassez em tempos de instabilidade. Ao longo da atividade na clínica da infância, compreendi que os ventos (as ressonâncias) devem ganhar lugar na escuta analítica e a partir de suas características – temperatura, pressão e movimento (o campo analítico) – guiar o manejo clínico – compreensões e formas de intervenção. Com isso entendido, há alguns anos, sempre que recebo um paciente-criança, realizo sessões com os pais, sessões com a criança, e sugiro uma sessão familiar, 4 exceto quando percebo contraindicação dessa estratégia, em função das defesas psíquicas do paciente ou dos pais. Essa exposição inicial aos ventos e marés viabiliza elaborar estratégias de rotas de navegação, que de certa maneira auxiliam no percurso do barco no curso do processo analítico. Em outras palavras, entende-se que o analista de criança precisa ter disponibilidade para trabalhar com os pais. Do processo que envolve o paciente, também podem fazer parte irmãos, babás, animais de estimação e outros profissionais, dependendo da singularidade de cada caso e/ou situação. García Reinoso ressalta que, por estarmos diante de um sujeito nas “vicissitudes da constituição subjetiva”, devemos “acompanhar o processo e criar as condições” para que a criança se desenvolva plenamente ( 2002, p. 15 ). Sabemos que a clínica infantil guarda uma especificidade: são pessoas que estão em plena constituição subjetiva e inseridas em uma instituição familiar permeada de crenças, ideologias e afetos. Desse modo, pensar na clínica como dispositivo de cuidado e atenção ao sujeito-criança exige plasticidade no fazer. Ao nosso ver, os pais participam do processo analítico de forma consentida pelo analista ou não. Afinal, são eles que levam e buscam os filhos, aguardam na sala de espera, enviam mensagens e áudios de WhatsApp, realizam os pagamentos, sustentam ou sabotam o processo de análise com toda a intempérie que o constitui. Entende-se a necessidade de reconhecer esse campo transferencial a serviço do processo analítico da criança, e marca-se que a tentativa de ignorar essas forças pode caminhar na contramão da continência e elaboração, gerando falta de sustentação de ambas as partes (pais e analista) e, por vezes, o rompimento do trabalho. Sigal (2001) propõe que os pais circulem no espaço analítico e aponta a importância de intervenções com eles quando houver aprisionamento da criança ao desejo dos pais, que a impeça de ir ao encontro do próprio desejo. Para a autora, na análise de crianças, há um campo transferencial múltiplo, e o pensamento do analista deve considerar essa complexidade. Ressalta que, como os pais constituem, em grande parte, o laço social que promove a mediação de valores, e dada a força do seu inconsciente na constituição psíquica do filho, “acabam sendo uma peça fundamental na condução de uma análise” (p. 153). Para García Reinoso (2002) , o processo analítico dos filhos traz mudanças que interrogam aspectos conscientes e inconscientes dos pais. Nesse sentido, a autora ressalta a necessidade de pensar processos, mitigar e manejar as angústias dos pais, para haver transformação: “O trabalho analítico deverá operar permitindo que a transferência se metonimize, se metaforize, ou seja, que se ‘transfira’ a transferência” (p. 18). A escuta e o trabalho com os elementos inconscientes que circulam o campo podem “permitir uma ressimbolização do lugar que esse filho e esse sintoma ocupam na história dos pais e da criança” ( Sigal, 2002, p. 31 ). Busca-se uma análise que viabilize processos e não funcione de forma fragmentada, na qual as representações e transformações vividas no contexto analítico encontrem acolhimento no contexto familiar. O contrário seria fonte de conflitos e entraves no processo, “a criança acaba se confrontando com novas aquisições, sem poder incorporá-las ou concretizá-las” ( Sigal, 2001, p. 160 ). Nessa proposta, entende-se a alteridade como horizonte, e as mudanças podem causar incômodos nas relações familiares. Com isso, a inserção dos pais no contexto da análise auxilia a sustentação da mudança e impede de verem a “cura como fracasso” (p. 158), visto que o filho se desarticula da ideia de satisfação do desejo dos pais. Na análise da criança, os pais (ou um deles) entram no exato momento em que, devido ao peso que o intersubjetivo tem na formação do sintoma ou na estruturação das neuroses, faz-se necessário que algo também se modifique no inconsciente de um ou de ambos os progenitores, ou algo em sua relação. ( Sigal, 2002, p. 33 ) Privilegiar a circularidade do olhar e da escuta analítica no trabalho com crianças significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais que estão no campo em uma trama complexa, que envolve a criança, os pais, os irmãos, as babás e os profissionais da escola e de saúde. Segundo Ferro e Basile (2013) , os elementos, eventos e linhas de força que emergem no campo sempre são relevantes. Assim, se fazem parte da complexidade do campo, estão na narrativa analítica. Sabemos que, invariavelmente na análise infantil, somos atravessados por elementos da relação com os pais, demandas da escola, a necessidade de um trabalho em rede com outros profissionais. A forma como esses elementos ressoam no campo deve encontrar um espaço continente na mente do analista. O analista de criança deve dispor de manejos clínicos complementares à sessão analista-paciente/criança, a fim de “propiciar ao indivíduo uma possibilidade de ‘fazer sentido’ de sua vida e das vicissitudes de sua experiência ao longo do tempo, do nascimento à morte” ( Figueiredo, 2007, p. 15 ). O conceito de campo analítico ganha lugar na perspectiva da psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, transferências e contratransferências, fantasias e baluartes, 5 que dão origem a impasses-transformações na análise e a uma escuta singular. Dessa maneira, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) propõem investigar a situação analítica que se forma no encontro analítico, na qual emergem novas estruturas, as fantasias compartilhadas; a percepção e a transformação dessas fantasias geram a dinâmica do campo. A fantasia é produzida pelo jogo entre processos projetivos e introjetivos, identificação e contraidentificação, experimentados na relação ( Bernardi, 2009 ). A partir disso, entende-se que o conceito de campo analítico instrumentaliza o analista a olhar (escutar) os diferentes vértices que surgem na clínica da infância, bem como sustenta teoricamente a dinâmica complexa desse ofício. A circularidade do campo analítico Consideramos que o conceito de campo analítico de Madeleine e Willy Baranger pode sustentar com êxito a clínica psicanalítica infantil, por imbricar em seus fundamentos uma proposta que focaliza o campo como dispositivo para compreender os elementos circulantes e para indicar os impasses da análise, que merecem a atenção do analista. Como o trabalho com criança requer um trânsito com outros atores a serviço da análise, a escuta do campo oferece um fio condutor que garante o compromisso do analista. Madeleine e Willy Baranger são franceses. Em 1946, mudam-se para a Argentina, onde fazem a formação em psicanálise em Buenos Aires. Pertencem à segunda geração de analistas da Associação Psicanalítica Argentina (apa). Em 1954, vão para Montevidéu (Uruguai), onde vivem até 1965, e contribuem com a constituição do grupo psicanalítico uruguaio. Em 1966, retornam à Argentina e compõem a equipe da apa, na qual atuam como professores, analistas e pensadores ( Bernardi, 2009 ). Apresentaremos a seguir o conceito de campo analítico e como ele se tornou parte da técnica analítica. De acordo com Churcher (2010) , o texto “La situación analítica como campo dinámico” foi publicado pela primeira vez em espanhol na Revista Uruguaya de Psicoanálisis , em 1961-1962. Em 2008, foi publicado em língua inglesa e, em 2010, traduzido para a língua portuguesa. Entendemos que há uma originalidade no pensamento dos autores, não de forma isolada, mas no efervescente diálogo com a clínica e a história da psicanálise. Podemos dizer que colaboram com uma mudança epistemológica e superam o subjetivismo ao considerar os eventos que acontecem no encontro analítico (sessão ou sequência de sessões) a partir da ideia de situação analítica como campo dinâmico. O casal Baranger, além de realizar um estudo aprofundado da obra de Freud e de Melanie Klein, também teve influência de autores como Paula Heimann, Wilfred Bion, Heinrich Racker, Kurt Lewin, Merleau-Ponty e Pichon-Rivière em seu pensamento. 6 No desenvolvimento e expansão dos processos transferenciais e contratransferenciais, Madeleine e Willy Baranger lançam luz sobre o interjogo da dupla e a comunicação inconsciente que ocorre no campo. Para Favalli (1999) , o conceito de identificação projetiva, introduzido em 1946 por Melanie Klein, amplia a percepção sobre processos mentais e a relação analítica. Contudo, o fenômeno era compreendido a partir da mente do paciente, enquanto os sentimentos despertados no analista podiam ser vistos como demandas para autoanálise. A ampliação do conceito vem com um trabalho de Paula Heimann denominado “Sobre a contratransferência”, publicado em 1950, no qual “a partir daí a mente do analista passa a compor, junto com a do paciente, os objetos da observação analítica” (p. 26). Tamburrino (2013) ressalta que Paula Heimann foi uma das primeiras a reconhecer os afetos despertados no analista como ferramenta técnica na análise. Paralelamente aos estudos de Heimann, Heinrich Racker unifica o binômio transferência-contratransferência e define a função ativa da mente do analista na relação analítica. Avança ao postular que o analista não está livre de seus conflitos inconscientes, e que estes interferem na relação analítica. Refere-se sempre ao movimento em dois sentidos, os conteúdos transferidos e contratransferidos inseridos em um contexto analítico. Com isso, pavimenta o que seria nomeado, mais tarde, de campo analítico ( Favalli, 1999 ). Tamburrino (2013) mostra que as contribuições de Bion também surgiram na década de 1950, enfatizando o funcionamento da mente do analista e frisando o caráter intersubjetivo do processo de análise. Nesse sentido, “a intersubjetividade não é encarada apenas como inevitável, mas impõe-se como única via possível de aproximação com a realidade psíquica” ( Favalli, 1999, p. 31 ). Willy Baranger (1979) destaca o aporte original de Racker ao compreender a transferência-contratransferência como unidade. Aponta que, a partir dessa concepção, Pichon-Rivière 7 expande e elabora o processo analítico em espiral. Para Willy Baranger, o processo em espiral marca e fecunda suas ideias sobre a complexidade da situação analítica, que explicitamos na sequência. Na teoria do campo intersubjetivo e dinâmico, a experiência da análise se concebe como processo em espiral, que se modifica a cada volta. Nesse sentido, a lógica dialética marca essa concepção em seus acontecimentos e nas dimensões temporais. Em diálogo com Pichon-Rivière, Willy Baranger (1979) propõe olhar a situação analítica a partir do aqui e agora comigo, que agrega o como lá e antes, e o como mais adiante e em outra parte. Assim, abarca as repetições experimentadas no presente da sessão, as perspectivas futuras que se abrem no encontro e as distintas voltas em espiral sem começo nem fim predeterminado. Isso permite pensar a variedade e complexidade de fenômenos regressivos e progressivos que se dão no processo analítico, superando qualquer concepção linear a respeito do desenvolvimento de uma análise. Churcher (2010) aponta a influência das obras de Kurt Lewin no trabalho de Pichon-Rivière, que por sua vez inspira as ideias do casal sobre o conceito de campo analítico, constituindo assim uma espiral de influências teóricas. O conceito de campo se origina na física do século 19, com o intuito de pensar a “ação-à-distância” (p. 178), ou seja, como dois corpos físicos separados podem influenciar um ao outro. Dessa maneira, um campo gravitacional, elétrico ou magnético é um continuum de forças distribuídas por todo o espaço. Com isso, o campo físico não é menos tangível que os corpos sólidos. Os efeitos que nele ocorrem são percebidos como realidades do campo. Kurt Lewin, 8 originário da escola gestáltica, ampliou o uso do conceito para a psicologia e a fisiologia ao descrever o campo ou “espaço vital” psicológico e social como um campo de forças, como um todo dinâmico que constitui uma rede de relações entre as partes ( Tellegen, 1984 ). Nessa ebulição criativa, a fenomenologia de Merleau-Ponty também influenciou a construção teórica do casal. Segundo Civitarese (2014) 9 , Merleau-Ponty entende que o sujeito nasce na intersubjetividade. Assim, pensar na constituição psíquica é pensar em intersubjetividade, no espaço intermediário. No avanço de suas ideias, o casal rejeita a noção de analista-espelho e aponta o caminho de viver as experiências arcaicas que ganham sentido na relação presente. Essa vivência analítica permite a integração de processos cindidos que são vividos na relação e possibilita um continente que articula os fenômenos ocorridos na experiência da análise. Civitarese diz também que, na proposta de Merleau-Ponty, nem tudo pode ser levado à consciência pela percepção, porque há um nível de sentido que “pode ser descrito como semiótico, mas ainda não é semântico” (p. 11). No diálogo com as ideias apresentadas, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) entendem que o campo é estruturado funcionalmente pelo contrato/regra fundamental, que resulta em uma configuração bipessoal, que se reorganiza em uma estrutura triangular e se torna pano de fundo para diversas estruturas multipessoais emergirem. O campo estabelecido ganha um sentido próprio, e os elementos que emergem são circulantes e não pertencem exclusivamente a um dos participantes. A situação analítica pode ser descrita como totalidade, na qual a estrutura e a dinâmica resultam da interação de ambos e da situação analítica sobre ambos, em movimento recíproco. Os autores denominam relação psicoterapêutica bipessoal o encontro dessas duas pessoas de carne e osso, que se parcializam em diferentes aspectos, se misturam, se sobrepõem, povoam diversos personagens e formam situações multidimensionais em constante movimento. Nas palavras dos Baranger, “essa estruturação terapêutica bipessoal continua como pano de fundo presente, ainda que não percebido, sobre o qual vão fazendo e se desfazendo as estruturas tri e multipessoais em mudança constante” ( 1961-1962/2010, p. 190 ). Ao entender “o par analítico como um trio” (p. 190), a complexidade, a contradição e o movimento se instauram, seja no sentido progressivo, com o surgimento de personagens que se desdobram num campo multipessoal, seja no sentido regressivo, no qual emergem objetos parciais. Complementarmente, no caminho de pensar o campo e seus processos subjacentes, também ganham destaque as distrações ou devaneios dos analistas, entendidos como elementos que emergem no espaço-tempo da situação analítica. O casal Baranger (1961-1962/2010) discorre sobre a dimensão do campo funcional, que se constitui nos pilares do compromisso básico e da regra fundamental. Há delimitação dos papéis dos integrantes do campo, ou seja, cabe ao analisando associar livremente suas ideias, comunicar, regredir, e ao analista, acolher, analisar, entender, regredir parcialmente e garantir o sigilo. Tais prerrogativas fundam a regra da análise e sustentam o compromisso básico. Em 2002, M. Baranger et al. explicitaram que a funcionalidade do campo requer a assimetria de base e que a estrutura do campo se localiza na regra fundamental – a escuta está sempre comprometida com a verdade do paciente. A perda do pacto analítico traz consequências ao processo. Os autores observam que a oposição entre enquadre e processo deve ser considerada para pensar o campo. A proposta teórico-técnica tem a análise como encontro de duas subjetividades comprometidas com a tarefa de promover a transformação psíquica do paciente. Com o soprar dos ventos da sessão com Jasmine, 10 suas irmãs e seus pais, o aqui e agora da sessão intersubjetiva apresenta a riqueza de elementos que circulam o campo e conferem a fantasia compartilhada da dupla. A partir do fragmento clínico, pretende-se lançar luz sobre os impasses de Jasmine e o porvir de sua análise, e não tecer conclusões que saturem 11 a escuta. Compreendemos a escuta clínica em um devir de acontecimentos e elaborações que abrem vértices de compreensão e de intervenção com a criança e com os pais. A proposta do “fragmento analítico intersubjetivo” refere-se ao impacto estético-afetivo produzido na relação, para assim “pescar algo que expandirá” ( Ribeiro et al., 2022, p. 35 ). Tanis contribui com o tema das narrativas clínicas e afirma que “nenhum texto dá plenamente conta da experiência – isto é da ordem da limitação da linguagem”; entretanto, “é potência viva”, permite associação com o autor e evocações no leitor ( 2015, p. 181 ). Avança-se, assim, para uma dialética entre experiência e teorização. No sopro com Jasmine Ela veio da recepção até a sala de atendimento imbuída de um andar ligeiro, entrou, sentou-se no tatame, olhou-me, abaixou a máscara por alguns instantes, colocou o dedinho em um dos dentes da parte inferior da boca e se pôs a balançá-lo: “Olha, está mole. O permanente está bem aqui atrás, está vendo?”. Foi assim que se abriu a possibilidade de vivermos juntas seus impasses e sua experiência de transição. Agendamos a sessão familiar, momento de vivenciar o campo analítico com todas as suas forças, turbulências e dimensão intersubjetiva. Chego à recepção do consultório, repleta de burburinhos. Estavam à minha espera Jasmine, as irmãs gêmeas (mais novas), o pai e a mãe. Durante a sessão, uma cena me saltou aos olhos, ao ouvido, ao corpo e à mente. Subitamente fui fisgada por uma agitação interna. Parecia que algo queria saltar do meu corpo para fora. Da poltrona em que estava sentada, avistei a mãe de Jasmine sentada no tatame, com uma das filhas acomodada em suas pernas entreabertas, num buraco côncavo, no qual ela se aconchegava. Elas faziam cobrinhas com massinha e se envolviam na tarefa de criação e adivinhação do que era moldado. Ao lado estava o pai, de frente para outra filha e para Jasmine. Entretanto, o olhar do pai estava na irmã, que no momento fazia uma boneca bem criativa de massinha. O pai elogiava sua produção: “Que bacana!”. Avistei Jasmine como uma panela de milho estourando. Mexia-se e remexia-se no tatame, trabalhava a massinha como se estivesse sovando uma massa de pão, e nada saía. Olhava para um lado, para o outro e para sua produção. Eis que surge algo. Os pais não notam sua produção. Então ela desmancha e, mais uma vez, faz outra e outra. Em uma das produções, noto que fez uma pizza, pôs dois olhos e uma boca triste, com uma meia-lua para baixo. Enquanto Jasmine se esforçava para fazer algo, dando forma à massinha, para em seguida transformá-la em massa de pão e sovar, desejei que os pais olhassem para ela. Angustiei-me com a distração dos pais e o envolvimento com as gêmeas. Como sua criação não era reconhecida, a massa amorfa voltava a aparecer em suas mãos. Por um instante, quase fiz uma interpretação no sentido de significar a ausência do olhar dos pais para Jasmine, mas as palavras não saíam de minha boca. Parecia inapropriado, com características de desnudez. Então, resolvi pactuar com o que Jasmine estava vivendo e sentindo. Por alguns segundos, trocamos olhares e eu sorri para ela, na tentativa de lhe dizer “estamos juntas”. No caminho de uma escuta estética e imaginativa ( Figueiredo, 2021 ), associei um útero gostoso e quentinho, que suscita desconforto em nascer para outros processos, para outros momentos, para outras relações. Algumas perguntas atravessaram meus pensamentos: como é fazer parte dessa família (como elemento diferente, que destoa da estética harmoniosa)? Como os pais estão significando as diferenças de lugar e momento de vida das filhas (com destaque à situação de Jasmine, que estava diferente das irmãs)? Outro aspecto que participou dos atravessamentos “deslizando em direção a”, e não “chegando a”, foi a impossibilidade de comunicar aquilo que estava sendo vivido. A imersão no caldo intersubjetivo da vivência da sessão – o campo analítico – permite experienciar alguns ventos e debruçar o olhar, enquanto escuta analítica, em um campo de forças com camadas objetivas e subjetivas, visíveis e invisíveis, dizíveis e indizíveis, reveladas e encobertas. No fio condutor da situação analítica como totalidade, de acordo com Willy Baranger (1979) , temos duas formas de olhar o campo: em primeiro e em segundo grau. O olhar em primeiro grau enfoca o material associativo e conteúdos manifestos; nessa tarefa, surgem sentimentos, devaneios, reações corporais, fantasias e a necessidade de focalizar o campo em seu conjunto. Já o olhar em segundo grau inclui a auto-observação e a situação transferencial; não se trata de um obstáculo ao trabalho do analista, mas um de seus instrumentos essenciais. No caso de Jasmine, as imagens e sensações que emergiram na sessão alcançaram um lugar na mente da analista, um sentido no curso da análise e um espaço de elaboração na análise da criança e nos atendimentos com os pais. O movimento e a paralisação do campo na sessão ganharam uma narrativa: o desejo de ser bebê, a dificuldade de transição, a dificuldade de crescer nessa família dado o aumento desproporcional de exigências, a rivalidade fraterna, e a raiva das irmãs, que resultava em ataques físicos. Para pensar o campo, os Baranger assinalam, então, três estruturas diferentes: a básica (contrato analítico expresso), a expressa verbalmente (conteúdos manifestos) e a inconsciente (conteúdos e fantasias inconscientes). A dinâmica desses processos resulta da história do sujeito e remonta a um ponto de convergência ligado à “essência verdadeira”. Segundo os autores, esse ponto que se destaca e ganha um significado no campo, e para o qual convergem as estruturas, é o ponto de urgência. Esse elemento que sobressai comunica algo significativo, que pode ser uma urgência interpretativa ou uma situação de vida, “o problema inconsciente que deseja ao mesmo tempo esconder e comunicar” ( Baranger & Baranger, 1961-1962/2010, p. 194 ). O alcance do ponto de urgência pela dupla produz expansão de entendimento e modificação inteligível do campo; entretanto, nesse percurso há pontos secundários e preliminares. O ponto de urgência foi designado por Pichon-Rivière como a emergência de algo que invade a cena presente, muitas vezes com raízes no passado. Melanie Klein também utilizou esse termo ao se referir ao ponto de angústia, que seria foco de interpretação e abertura da análise (W. Baranger, 1979 ). No caso clínico apresentado, havia um ponto de angústia: não ser vista, não ser reconhecida em sua produção. Também havia uma tentativa de simbolizar as sensações do corpo na massinha, que em um momento se delineia em um rosto triste, para em seguida ficar amorfa. Havia pais muito envolvidos no cuidado com as filhas e uma impossibilidade de comunicar, como se algo pudesse ser quebrado e a única saída fosse observar. Na circularidade do processo em espiral, pudemos entender que o útero quentinho era um reduto de harmonia, que borrava as diferentes necessidades e as diferenças individuais. Não existia espaço para conflito, para aspectos agressivos, para situações desarmoniosas. Nas sessões subsequentes com os pais, esses elementos ganharam forma, e buscou-se a construção de um espaço continente para o reconhecimento das diferenças, dos lugares, dos conflitos e das dificuldades. Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) mencionam o ponto de urgência como fantasia básica da sessão (ou de um grupo de sessões). Aqui se destaca um aspecto de cesura das compreensões anteriores sobre fantasia inconsciente, porque não se trata do “entendimento da fantasia do analisando pelo analista, mas algo que se constrói em uma relação do par” (p. 196), exige do analista um contato profundo com o outro. Podemos entender essa estrutura “como algo que se cria entre ambos, dentro da unidade que constituem no momento da sessão, algo radicalmente diverso do que cada um deles é separadamente” (p. 196), uma fantasia inconsciente compartilhada que os autores nomearam de fantasia bipessoal . Na situação analítica, a fantasia bipessoal se estrutura a partir da porosidade do campo e da cristalização de papéis atuados inconscientemente. Tais fatores podem impedir as manifestações necessárias e a analisabilidade do campo. Os fenômenos das identificações, identificações projetivas e contraidentificações têm peculiaridades. Assim, a análise deve permitir o livre jogo para que se estruture a fantasia no campo. Entretanto, a posição do analista deve ser centrífuga ao entrar e sair do jogo, a fim de garantir sua função analítica. Nesse percurso, o casal Baranger agrega o conceito de baluarte, que se refere às defesas, “é o refúgio inconsciente de fantasias poderosas de onipotência” (p. 203), geradoras de cargas afetivas intensas e, muitas vezes, impensáveis. Na análise, essas estruturas precisam ser transpostas no intuito de abrir novas formas em um processo em espiral. Assim, a mobilização e o estancamento do campo favorecem ou não a integração e/ou a cisão de aspectos do paciente. Tecnicamente, cabe ao analista criar caminhos de rompimento do processo defensivo, a fim de reintegrar aspectos cindidos do eu do paciente e, consequentemente, irrigar o campo. No contexto deste estudo, sabe-se que as fragilidades dos filhos ou suas potencialidades e mudanças podem representar ameaças aos aspectos narcísicos e/ou onipotentes dos pais. No decurso do processo analítico de Jasmine, abriu-se a possibilidade de pensar os impasses que sobressaíram nessa sessão e, com os pais, buscou-se cultivar formas para pensar o que acontece diante de situações conflitivas, não harmoniosas, a fim de contribuir para um processo continente às mudanças. Segundo M. Baranger et al., a “olhada em direção ao campo” do analista ( 2002, p. 124 ), enquanto segunda olhada, é acompanhada de momentos de bloqueio, momentos de mobilização afetiva, ampla vivência e emoções que sinalizam que o processo está em curso. Entendemos que a exposição do analista a esse campo de forças amplia a compreensão e contribui para uma narrativa cognoscível do processo analítico, cujo propósito é fomentar integração e invenção. Nesse sentido, consideramos que o cuidado com os pais na análise infantil é condição para a mobilização de novos arranjos na análise dos filhos. O vento que carrega o barco Nos ventos da psicanálise contemporânea, pretende-se pensar o sujeito-criança intersubjetivamente construído em uma prática clínica maleável, que tem o campo como fio condutor. Nas palavras de Coelho Júnior, seria pensar a clínica psicanalítica pelo vértice “da compreensão e o manejo do campo transferencial-contratransferencial a partir de uma metapsicologia em que o intersubjetivo possa encontrar seu lugar no intrapsíquico” ( 2012, p. 15 ). Nessa proposta, o intersubjetivo ganha lugar nos acontecimentos que emergem da dupla analista-paciente e nos acontecimentos que emergem no encontro com o entorno da criança. Nessa confluência de ventos que direcionam o barco, olha-se para a clínica psicanalítica da infância em sua complexidade de elementos, que não envolvem apenas a criança. A capacidade de “pensar juntos” nas trocas e devaneios da sessão e do entorno da criança confere narrativas para as fantasias compartilhadas, que indicam caminhos de calibragem da participação dos pais e outros membros da família, quando e como entram na análise da criança e os rumos para pensar, elaborar e manejar o diálogo com outros profissionais. Aposta-se no processo em espiral e na situação analítica enquanto totalidade como indicadores de mobilidade e estancamento do campo, ou seja, da fluência ou obstrução do processo analítico. Convergem na situação analítica o aqui e agora comigo (presente da sessão), o como lá e antes (repetições, história do paciente) e o como adiante e em outra parte (porvir, áreas em criação). Essa dialética temporal é atravessada pelo olhar em segundo grau do analista, que abarca a situação transferencial e a auto-observação, e lança luz na fantasia compartilhada da dupla, com seus baluartes e capacidade transformativa. Na clínica da infância, a configuração dessa fantasia pode incluir aspectos do entorno da criança, e a perspectiva teórica do campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza o analista a compreender as ressonâncias para manejar tecnicamente os impasses e recuperar o movimento analítico. O modelo de campo analítico permite uma concepção na qual os acontecimentos do campo, os personagens do discurso, as figuras despertadas configuram a dinâmica da análise. São múltiplos pontos de vista, justamente para compor os diferentes elementos da trama complexa que se forma no campo. Segundo Civitarese (2014) , são “interpretações” ao mesmo tempo conceituais e sensoriais, conscientes e inconscientes de si, do outro, de si-com-o-outro, e, inversamente, do eu visto pelo outro e pelo campo intersubjetivo. Dessa maneira, a externalização das fantasias confere uma narrativa e uma forma cognoscível de suportar, compreender, acomodar e/ou assimilar a realidade. Portanto, no atendimento de crianças, expandir os vértices faz parte do trabalho. No avanço das ideias de M. Baranger et al. (2002) , considera-se o processo analítico vivo e dinâmico, e o enfoque técnico na experiência concreta do campo vai na contramão de concepções passivas e desenvolvimentistas, que seguem uma certa estrutura em etapas progressivas. Na clínica psicanalítica da infância, a mobilidade do barco implica garantir que os ventos soprem, que os olhares se ampliem e que os manejos estejam a serviço do movimento e da expansão. Notas 1 Este texto deriva de tese de doutorado desenvolvida no Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic), sob a orientação de Marina F. R. Ribeiro. 2 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP). 3 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP). 4 Vale destacar que esse percurso inicial é acordado (contrato) de forma clara e consentida com os pais e com a criança. 5 Os baluartes são defesas que emergem na situação analítica e são vivenciadas na experiência da dupla. Trata-se de uma estrutura que entorpece ou paralisa o campo (M. Baranger et al., 2002 ). 6 Faremos uma breve menção a essas ideias, pois uma apresentação mais detalhada delas fugiria ao escopo deste artigo. 7 Pichon-Rivière era membro pioneiro da apa e por vários anos ministrou seminários, por meio dos quais o casal Baranger mantinha estreito contato com suas ideias. 8 “Kurt Lewin (1890-1947) nasceu na Alemanha e permaneceu em Berlim durante boa parte de sua vida acadêmica. No ano de 1932 Lewin foi para os Estados Unidos” ( Moraes, 2007, p. 315 ). 9 Cabe ressaltar que Antonino Ferro, em A técnica na psicanálise infantil (1995) , foi o psicanalista que divulgou internacionalmente o conceito de campo analítico dos Baranger, vinculando este ao pensamento de Bion. Nesse período, o texto dos Baranger ainda não tinha sido traduzido para o inglês. Civitarese e Ferro escrevem alguns textos em conjunto e partilham de ideias próximas, principalmente no que se refere à compreensão do campo analítico. 10 Foram garantidos os cuidados éticos na apresentação do fragmento clínico, visto que se trata de uma “ficção narrativa” que contém diversos elementos e personagens da experiência clínica das autoras ( Tanis, 2015 ). 11 No sentido de fixar uma compreensão preexistente e não abrir para os acontecimentos do campo, no aqui e agora da sessão. Referências Baranger, W. (1979). Proceso en espiral y campo dinámico. 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- Eros no encontro analítico: a sedução suficientemente boa [1]
Este artigo foi publicado em 2023 no Cadernos de Psicanálise (CPRJ). Autoras: Fatima Flórido Cesar de Alencastro Graça e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro. Resumo: A partir do relato de um atendimento analítico online, o texto apresenta uma reflexão sobre a função vitalizadora do analista, destacando o que denominamos “sedução suficientemente boa” à semelhança da “mãe suficientemente boa” de Winnicott: a sedução fazendo parte do encontro analítico, devendo manter-se operando a partir de uma posição ética. Propomos que a sedução se equipare à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando; desenvolvendo tais ideias a partir de Luís Claudio Figueiredo e Dianne Elise. Pensamos a sedução como estratégia terapêutica de vitalização – estando esta ligada a Eros em seu sentido amplo. Fizemos uso das contribuições de Dianne Elise quando esta associa a díade mãe-bebê à dupla analítica, propondo a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. Destacamos ainda que, na modalidade de um atendimento remoto, o caso apresentado teve salvaguardado o vigor do encontro. Palavras-chave: Atendimento online. Sedução suficientemente boa. Erotização. Função vitalizadora do analista. Pérolas Aos Poucos [2] eu jogo pérolas aos poucos ao mar Eu quero ver as ondas se quebrar Eu jogo pérolas pro céu Pra quem pra você pra ninguém Que vão cair na lama de onde vêm (...) José Miguel Wisnik A pesca: o relato de uma experiência clínica online Nomeio-o Ahab, este senhor que me procurou. De onde vem esse nome quando emerge de minha reverie [3]? Será ele um caçador implacável, obstinado em alcançar com seu arpão raivoso sua Moby Dick? Ou serei eu a pescadora? Eu, na insistência de alcançá-lo, enquanto ele se debate – cachalote ardente – nós ardentes? Quero que fique e me empenho nesta árdua pescaria em que a cada dia embarco, assim que o sol ilumina o mar das emoções turvas ou negadas. Este senhor me procura para falar de seu filho de mais de 40 anos (Ahab tem 80), que está “bebendo demais e, possivelmente, usando drogas”. Convido-o a um encontro (virtual) comigo e assim começamos nossa pescaria. Não sei bem quem é o pescador ou quem é o poderoso mamífero. O não saber me protege e prossigo. Ahab, senhor ativo, me conta histórias desse filho-menino que chega embriagado na casa paterna, onde ainda mora. Pula de trabalho em trabalho, mal se estabeleceu na vida adulta. Ahab quer ajudar o filho, mas não sabe como e me pergunta: como? Eu também não sei, mas pressinto que uma indagação profunda emerge desses mares ocultos: como é ser pai? Jogo pérolas aos poucos, pesco pérolas aos poucos quando intuo que seu filho-menino pode ser enigma e espelho. Ahab também gosta de bares e já fora alcoolista, também usara drogas e se perdera na vida profissional. A esposa morrera devido a um aneurisma quando os filhos eram adolescentes. Tinham uma relação estéril. Ficara só desde então e me oferta pérola ferida quando percebo sua solidão, seu distanciamento dos filhos, seu modo desastrado: não é somente ser pai que Ahab não sabe, também não sabe viver ou o que fazer com as emoções. Desde nosso primeiro encontro, vislumbro uma sensibilidade que se oculta e não se endereça a ninguém, estrangulada sob a aparência de secura e aridez. Sugiro que continuemos a conversar: “talvez a partir de nossas palavras você consiga se aproximar de seu filho”. Homem de poucas palavras, sente um incômodo ao ter que falar comigo. Reconheço a dificuldade, mas uma ligação se estabelecera: é certo que ele se debate, mas eu pressinto um longínquo e antigo pedido de ajuda. Eros comparece, embora sob a forma de frouxos nós que preciso/precisamos tecer novamente a cada encontro. E assim começou nossa dança-coreografia: não terá sido também uma louca coreografia a que envolvera Ahab e Moby Dick? A violência amorosa também vivencio com meu Ahab. Mas vamos aos poucos: aqui tudo é delicado. O nosso enlace – o contrato possível – a cada novo encontro se apresenta através de meu convite entre tímido e vigoroso: “vamos continuar a conversar semana que vem?” Poderia também nomeá-lo Shahriar, o sultão de Mil e uma noites, enquanto eu sigo como Sheherazade, pois, tal qual a filha do grão-vizir, renovo a cada encontro nosso enlace-contrato. Conto nova história para que permaneça o vínculo, para que eu não morra enquanto analista, para que seu interesse por seu próprio mundo de emoções, aparentemente nunca dantes compartilhado, permaneça vivo. Na verdade, como diz Gerber: “analista e analisando, somos ambos êmulos de Sheherazade, contando infindáveis histórias um ao outro” (2013, p. 13). Ele também me conta histórias, e não apenas com palavras, mas na forma como se expressa. Seu rosto fala: seu olhar evita o meu, subitamente interrompe o cenário interno ao levantar o olhar na direção do teto, e ri uma risada vitalizada. Nesses momentos, uma vivacidade cativante faz sua aparição – também fui pescada desde o início. Com um flash de alegria autêntica, me convida a entrar em sua vida, nos lugares em que algo saudável se preserva. Eu o convido a se espreitar para fora dos recônditos cantos de sua alma conturbada e a pertencer à comunidade humana. Para isso é preciso, se necessário, atravessar desertos, e assim a vitalidade terá chance de emergir na dupla analítica. Apresenta-se como homem de devaneios e, embora sem saber falar de sentimentos, diz a mim deles. Fala de um amor antigo que o visita em recordações. Lamenta que não tem assunto, apenas “escuta sem maior interesse e não sabe dizer não”. Digo que tanto sim, despossuído de seu próprio desejo, é perigoso: me lembra um vulcão amarrado pelo bico – antiga imagem que me ocorre: novamente a reverie vem ao meu auxílio. Diz então que vai mesmo a outros extremos. Saindo de uma festa alcoolizado fora perseguido pela polícia, mas, não parando, atiraram dez vezes no seu carro. Vai para a delegacia e, ao sair, põe fogo num dos carros da polícia. Logo absolvido, o promotor acha graça, ele ri ao contar sua história incendiária e eu nesse momento encontro Ahab ou Moby Dick: não apenas terna sensibilidade, eis a violência – a turbulência mascarada. Posso também ser alvo de balas perdidas ou de ímpetos incendiários. Na sessão seguinte é o cachalote furioso que comparece à sessão. Não quer continuar as sessões, não vê progresso na relação com o filho. Como já ocorrera antes, eu o convenço a continuar. É sempre assim, enfatiza: faz o que os outros querem. Um embate tenaz se estabelece: falo que sinto que ele gosta. Ele diz do mal-estar que atravessa durante a semana até nosso encontro. Mostra-se irritado, mostra arpões: viera pelo filho, não por ele. Ficamos um tempo nesta coreografia de desencontros. Penso que não há mais atalhos para alcançá-lo e tenho vontade de desistir, mas persisto, ligada por algo que intuíra nele desde o início. Falo de sua sensibilidade. Ele diz que sabe dela, mas não gosta. Digo que a fragilidade é vizinha da sensibilidade. Será esse o temor? Conto uma história: quando jovem, quase adolescente, era muito tímida, temerosa de contato. Tinha uma creche na casa do meu avô, que era ligada à casa de minha mãe. Todo ano fazíamos um forró e, da casa materna, já ouvia os barulhos da música, hesitante entre o desejo e a contenção. Mas quando chegava na festa, já gostava e dançava sem medo, entusiasmada ao som da sanfona. Meu cachalote amansa ou Ahab, ou Shahriar. Retorna Sheherazade: me conta histórias de escritos e de pinturas. Quero ver o que cria. Lá pelas tantas, recordando os tempos da faculdade, fala do horror que fora a ditadura. Militou? Pergunto. Mas tem amigos que foram presos e torturados. Sua compaixão aparece: como podem negar que houve ditadura? Vou sentindo seu retorno à sala de análise (online), e agora vem com seu próprio nome. Vai continuar, vamos marcar um próximo encontro. Estou cansada, lutamos tanto, me dera trabalho, eu a ele também. O que é vivo dá trabalho! A apresentação dos encontros com meu paciente, com suas idas e vindas, tem como objetivo destacar meu movimento primordial em sua direção e relacioná-lo à vitalização necessária a alguém que, tendo a experiência de uma vida secreta, precisava ser convocado para o partilhar dos sentimentos e para o mundo humano. A imagem que surge da reverie não foi aleatória. Em As mil e uma noites, Sheherazade “seduzia” o sultão com suas histórias, mantendo-o ligado à vida e a ela. A sedução, aqui, tem sentido de ligação: Eros se sobrepõe aos impulsos assassinos que ocultavam a dor pela traição da primeira esposa. Também meu paciente tinha sua dor e precisava de mim, enquanto objeto externo, para que Eros circulasse no vínculo. Como objeto “sedutor”, meu primeiro movimento fora desviar Ahab de sua demanda inicial – ajudar o filho – para que pudesse caminhar em sua própria direção e olhar a si mesmo. Por meio de meu investimento, me ofereço na esperança de que seus próprios recursos de vida e sua capacidade de se ligar possam emergir em nossa relação. Quando falo que ele gosta do encontro, ele nega, mas insisto, acreditando que o prazer circula, contribui para o fortalecimento da ligação e enfraquece o temor despertado pela proximidade afetiva. Como podemos pensar a sedução e a função vitalizadora da analista que acontece nesse atendimento online? Reflexões sobre sedução e a função vitalizadora do analista A palavra sedução provém do latim seductio, que significa “afastar (uma pessoa da lealdade)”. O prefixo se – denota afastamento, e ducere, “guiar, portar, levar” [4] . Os riscos da sedução já estão revelados na etimologia do termo: ação que pode afastar ou levar ao encontro, e é nesse estreito e acidentado caminho que vamos discorrer. Comecemos com a conhecida passagem de Freud sobre a sedução materna, tirada do Esboço de psicanálise (1938), e cujos desdobramentos acompanhamos até hoje, em diversos autores: ...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores − para ambos os sexos (FREUD, 1938/1980, p. 217). A mãe é a primeira sedutora: é quem libidiniza o bebê e marca no corpo do filho ou da filha uma geografia de prazer/desprazer (RIBEIRO, 2011), convidando o seu bebê à vida. Propomos que a sedução se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando. Iremos desenvolver essa ideia a partir de autores da psicanálise contemporânea, principalmente Luis Cláudio Figueiredo e Dianne Elise. É preciso ressaltar que a sedução, tema polêmico para a psicanálise, vem sendo resgatada. É fundamental considerar seus riscos e fazer com que ela opere a partir de uma posição ética, ou seja, não atrelada ao narcisismo do analista, mas sim às necessidades do paciente. Optamos por nomeá-la “sedução suficientemente boa [5]” à semelhança da ”mãe suficientemente boa” de Winnicott (1951, p. 28). Por fazer parte do encontro analítico, a sedução precisa ser suficientemente boa, isto é, apresentar-se numa “temperatura” ótima: nem distante ou fria, de modo a impossibilitar o contato, nem excessiva, determinando uma sobre-excitação quente demais. É esta medida ótima que a expressão “suficientemente boa” denota. Os extremos conduzem a vazios ou abismos tórridos; precisamos buscar um equilíbrio entre ser distante ou débil demais no contato, e ser intenso demais, portanto, intrusivos. Dean-Gomes faz uso da expressão “sedução ética” (2019, p. 436) para indicar a sedução que é um chamado para a vida. Ele destaca que, se a pulsão de morte não possui objeto e a pulsão de vida precisa de um objeto interessado e disponível, o objeto é sedutor e desvia o infante das forças mortíferas, conduzindo de modo primordial o psiquismo para que este opere a partir de Eros e do princípio do prazer. Sim, há riscos, e precisamos estar atentos para o uso da sedução de modo ético, como sugere Dean-Gomes, especialmente naqueles casos em que a vitalidade se faz fundamental e deve ser conferida ou restituída ao paciente. Ante os temores e inibições do paciente, a analista o encoraja, empresta sua vitalidade, usando sua voz, ora mansa, ora com vigor, os gestos que atravessam a virtualidade, com os quais a analista pretende despertá-lo para sua própria vitalidade. Contribuições de Luís Claudio Figueiredo É necessário levar adiante uma reflexão metapsicológica sobre a sedução, vinculando-a à vitalização. Para isso, iniciamos apresentando o artigo de Luís Claudio Figueiredo, Figuras da sedução em análise: a vitalização necessária (2019), cujo objetivo é a reavaliação da sedução em seus vários aspectos, com base em diferentes pensadores da psicanálise. A sedução é abordada por Figueiredo (2019) em sua particular importância na constituição do psiquismo e, também, na etiologia dos adoecimentos e no atendimento a pacientes apassivados – ou seja, os pacientes da matriz ferencziana (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018). Não podemos, alerta Figueiredo, desconsiderar os efeitos antianalíticos e antissimbolizantes da sedução e da excitação. Sendo assim, no decorrer deste artigo, nosso objetivo é tanto o reconhecimento das estratégias vitalizantes, quanto a atenção ao seu contraponto: o da vitalização e sedução arriscadas, portanto, antianalíticas. Figueiredo (2019) diz que até hoje a sedução é um tema polêmico, entretanto, embora os riscos e possíveis violações do setting não devam ser ignorados, passou-se a destacar a dimensão erótica e sedutora do encontro analítico como um aspecto fundamental dos tratamentos. Tal dimensão é o eixo fundamental deste artigo e, para ressaltá-la, começamos com o caso de Ahab, no qual estão presentes os aspectos da vitalização, de Eros e da sedução. Com o texto de Figueiredo, abordaremos uma prática analítica que reconhece a sedução em sua feição benigna (2019, p. 54), ao mesmo tempo em que se mantém atenta quanto aos riscos e desvios de uma imprescindível posição ética. A teoria da sedução generalizada, de Laplanche, resgata a importância constitutiva da sedução. Seguindo o pensamento deste autor, Figueiredo destaca que a constituição psíquica depende invariavelmente da sedução de um psiquismo infantil pela ação sedutora inconsciente do adulto, a qual se dá, por sua vez, nos cuidados proporcionados ao infante. Trata-se de um trauma constitutivo fundamental: “assim como o bebê precisa de cuidados, precisa também, para iniciar sua marcha psíquica, de uma sedução adulta” (FIGUEIREDO, 2019, p. 52). Eis o resgate da sedução e o reconhecimento de uma dimensão traumática constituinte, e não desestruturadora. De qualquer modo, a reabilitação da sedução por alguns poucos analistas não alterou o caráter majoritariamente negativo que a maioria lhe atribui. Figueiredo propõe a reconstituição dessa questão e, para tanto, inicia com Ferenczi. Ferenczi pressupõe uma condição de passividade original do infante que convoca o adulto a um investimento narcísico e erótico (erótico, aqui, entendido em seu sentido amplo que remete às forças de ligação). Somos conduzidos a pensar em “sedução” distante da conotação negativa do conceito, embora o próprio Ferenczi não use esse termo. Importante ressaltar a concepção de Ferenczi de que, no início da vida, a pulsão de morte é muito mais operante que a de vida. Daí decorre a necessidade de impulsões de vida, como a atenção dedicada do adulto que convida o infante à vida de modo genuíno e autêntico. Diferentemente de Laplanche, que supunha que “a pulsionalidade fosse inoculada no bebê pela sexualidade adulta recalcada, inconsciente” (FIGUEIREDO, 2019, p. 53), ressaltamos a função fundamental do objeto para resgatar o infante da regressão à passividade absoluta, da morte ou de estados de cisão. Por outro lado, a condição de passividade primordial é necessária à sobrevivência do bebê: uma condição de receptividade aos cuidados vitalizadores do adulto, o outro-adulto como fonte de vida. Antes de abordar a sedução e a estratégia vitalizante a ela relacionada, Figueiredo discorre sobre os adoecimentos por passivação a partir do pensamento ferencziano. Estes pacientes necessitam ainda mais dessa estratégia terapêutica de vitalização. É importante acompanhar o pensamento do autor para que resguardemos uma posição ética contundente, já que apresentamos como proposição que tal estratégia terapêutica de vitalização se estenda a pacientes menos adoecidos. É o caso de Ahab, que apresenta um retraimento não severo, mas, por outro lado, se encontra aprisionado por uma dificuldade de estabelecer contato: onde, quando, com quem aconteceu um encontro? A analista se disponibiliza como um outro que o convida para andanças vivas e compartilhadas, para além de suas solitárias perambulações. Voltando a Figueiredo (2019), assim como ocorre a vitalização através do ambiente que investe narcisicamente o infante, o contrário também pode acontecer, a passivação, pela ausência radical de cuidados ou por excessos e abusos: “Em ambas as vertentes, a passivação é mortífera: mata ou deixa partes mortas ou cindidas por onde passa. Em especial, mata o potencial de atividade espontânea preservado na condição passiva associada às pulsões de vida” (FIGUEIREDO, 2019, p. 54) Figueiredo destaca que Balint, Winnicott e Kohut seguiram o caminho aberto por Ferenczi no que diz respeito tanto aos adoecimentos por passivação, quanto à passividade original. Mesmo que já se comporte um potencial para alguma atividade desde o nascimento, é condição de vida, como já vimos falando, um “ambiente facilitador” (que sustenta e cuida), como expressa Winnicott (apud FIGUEIREDO, 2019, p. 38) Aqui, retomamos o ponto fundamental deste artigo: um ambiente de cuidado é também um ambiente com qualidades de uma sedução na medida certa, que convida à vida e ao vínculo. Nestes autores encontram-se traços em comum da estratégia terapêutica junto aos pacientes adoecidos por passivação: a estratégia vitalizante, que Figueiredo chama de sedução “benigna”, e será tão relevante ao tratamento destes sujeitos: Reconquistar a confiança de indivíduos profundamente desconfiados com o ambiente e desalentados com a vida, reacender a esperança de pacientes profundamente desesperançados, convidar a brincar, a jogar e a fantasiar, reconhecer necessidades rudimentares de se sentir vivo e com valor, tudo isso, de uma forma ou de outra, pertence ao campo da clínica pós-ferencziana (2019, p. 54). A estratégia vitalizante: a erotização Figueiredo destaca que, apesar de fazerem uso terapêutico da sedução – “sedução para a vida” (2019, p. 55) –, estes autores não falam dela. Daí advêm consequências problemáticas: primeiro, a sedução fica reduzida à sua conotação negativa; mas, adverte o autor, como já vimos em Laplanche, sem sedução não há constituição do psiquismo, nem vida. Em segundo lugar, algo que nos é particularmente relevante: o não reconhecimento da dimensão da sexualidade em sua acepção ampla. Sedução se liga à libido, sexualidade e principalmente a Eros, este referido “não apenas a excitação, descarga e prazer, mas também aos processos de ligação intrapsíquica e intersubjetiva sem as quais a vida não se instala e expande” (FIGUEIREDO, 2019, p. 55, grifo do autor). Não se trata apenas de uma estratégia terapêutica na direção da “ex-citação”, um “chamar para fora”, como explica Figueiredo (2019, p. 55), mas também no sentido de facilitar ligações. Estamos nos referindo a um trabalho de vitalização que não é a tentativa de animar pacientes deprimidos: o prazer compartilhado deve estar a serviço da simbolização e da transformação das experiências emocionais. Por fim, um terceiro problema: na ocultação da dimensão erótica e no não reconhecimento da sexualidade em sua dimensão ampla, corremos o risco de não atentarmos para os perigos da erotização, mesmo quando esta é necessária. A erotização tanto pode produzir ligações, como, também, adoecimentos: O excesso de erotização ou sua inadequação às capacidades egoicas e de simbolização do sujeito é certamente algo prematuro, invasivo e traumatizante no velho sentido do termo. (...) ou seja, a vitalização inclui o risco de um excesso que contraria e obstrui a marcha do psiquismo no rumo de sua expansão e integração (FIGUEIREDO, 2019, p. 55). Segundo o autor, a dimensão da sexualidade na sedução – em outras palavras, –a erotização e vitalização, podem conduzir a um excesso patogênico e contrário à expansão do psiquismo, nosso objetivo terapêutico principal. Todas essas advertências direcionam a pensar nos riscos no atendimento de Ahab: como construir um campo de erotização que não perca seu caráter terapêutico ao “derrapar” em excessos e desvios? Quando a excitação ultrapassa a ligação? Qual a medida? Mesmo considerando seus riscos, Figueiredo (2019) trata das estratégias de “sedução para a vida” como necessárias em todos os casos de adoecimento por passivação. No presente artigo, em particular no caso de Ahab, propomos a ampliação do uso da vitalização, em menor ou maior grau, presente em todo processo analítico, assim pensamos. Uma proposta que precisa ser conduzida com o máximo rigor ético, pois pressupõe o uso da sedução e da erotização no resgate de áreas mortas e desvitalizadas, invariavelmente presentes, mesmo em casos não tão graves. Aqui o cuidado com extravios se faz ainda mais necessário, pois os riscos podem ser maiores, e o compromisso ético do analista é imprescindível. Figueiredo (2019) refere-se à clínica de Anne Alvarez, que atende crianças gravemente adoecidas e faz uso do que denominou de reclaiming em seu primeiro livro, Companhia viva (1992). Alvarez sugere tal estratégia terapêutica como correspondente a uma modalidade de sedução. Referindo-se a seu paciente Robbie, o qual apresentava um retraimento severo, ela diz: Pareceu-me que, em seu estado mais doente, mais retraído, ele emergiu e veio para onde eu consegui chegar, quando fiz um movimento fundamental para alcançá-lo onde quer que ele estivesse em seu estado perdido de estupor. À época, escolhi a palavra ”reclamação” para descrever a situação. Uma terra improdutiva não pede para ser recuperada, mas sua potencialidade oculta para germinar pode florescer quando é reclamada (1992, p. 101). Em seu segundo livro, The thinking heart (2012), Alvarez dá sequência à noção de reclaiming, a partir da “vitalização intensificada” (FIGUEIREDO, 2019, p. 58), estratégia terapêutica descrita de forma teórica e com exemplos clínicos. Alvarez (2012), entretanto, não faz apenas o elogio da sedução, mas também, aborda outras manifestações que surgem da excitação provocada: jogos perversos e brincadeiras viciadas e frenéticas, ou seja, manifestações de crueldade, envolvendo a analista (Alvarez) em cenas de violência sexual ou abusiva, que surgem a partir do que Figueiredo denomina “sobre-excitação” (2019, p. 58). Da instalação de vida (a vitalização intensificada), o que surgia eram soluções mortíferas, ou seja, a proximidade entre sexualidade e pulsão de morte. Alvarez, atenta ao que acontecia, afirma: “Desencorajar as excitações perversas precisa ser acompanhado da afirmativa confiável de que há outras maneiras de se sentir vivo. Caso contrário, o paciente pensa que só há duas alternativas: o excesso de excitação ou o abismo” (2012, p. 158). Figueiredo (2019) ressalta a não recusa da sedução por Alvarez, ou seja, isso seria uma forma de reclaiming, mesmo considerando os riscos de extravios capazes de obstruir os processos de simbolização. Sumarizando, a vitalização intensificada comporta sempre uma dimensão erótica e seus inevitáveis riscos. É uma clínica arriscada, que apenas conseguirá encaminhar o tratamento na direção de modos saudáveis de vitalizar a partir de uma posição analítica que salvaguarde o que denominamos, a partir de Dean-Gomes, uma “sedução ética”. Estamos propondo também a denominação de uma “sedução suficientemente boa”, ou seja, que não se extravie, nem por falta nem por excessos de investimentos vitalizantes. Indo além da sedução como estratégia terapêutica, acreditamos, como sugere Roussillon (2019), que a sedução está presente no encontro analítico, na medida em que, ao não se escapar da questão da transferência, tampouco se escapa dos seus efeitos, especialmente da “sedução”. Acompanhemos suas palavras: Os efeitos da “sedução” dependem, de fato, apenas em parte daquilo que o clínico faz ou diz, pois são inerentes ao próprio processo transferencial, isto é, à posição na qual o sujeito o situa no encontro analítico, e isso só depende muito parcialmente dele. Queira ou não o clínico, a questão da sedução está presente no encontro clínico, em todos os encontros clínicos, pois ela é também um efeito induzido pelo processo transferencial que lhe é consubstancial. O que o clínico diz, faz, deixa de fazer ou dizer é “interpretado” pelo sujeito em função da posição transferencial na qual ele situou o clínico. Como não se escapa da transferência, tampouco se escapa dos efeitos de sedução, de sugestão ou de influência que ela implica. O problema, portanto, não é a sedução – ela é inevitável – e muito frequentemente, ao querer escapar da sedução “libidinal”, produz-se uma “sedução superegoica” – e querer escapar a todo custo desta faz, com frequência, com que se caia na “sedução narcísica” etc. Vai-se de mal a pior, desenvolvendo modos de sedução cada vez mais nocivos – posto que cada vez mais difíceis de desmascarar; logo, de ultrapassar. O problema não é a sedução em si, é a sua forma e a sua utilização (ROUSSILLON, 2019, p. 57). É verdade que as colocações do autor se referem à sedução de modo diverso do que vimos até então tratando. Estamos apresentando a sedução como estratégia terapêutica, o que diverge da proposta de Roussillon de pensá-la como efeito da transferência. Partindo da inevitável presença da sedução no campo analítico, propomos, a despeito das diferenças entre elas, que as reflexões do autor se entrelacem às nossas. A questão principal é o que fazer com a sedução, incontornável, que ocorre no processo analítico? Como encaminhar as poderosas forças de Eros para os processos de vitalização? Se o objetivo inicial deste artigo, a partir da história com Ahab, era o entendimento das várias dimensões da sedução, optamos por focar a sedução em sua perspectiva de estratégia terapêutica de vitalização. Entretanto, não podemos deixar de pontuar que a sedução, como convite à vida, inicia-se nos cuidados da mãe com seu bebê, a “mãe suficientemente sedutora”, e é nesse mesmo começo que a erogeneização se faz imprescindível. Retomando, propomos que a sedução, desse modo considerada, se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando, como dito acima. Tendo refletido até aqui sobre a sedução, temos como propósito, em seguida, entender a erotização, a partir de um texto da psicanalista Dianne Elise (2017), autora destacada por Figueiredo (2019) em seu texto sobre as figuras da sedução. A coreografia do erotismo analítico: algumas ideias de Dianne Elise Trabalharemos agora o artigo Moving from within the maternal: the choreography of analytic eroticism, de Dianne Elise (2017). O título do artigo comunica a associação, proposta pela autora, entre a díade mãe-bebê e o par analista- -paciente, e expressa a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. De modo específico, o movimento de uma sessão é entendido a partir de um erotismo analítico, algo que expande o conceito de transferência e contratransferência eróticas e que procuraremos entender a partir das palavras da própria autora. Clinicamente, quando a criação de uma narrativa simbólica passa para o verbal, enquanto retém este componente afetivo corporificado, a transformação da dor psíquica torna-se possível. A capacidade estética para manter essa vitalidade incorporada viva na relação analítica é a qualidade a que me refiro como erotismo analítico (ELISE, 2017, p. 33) [6]. Elise parte das ideias de Kristeva (2014) sobre a importância do erotismo materno: o encontro da mãe como ser erótico traz à existência o eu erótico da criança, não apenas no aspecto especificamente sexual, mas no sentido mais amplo de vitalidade e curiosidade em relação ao viver: “Eros, em vez de adaptação funcional” (ELISE, 2017, p. 34). É a partir deste sentido de Eros que complementamos o que estamos discorrendo neste artigo: Eros como força vital, força de ligação. Resgatando Eros para pensar a relação mãe-bebê e adiante, o par analítico, a autora continua a definir o erotismo materno como vitalidade corporificada deste espaço da díade: uma atmosfera afetiva que poderia ser pensada em termos winnicottianos como “mãe ambiente”, mas por ela conceituado como “viva com o erótico” (Id., 2017, p. 36). A metáfora da dança nos ajuda a entender o impulso materno derivado de seu erotismo que, ritmicamente, de modo libidinal, energiza o dueto mãe-bebê, liberando energias libidinais e imaginação criativa: Sublinho que essa dança, com seus primórdios, tanto pré quanto pós-natal, é a forma de arte mais plenamente corporificada, dando forma à vida afetiva através do movimento. Cada ser humano começa pré-natalmente, com a mãe como parceiro de dança. Preso no abraço do corpo oscilante da mãe, o bebê pré-natal é valsado ao redor do útero, colocado em movimento, sempre acompanhado pela batida rítmica do coração da mãe, a música de sua voz, mesmo quando ela não está realmente cantando. O feto eventualmente responde com um solo – um primeiro chute, tão emocionante para a mãe (e para o feto?). Certamente deve haver, neste dueto mãe-bebê, continuidade do útero ao abraço de balanço dos braços e colo da mãe, com a amamentação devolvendo o bebê a proximidade com a batida musical do coração da mãe emanando das profundezas de seu corpo. (ELISE, 2017, p. 37). As palavras da autora são aqui acompanhadas, pois nos possibilitam a articulação entre Eros, vitalização, libidinização e sedução, seja na vitalização do par mãe-bebê, seja no encontro analítico. A partir da conceituação de Julia Kristeva sobre o erotismo materno, Elise enfatiza o erótico como parte/ingrediente importante da situação analítica: “uma espontaneidade viva que faz parte do self criativo tanto do analista como do paciente” (Id., 2017, p. 40). Também no trabalho analítico, é sugerido um processo coreográfico: uma dança que não constitui o produto criativo apenas da mente do analista, também a “música” do paciente está incorporada nas comunicações verbais e não-verbais. Se o erotimo maternal falhou – e, portanto, também a dança mãe-bebê –, será nosso desafio trabalhar com um paciente sem música (podemos aqui pensar nos casos difíceis e nos pacientes desvitalizados, engessados em sua paralisia e ausência de movimento). Nesses casos, Elise destaca o erotismo analítico como essencial para a criação de uma narrativa que faça sentido. É especialmente com pacientes amortecidos que o erotismo analítico se torna um elemento tão vital. Elise associa a vitalização da situação clínica a um campo de força libidinal, considerando que tanto o paciente quanto o analista envolvem suas energias eróticas e ressaltando que tal envolvimento não é específico do desejo erótico, embora possa incluí-lo. No caso de Ahab, usamos a metáfora da pesca, mas bem poderíamos ter imaginado uma dança-coreografia em que a analista o convida para formar um par analítico. Fica a questão se, como Elise afirmou, o desejo analítico o manteve, pelas tantas sessões em que eu o convocava a retornar, mas se também não foi o impulso para que, então, após um curto período, largasse o palco e fugisse de minhas narrativas para se resguardar em seu mundo monótono e deslibidinizado. Foi embora afirmando veemente que talvez gostasse mas, acostumado a aceitar o desejo do outro, queria agora experimentar dizer “não”. Não queria mais; se sentisse saudade, me procuraria. Uma afirmação a partir do negativo? A enunciação de sua potência? Um fio erótico permanecendo na dança interrompida? As coisas esfriando na pista de dança, mas uma chama tênue se manteve na comunicação final? Ou a excitação, como afirma Figueiredo, colocando a perder a possibilidade de encontro? As tantas metáforas de movimento que usamos neste artigo – pesca, caça e agora dança – parecem comunicar as tentativas de aproximação e as idas e vindas de um par analítico; remetem também à arriscada sedução, que anuncia os perigos dos mares em turbulência, e dos avanços ora da caça, ora do caçador. Na dança erótica entre analista e analisando, a ameaça de tangos tórridos ou salsas ardentes terá conduzido o paciente de volta ao seu claustro e aos seus temores de viver? Viver é perigoso: o recolhimento trazia cifrado seu susto tal qual vulcão amarrado pelo bico. Ao acompanharmos Elise, a teoria iluminou a presença de Eros no encontro analítico, quando, não raro, desprezamos a dimensão libidinal e libidinizadora do trabalho terapêutico. Lançou luz ao que se dançava em inocência: os riscos de o bico do vulcão desamarrar e inundar de lava o setting analítico. Eis o perigo a que se refere Figueiredo: uma clínica com tamanha implicação demanda reserva (2000, p. 31) [7] . Implicação e reserva diante da dimensão sexual da sedução enquanto estratégia de vitalização. Por outro lado, como não arriscar? Era necessária a busca do vivo para resgatar Ahab do mundo silencioso e amortecido. Nessa direção, Elise (2017, p. 48) destaca que a ausência da vitalidade como núcleo da atividade analítica minaria a possibilidade de criação conjunta de uma narrativa simbólica e emocional. A autora escreve que seria importante deixar esse componente erótico mais bem explicitado e apresentado na teoria psicanalítica, em vez de tratá-lo como tabu circunscrito na estreita conceituação da contratransferência erótica (ELISE, 2017, p. 48). Tal questionamento me remete à “novela” com Ahab: como podemos pensar o erotismo como constitutivo de um tratamento? Pode o erotismo analítico realmente “sustentar” a dupla? Reafirma-se aqui a inter-relação da sedução e da erogeneização como ingredientes necessários para a vitalização do par analítico, em sua medida justa, ou seja, sem faltas nem excessos, nos moldes adequados a cada paciente, um analista suficientemente bom sedutor, como viemos propondo. Na direção de respostas para tantas questões, a Elise nos auxilia ao sugerir que uma análise não pode se basear apenas nas energias libidinais do paciente. É necessária uma energia erótica circulando,“uma matriz libidinalmente viva” (ELISE, 2017, p. 49). Trata-se de entender a dimensão erótica como vitalidade analítica: a energia erótica do analista sendo vista em seu potencial de cura e como ingrediente necessário para o tratamento. Elise interroga, ou será uma afirmação? Pode nosso recipiente analítico ser um útero de concepção, uma dança de gestação e entrega, onde o Eros incorporado de um analista emparelha com, e facilita, a capacidade de um paciente de sentir e expressar seu próprio ritmo pessoal? No lugar do analista como tela em branco, movimentar sua figura para uma vivacidade, imagem colorida, em vez de “re-presentação de uma mãe amortecida” (Id., 2017, p. 50). Destacamos aqui a necessidade de nossas narrações verbais baseadas em experiências corporificadas para além de cada frase. Como vimos em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020), a linguagem só tem utilidade se vier junto com as energias corporificadas, tanto as do analista, quanto as do paciente. Dança, também, necessária com as palavras: o uso da linguagem de modo artístico, “indo além, abaixo e antes da palavra” (ELISE, 2017, p. 51). Estamos falando aqui da linguagem viva, em consonância com nosso artigo mencionado (2020): a responsividade afetiva não apenas do paciente, mas, também, do analista. De qualquer forma, como trabalhar com nosso erotismo de forma ética? Podemos articular o erótico com a imaginação criativa do analista. Energia libidinal, em conjunto com os recursos imaginativos, fornecem, segundo Elise, a base essencial para o trabalho com pacientes cujo trauma precoce congelou ou impossibilitou a capacidade simbólica. Ressaltamos o pensamento da autora de que as energias criativas não devem ser vistas como substitutas dos próprios recursos vitais do paciente, mas sim como contribuição vivificante para a dupla, mesmo que paradoxalmente, e aqui incluímos necessariamente uma travessia em territórios de desvitalização e amortecimento [8]. Também partilhamos da conclusão de Elise de que a função vitalizadora do analista deve estar presente em cada encontro analítico, de sua concepção de um analista vivo, ativo e de posse de suas capacidades criativas de modo a auxiliar na construção de uma matriz libidinal e vitalizadora no campo analítico (CESAR; RIBEIRO, 2020). O encarnado, o vital, precisam estar primariamente presentes. Em lugar de um ambiente recipiente passivo e desencarnado, Elise propõe a atividade do analista derivada de seu eu erótico: “um estado vibrante de alerta equilibrado, assim como uma dançarina parada no palco é equilibrada, não passiva, pronta, cheia de movimento potencial, de impulso” (ELISE, 2017, p. 53). A ampliação, em nossos pacientes, de sua capacidade de estarem vivos não será possível sem nossa própria presença viva: “somos receptividade equilibrada, não um receptáculo: nós agimos, nós respondemos, e não apenas de uma teoria intelectualizada, mas de nossas próprias energias ardentes corporificadas – algo do momento vivo” (Id., ibid., p. 53). Sobre o atendimento remoto: o enquadre interior Figueiredo, em texto recente (2020), propõe que, ao invés de falarmos em “atendimento virtual”, falemos em “atendimento remoto”, pois a virtualidade seria algo intrínseco ao dispositivo analítico. De qualquer modo, é preciso que examinemos, mesmo que sucintamente, as questões que advêm dos atendimentos à distância, os quais nos remetem à elasticidade da técnica, assim nomeada por Ferenczi (1928), que propunha uma flexibilização da técnica para o atendimento daqueles pacientes precocemente traumatizados que não se adaptavam à técnica padrão. Nesta tradição ferencziana, Winnicott (1962) usa a expressão “psicanálise modificada” quando se vê fazendo algo que não a análise padrão – embora, ainda assim, paradoxalmente, trabalhando como um analista. No dizer de Winnicott: Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? (1962, p. 155). Nesses casos, eram os pacientes que necessitavam de modificações na técnica, algo diferente do que estamos vivendo nessa pandemia: assistimos à ampliação do trabalho do psicanalista. Figueiredo (2020) ressalta o que se ganhou conceitualmente com essa elasticidade. Destacamos aqui a ênfase dada pelo autor ao “enquadre interior”, que independe da presença física do analista e indica uma disposição de mente: (...) trata-se da disposição de mente do analista em sua dimensão ética e “técnica” e em sua capacidade de escuta: em outras palavras, é a sua presença implicada e reservada (FIGUEIREDO, 2008), sua “mente própria” (CAPER, 1999), sua atenção flutuante operando em seu mais amplo espectro e englobando todas as modalidades de escuta em análise (FIGUEIREDO, 2014). (FIGUEIREDO, 2020, p. 65). É a presença do “enquadre interior” que comparece no atendimento de Ahab, uma vez que, como vêm acontecendo com frequência na pandemia, não ocorreram encontros presenciais e as sessões foram remotas. Tal “enquadre interior” é um estado de mente que só é possível a partir da transferência com a própria psicanálise, e que floresce das experiências de análise pessoal e de prática clínica do analista. O “enquadre interior” pode ser entendido por duas vias: primeiro a transferência com a própria psicanálise, o enquadre se instalando a partir da internalização daquela como bom objeto. No dizer de Figueiredo, uma “psicanálise amada” como condição de fundamento de nossa ética, que se constitui não na regulação ou interdição, mas no “vínculo transferencial (amoroso) com o próprio método analítico” (FIGUEIREDO, 2020, p. 68). Indo ao encontro da dimensão sedutora da experiência analítica relatada, vale ressaltar a ênfase dada por Figueiredo (2020), lado a lado ao enquadre interior, às transferências evocadas no paciente, quando, a partir da escuta, este é convidado “a ser, a falar, a brincar, a alojar-se no espaço de hospitalidade instaurado pela posição do analista: a situação analisante com sua dinâmica sedutora e criativa” (Id., ibid., p. 65). Assim, acompanhando o autor, a virtualidade está sempre presente no atendimento analítico, seja no atendimento remoto, à distância, na psicanálise padrão ou na psicanálise modificada; isto porque depende da disposição de mente de cada um da dupla analítica. Figueiredo associa muito apropriadamente tal virtualidade à instalação do espaço potencial (WINNICOTT, 1971): encontros em que comparecem realidades reais e fictícias, verdadeiras e ilusórias; campo fundamental a partir do qual o trabalho da psicanálise pode acontecer. Destacamos, brevemente, do texto de Figueiredo, algumas ideias que poderiam iluminar a compreensão do encontro que se deu com Ahab. Mesmo o atendimento sendo remoto, a dimensão de virtualidade, a manutenção do enquadre interior do analista e a instalação do espaço potencial aconteceram. Paradoxalmente, pensamos que a condição de atendimento remoto possibilitou que, protegido do corpo a corpo, Ahab conseguiu se aproximar de uma experiência analítica de intimidade. À guisa de conclusão As ideias de Figueiredo e Elise confirmam a necessidade da vitalização presente em todo encontro analítico. No presente texto procuramos articular a sedução com a erotização, e corroborar a importância de uma presença encarnada, em vez de uma presença intelectualizada: corpos ardentes e não abstrações desencarnadas. Dessa forma, encarnada, surgiu a imagem da dança, da caça com Ahab, em torno de tórrido vulcão: de que modo poderíamos ter prosseguido sem nem nos queimarmos nem congelarmos? Sim! Os encontros analíticos nessa dimensão vitalização-desvitalização têm temperatura, a cada sessão, de um momento a outro, de tempos em tempos. Essas reflexões nos conduzem à seguinte questão: como trabalhar com nosso erotismo de forma ética? O par constituído com Ahab trabalhou de forma ética? A analista se manteve em estado vibrante, o corpo envolvido no encontro, mas o quanto se equilibrou no palco dos encontros? O quanto titubeou na dança ou, por outro lado, Ahab recolheu temeroso suas energias vibrantes que cintilavam sutilmente? Ou, o quanto a analista intuía a música que emergia através das narrativas corporificadas, suas histórias endereçadas à analista? Não sei se temos respostas, mas podemos entender a sedução suficientemente boa, o erotismo presente de forma ética, acompanhando a proposição de Elise do entrelaçamento de criatividade e sexualidade a partir dos pensamentos de Winnicott e Freud. Winnicott (1971, p. 65) escreveu que é “a apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que faz o indivíduo sentir que vale a pena viver a vida”. Freud (1915, p. 169) postulou o amor sexual como “sem dúvida uma das principais coisas na vida, um de seus picos culminantes”. Algo que, para Elise, faria com que a psicanálise valesse a pena para analista e paciente. Estar de um modo criativo junto ao paciente é elemento de força vital. O que aqui pensamos como presença erótica (que começa nas trocas mãe-infante) estende-se para além destas e do puramente sexual para uma “joie de vivre”, uma paixão pela vida em seus altos e baixos, o sexual aqui resgatado numa concepção ampla, a mente enraizada na dimensão erótica do corpo: o nascedouro do vivo entre ternuras e ardências. Tudo isso é arriscado e vitalizante. A analista convidou seu paciente à dança, convocou-o à caça, relatou e ouviu suas histórias, buscou “ex-citá-lo”. Deixamos ao leitor, como um filme com final impreciso, como os de Bergman, que suas próprias reveries, sua capacidade imaginativa e criativa, surjam no encalço de respostas im-possíveis. Notas 1 O artigo apresentado faz parte da pesquisa de Pós-doutoramento de Fátima Flórido Cesar, tendo Marina F. R. Ribeiro como supervisora. Quanto a questões éticas, o artigo é um fragmento clínico no qual a identidade do paciente está preservada; se enquadrando, dessa maneira, na RESOLUÇÃO Nº 510, DE 7 DE ABRIL DE 2016: “Parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: VII - pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”. 2 Letra de música do CD Pérolas aos poucos, lançado em 2003 pela gravadora Circus Produções Culturais & Fonográficas. 3 Reverie é um conceito de Bion (1962); refere-se à capacidade imaginativa da mente, no caso, a capacidade imaginativa do analista na sessão, de captar o sofrimento psíquico do paciente. 4 Disponível em: origemdapalavra.com.br Acesso em: 25 jan. 2021. 5 Em trabalho anterior (ELISE, 2011, p. 30) usamos o termo “mãe suficientemente sedutora”: “Como, neste trabalho, estamos no âmbito da sexualidade feminina, a qualidade da mãe – de ser uma ‘sedutora suficientemente boa’ – está em cena. Isso significa a capacidade (como qualidade psíquica) de a mãe erotizar o corpo de seu bebê, nem a mais, nem a menos, na tensão única e específica a cada dupla mãe e filha (ou filho)”. 6 O artigo original de Dianne Elise é em inglês. Esta e todas as citações que seguem nos próximos parágrafos foram livremente traduzidas por nós. 7 Figueiredo se refere à necessidade de uma “presença reservada”, constituinte de uma “clínica de implicação e reserva” – um espaço em que se instaura um paradoxo de presença e ausência, de proximidade e distância (2000, p. 31). 8 Em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020) apresentamos pensamento semelhante. A partir das ideias de Winnicott, propusemos que a vitalização ou o vir a ser do infante provêm do encontro da centelha vital deste com o encontro do cuidador/mãe/analista com suas energias vivificadoras. Referências ALVAREZ, A. (1992). Companhia viva. Psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, desamparadas e que sofreram abuso. 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- Da espera às criações: os derivados narrativos de Antonino Ferro
Este artigo foi publicado em 2024 no Jornal de Psicanálise . Autores: Ana Fátima Aguiar [1], Davi Berciano Flores [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3]. Resumo: Este artigo apresenta as ideias do psicanalista Antonino Ferro sobre o potencial transformador das narrativas na sessão de análise. O analista, a partir de uma espera favorecida por sua capacidade negativa, perpassa as turbulências do incognoscível, e assim, pacientemente, narrativas passam a ser cocriadas, via comunicação inconsciente intersubjetiva. Por meio da reverie, o analista é capaz de acessar elementos em estado bruto, pensamentos-palavra em busca de um narrador. Para Ferro, o analista precisa manter-se em uníssono, em um estado de mente receptivo, intuitivo e insaturado: o aqui e agora da sessão. Nessa perspectiva, compreendemos a existência de consonâncias e continuidades com as “Notas sobre memória e desejo”, de Bion, no sentido de que a opacidade de memória e desejo favorece que haja condições de a mente operar pela via intuitiva. Na continência do trabalho analítico, tais elementos podem ser transformados, e, pela via de pensamentos-palavra, estes podem ganhar (possíveis) novos significados. Palavras-chave: Antonino Ferro, reverie, narrativas, capacidade negativa, esperança. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. … Não é um recado de ideias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma festa das palavras. (Lispector, 2013) Para que servem as palavras? Podemos, por um lado, usá-las para identificar, nomear, eleger um ponto de apreensão e dar-lhe forma: podem servir-nos como setas agudas com alvos. Elas traduzem experiências e encerram assuntos. Pontos finais. Há, de outra perspectiva, palavras que são redes, arrastam em seu som temporalidades, lugares, espaços, campos de experiência. Há palavras capazes de alcançar um espectro de acontecimentos: passado e futuro, eu e outro, dentro e fora. Nós, psicanalistas, somos afeitos a todos os tipos de palavras, mas as abertas a um campo de associações nos interessam especialmente: ao serem pronunciadas, abrem a porta para múltiplas dimensões simultaneamente. Palavras abertas podem nos levar longe, expressar sentimentos, dar testemunho, voz. Mas e quando o que se deseja expressar ou testemunhar é da ordem do indizível, ou do que ainda não pôde ser pensado? E quando a fluência para palavras é atravessada por entrelinhas, hiatos, silêncios, engasgos, gagueira ou mudez psíquicas? Bion (1962/2021) dá o nome de “hiato semântico” aos momentos em que a mesma palavra indica duas coisas diferentes, promovendo paradoxalmente um fenômeno de distanciamento e aproximação. Em sacrifício da mais absoluta singularidade semântica, entranhada na história de cada sujeito, o par analítico vale-se de uma palavra que representa sua experiência, a unidade do par. Fato é que toda palavra contém, em si, por causa da semântica, dos significados afetivos, históricos e culturais que ganha ao longo do tempo, um potencial para a abertura de novos sentidos. Para além dos significados encontrados nos verbetes, as palavras são também atravessadas pelos sentidos que acontecem a meio caminho entre quem as emite e quem as escuta. Reinauguradas por cada um que as pronuncia, as palavras precisam ser transmitidas entre corpos para ecoar e ganhar outros espaços, e, assim, surgirem outros e novos sentidos. É também o silêncio acoplado às palavras que vai tecendo um pensar. Não há necessariamente uma cisão, pode haver, sim, continuidades; há espaços e sons entremeados por silêncios e palavras, que, quando achegadas umas às outras, concebem ou iluminam abstrações, engendram devaneios, produzem novas imagens. Para ampliarmos tais reflexões, este artigo apresenta as ideias do psicanalista italiano Antonino Ferro, que, consonante com as ideias propostas por Bion, [4] introduz o conceito de derivado narrativo, partindo de um modelo no qual as narrativas seriam as composições geradas intersubjetivamente pelo par analítico, relacionadas à maneira com que analista e analisando constroem significados a partir da experiência vivida em análise, sem incisões interpretativas, que, por vezes, podem engessar e gerar fechamento, subordinando o pensamento a uma lógica pré-advinda da mente do analista, fixando-o a uma ideia de que, por meio de uma interpretação, um baú será aberto, e lá estará o tesouro escondido, perdido ou enterrado. Considerando-se a complexidade da realidade psíquica, uma metodologia de investigação opõe-se à caça ao tesouro: quando encontramos o cerne da questão, com artigo definido, encobrimos inúmeras perguntas que não podem ser respondidas. “La réponse est le malheur de la question” (a resposta é a desgraça da pergunta), diz Maurice Blanchot (1969/2001), citado por Bion recorrentemente em sua obra. As melhores respostas estão em um estado expectante, na espera do sentido. Isso leva Bion, até mesmo, em um momento de sua obra (1970/2014a), a dizer que, quando chegamos a uma interpretação em nossas mentes, esta já não é mais tão importante, devemos buscar a próxima. Interessa-nos o porvir, o pensamento em movimento, as próximas indagações, o futuro do pensar, a próxima sessão, evitando o risco de mantermos as respostas do passado possessivamente. O derivado narrativo expande o fluxo de pensamentos intersubjetivamente criados, transformando em palavras quaisquer elementos captados no aqui e agora da sessão. Nesse sentido, o essencial não é revelar, e sim construir um avultar contínuo de pensamentos ainda não pensados por meio da fluência de ideias presentes no campo. A narrativa pode, assim, ser vista como forma de criar uma composição, via palavras, a partir dos fotogramas [5] dos elementos e sutilezas do campo. Isso posto, não existe material captado na sala de análise que não seja relevante. Há uma infinidade de elementos ativos e presentes nas histórias ali expressas, pois o campo não é habitado apenas por analista e analisando, tampouco lidaremos somente com o mundo interno do analisando e com a relação estabelecida entre a dupla. Lidaremos, sim, com as histórias e personagens que habitam cada um dos integrantes do par, suas vicissitudes e sua transmissão. Em “O universo do campo e seus habitantes”, Antonino Ferro e o psicanalista compatrício Roberto Basile dizem que, no universo do campo emocional, estamos “na presença de personagens tridimensionais que pertencem a diferentes temporalidades e que solicitam, ou necessitam, poder subir ao palco por si sós” (Ferro & Basile, 2013, p. 21). Os autores sugerem ainda que o “aqui e agora” da sessão tem um papel essencial e inclui uma complexa gama de eventos atravessada pelo aspecto multigeracional. Essa proposta dos autores está diretamente conectada com a proposição bioniana de evitar memória, desejo e compreensão prévia (Bion, 1967/2014d) em uma sessão de análise. Se levarmos a cabo essa proposta, evitamos o esforço de nos deslocar para fora do presente da sessão em busca de algum tipo de elemento sensorial ou elaboração intelectual que, equivocadamente, pensamos favorecer nosso trabalho. A atitude mental proposta por Bion diz de um movimento oposto: esperar, no presente da sessão, que passado e futuro se presentifiquem, e que um sentido emerja da dupla analítica. Aqui, no lugar de um esforço de vasculhação, o analista aguarda a expressão, na experiência emocional da sessão, da pluralidade espaçotemporal da vida psíquica. Portanto, é possível compreender, por essa perspectiva, que o “aqui e agora” da sessão, para Ferro e Basile (2013), não se baseia em interpretações imediatas sobre o que está se passando naquele momento da sessão. Está, sim, relacionado a uma visão de que tudo o que é trazido pelo paciente na sala de análise deve ser considerado fundamental e deverá encontrar um continente para que os derivados narrativos captados possam compor uma narrativa, construída conjuntamente pela dupla analítica. Os autores também reiteram que o campo seria habitado por certos personagens principais, protagonistas, coadjuvantes e figurantes, os quais podem mudar constantemente de papel. Segundo Ferro e Basile, os personagens seriam como constelações visíveis em um céu estrelado, e o campo seria o universo, que abriga infinitos fenômenos, a maioria deles desconhecida. O aqui e agora, nas palavras de Figueiredo e Coelho Junior (2008), compreende um campo “multideterminado, em que se sobrepõem, se encavalam, se interpenetram, se confundem e se ocultam tempos, lugares e personagens variados” (p. 28). Para Ferro (1999), os “personagens das narrativas não são criados aleatoriamente, mas são parte de um conjunto de elementos gerados em uma consonância, e nessa conarração analista e analisando dançam juntos no processo analítico” (p. 19). A criação dos personagens é, portanto, proveniente do funcionamento mental da dupla analítica, abarcando suas emoções e seus aspectos desconhecidos (suas protoemoções). Qualquer que seja o conteúdo que o analisando apresente na sessão, ele estará descrevendo uma forma de funcionamento não apenas da sua mente, mas sim do campo. O campo torna-se, dessa maneira, a gleba na qual são lançados os elementos brutos, sensações e imagens, que buscam ser pensados e, assim, cria-se uma abertura para o novo. Esse processo de metabolização de um elemento beta e da transformação dele em elemento alfa é denominado “alfa-betização”. É por meio dos elementos alfa que a experiência emocional pode ser captada pelo analista como pictogramas [6] emotivo-sensoriais. [7] Para Ferro (2017, p. 86), os pictogramas constituem os “tijolinhos” que edificam a fazedura do pensar, do sentir e do sonhar. O elemento α é a maneira através da qual é pictografada, em tempo real, toda experiência senso-êxtero-proprioceptiva. Cada pictograma emotivo-sensorial é então colocado em sequência com outros elementos α. A sequência dos elementos α é incognoscível, a não ser através do derivado narrativo. (Ferro, 1996, p. 15) O analista tem aqui duas importantes e difíceis tarefas: deve primeiro estar aberto e receptivo a ponto de deixar-se capturar pelas forças emocionais do campo, e, ainda que seja parte dele, ter também a capacidade de distanciar-se, a fim de que, além de captá-lo, possa metabolizá-lo, propiciar uma organização da sequência dos pictogramas emotivo-sensoriais para, enfim, transformá-los em uma narrativa. Ambos, analista e analisando, poderiam, assim, transformar os elementos emocionais presentes e ativos naquele momento, dando-lhes novos sentidos. Essa possibilidade de abertura e distanciamento, simultâneos, pode configurar-se no analista como uma experiência de tumulto mental. Tratase, por vezes, de um movimento feito em temporalidades distintas: a experiência em uníssono, que tende a ser dotada de alta intensidade emocional para o analista, seguida da possibilidade de narratividade sobre aquilo que foi vivido. Essa interpolação do analista, entre figura e fundo, consiste em uma das propostas de Bion, quando defende a noção de visão binocular, uma cooperação entre as funções mentais, tanto conscientes, quanto inconscientes. Segundo Bion (1974/2014b), “precisamos de um tipo de visão binocular mental – um olho cego [para o mundo sensorial], o outro olho com uma visão boa o suficiente” (p. 101) –, o que nos permite acessar os elementos da realidade psíquica com maior amplitude nas ressonâncias das experiências emocionais ali vividas. Os derivados narrativos teriam, desse modo, caráter transformador. Ferro sustenta a ideia da narrativa como um importante elemento de uma cadeia de transformações em análise. O autor italiano, avençado à teoria bioniana, afirma que a narrativa atua, primeiramente, como uma forma continente dos elementos da mente do analisando; promove uma transformação dos elementos beta em elementos alfa; favorece a expansão da função alfa e, por meio das narrativas, contribui para o desenvolvimento e expansão da mente, essa que Bion chamou de “aparelho para pensar os pensamentos”, pensamentos oníricos não só do analisando, mas sim da dupla analítica. O onírico teorizado por Ferro apoia-se nas formulações de Bion (1962/2021), que afirmava a existência de um pensamento onírico de vigília, e compreende-o como uma atividade que é concomitante ao sonho noturno; o sonhar é uma atividade diuturna da mente. Desse modo, o pensamento onírico estaria também presente na vigília, constituindo um relevante material para o trabalho psicanalítico. O contato com o pensamento onírico de vigília é carregado de intensa “sensorialidade visual, olfativa ou auditiva, nas várias formas de criatividade” (Ferro, 1995, p. 106). O analista trabalha criativamente o material onírico do analisando e ajuda-o ao transformá-lo, via narrativas, em um pensamento que possa ser simbolizado. A vida onírica seria como um “teatro para a geração de significado” (Meltzer, 1982, citado em Ferro, 1995, p. 103), cujo enredo é construído numa articulação cocriadora de ambos. Segundo Ferro (1995), o analista não atua somente como um “montador de cenas” ou um mero narrador de uma história preexistente. Ele contribui para a composição de uma sequência de “cenas” (situações emocionais vividas na vigília) trazidas pelo analisando, porém, introduz imagens das reveries, geradas a partir de um estado de receptividade e ressonância, e que ativam, também no analista, fantasias, lembranças e imagens. Assim, não há como considerar um sonho como fruto de uma só mente. Há de se ponderar sobre as identificações projetivas que o compõem, num campo emocional que, dessa forma, inclui as mentes de analista e analisando e, por consequência, diz respeito à vida mental de ambos. Sonhar o sonho do analisando abre alas para a pensabilidade do que antes não podia ser pensado. Há assim um trabalho que vai muito além de uma elaboração dos conteúdos psíquicos da mente, mas que diz sobre a ampliação da mente em si, criando-se um campo no qual a própria mente se transforma, considerando-se a capacidade de mobilidade, de criatividade e, por consequência, de expansão. Portanto, a transformabilidade torna-se possível quando há um grau elevado de fertilização no campo constituído pela dupla analítica. O sonho e sua comunicação representam sempre um momento importante: é um convite a penetrar numa zona mais íntima da relação e poder explicitá- -la, como olhar para dentro das gavetas, até das mais secretas. … Assim, devemos respeitar a intimidade e as defesas: o que se perde em termos de menor conhecimento comunicado e compartilhado “sobre” alguma coisa, é compensado em muito pelo que concerne ao “afeto” de sentir-se respeitado e não invadido, e a progressiva introjeção de uma modalidade não demolidora e intrusiva. (Ferro, 1995, p. 106) Nesse sentido, é fundamental que o analista seja sensível e afetivo para adentrar áreas tão íntimas da mente do analisando. O papel do analista não é destruir defesas, vasculhar a memória e invadir a intimidade. Pelo contrário, o trabalho analítico consiste em esperar que as intimidades se construam e as defesas se desarmem. As ideias de Ferro nos convidam a pensar que, em análise, cocriar, sonhar junto, intersubjetivamente, significa habitar um espaço compartilhado, sem intrusões, sem a perspectiva de “tirar” algo de “algum” lugar. Essa pressuposição de espaços recorrentemente satura nossa capacidade de pensar livremente. Ferro (2007) ressalta que o analista deve estar em uníssono com o analisando, e que seja para este um continente, mantendo-se em um estado de receptividade e de criatividade para tolerar o desconhecido, o obscuro da experiência. Tal ideia estabelece consonância e continuidade com as “Notas sobre memória e desejo” de Bion (1967/2014d), uma vez que a opacidade de memória e desejo favorece que haja condições de a mente operar pela via intuitiva. O ato de deter-se a registros sensoriais – sejam eles lembranças de outras sessões ou momentos da vida do analista; expectativas e anseios, ou ainda exercícios intelectuais de compreensão – pode resultar na obstrução da capacidade intuitiva e criar obstáculos para que o analista possa se pôr em uníssono com o analisando, o que acaba por afastá-lo da experiência emocional da sessão. Citando Bion: “… estar cônscio do que acompanha sensorialmente a experiência emocional é um obstáculo para o analista intuir a realidade emocional com a qual ele deve estar de acordo” (1992/2000, p. 392). E continua: “O único ponto de importância, em qualquer sessão, é o desconhecido. O analista não deve permitir que nada o distraia de intuir o desconhecido” (p. 393). Ou seja, o analista deve manter-se aberto ao incognoscível. Esse estado de mente receptivo, intuitivo e insaturado abre espaço para a observação do que está ocorrendo na sessão, como preconiza Ferro: o aqui e agora, um espaço-tempo composto por passado, presente e abertura para o futuro. Compreendemos aqui importantes interseções entre as narrativas de Antonino Ferro e as formulações bionianas sobre a reverie, a capacidade negativa e a fé científica. Para Ferro (Ferro & Basile, 2013), a reverie do analista é um elemento central no campo e capaz de gerar transformações nele. Imagens, sensações, sentimentos e inquietações criados no encontro analítico precisam ser calmamente contemplados. Ou seja, é preciso ter paciência [8] e disponibilidade emocional para estabelecer-se uma comunicação sensível e aberta, para que surjam e que possam ser delicadamente transformadas em palavras narradas. Segundo o autor, a reverie acontece em um movimento criativo e fecundo que permite aberturas inéditas de sentido para a dupla. Um processo em contínua atividade, com o pano de fundo da sensorialidade visual ou auditiva, pintando imagens oníricas que escapam do recipiente mental (Ferro, 1995, p. 106). A forma está a serviço da experiência emocional. Entre a evocação de imagens, palavras e narrativas, a mente se vale desses recursos estéticos para contar a experiência vivida em sessão. São recursos expressivos da função alfa, formas mais ou menos rudimentares de figurar e verbalizar o vivido. A arte se transforma em palavras, que se agregam e se organizam entre si, até que delas derive uma forma, uma estrutura na qual apresentam-se personagens, engendram-se contos, histórias, figurações, que se alternam em relação às emoções do par analítico. Dessa forma, as mentes de analista e analisando narram o que acontece entre elas (Ferro, 1995, p. 71). Assim, o trabalho analítico exige de nós, analistas e analisandos, calma e paciência. Isso implica a esperança de alcançarmos o sofrimento, enxergarmos as defesas, mas contarmos com que os sonhos compartilhados as dissolvam, como quando vamos dormir aturdidos e despertamos regenerados, ou quando uma criança, depois de uma brincadeira, retorna apaziguada em sua dor. Dessa maneira, compreendemos que a esperança tem um lugar importante no trabalho analítico. Aqui conectamos a ideia de esperança com a “capacidade negativa” (Bion, 1977/2019) do analista de esperar, de conservar sua paciência em estados aturdidos de mente, em um ato de fé de que um sentido possa dali emergir. No pensamento de Bion (1970/2014a), estamos tratando da capacidade do analista de esperar que algo possa emergir e dar um sentido à experiência emocional. É um ato “científico” de tolerar o não saber no qual o analista abre mão de memória e desejo, e que tolere o incognoscível, até que os sentidos se mostrem. Para Ferro (2017), o objetivo da análise é expandir a capacidade de sonhar/pensar aquilo que ainda não se tornou forma, a experiência em estado bruto, o elemento beta, a incógnita, e, narrando o que é vivido na sala de análise, transmite o sonhar ao analisando, abrindo caminhos para que possam sonhar mais. Interessa-me substancialmente desenvolver no paciente e em mim a atitude onírica das nossas mentes: para tanto, opero com o desenvolvimento do continente (aqueles fios de emoção que existem entre mim e o paciente e que, se são tecidos e reforçados, permitem – como aos acrobatas no circo, que se sabem a salvo graças à rede de segurança – conteúdos cada vez mais intensos, permitem dançar entre um trapézio/mente e outro), com o desenvolvimento da função α, ou seja, aquele aparato capaz de transformar protossensorialidade, protoemoções em pictogramas, audiogramas, olfatogramas (elementos α). (Ferro, 2017, pp. 258-259) O psicanalista italiano salienta que, ainda que tais elementos possuam potencial para a abertura de sentidos e de expansão da mente, eles são também responsáveis por causar desconforto e turbulências emocionais devido à complexidade do trabalho psíquico a ser realizado. Via capacidade negativa, espera-se que o analista possa tolerar a tormenta afetiva causada pela reverie, para que, por meio de sua função alfa, os conteúdos não simbolizados possam ser metabolizados. O autor (Ferro, 2017) afirma que nem todas as imagens que surgem na sala de análise são reveries. Compara reverie e metáfora, explicando que, no caso da metáfora, o analista comunica algo conhecido, utilizando uma linguagem acessível e de clara compreensão. Já na reverie a imagem surge espontaneamente e de forma aleatória, como uma distração, um devaneio da mente do analista, e, ainda que este tente eliminar essa imagem, ela persiste. Nesse momento, segundo Ferro, o analista presume que tal pictograma tenta comunicar algo do que se passa no campo. A reverie do analista, que frequentemente pode ser expressa sob forma de metáfora – mas não somente –, pode ser entendida como uma fonte de desenvolvimento da capacidade de transformar elementos beta, persecutórios, em pensamentos. Então a sessão acontece em nível de um recíproco onírico, seja quando o paciente “sonha” (se é capaz de fazê-lo) a intervenção do analista ou o seu estado de mente, seja quando o analista “sonha” a resposta a ser dada ao paciente. Quanto mais essa resposta for “sonhada”, tanto mais será fator de constituição, reparação da eventual falha da função alfa do paciente. (Ferro, 2017, p. 15) Aqui não se considera a reverie como algo a ser decodificado e que nos leva a um ponto de chegada. Ao contrário, ela é pensada como um ponto de partida. Ferro (1995) diz que a partir dos pictogramas afetivo-sensoriais iniciamos todo um processo de simbolização que não estava posto, mas que nasce do encontro paciente-analista (p. 106), no qual se inaugura um percurso de criação de novos sentidos: pensamentos que ativarão novos pensamentos no par, de modo a consentir a construção de uma história juntos, também uma história de recuperação de uma continência sem particulares necessidades explicativas. Não há uma verdade a descobrir sobre o paciente, mas uma verdade a construir sobre o funcionamento de duas mentes em sessão. (Ferro, 1995, p. 107) Há, portanto, segundo Antonino Ferro, uma expansão da pensabilidade e da transformabilidade (1995, p. 105). Quando tomada desde esse vértice, a reverie apresenta-se enquanto um fenômeno mais entranhado à complexidade da experiência clínica. Quando Bion propõe um estado “sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia”, ele indica ser muito possível que o analista tenha a experiência do terror ao ficar em contato direto com a realidade psíquica e a experiência emocional da sessão. O exercício da pensabilidade, da “alfa-betização” do analista, é realizado com custos emocionais, uma vez que, até que a função alfa realize seu trabalho, os elementos beta geram no analista sensações de desintegração, incoerência e persecutoriedade (Bion, 1963/2014c, p. 38). Ferro (1995) reitera que todo trabalho analítico baseia-se na capacidade de reverie do analista, pois é por meio dela que se dá a metabolização dos conteúdos não pensados, tornando-os passíveis de serem pensados. Isso se dá graças a um estado de abertura e receptividade da mente do analista, que deve ser também criativa e capaz de conter tais conteúdos protomentais, metabolizando-os e transformando-os (e, dessa forma, transmitindo-os) em narrativa. A partir das imagens captadas pelo estado sonhante da mente, as narrativas passam a ser cocriadas, via comunicação inconsciente intersubjetiva, capaz de captar os conteúdos do mundo interno, elementos em estado bruto, pensamentos-palavra em busca de um narrador, e estes podem ganhar novos (possíveis) significados na continência do trabalho analítico, e ambos, analista e analisando, saem dessa experiência transformados. Das narrativas, uma fonte para o sonhar Muitos foram os vícios que marcaram o percurso de Paulo. [9] Marcas da sua história, peças do quebra-cabeça que o compunham e pareciam não se encaixar. Ele dizia se considerar uma incógnita. Compulsão alimentar, drogas, álcool, consumismo, jogos de azar… Uma busca voraz por algo que o confortasse, que apaziguasse o desconforto tão palpável e presente. Entendi que, para além de o “completar”, a procura incessante era por algo que desse contorno a um corpo-existência tão disforme, inane. Entrevi (com os olhos da mente) um corpo oco, dentro do qual pude enxergar um movimento manancial, num fluxo intenso, correnteza incessante e desordenada. Tento resgatar minha mente que aplainou por um instante e retornar para a sessão. Paulo diz que para ele os desafios pareciam ter um objetivo: fazê-lo sentir-se melhor. Um “dependente potencial”, cunhava-se. Nesse momento, sou violentamente atravessada por um pensamento, mais do que isso, uma alucinação auditiva vívida, maciça. Era como se estivesse ouvindo uma voz, minha própria voz, dizendo nitidamente: “Sentir-se vivo!” Passei então a construir uma narrativa que pudesse transmitir a Paulo as imagens e sensações auditivas que se formavam em minha mente desde quando a palavra “dependente potencial” surgiu na fala dele. Disse a Paulo que as palavras me pareciam irmãs, e estavam assim colocadas, lado a lado, ampliando minha percepção de familiaridade entre elas, e que, assim que foram pronunciadas, a palavra “potencial” me remeteu à ideia de uma centelha vital, algo que me parecera, a princípio, um impulso para a vida, uma saída saudável para um corpo e uma mente que sofriam. Paulo, que estava sorrindo enquanto contava de sua facilidade em viciar-se, me olhou, e seu semblante se fechava. Sobrancelhas arqueadas numa configuração que se assemelhava a algo entre estranhamento, raiva ou reprovação, porém, o que eu vislumbrava era um sentimento de vazio, de solidão. Chegava, por vezes, a vê-lo menino. Uma dinâmica viva entre realidade psíquica e a multiplicidade de tempos na sessão. Passado atualizado, um menino que busca um sonho que não pôde ser sonhado. Permaneceu alguns instantes em um silêncio profundo, que iniciara de uma forma densa e que, aos poucos, parecia dissipar-se. Virou-se para um quadro que ficava acima do divã, permaneceu olhando para ele num silêncio inquieto, como se tentasse encontrar alguma palavra que pudesse comunicar algo, o indizível. Como se, olhando para aquele quadro, buscasse encontrar seu poema. De repente: “Aquilo é uma fonte?” Respondo: “Olha só… agora que você disse, parece que vejo uma fonte também. Não via antes, agora vejo nitidamente”. Era incrível que Paulo tivesse usado justamente essa palavra: fonte. Lembrei-me da imagem do fluxo de águas intenso, vigoroso, dentro do corpo oco. E ele continua: “Sabe… tenho pensado em muitas coisas desde que começamos. Penso sobre como eu tenho vivido, sobre as coisas que eu sinto que me dão prazer, ou melhor, o prazer que eu realmente queria que me dessem, mas não funcionam verdadeiramente. Sempre achei que isso fosse ruim. Mas, quando você disse ‘centelha vital’, parecia que eu já conhecia essa expressão desde sempre, mas não. Estou certo de que hoje foi a primeira vez que a ouvi. Mas ela ecoou dentro de mim”. Palavras que ecoavam dentro de Paulo e que também me habitavam. Uníssono. A confirmação de um encontro, algo que só pôde configurar-se graças à capacidade de esperar, de aguardar que Paulo oferecesse outra peça do quebra-cabeça que se aproximasse das minhas. Há entusiasmo no contato das mentes e ideias. O eco das profundezas mais íntimas e desconhecidas do psiquismo de Paulo estava ressoando externamente, transformando-se em palavras. Palavras vivas, carregadas de significados, não pré-concebidos, mas sim cocriados. Pensamentos-palavra do campo emocional. Uma centelha vital que percorria aquele campo era captada por nossas mentes. E continua: “Estranho que, ao mesmo tempo que me parece uma ideia nova, é tão familiar. Lembro-me que, desde pequeno, eu tinha medo de poço, sabe, aqueles poços artesianos. Só que eu os chamava de fonte. Acho que as ideias se misturaram na minha cabeça quando eu ouvi ‘centelha vital’, enxerguei no quadro uma fonte. Acho que busquei enxergar, isso sim. Pensei comigo: será que sempre teve uma fonte de vida dentro de mim? Eu me chamava de ‘poço’ por causa da obesidade. E todos me corrigiam dizendo: É ‘rolha de poço’ que se diz!! Mas eu continuava dizendo ‘Eu sou esse poço’. Nossa, isso é tão curioso… Acho que, na verdade, eu me sentia vazio como um poço, mas eu sentia que havia dentro de mim uma inquietação, nunca uma ideia de que fosse uma potência de vida. Parece que os vícios eram, de fato, um caminho para a morte, mas a natureza da busca não. É essa busca que me faz, agora, pensar que sou, sim, um poço, pois ainda me sinto vazio. Mas também tem dentro de mim uma fonte de vida, sim. E eu quero viver. Sinto que ainda não me sinto vivo”. Paulo encerra a sessão com a frase: “Nossa, temos muito a pensar…” “Temos” muito a pensar… Um pensar compartilhado, gerador de imagens, lembranças, representações iam sendo geradas no campo emocional criado por ambos. Paulo parece estar falando sobre o valor da função do pensar, em vez dos fatores pensados. A “natureza da busca” indica movimento, é trabalho do sonhar, enquanto os vícios operam como impeditivo desse trabalho, compulsões à repetição. Uma “fonte”, nascente de sonhos, da qual jorram pensamentos-palavra que coabitavam as mentes da analista e a de Paulo, sem que pudessem ser significados até que fossem narrados. Tecida na sala de análise, a narrativa se constrói no entremeio da fluidez de pensamentos da dupla, na liberdade da imaginação alojada no campo. É como no trecho de um poema de Mia Couto no qual o autor diz: “A miçanga, todos a vêem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as miçangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo”. As miçangas soltas, que pareciam nunca se juntar, ali eram contempladas e ganhavam novas imagens, novos sentidos. Peças do “quebra-cabeça” de Paulo, um grupo de fragmentos embaralhados que ora indicam a possibilidade de construção de uma imagem, ora nos enganam e aguardam uma nova organização. Passado e presente condensados no aqui e agora da sessão. O menino e o homem falam simultaneamente e, aos poucos, criam pontes para o futuro, criam novas conexões. Um campo emocional a favorecer o “fio que, em colar vistoso, vai compondo as miçangas” e segue “costurando o tempo” necessário para que os pensamentos-palavra se tornem peças-chave para que Paulo possa apropriar-se da experiência emocional e ampliar seu conhecimento de si mesmo. Fragmentos intersubjetivos (Ribeiro, Flores & Ramos, 2022) que vão se unindo e compondo um enredo, “um colar vistoso”, como poetizado por Mia Couto. Pérolas que vão se juntando através do fio delicadamente tecido pelo trabalho analítico, que inclui as elaborações de ambos os integrantes da dupla e de “todos” os habitantes que circundam a sala de análise. Pensamentospérola vão se avizinhando por intermédio das palavras advindas de um vasto conjunto semântico, que ampliam as conexões entre as mentes. O pensamento onírico de vigília presente no campo evoca sentimentos e emoções que buscam articulações. Ribeiro (2017) salienta: “O ofício do analista, a partir de Bion, é comunicar e transformar as experiências emocionais. A imagística das interpretações narrativas facilita o acesso, ou melhor, é acesso privilegiado ao sonho, é manifestação onírica narrativa, poderíamos dizer” (p. 186). Uma “ideia nova, mas tão familiar”, dizia Paulo diante das reflexões que se abriam a partir da experiência vivida e narrada naquela sessão. Lá estava um pensamento à procura de um pensador, sonhado a dois, agora podendo ser pensado por Paulo. Uma narrativa que alcançaria, despretensiosa, porém, tão cirurgicamente, um núcleo fundamental para que a análise se tornasse transformadora. Paulo pôde criar. Criamos juntos. Elementos psíquicos brutos tornaram-se pérolas. Um trabalho que, via semântica, possibilitou narrar a experiência emocional. Sonhávamos juntos a sessão, criávamos novas histórias e nossas mentes se expandiam para sonhar mais. O potencial transformador do campo está na riqueza das peças que vão sendo apresentadas, narrativas às quais o analista não deve apressar-se para dar um sentido, como se quisesse abrir o baú das revelações com a chave mágica da interpretação. As reveries do analista, como nos apresenta Ferro, têm, portanto, um papel central no campo, pois oferecem um rico material a ser artesanalmente preparado: conduzir pérolas soltas, juntá-las às do analisando, contê-las e organizá-las para que ganhem forma. Como analistas, o trabalho de tecer o “fio de miçangas”, de juntar os pensamentos-pérola, ocorre quando nos permitimos embrenhar-nos pelos fragmentos afetivos, perpassando as turbulências do não saber, do incognoscível, e assim, lenta e sutilmente, ampliar a possibilidade de que as pérolas de ambos se avizinhem e ampliem a capacidade de sonhar, de gerar novos sentidos, expandindo a apreciação e a simbolização da experiência emocional. Referências Bion, W. R. (2014a). Attention and interpretation: a scientific approach to insight in psychoanalysis and groups. In C. Mawson & F. Bion (Eds.), The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 211-330). Karnac. (Trabalho original publicado em 1970) Bion, W. R. (2014b). Brazilian lectures. In C. Mawson & F. Bion (Eds.), The complete works of W. R. Bion (Vol. 7, pp. 71-166). Karnac. (Trabalho original publicado em 1974) Bion, W. R. (2014c). Elements of psycho-analysis. In C. Mawson & F. Bion (Eds.), The complete works of W. R. 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Pesquisadora-colaboradora do Lipsic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea). 2 Psicólogo e psicanalista, mestre e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (usp). Pesquisador-colaborador do Lipsic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea). 3 Psicanalista, profa. associada ip-usp, profa. e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do ip-usp; coordenadora do Lipsic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea). Autora de vários livros e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. 4 Bion, em seu livro Cogitações (1992/2000), apresenta a ideia de que os elementos alfa necessitam uma “qualidade narrativa” ou uma “forma narrativa” para que possam ser processados. 5 A palavra “fotograma” está sendo utilizada para designar uma captação visual, uma imagem impressa, aqui, no caso, na tela mental do analista. 6 A palavra “pictograma” poderia ser descrita como um desenho figurativo, estilizado, que funciona como um signo, não transcrevendo nem tendo representação explícita na língua oral. 7 Ferro (1996) utiliza o termo “pictogramas emotivo-sensoriais” para se referir à transformação dos elementos que são protosensoriais e protoemocionais em seu estado bruto (elementos beta). Tais elementos são captados pelo analista por meio da reverie e se transformam em pictogramas emotivo-sensoriais, ou seja, são transformados em elementos alfa por meio da função alfa do analista, a fim de que possam ser pensados. 8 “Ser paciente”, para Bion, significa “suportar o ‘não saber’ e as ‘meias verdades’ e uma certa cisão relacionada à posição esquizoparanoide” (Chuster & Stürmer, 2019, p. 37). Nas palavras do próprio Bion: “eu gostaria de fazer um paralelo – mais por ter uma esperança, e não tanto convicção – do movimento entre a posição esquizoparanoide para a posição depressiva, usando termos como ‘paciente’ para a posição esquizoparanoide e ‘seguro’ para a posição depressiva” (Bion, 1977/2019). Aqui vemos uma conversa entre o paralelo que Bion apresenta e sua evocação ao pensamento de Melanie Klein: paciência e segurança, dois estados ideais pressupostos para o analista, atravessados pelos tumultos da posição esquizoparanoide, nas angústias de fragmentação e insaturações favoráveis ao trabalho analítico, que implica a permeabilidade, a plasticidade, mas também o inquietante e angustiante exercício clínico. 9 O material clínico utilizado foi extraído da experiência clínica de uma das autoras. O nome do analisando, bem como outros fragmentos do caso serão descritos a partir de uma dimensão ficcional (Tanis, 2015).
- Entrelinhas do criar: um atendimento clínico no campo da linguagem escrita
Este artigo foi publicado em 2024, na Revista Construção Psicopedagógica. Autores: Claudia Mazini Perrotta [1], Elisa M. Ulhôa Cintra [2] e Marina F. R. Ribeiro [3]. Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar um fazer clínico psicanalítico no campo da escrita que dialoga com autores que abordam as implicações dos processos criativos na constituição psíquica. Destaca-se a importância de espaços potenciais de trabalho, em que a parceria afetiva entre terapeuta e paciente possa sustentar inquietações geradas diante da necessidade e do desejo de escrever. Tendo como base a tese “Processos criativos no espaço terapêutico da escrita: um diálogo com D.W. Winnicott, Clare Winnicott e Marion Milner” (Perrotta, 2014), publicada no livro Entrelinhas do criar: parcerias dialógicas no Espaço Terapêutico da Escrita (Appris, 2023), traz ainda como referência o conceito de terceiro analítico, de Thomas Ogden e aspectos da obra de Christopher Bollas e Marion Milner. O episódio clínico aqui compartilhado permite afirmar a necessidade de o terapeuta reapresentar o objeto cultural escrita possibilitando novas experiências no campo da comunicação e potencializando a materialização de dizeres investidos de pessoalidade. Palavras-chaves: processos criativos; psicanálise; linguagem escrita; terceiro analítico. Introdução Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça: no vazio da página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos. (Mia Couto, 2013, p. 197) Muitos foram os sobressaltos e espantos vividos por Clarice (nome fictício), uma mulher que escrevia poesias, quando procurou o espaço terapêutico da escrita. De uma hora para outra, sentiu que sua capacidade de escrever caía por terra. Leitora voraz de ficção, claro, especialmente de poemas, e sempre pronta a rabiscar os seus, agora se via diante de um convite que não podia deixar de aceitar, vindo do professor doutor que supervisionava o trabalho prático de Clarice, voltado a grupos de mulheres em situação de vulnerabilidade social. A tarefa que se impunha era a de escrever um artigo científico. O convite para essa produção acadêmica, de imediato, criou um conflito que quase paralisou Clarice, quase a fez desistir: por um lado, estava muito feliz por ter sido convocada, pois seria uma oportunidade de legitimar o belo e significativo trabalho que vinha realizando com as mulheres, oferecendo-lhes saídas para se sustentarem coletivamente. Por outro, estava assustada, desconfiada se estaria à altura do projeto - um artigo científico lhe parecia muito além de suas capacidades de escritora. E muito diferente de compor um poema, que era algo que não lhe despertava ansiedades; ao contrário, sentia que a aliviava das dores do viver. Dessa desconfiança, vieram as dúvidas: “o que é exatamente um artigo que circula na esfera acadêmica? Será que tenho repertório de conhecimentos suficiente para compô-lo? Por onde começar?”. E foram essas dúvidas que a levaram a procurar ajuda, um espaço para compartilhar suas aflições. É bom que se diga que os sobressaltos e espantos de Clarice diante da tarefa de escrever são da mesma natureza daqueles vividos por tantos de nós quando nos vemos às voltas com projetos que envolvem a criação de um dizer próprio, uma expressão de si diante de outros, nas mais variadas esferas de comunicação. E isso nada tem a ver com o domínio da língua na qual nos expressamos e nem mesmo com o fato de termos ou não um repertório de experiências positivas de realização de outros projetos discursivos, em outros gêneros de discurso. Não é diferente do que escritores como Mia Couto experienciam diante da página, ou da tela, em branco. Isso mostra que não se trata de dificuldade individual, e sim de um fenômeno que marca os processos criativos, qualquer que seja a materialidade escolhida – barro, tintas, imagens em movimento... –, e que pode afetar mesmo os mais conhecedores do ofício. No caso aqui em pauta, sendo a escrita o ofício, não são poucos os autores consagrados que colocaram em palavras os conflitos, as inseguranças, o temor de não conseguirem levar adiante um novo projeto de texto, para outro público-leitor. Ainda que tragam na memória situações em que o que tinham a dizer fluía mais, sem reservas, isso não garante a mesma condição diante de novos desafios. Escrever muitas vezes também nos remete a memórias doloridas, de fracassos nas tentativas de comunicação, a momentos em que não encontramos parceiros dispostos ao diálogo – que implica escutar e elaborar apreciações estéticas, respostas, contraposições, concordâncias ou discordâncias – ou dispostos a receber nossos escritos com hospitalidade – ou seja, abertos à alteridade que se materializa no idioma pessoal (Bollas, 1998). No livro Sendo um personagem , Bollas (1998, p. 9) afirma que nos movimentamos entre cultura, sociedade, linguagem e momento histórico em que vivemos, em busca de um idioma próprio, singular – em analogia, tratar-se-ia “de uma semente que pode, sob condições favoráveis, evoluir e se articular (...)”. Entendido pelo autor como um correspondente psíquico de nossa impressão digital, o idioma diz respeito a uma estética particular, única, que nos determina, tendo sua origem constitucional nos primórdios da existência, quando experimentamos um ajustamento profundo com o objeto primário que nos dedica funções de cuidado básicas para seguirmos na vida (alimentar, banhar, abrigar, acolher...). No dizer de Bollas (1992), são momentos [...] sentidos como familiares, sagrados, reverentes, mas [que] escapam profundamente da coerência cognitiva. São registrados mediante uma experiência mais no ser do que na mente, porque expressam aquela parte em nós na qual a experiência da comunicação com o outro foi a essência da vida, antes da existência das palavras (p. 50). Estamos, pois, transitando em um campo que exige delicadeza, escuta atenta e sensível de quem recebe em seus espaços de trabalho demandas como a de Clarice. São de fato muitas as inquietações de ordem afetiva que pedem condições favoráveis para que seja possível atravessá-las quando nos dedicamos a escrever, imprimindo no texto nosso próprio idioma, e não um mero revozeamento de outros. Inquietações que pedem sustentação num espaço terapêutico, que podemos chamar de potencial e no qual, como propomos adiante, tem lugar um terceiro gerado no encontro de subjetividades. Seguimos então com nossa interlocução com autores que se dedicaram a pensar nos processos criativos, destacando a importância de o terapeuta exercer funções de cuidado nesse contexto, o que implica escuta atenta das inquietações e ansiedades trazidas por aqueles que buscam não desistir de escrever, que se propõe a vencer, ou ser mais rápidos, do que essa parte de nós que não escreve “... que está sempre nas alturas do pensamento, sempre ameaçando desmaiar, dissolver-se nos limbos do relato vindouro, que jamais descerá ao nível da escritura, que rejeita tarefas...” (Duras, 1987, pp. 27-8). Espaço potencial: espaço sagrado em que se experimenta o viver criativo Termo criado por Winnicott (1975, p. 163) para se referir a uma terceira área de experiência, o espaço potencial “é fator altamente variável (de indivíduo para indivíduo), ao passo que as outras duas localizações — a realidade pessoal ou psíquica e o mundo real — são relativamente constantes (...)”. Trata-se de um lugar-tempo entre o que é subjetivamente concebido e o objetivamente percebido que nos leva além da formulação habitual, segundo a qual, quando chegamos ao estágio de ser uma unidade, constitui-se uma espécie de membrana que limita rigidamente exterior e interior. Essa terceira área de experimentação nos permite descansar, de modo a suspendermos a necessidade de, a todo momento, discernir o que pertence à interioridade, campo subjetivo, e o que é da exterioridade, campo objetivo. Ou seja, as experiências vividas nesse espaço potencial possibilitam que nos situemos no mundo “de modo que o objetivo e o subjetivo possam coexistir” (Winnicott, 1975, p. 163). E é nele que o brincar acontece, com objetos que circulam no campo cultural e que nos foram apresentados pelo ambiente suficientemente bom, justamente para nos sustentar entre presenças e ausências, sonho e vigília. São objetos que iluminam nosso mundo, que não são alucinações, já que existem de fato, mas cuja essência não está no real, e sim nessa terceira área esboçada por Winnicott. No dizer de Bollas (1998, p. 8), trata-se do lugar em que encontramos “[...] a coisa para dar significado, no exato momento em que o ser é transformado pelo objeto. Os objetos de espaço intermediário são formações de compromisso entre o estado de mente do sujeito e o caráter da coisa”. Neste artigo, trabalhamos com o caráter da escrita, e de que formas podemos favorecer um estado de mente propício ao criar a partir do idioma pessoal. O conceito de terceira área nos remete ao par mãe-bebê e a toda narrativa winnicottiana acerca do processo de amadurecimento [4] , que tem início no momento de dependência absoluta da mãe, em que o bebê não distingue dentro e fora, eu e não-eu (o bebê é a mãe; e a mãe é o bebê), e caminha para a dependência relativa, quando começa a se tornar em condições de reconhecer e aceitar aspectos da realidade que compartilha com os outros. Em algum momento entre eles, constitui-se então esse espaço intermediário, transicional, que marca a diferença de sentidos de existência e que “tanto une como separa mãe e bebê”: Localizei essa importante área da experiência no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê e a mãe, quando o amor desta, demonstrado ou tornando-se manifesto como fidedignidade humana, na verdade fornece ao bebê sentimento de confiança no fator ambiental (Winnicott, 1975, p. 163). Como bem destaca Winnicott, o espaço potencial só pode vigorar quando as experiências vividas conduzem à confiança – entre bebê e mãe, criança e família, indivíduo e sociedade, ou ainda entre paciente e terapeuta – ponto central que destacamos neste artigo. A brincadeira infantil que nele tem lugar, “se expande [na vida adulta] no viver criativo e em toda a vida cultural do homem” (Winnicott, 1975, p. 163), de modo que aquilo que é permitido ao bebê é conservado na experimentação intensa que diz respeito aos objetos culturais, às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador. Trata-se da experiência de unicidade com o objeto, numa indiferenciação a ponto de toda a transformação de estados (Bollas, 1992) – no bebê, primordialmente corporais, como da fome à saciedade, da luz à meia luz, do vazio do silêncio à entonação da voz - ser vivida como obra própria, capacidade de criar a partir do que se necessita para viver, sentir prazer, em um corpo vitalizado. No adulto, entra também, com mais força, a capacidade de criar símbolos, que nos remete à criatividade psíquica enunciada por Milner (1991) - para contribuir com novos símbolos e meios de expressão no campo cultural, diz ela, é preciso se manter a meio caminho entre o sonhar acordado e alguma intenção, assim participando com vitalidade e originalidade da criação do mundo exterior. Nas artes, diz respeito a fazer um símbolo para o sentimento e na ciência, para o ato de conhecer. Tudo o que digo sobre as crianças brincando realmente aplica-se também a adultos, apenas é mais difícil descrever o que acontece quando o material do paciente aparece predominantemente em termos de comunicação verbal. A meu ver, a expectativa de encontrarmos o brincar na análise de adultos deve ser tão grande quanto no trabalho com crianças. Ela se manifesta, por exemplo, na escolha de palavras, nas inflexões de voz, como também, com certeza, no senso de humor (Winnicott, 1975, p. 61). Manifesta-se ainda nos rabiscos, pontos, vírgulas, reticências, no espaço branco entre blocos pretos – o necessário silêncio que deve figurar entre palavras – até o texto se completar, como veremos no episódio clínico aqui em pauta. Nele, fica clara a necessidade de “trazer o paciente da condição de não conseguir brincar para outra, em que ele consegue brincar” (Winnicott, 1975, p. 59). A esse respeito, em artigo anterior, destacamos que, para conseguir brincar, o paciente “precisa desenvolver a capacidade de ser criativo, de modo a liberar o trabalho da imaginação – criar o mundo e torná-lo significativo e real, de modo vivaz, polissêmico” (Perrotta &Cintra, 2014, p. 954). Oferta de materialidades no Espaço Potencial Afinada com o pensamento winnicottiano, Marion Milner também trata de como as bordas eu-outro podem se misturar num processo criativo, levando à transformação subjetiva. Assim como Winnicott, aborda a função de cuidado do ambiente de apresentar objetos-materialidades que possibilitem essa transformação, e que aqui neste artigo diz respeito à linguagem escrita: O ambiente deve prover condições nas quais seja possível um retorno recorrente do sentimento de ser um. Para isso, deve necessariamente ofertar espaço e tempo enquadrados, além de meios plásticos, de modo que em certas ocasiões, não vai ser necessário que se distinga, para finalidade de autopreservação, entre o interior e o exterior, self e não-self (Milner, 1991, p. 106). Nos primórdios da existência, quando ainda não nos era possível discernir eu-outro, realidade interna e externa – ainda envoltos na onipotência, criar e descobrir se misturavam. E essa disposição retorna quando brincamos com meios plásticos, maleáveis e responsivos ao nosso gesto expressivo pessoal – a escrita pode ser um deles. São esses momentos de vital ilusão que nos fazem sentir vivos, pois não precisamos decidir o que é o si mesmo e o que é a alteridade – momentos de ilusão, mas ilusões que certamente são a raiz de todo senso de existência e entusiasmo vital (Milner, 1991 citado por Perrotta & Cintra, 2017, p. 133). Essas experiências nos possibilitam crescentes integrações em nossas vidas e, pela temporária fusão do sonho com a realidade externa, permitem que o sonho em si se torne dotado de qualidades reais. Assim, a experiência se torna enriquecida quando aproximamos o objeto transfigurado a si mesmo (seu self): Sem uma transfiguração pessoal do mundo externo, ele não alcança nenhum significado. Sem ilusão, sem apercepção criativa, o mundo não alcança um senso de existência. Não temos como ver algo se não lhe atribuímos um sentido. E, ao dar um sentido, necessariamente, propomos uma transformação. A substância do que experimentamos é o que colocamos naquilo que vemos. Sem uma contribuição pessoal, nada podemos ver. E assim vamos desenvolvendo nossa capacidade de filosofar, de criar sentidos, de encarar a vida e lidar com o mundo externo. Isso significa viver de modo integrado, criativamente, com possibilidades de realizar potenciais de forma plena (Milner, 1991 citado por Perrotta, 2014, p. 139). Em encontros dessa natureza, limites e potencialidades da materialidade – no caso, a escrita - convivem em estado de tensão, por vezes, desgastante. O equilíbrio é mesmo tênue, precisamos escapar do desgaste, gerado quando regras e protocolos se destacam do sentido: escrever bem, mas para quem, e com quais intenções? Muitas vezes, os protocolos ganham força e ameaçam interceptar o gesto espontâneo, ameaçando o projeto de escrita autoral – talvez uma forma de o autor, ainda inseguro de suas capacidades, esconder-se em palavras esvaziadas de sentido, numa organização defensiva que comunica temores a serem nomeados no espaço terapêutico. É preciso, pois, presença humana para sustentar inseguranças e frustrações para que dizeres investidos de pessoalidade, que apresentem o idioma pessoal, sejam compartilhados no espaço público, de modo que o que se tem a comunicar reverbere na realidade compartilhada, gerando a criação de novos sentidos e pensamentos. No caso de Clarice, o que ela tinha a comunicar a outros pesquisadores de sua área significava uma contribuição fundamental, que poderia abrir novas possibilidades de atuação, pautada na ética e no respeito à dignidade e no potencial criativo do grupo de mulheres, que, com o trabalho, iam se sentindo cada vez mais pertencentes a uma comunidade capaz de se fazer ouvir, reagindo saudavelmente às humilhações vividas no campo social. A constituição do terceiro analítico em um espaço de confiança Referindo-se ao sujeito intersubjetivo de Winnicott, também Ogden (1996, p.45) discute a ideia, destacando que o espaço entre mãe e bebê envolve tensões dialéticas de unidade e separação, “de internalidade e externalidade, por meio das quais o sujeito é simultaneamente constituído e descentrado de si mesmo”. São elas: dialética de estar-em-um estar separado, que se refere à preocupação materna primária; dialética de reconhecimento e, ao mesmo tempo, negação do bebê no papel especular da mãe; dialética da criação e, ao mesmo tempo, descoberta do objeto na relação com o objeto transicional, e por fim, dialética da destruição criativa da mãe no uso do objeto. Cada uma delas “representa uma faceta diferente da interdependência entre subjetividade e intersubjetividade” (Ogden, 1996, p. 45). O autor delineia também outra ideia que faz referência tanto ao conceito de espaço potencial como de identificação projetiva, pensado por Melanie Klein, além de trazer influências teóricas da obra de Bion (Ribeiro, 2020). Trata-se do terceiro analítico, conceito postulado em 1994 por Thomas Ogden e que diz respeito a um fenômeno que surge a partir do encontro de duas pessoas e que podemos representar de uma forma simples: um mais um é igual a três. Para o autor, no encontro entre duas personalidades, há a formação de uma área que pertence à dupla, e não mais ao mundo interno de um e de outro. O que surge nesse encontro é, portanto, único - um fenômeno que acontece a partir da interação entre duas pessoas, mas que está em uma terceira área da experiência que é criada. Como uma analogia imagética para pensarmos o terceiro analítico, vamos imaginar dois saquinhos de chá imersos na mesma água – trata-se de uma metáfora fantástica para a compreensão desse fenômeno intersubjetivo. A água é criada pelo encontro, a água é o terceiro elemento criado e que, concomitantemente, produz efeitos nos dois elementos iniciais. O terceiro analítico é criado e recriado ativa e continuamente por cada um dos parceiros, sendo que cada um tece então o seu próprio terceiro analítico que entra em relação com o terceiro analítico do outro. O elemento fluído água seriam as emoções que circulam produzidas por esse terceiro elemento; ou seja, algo que é produzido pelo encontro, o terceiro elemento água, mas que passa, também, a produzir novos efeitos, em um processo contínuo. Outra imagem que podemos ter em mente para compreender o conceito é a do Rio Negro que se encontra ou colide como o Rio Solimões no Estado da Amazônia: águas escuras e águas barrentas caminham por quilômetros com suas cores diversas, criando, conforme a correnteza segue, uma água comum, de cor singular, que não é mais Negro nem Solimões, uma terceira água se forma com formas únicas e irrepetíveis. No contexto terapêutico, podemos dizer que se trata de o terapeuta se permitir tanto destruir como ser destruído pela alteridade da subjetividade do paciente, de modo que possa “escutar um som que emerge dessa colisão de subjetividades que é familiar, embora seja diferente de qualquer coisa escutada antes” (Ogden, 1996, p. 3). Público ou gaveta? – destino que damos a materialidades que criamos Mas o que mais estaria implicado nesse espaço potencial de destruição mútua, necessária para se dar vazão aos processos criativos? Claro está que se há destruição de objetos, há também as ansiedades provenientes de fazê-lo. Vamos começar por uma das ansiedades descritas no texto “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos”. Nele, Winnicott (1963) fala do medo que todos temos de nos expor, da fantasia de sermos “devorados e engolidos”, ou descobertos, o que remete à maneira como entende o processo de amadurecimento no que se refere à comunicação com o objeto – o outro. Destaca então: “[...] naturalmente ocorre uma mudança no propósito e nos meios de comunicação à medida que o objeto muda de ser subjetivo a ser percebido objetivamente (...)” (p. 166). Quando o que prevalece é a apercepção subjetiva do objeto, obviamente, a comunicação com ele não necessita ser explícita, basta existir. Ao contrário, quando o objeto vai se tornando objetivamente percebido, então surge a necessidade de se utilizar modos de comunicação explícita – mas surge também a necessidade de não comunicação, forma de o indivíduo preservar seu núcleo pessoal ou verdadeiro self. Seria, no dizer do autor, um “uso sadio da não comunicação no estabelecimento do sentimento de realidade”. Há, pois, um núcleo da personalidade que corresponde ao eu verdadeiro e que nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos: “Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade nunca encontrado” (Winnicott, 1963, p. 170, grifos do autor). Mas há outras ansiedades muito bem enunciadas por Milner, presentes quando decidimos tornar nossas ideias públicas, compartilhando nossas criações. Diz a autora que os estados de ilusão de unicidade com a materialidade, necessários para acionarmos em nós a condição de criar, requerem a capacidade de tolerar a perda temporária do self, a desistência temporária da discriminação, que fica tentando ver objetivamente as coisas, sem as cores emocionais. Êxtase, contemplação, estados de elevação de consciência são próprios do criar e “não podem ser tratados exclusivamente no campo das alucinações, pois assim deixamos de perceber o quanto permitem liberdade à criatividade originária e possibilitam a sustentação de sentimentos que inibem o criar” (Milner, 1991 apud Perrotta & Cintra, 2017, p. 152). A autora destaca ainda que a capacidade criativa deriva de experiências corporais muito primitivas. As crianças, então, se oferecem por meio de seus produtos e têm grande interesse por tudo que envolve o corpo, como comer, urinar, cuspir, vivendo um deslumbramento quando se dão conta de que podem produzir coisas com ele e ofertá-las. Mas, além da satisfação, também se fazem presentes as inibições, pois há um grande desapontamento quando esses “presentes” não são recebidos com a mesma intensidade com a qual foram produzidos. Sentimentos amorosos de alegria investidos na hora da oferta, processos subjetivos não são completamente veiculados na materialidade, e o choque desse descompasso pode ser tão profundo que a pessoa passa a acreditar que tudo que cria não é vivo. Criar significa produzir algo sem valor, não atrativo, não significativo. Essa decepção leva a um estado subjetivo de ruptura que a faz colocar em questão a própria criatividade, e esse sentimento pode voltar à tona diante de algum projeto que envolva a entrega de algo muito próprio a possíveis interlocutores, nem sempre hospitaleiros aos gestos pessoais. Ainda tendo a criança em mente, a autora afirma que ela vai se dando conta de que sua “linda sujeira” não é um belo poema quando alcança o estágio de reconhecer a mãe como pessoa, e não mais como produto de sua criação – uma pessoa de quem recebe amor e para quem oferece amor. Mas, se os produtos corporais não são mais satisfatórios, de que maneira comunicar o amor? É preciso desvelar outro meio para a expressão de sentimentos: as provisões ofertadas pelo campo cultural. Para delas usufruir, é preciso simbolizar essa experiência de natureza orgástica, que é a indiscriminação entre orifícios do corpo e seus produtos, criando uma “linguagem do amor”. Daí a necessidade de sentir o corpo vivo e, ao mesmo tempo, identificar os “materiais não-vivos” por ele produzido. Trata-se, justamente, do trabalho do artista: “conferir vida aos pedaços da matéria ‘morta’ do mundo externo, o meio escolhido” (Milner, 1991, p. 219) Como então chamar para a comunicação, dissolver fantasias de ser devorado? Como contrapor a decepção diante das vozes de outros que se posicionam como avaliadores de nossos produtos, e tantas vezes os recebem de forma excessivamente crítica e despotencializadora? É possível tornar vivo dizeres que circulam em uma esfera de comunicação tão tradicional como a científica? Ou nos resta seguir a tradição, economizando em marcas pessoais de expressão? Pensamos que se trata de criar um espaço de confiança, em que o terceiro tem lugar e em que o revelar-se ao outro preserve silêncios, não ditos apenas insinuados, brancos entre palavras de que falávamos antes, a serem completados pelo interlocutor - um verdadeiro jogo de luzes, sombras, meios-tons, fronteiras borradas, como numa aquarela. Nele, a destruição mútua tem lugar, porque se trata de destruir para criar, a partir da “colisão de subjetividades”. Apresentamos então um episódio clínico, vivido no Espaço Terapêutico, e potencial, da Escrita, em que um terceiro se formou a partir de encontros repletos de rabiscos, idas, vindas, em que foi possível escutar o som advindo da colisão de subjetividades disponíveis a escrever e em que a dupla conseguiu vencer, ou ser mais rápida do que essa parte de nós que teme se comunicar e não ser compreendida em seu idioma pessoal, que teme expor dores e pensamentos “[...] que está sempre nas alturas do pensamento, sempre ameaçando desmaiar, dissolver-se nos limbos do relato vindouro, que jamais descerá ao nível da escritura, que rejeita tarefas...” (Duras, 1987, pp. 27-8). Clarice, muito antes de tudo moinho de versos movido a vento em noites de boemia vai vir o dia quando tudo que eu diga seja poesia (Paulo Leminski, 2002, p. 49) Clarice é poeta. Arrisca-se também nas artes plásticas, mas, quando me procurou pela primeira vez, com sua pasta de poesias, algumas inclusive já premiadas, logo vi, Clarice é, antes de tudo, poeta. “Muito antes de tudo”, na verdade, título que deu a uma série de poesias que me tocou muitíssimo, talvez pelo silêncio que fala tanto ou mais do que as próprias palavras, de toques de mãos, portas entreabertas, de flores e alívios. Além de atender adultos em “crise” com a produção acadêmica, também me dedico a ajudá-los em outros projetos discursivos, como este de Clarice: trabalhar um pouco mais suas poesias, organizá-las por temáticas ou por qualquer outra categoria, uma ou outra pincelada. Mas o que importava mesmo eram nossos encontros, a revelação do quanto suas palavras me encantavam, de que forma reverberavam, a que memórias me remetiam, os sentidos inéditos que íamos criando juntas. Fui apenas, e antes de tudo, uma leitora de sua obra, e assim ela emoldurou nossa parceria em certa ocasião: Comunhão entre dois mundos. Espaço de encontro, onde um sopra e o outro respira. Nem só alma, nem só carne. O amor é feito de mescla. Respiração boca a boca que chama de volta pra vida (citado por Perrotta, 2014, p. 170). Eu me envolvia de tal forma com seus escritos que me via vivendo a experiência muito bem descrita por Thomas Ogden (1996, p. 1), que remete ao terceiro analítico de que falamos anteriormente: Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até pôr à prova as ideias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica uma forma de encontro muito mais íntima. Você, o leitor, precisa permitir que eu [escritor] o ocupe - seus pensamentos, sua mente - já que não tenho outra voz para falar a não ser a sua. Ao ler, precisamos nos dar o direito de pensar os pensamentos do escritor, que precisa se permitir tornar-se os pensamentos do leitor: [...] assim, nenhum de nós será capaz de reivindicar o pensamento como sua criação exclusiva (...) Um terceiro sujeito é criado na experiência de ler. Sujeito este não redutível ao escritor e nem ao leitor. A criação de um terceiro sujeito (que existe em tensão com o escritor e o leitor como sujeitos separados) é a essência da experiência de ler (...), e é também o núcleo da experiência psicanalítica (Ogden, 1996, p. 1). Foi certamente a necessidade de voltar pra vida que levou Clarice a me procurar novamente, cinco ou seis anos depois, agora com outro pedido: havia sido solicitada a escrever um artigo sobre um belo trabalho que vinha desenvolvendo já há alguns anos no contexto de sua área de atuação. Ocorre que Clarice não fazia a menor ideia, segundo me relatou, de como compor um artigo, pois, até então, não havia se experimentado nesse tipo de texto. Para ajudá-la na tarefa, seu supervisor lhe indicou um colega já bem experiente na produção acadêmica. E a partir daí, teve início a aflição de Clarice. Esse colega começou por questionar qual seria a relevância do trabalho que pretendia publicar. “Relevância?”, estranhou, “o que isso quer dizer, exatamente?”. O acento apreciativo que sentiu nesse questionamento, vindo de uma autoridade em uma esfera de comunicação de pouco domínio por parte de Clarice, levou-a a formular a seguinte resposta: “não deve ter nenhuma, é só uma história que tenho pra contar, devem ter muitas outras muito mais interessantes ou relevantes!”. Em seguida, o colega começou a sugerir o conteúdo temático de cada parte, de um modo padronizado, sem considerar o que Clarice realmente desejava compartilhar com o público leitor: “mas não vejo sentido em fazer isso”, indignou-se Clarice, “não é algo que me mobiliza no trabalho que realizo”. Diante dessas orientações, ou dessa voz tão sabedora, Clarice sentiu-se incapaz de realizar o projeto acadêmico. “Descobri que sou burra.”, declarou em nosso primeiro reencontro. Conversamos sobre esse sentimento e fomos percebendo que, na verdade, o fato de não ter produzido, até o momento, um texto de natureza conceitual, colocava Clarice em um lugar hierarquicamente inferior ao colega, por sinal, mais jovem, visto como mais hábil e competente para escrever um artigo. De certa forma, ela estava apartada da comunidade de autores de textos acadêmicos. Emoldurar esse sentimento de humilhação, de certo modo, fortaleceu Clarice, levando-a, inclusive a sentir na pele o que viviam as mulheres com quem trabalhava. Ela então decidiu enviar um primeiro rascunho ao colega “eleito” para ajudá-la. Diante da resposta, logo se comunicou comigo, contando que havia “travado de novo” e nem sabia mais por onde retomar... De fato, a resposta foi um tanto desvitalizante. Resumia-se a uma série de pressupostos sobre o que seria uma produção acadêmica, diferenciando-a do registro poético, campo expressivo caro à Clarice. Segundo o colega, um leitor de poesia quer apenas fruir o texto, enquanto o leitor de textos científicos quer aprender e não ser surpreendido, não lê por ler, lê de modo pragmático e utilitário. Por isso, o texto precisa ser claro, organizado e convencional. Com isso, o isolamento se acirrou – todos tinham competência para a produção acadêmica, e ela, “apenas” para a poesia... O colega também lhe passou uma nova tarefa: escrever o resumo do artigo, e já com orientações de quais padrões deveria seguir. Temi que Clarice se fragilizasse diante da assertividade do colega e acabasse por desistir. Afinal, como escreveu certa vez, tal qual porcelana fina, as delicadezas da alma também quebram... Mas não foi o que ocorreu. Logo respondi à Clarice, dispondo-me a uma nova sessão, antes do dia que havíamos combinado. Ela chegou um tanto abatida, me deu a impressão de estar tensa, meio brava ou raivosa. Foi logo dizendo: “não é possível que isso seja tão difícil de fazer!”. Concordei, “não é mesmo, é mais fácil, num certo sentido, do que escrever poesia!”. E a presenteei com uma página repleta de várias que havia escrito na ocasião de nosso primeiro trabalho. Ela sorriu, a tensão inicial foi se dissolvendo, relemos juntas, apreciando o quanto estavam belas, precisas, em especial no que se refere à concisão e abertura para o leitor fazer suas viagens... Mas a tarefa do resumo se impunha com urgência, e era fundamental realizá-la. Clarice fez algo bem interessante. Procurou resumos de trabalhos escritos por outros colegas, modelos nos quais se inspirar. Também fui compreendendo a “braveza” de Clarice como positiva, um estado emocional que indicava o quanto estava se sentindo desafiada e instigada a sair daquele lugar frágil, de incompetência e inferioridade. Partimos de seus rabiscos. Ela ditava e eu ia registrando no computador. Parávamos a cada frase, buscando palavras que precisassem o que o leitor encontraria ao ler o artigo. Fomos assim trabalhando as regularidades de um artigo acadêmico sem deixar de contemplar o idioma de Clarice, o arsenal de palavras, expressões, construções frasais que compõem seu repertório. Partíamos do conhecimento prévio que trazia sobre esse tipo de produção, potencializando capacidades escritoras existentes, embora não acionadas nos últimos tempos, simplesmente porque vinha se dedicando a escritos de outra natureza. Sua própria experiência como leitora de produções acadêmicas lhe garantia certa competência inicial para a produção, que precisaria então ser sofisticada, contando com uma parceria suficientemente boa. Também refletimos juntas sobre a visão do colega a respeito do texto acadêmico. Será mesmo que o leitor desse tipo de texto não quer ser surpreendido? Busca apenas um escrito convencional? Será que a natureza do trabalho realizado por Clarice estaria contemplada em um dizer mais pragmático, seria mesmo apenas um instrumento para o aprendizado? Não caberia a expressividade, marcas de autoria, no caso de Clarice, banhadas pelo dizer poético? Obviamente, há sim inúmeras formas de registrar ou, melhor dizendo, legitimar práticas, reflexões na academia. Há sim certa flexibilidade entre os polos: seguir à risca a convenção, sem nunca surpreender o leitor, ou descaracterizá-la totalmente, frustrando o leitor em sua busca por conhecimento [5] . Propus a Clarice que experimentássemos transitar entres esses dois polos, considerando o perfil das produções do grupo, e arriscando sim “sujar” o texto com marcas expressivas, de modo a não se constituir por um dizer apenas submetido à voz hierarquicamente dominante. E o resumo foi se concretizando; para isso, foi fundamental que eu sustentasse certa impaciência, certa resistência de Clarice para entrar no jogo, brincar com as convenções, arriscar-se nas potencialidades e limites da materialidade escrita conceitual, da mesma forma que me contou ter brincado, recentemente, com as regras do haicai. Interessante como a capacidade criativa de Clarice estava muito estabelecida em outros registros. Quais seriam as memórias que trazia em relação à esfera acadêmica de comunicação? Certamente, mais de fracassos do que de conquistas, talvez por ser essa materialidade apresentada como pouco maleável, pouco afeita, portanto, para receber o gesto pessoal expressivo. Já no haicai, o criar fluía, e as regras não se mostravam impeditivas – aqui, o interjogo comunicar-se e, ao mesmo tempo, permanecer escondido nas metáforas estava garantido para Clarice. Ao contrário, a materialidade escrita acadêmica parecia ameaçá-la com uma superexposição, em que tudo deveria ser minuciosamente explicado, sujeito a críticas, quem sabe “ferozes” – Clarice talvez temesse ser então devorada, e quebrar, qual porcelana fina... Entre idas e vindas, Clarice foi deixando de “brigar” tanto com a materialidade, e no decorrer dos atendimentos, contando com minha presença, por vezes apenas como testemunha da briga, foi começando a mostrar uma disposição para aprender, sem se submeter. Ao mesmo tempo, ia apresentando o objeto, a materialidade em questão, com suas regularidades e tradições, abrindo um espaço para que ela se percebesse em condições de trazer algo novo para esse campo, uma nova composição de palavras, um novo ponto de vista. Há certa tensão aqui, a necessidade de “negociar” entre um dizer mais apegado à tradição – lugar que, no caso de Clarice, o colega orientador do artigo insistia em mantê-la – e a abertura para o gesto pessoal – banhado pelo registro poético, no caso de Clarice. Não estava fácil. Passaram-se alguns dias, Clarice me chamou novamente, dizendo se sentir cada vez mais engessada: Vou me sentindo tão burra que nem sei se compreendi, nem sei se faço um bom trabalho mais. Me desorganizou! De fato, após nova troca de mensagens com o colega a respeito do resumo, este insistia: “há uma ordem certa”, “não se pode colocar palavras que pertencem a um item em outro”. E, mais ainda, desta vez ele propunha reformulações de cada um destes itens, objetivo/relevância/metodologia/resultados e a conclusão deveria ter uma frase de praxe, substituindo praticamente todas as palavras de Clarice, que, obviamente, só poderia mesmo se sentir “engessada”... Lendo juntas o novo e-mail do colega, que fez questão de apontar as mudanças que “sugeria” em caixa alta, e impondo expressões como PROCEDIMENTOS INVESTIGATIVOS, PRODUÇÃO INTERPRETATIVA, e ainda LOGROU BENEFICIAR, estranhos ao repertório de Clarice, conseguimos enfim encontrar palavras mais próximas a seu idioma, sem descaracterizar o tipo de produção. O que mais a feria era de fato a insistência do colega em afirmar que Clarice deveria escrever um artigo de modo pragmático, pensando no leitor de textos científicos, que, ao contrário do leitor de poesia, não busca prazer estético, e sim soluções que devem ser fundamentadas cientificamente. Com isso, afetava Clarice, justamente, na possibilidade de, diante de um discurso ainda pouco experimentado, “criá-lo para encontrá-lo” - matriz fundamental da experiência criativa, banhando o objeto com sua subjetividade, no caso, muito marcada pelo registro poético. Faltava aqui certa hospitalidade – Clarice era uma nova visitante do universo acadêmico, uma iniciante, recém-chegada; caberia, de meu ponto de vista, ser recebida com amabilidade e generosidade, sendo apresentada à materialidade ou objeto cultural escrita acadêmica em pequenas doses, de modo que se percebesse com possibilidade de trazer algo de novo a esse universo, suas contribuições pessoais, de modo a enriquecê-lo com suas experiências e reflexões. Isso não significava, como me parece que o colega concebia, que Clarice descaracterizaria o objeto ou deixaria de seguir certas tradições, não deixaria de conceituar, de dissertar, mas poderia fazê-lo de modo mais vivaz e pessoal se fosse reconhecida em sua capacidade criativa. Acompanhei o processo de Clarice até o momento em que, mais fortalecida, confiante, com funções de cuidado internalizadas, ela pôde tomar decisões e continuar a completar seu artigo-obra: Não é um verdadeiro texto “pra chamar de meu”, mas ficou fiel ao trabalho que desenvolvi. Agora, de volta as poesias! E para que não se esquecesse, como resposta, lhe enviei Itamar Assunção (1993) [6]: Se a obra é a soma das penas, pago, Mas quero o meu troco em poemas Considerações finais Nenhum escritor tem a seu dispor uma língua já feita. Todos nós temos de encontrar uma língua própria que nos revele como seres únicos e irrepetíveis. (Mia Couto, 2009, p. 23). A escrita dá à luz pensamentos, necessitando também de um trânsito pelas dores psíquicas que fazem parte de qualquer criação humana. O texto psíquico que habita em nós é infinito - como o inconsciente, trata-se de uma constante imanência. Assim como as crianças brincam, os adultos jogam e brincam com palavras e teorias, sonham seus textos que são ofertados ao mundo, aguardando a hospitalidade do outro, um leitor no futuro que dê vida novamente ao texto. No espaço potencial de um processo analítico, aqui tendo a escrita como objeto mediador, construímos, a quatro mãos, narrações transformadoras, interpretações narrativas, construções, com seu infinito leque de personagens e composições singulares. Mia Couto (2005, p. 45) também aproxima o texto científico de uma obra de arte: Sou escritor e cientista. Vejo as duas atividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. Por mais que se tenha domínio técnico, ou do tema a ser abordado em um projeto discursivo, todos nós, se envolvidos de fato com o escrever como expressão de si no mundo, como busca de terreno (in)comum para o diálogo gerador de inquietações que abra novas possibilidades de pensar, todos somos tomados de ansiedades próprias do criar como aquelas que afetaram Clarice. Para sustentá-las, precisamos de parcerias dialógicas, de escuta sensível, de presença humana que nos impulsione a criar sentidos, novas formas de pensar e comunicar sonhos. Isso nos iguala, independentemente de nossa experiência com a materialidade, do quanto temos desenvoltura em seu uso, ou de nosso percurso profissional, de vida. Assim, ainda que todos tenhamos necessidade de nos comunicar, de dar-nos a ver ao outro, aparecer, ser visto; e ainda que seja inconcebível pensamento sem discurso (Arendt, 1993), a escolha deliberada do que mostrar e do que ocultar não acontece sem conflito e alguma, ou muita, tensão. A arte de escrever se mistura à de ser. A precariedade, portanto, está sempre presente. Tudo é muito incerto, instável, e nisso reside a potencialidade para criar – sem essa qualidade, somos jogados a uma objetividade estéril, repleta de explicações, teorias, conceitos e analgésicos. O escrito, no fundo, sempre surpreende. Tanto por nele encontrarmos materializada uma articulação que não sabíamos tão bem constituída como por nos percebermos mais distantes daquilo que supúnhamos já tão composto no pensamento, tão suficientemente digerido e equacionado - a escrita revela essa cisão. Escrever é, precisamente, um percurso repleto de sobressaltos e espantos. Referências bibliográficas ARENDT, H. (1993). A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. (2 ed). Relume Dumará. BARROS, M. (1996). Livro sobre nada. Alfaguara. BOLLAS, C. (1998). Sendo um personagem. Revinter. BOLLAS, C. (1992). A Sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado. Imago. COUTO, M. (2013). A confissão da leoa. Companhia das Letras. COUTO, M. (2005). Pensatempos. Textos de opinião. Editorial Caminho. DURAS, M. (1987). A Vida Material. Globo. MILNER, M. (1991). A loucura suprimida do homem são. Imago. OGDEN, TH. (1996). Os Sujeitos da Psicanálise. Casa do Psicólogo. OGDEN, TH. (2010). Esta arte da psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Artmed. OGDEN, TH. (2013). Reverie e Interpretação. Escuta. PERROTTA, CM. (2014). Processos criativos no espaço terapêutico da escrita: um diálogo com D. W. Winnicott, Clare Winnicott e Marion Milner (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. PERROTTA, CM & Cintra, EMU. (2014) Kafka, Winnicott e a boneca viajante: perder, narrar, resgatar. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. V. 17, n. 4/dez. 2014, pp. 943-54. http://doi.org/10.1590/1415-4714.2014v17n4p943.10 PERROTTA, CM & Cintra, EMU. (2017). O universo de Terabithia: imaginação, sonho e objetos culturais como possibilidades de trânsito da realidade psíquica à realidade compartilhada. Psicologia Revista, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde/PUC-SP, volume 26, n.1, 119-142. RIBEIRO, M. (2020). Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor. Ágora (PPGTP/UFRJ), V. 23, pp. 57-65. WINNICOTT, DW. (1963/1983). O ambiente e os processos de maturação. ArtMed. Winnicott, WINNICOTT, DW. (1975). O brincar e a realidade. Imago. https://revistas.pucsp.br/index . php/psicorevista/article/view/30266 Notas 1 Psicanalista e fonoterapeuta, docente dos cursos “Formação em Psicopedagogia” e “Winnicott: experiência e pensamento”, ambos do Instituto Sedes Sapientiae, idealizadora do projeto cultural de cinema itinerante Cine Boa Praça. Pesquisadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea – LipSic. Endereço: Rua Artur de Azevedo, 1537, apt 103, Pinheiros, 05404-014 São Paulo – SP, (11) 996882442 claper.coda@gmail.com . 2 Psicanalista. Professora Dra. do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Faculdade de Psicologia (PUC-SP). Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea – LipSic. Endereço: Rua Alcides Pertiga, 65, Cerqueira César, 05413100 São Paulo – SP, (11) 971521119 elcintra01@gmail.com 3 Psicanalista. Livre docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia (IPUSP). Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea – LipSic. Endereço: Cidade Universitária Instituto de Psicologia Av. Prof. Mello de Moraes 1721, Bloco F, 05508-030 São Paulo – SP, (11) 998510331 marinaribeiro@usp.br 4 Nesse espaço transicional (e potencial) entre a mãe e o bebê surge então, o que o autor denomina objeto transicional. Sempre recorte de uma materialidade, esse objeto localiza-se nessa área intermediária e indica uma transição do bebê de um estado em que está fundido com a mãe (ilusão) para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado – é a primeira posse não-eu. Ou seja, a ilusão dá lugar ao objeto transicional - este pertence à área intermediária de experiência; faz e não faz parte do corpo do bebê (paradoxo que não deve ser solucionado e sim aceito) e embora ainda não seja reconhecido como pertencente ao mundo externo, ainda está sob controle mágico, mas também já se encontra fora de seu controle, como a mãe, que vai sendo reconhecida pelo bebê como alguém com vontades próprias, com necessidades. 5 Sobre a estabilidade dos gêneros discursivos, Bakhtin (1952-53/1979, p. 279) define: “Todas as esferas de atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. O caráter e os modos dessa utilização são tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, a seleção operada nos recursos da língua – lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indiscutivelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação”. 6 ASSUNÇÂO, I. (1993). “Se a Obra é a Soma das Penas”. In: Bicho de 7 Cabeças - Vol. I. http://www.vagalume.com.br/itamarassumpcao/discografia/
- Inveja e gratidão: flutuações da criatividade e esperança no mundo psíquico [1]
Este artigo foi publicado em 2024 na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Autores: Maysa Marianne Silva Bezerra [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3]. Resumo: Este artigo pretende discutir o texto seminal de Melanie Klein, Inveja e gratidão (1957), no intuito de articulá-lo com os fenômenos da esperança, desesperança, criatividade e destrutividade. Na leitura realizada, observamos que a inveja é um solo fértil para o crescimento da desesperança e destrutividade. Enquanto a capacidade de ter gratidão pode levar o indivíduo a ser esperançoso e ter uma vida criativa, o contrário seria possível? Ser invejoso e ao mesmo tempo ter criatividade e esperança? Com base no dualismo pulsional freudiano, do qual Klein não abriu mão na construção da sua metapsicologia, respondemos que sim, primordialmente a partir da introjeção do objeto bom, que possibilita a elaboração da inveja, elemento que enfatizaremos a partir da figura do analista no processo clínico. Para elucidarmos cada um desses elementos, iremos utilizar o conto “A legião estrangeira” de Clarice Lispector (1999) como fio condutor ao longo de todo o texto. Palavras-chave: Inveja, gratidão, esperança, desesperança, criatividade, destrutividade. Introdução Muito teria a se falar sobre o tema da inveja e gratidão na contemporaneidade, visto que esse texto seminal de Klein, escrito há mais de seis décadas, continua vivo e produzindo reverberações no pensamento clínico. No entanto, a ênfase a ser dada nos tópicos seguintes será a articulação da inveja e gratidão com os fenômenos da criatividade, esperança, destrutividade e desesperança. Em alguns momentos essas ideias encontram-se em oposição entre si e, em outros, em conjunção. Lembrando que, ao longo da escrita, iremos retomar o conto de Clarice para articulá-lo com as ideias propostas. Inicialmente, pretendemos tomar como referência a noção construída por Melanie Klein no texto Inveja e gratidão (1957/1991a), no qual considera que esses sentimentos são opostos e interagentes, e normalmente operantes desde o nascimento do bebê, para realizar a hipótese que a criatividade e a esperança [4] — mesmo não necessariamente opostos — são fenômenos enquadrados na mesma lógica, e que, também, estão presentes desde os primórdios do desenvolvimento psíquico como entrelaçados ao sentimento de gratidão. A destrutividade e desesperança seriam representadas pela inveja, um elemento obstrutor da criatividade e esperança, pois dificulta a construção do objeto bom e da sua internalização no núcleo do ego, já que tem origem na pulsão de morte. Esses elementos se presentificam em uma oscilação constante entre movimentos de fragilidade e fortificação em cada situação da vida, mas, antes de esmiuçar esse material, vamos ao conto de Clarice Lispector e logo em seguida partiremos para a definição do que é a inveja primária. Ofélia e o pinto: a inveja mata O ovo ameaça disparar com a vida A reserva que um ovo inspira é de espécie bastante rara: é a que se sente ante um revólver e não se sente ante uma bala. É a que se sente ante essas coisas que conservando outras guardadas ameaçam mais com disparar do que com a coisa que disparam. (João Cabral de Melo Neto) No conto “A legião estrangeira”[ 5] de Clarice Lispector (1999) , o e u lírico narra sobre sua vizinha Ofélia, que se apresentava de forma pausada e firme como Ofélia Maria dos Santos Aguiar. Aos 8 anos “altivos e bem vividos" [6], a criança sempre impunha críticas severas a respeito de tudo — mesmo não tendo sido incumbida para tal encargo. Apontava o que considerava errado em cada gesto da narradora e vivia insatisfeita e ressentida sobre o que acontecia ao seu redor: “Na sua opinião, eu não criava bem os meninos”; “Banana não se mistura com leite. Mata”; “Não era mais hora de estar de robe”. Essas eram algumas censuras que vinham da criança que mais parecia um adulto rabugento e amargo com a vida. Mesmo tentando encontrar argumentos para as suas aparentes falhas, a mulher não tinha vez, a última palavra sempre era de Ofélia — a qual na maioria das vezes estava realmente com a razão. Inquieta, se perguntava: “Por que eu nunca, nunca sabia? Por que sabia ela de tudo, por que era a terra tão familiar a ela, e eu sem cobertura?”. A menina ocupava um lugar de verdade inquebrável, sem faltas, completamente preenchida pela soberba e arrogância. Era incapaz de perceber o tamanho das baboseiras que saíam da sua boca. Do pedestal criado pela sua altivez, nada enxergava. Sua onipotência orgulhosa a cegava. Ofélia ia embora, mas sempre voltava. Os defeitos da narradora eram como um campo magnético que atraía sua crueldade que, ora saía pela boca, por meio de suas ácidas palavras, ora pelo seu olhar silencioso e intransigente. A inveja era o veneno que escorria pelos seus “lábios finos” e corroía as suas “gengivas roxas”. Certo dia, ao passar pela feira, o eu lírico decide levar um pinto para casa, dia esse que coincidia com a visita rotineira de Ofélia. Ao ouvir o piar vindo da cozinha, a criança, depois de uma pausa atenciosamente silenciosa, questiona: “O que é isso?”. A dona da casa responde: “É o pinto”. “Pinto?”, indaga Ofélia em tom de suspeita e espanto. Após alguns instantes tentando compreender o que se passava, a narradora percebeu no olhar da criança algo que nunca tinha visto antes. Ela presenciou o encontro da menina com uma alteridade radical: a animalidade do entoar de um pinto, com todo o encanto e estranhamento que um corpo e vida distintos lhe provocavam. A narradora, ainda em estado de frenesi e perturbação com a cena, descreve: O que era? Mas, o que fosse, não estava mais ali. Um pinto faiscara um segundo em seus olhos e neles submergira para nunca ter existido. E a sombra se fizera. Uma sombra profunda cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara “eu também quero”, desse instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem, mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível, o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. ( Lispector, 1999, p. 359 ) A expressão ocular de Ofélia refletia a presença da maliciosa inveja que sentia da mulher, como se a narradora tivesse tudo e não precisasse de mais nada, pois possuía um pinto para si. Diante dessa constatação impiedosa, a menina se sentiu jogada às traças: Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto — se eu não estivesse ali, por astúcia, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos que pestanejaram à dissimulada sagacidade, nos olhos a grande tendência à rapina. Olhou-me rápida, e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça — ela me queria para ela. Devagar fui me reclinando no espaldar da cadeira, sua inveja que desnudava minha pobreza, e deixava minha pobreza pensativa; não estivesse eu ali, e ela roubava minha pobreza também; ela queria tudo. (p. 359) A mulher percebeu, em choque, cada detalhe que continha a “dor da alegria difícil” de uma pseudo adulta que estava a se metamorfosear em criança. Ela, ainda que com grande resistência e suplício, estava a “largar no chão o corpo antigo”. Na mutação, havia sinais da chegada de um corpo de criança com um olhar cintilante provocado pela exultação que cada descoberta da vida provia, diferente da antiga menina-adulta que nada mais a enebriava. O clamor da ambiguidade ao se defrontar com o pinto estava presente como arrepio até o seu último fio de cabelo. A angústia se passava lentamente, junto com um júbilo ainda encoberto, afinal de contas, não era tão fácil assim dar o braço a torcer e desnudar seu real desejo e curiosidade. Era malsucedida a sua tentativa de disfarçar e fingir a falta de interesse naquele outro ser. Ofélia sofria no ato de desejar e depender daquela que lhe oferecia o objeto de desejo, sentia-se envergonhada e humilhada diante desse traço que revelava a sua pequenez humana. Era possível ver o ressentimento que chegava como um soco na boca do seu estômago e deixava à sua carne em fiapos. O ódio ao amor se transfundia em cada gesto da menina. No entanto, como o nascimento e a assunção do desejo somente se dão na incubadora de outrem, a narradora precisou conceder uma permissão: “Você pode ir à cozinha brincar com o pintinho”. Ofélia respondeu, dissimulada: “Eu?”. O seu tom hipócrita encobria a culpa e vergonha por se sentir inferior pelo seu querer. A mulher insistiu, em um tom de liberdade de escolha e não de uma obediência oprimida: “Mas só se você quiser”. Com isso, sentiu que estava salvando a criança do seu próprio ódio, oferecendo um suspiro de vida naquela boca pálida, em que todos os órgãos da menina, ainda em formação, puderam ser oxigenados. Ao voltar da cozinha e trazer o pinto na mão, Ofélia estava em êxtase. A sua coragem e resto de dignidade a recobraram. “Ri. Ofélia olhou-me ultrajada. E de repente — de repente riu. Ambas então rimos, um pouco agudas”. Nesse momento, a menina pôde relaxar no seu contentamento e regozijo. Havia, naquele encontro, a existência de uma névoa da gratidão, sob a luz de uma insistente teimosia. A partir de então, ela pôs o pinto no chão e todos os passos dele eram acompanhados pelo olhar atento e encantado da menina: Se ele corria, ela ia atrás, parecia só deixá-lo autônomo, para sentir saudade; mas se ele se encolhia, pressurosa ela o protegia, com pena de ele estar sob o seu domínio, “coitado dele, ele é meu”; e quando o segurava, era com mão torta pela delicadeza — era o amor, sim, o tortuoso amor. (p. 363) Amor esse que poderia sufocar na tentativa de proteger. A ternura, se não fosse bem dosada, machucaria o corpo frágil do pinto. Portanto, Ofélia esbravejava: “só eu sei que carinho ele gosta”. Alimentá-lo — de vida — poderia ser perigoso, a garganta corria o risco de entalar se a comida fosse indevida ou em demasia. A menina afirmava que somente ela poderia fazê-lo: o amor era a sua posse. Ofélia vivia sob uma agonia em que a vida beirava constantemente a morte. Mesmo na corda bamba, ela se deleitava com a sua efêmera capacidade de amar e receber amor. Depois de colocar o pinto novamente na cozinha, o ambiente foi invadido por um silêncio inquietante. A menina tentou falar, mas parecia que agora já não era tão boa com as palavras, e então pediu permissão para ir embora e retornar à sua casa. Depois da partida da criança, a mulher, tomada por um estranhamento, resolveu ir, relutante, até a cozinha, em busca do bicho, e se deparou com o esperado, mas ainda assim, improvável: “No chão estava o pinto morto. Ofélia! Chamei num impulso a menina fugida”. Sozinha, ela tentou acalmar o coração da pobre criança, que já não estava mais lá: “Oh, não se assuste muito! Às vezes a gente mata por amor... A gente não ama bem!”. Na garotinha, o amor e a gratidão foram fugazes e se dissiparam, se perderam diante da imensidão devoradora da inveja, que a engoliu como uma grande avalanche. Dessa vez, Ofélia não voltou. E mostrou que desejar, desejar muito, muito mesmo, pode levar à morte: “a inveja mata”. A inveja primária A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas (...). A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor (...). Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício .(Ovídio) Pode ser estranho, para muitos leitores, pensar sobre o sentimento de inveja vivido por um bebê, por mais que esse afeto seja direcionado ao seio materno com todas as suas qualidades físicas e psíquicas necessárias para a vida. A inveja conhecida por nós adultos, conscientemente, se diferencia, em certa medida, daquela que Melanie Klein postula na relação arcaica com a mãe, de modo inconsciente, como afirmam Cintra e Ribeiro (2018) . A inveja, expressa pelo amor primário, possui um traço constitucional [7] e se presentifica em todos nós, obviamente, com variações em suas manifestações. Em relação a esse aspecto, as autoras afirmam que há crianças pouco propensas a usar o objeto bom [8], satisfazendo-se com menos facilidade e com uma baixa tolerância frente às frustrações, o que reforçaria o sentimento de inveja. O bom aparelhamento interno para usufruir do que o ambiente oferece, diz respeito a uma baixa voracidade, pois quanto mais voraz for o bebê, menos gratificação ele irá sentir e mais invejoso ele será. Por exemplo, caso a sucção do seio seja intensa, a passagem do leite é obstruída e isso amplifica o sentimento de insatisfação do bebê, gerando ódio e o ímpeto de atacar e destruir o objeto [9], já que não consegue introduzir e manter o leite dentro de si. Entre os fundamentos para que a inveja seja entendida como constitutiva na organização do psiquismo e o tipo de funcionamento descrito acima ocorra, estão os elementos bons do seio, entendido por Klein como “o protótipo da bondade materna, paciência inesgotável, generosidade e criatividade” (1957/1991a, p. 180). Nesse caso, quando frustrada, a criança sente que o seio guardou para si toda a gratificação desses componentes amorosos representados pelo leite, o que faz gerar ressentimento e ódio, desdobrando-se na inveja. Já o inverso também acontece, pois mesmo quando o bebê não é privado, ele sente o seio inexaurível [10] e a sua correlata gratificação como um dom impossível de ser atingido. Um distinto elemento importante para a inveja ser pensada como estruturante do aparelho psíquico é a experiência de plenitude vivida pelo bebê na barriga da mãe, pois, nesse estado, nada falta, incomoda, dói ou frustra. O nascimento, com a sua ruptura e separação corporal, provoca uma quebra da homeostase intrauterina, resultando em uma perda do prazer junto ao surgimento do desejo voraz e insaciável de recuperar o que foi perdido, mas que se tornou inalcançável, como sinalizam Cintra e Ribeiro (2018) . Na inveja, ocorre a projeção dessa plenitude perdida em um objeto que se torna idealizado e desejado ( Mezan, 1987 ). Nessa lógica, a inveja “surge da descontinuidade entre duas experiências de prazer diferentes, em cuja elaboração imaginária surge a voracidade” ( Cintra e Ribeiro, 2018, pp. 108-109 ). Como nenhum objeto do mundo propiciará a satisfação absoluta vivida na unidade pré-natal, concebida pelo bebê no mundo da fantasia como um objeto idealizado, o ódio e ressentimento surgem, junto à sensação de estar sendo injustiçado. Os desconfortos vividos com o nascimento provocam o aparecimento dos ataques destrutivos ao seio materno na tentativa de se ver livre da dor e persecutoriedade e, assim, o palco para a inveja está montado. Nesses termos, parece que, para Klein, o corpo é um constante manancial da inveja devido aos seus processos de ruptura e ligação. Por ter um caráter constitucional, a inveja resulta em duas dinâmicas paradoxais ligadas à pulsionalidade ( Cintra e Ribeiro, 2018 ). A primeira é que ela, constituída da pulsão de morte, aspira mais do que simplesmente esvaziar e devorar o objeto, pois tem o furor de depositar maldade e destruir o que é sentido como bom. Há o ataque e espoliação daquilo que, para si mesmo, é vital e do qual se depende, sendo a inveja “inconscientemente sentida como o maior de todos os pecados, por estragar e danificar o objeto bom que é a fonte de vida” ( Klein, 1957/1991a, p. 211 ). A segunda é que, apesar disso, a inveja resguarda em si um aspecto da pulsão de vida, um investimento de libido ligada à voracidade, pelo desejo de possuir o outro [11]. A inveja primária participa da “estrutura do desejo”, como propõe Cintra (2019) , na qual o desejo de se apropriar do objeto bom é operado pela pulsão oral, diferente do desinvestimento libidinal que ocorre na pulsão de morte. A autora destaca que Eros apenas se torna Thanatos quando há a violência insaciável no excesso do querer; com isso, mesmo nas mais diversas manifestações da destrutividade, pode existir uma busca e desejo pela vida. O que faz o aspecto vital da inveja se transformar em morte é a influência do objeto externo e o infindável presente na natureza do desejo. O desejo é insaciável e sempre quer um seio inexaurível (e todo o resto), o tempo todo presente. Se o indivíduo quer sempre mais, está destinado a não receber, por isso, todo desejo pode se tornar destrutividade, pois anseia o impossível: Outra forma de pensar é evocar algo que está na própria natureza do desejo. A voracidade do desejo destina-o a não se resolver na assim chamada experiência de satisfação. Há, portanto, algo inalcançável no desejo: este sendo a expressão mesma da impossibilidade de satisfação. A voracidade seria uma tendência que faz todo desejo tender a se transformar em avidez e inveja, um desejo constante de mais, acompanhado do sentimento de ter recebido menos, o que aumentaria a destrutividade, sobretudo quando o ambiente é desfavorável. A falta participa da própria estrutura do desejo, de sua insaciabilidade: falta que se abre a partir do querer sempre mais, e cria o terreno favorável à pulsão destrutiva. ( Cintra, 2019, p. 25 ) No desenho da dupla face da inveja, Ofélia, de tanto querer, transformou a libido do seu desejo em destruição, sufocando o pinto, objeto que se tornou alvo tanto da vida quanto da morte. Quando a menina asfixia o animal do conto, percebemos que a inveja mata dois coelhos com uma cajadada só: o ataque é tanto contra a dependência da narradora, a qual lhe concede algo bom, quanto ao próprio desejo, por querer o objeto invejado que está na posse do outro. Nesses casos, a dependência é sinônimo de estar entregue e sujeito às oscilações dos estímulos que provêm da presença ou ausência materna, “oscilações essas entre ter e perder o contato com essa fonte vital, que parece possuir tudo de que se precisa” ( Cintra e Figueiredo, 2010, p. 130 ). A lógica é destruir o que o outro produz e dispões para não correr o risco de cair em suplício pelo próprio desejo. Há, com isso, um anseio de ter em si toda e qualquer fonte de vida e prazer; assim, o ato de desejar estaria aplacado pela satisfação, e não minado pela dor da frustração: “É próprio da inveja o visar estragar e destruir a criatividade da mãe, da qual, ao mesmo tempo, o bebê depende, e essa dependência reforça o ódio e a inveja” ( Klein, 1957/1991a, p. 317 ). Podemos entender que Ofélia não suportou a força do seu próprio desejo, despertado pelo encontro com o pinto, e pôs fim, de forma cabal e aniquiladora, aos seus quereres. Invejar é desejar o impossível. Invejar é matar o desejo. Invejar é não ser e não ter. Dessa forma, o desejo sentido por Ofélia, tão desenfreado, controlador e voraz, a fez se perder de si mesma e do seu objeto de amor. A “força tortuosa” do seu querer movia seus atos e gestos para o apagamento dos contornos da diferença, visto que a alteridade gera dependência e, consequentemente, inveja. Receber algo bom que não vinha de si mesma, mas sim, da narradora que possuía o pinto, fez a menina viver uma experiência intolerável, o que a impediu de usufruir o que lhe era oferecido através do bicho, tamanho o seu desejo e insaciedade. E foi na tentativa de matar a inveja sentida da mulher, palpitante em seu peito, que se fez necessário matar o pinto. Enquanto a frustração do invejoso se dá por desejar aquilo que vem do outro, a sua satisfação se realiza na dor deste ( Mezan, 1987 ). Movido pelo ódio, a sua felicidade está em privar o outro da coisa desejada, muito mais doque obtê-la. É porque o outro se alegra que o invejoso se entristece, visto que isso desperta o próprio apetite. O objeto da inveja é aquilo que torna alguém feliz, a partir da imaginação de quem inveja: “O invejoso do Purgatório diz a Dante que seu sangue fora de tal modo consumido pela inveja que lhe bastaria ver um homem se alegrar para que seu rosto se cobrisse de palidez” ( Mezan, 1987, p. 7 ). Assim como o eu lírico lembra que Ofélia tinha uma tendência à rapina, ela roubaria qualquer coisa, inclusive a pobreza da narradora. A inveja quer tudo, quer despossar o gozo alheio e recobri-lo de lama. Ela é insaciável. Na inveja, o ódio intensifica-se e cria-se um ciclo maligno em que o maior desfavorecido, com esses atos, é o próprio indivíduo, pois esse movimento o impede de conquistar e assimilar, no núcleo do ego, o objeto bom, na sua forma preservada e total, e a consequente integração psíquica e desenvolvimento emocional. A única forma de combater o poder aniquilador da inveja é pela introjeção firme e segura do bom objeto, nascente geradora da pulsão de vida em nosso psiquismo ( Caper, 2020 ). Uma ilustração desse aspecto pode ser observada na história infantil A Branca de Neve e os sete anões a partir de uma leitura realizada por Almeida (2020) . A rainha descobre, por meio do seu espelho, que a mais bela do reino não é mais ela, mas sim, a jovem Branca de Neve. Isso faz com que a bruxa se morda — lembremos do aspecto voraz da inveja — de raiva pela beleza e juventude que a enteada possui e, por isso, anseia matá-la. Ser a segunda mais bonita não era o suficiente, a sua inveja desvelava a sua mesquinhez. Após tentar efetivar o seu plano assassino de diversas formas, mas sempre fracassar, decide se disfarçar de uma pobre e velha camponesa e entregar-lhe uma maçã envenenada. Apesar de conseguir efetivar a sua estratégia maligna e encontrar o alívio pela morte do objeto invejado, o beijo do amor verdadeiro, dado pelo príncipe apaixonado, faz a Branca de Neve retornar à vida. Nesse conto, o amor (objeto bom/pulsão de vida) foi capaz de mitigar o ódio e os efeitos mortíferos da inveja (objeto mau/pulsão de morte). O autor realça um detalhe na história e relata que na versão de 1938, da Walt Disney , 11 após o envenenamento, a bruxa tenta fugir, mas é encurralada pelos sete anões na beira de um precipício. No meio da disputa, um raio atinge-a, o que faz com que ela se desequilibre e caia no escuro vazio do abismo: A bruxa morre permanecendo na forma que estava transformada: velha e feia — temos uma analogia à verdadeira face da inveja, um dos sentimentos mais terríveis que acometem o ser humano. Talvez o invejoso se encontre sempre aprisionado nas angústias infindáveis de seu próprio psiquismo — aqui, qualquer semelhança com o conto, certamente, não seria mera coincidência. O invejoso carrega consigo as dores de uma vida medíocre, permeada de amarguras e ressentimentos. ( Almeida, 2020, p. 115 ) Até agora podemos ver que a inveja, na perspectiva kleiniana, abarca aspectos vitais e mortíferos. Para a autora, o bom e o mau estão sempre em conflito, no qual um nunca solapa completamente o outro, mas que, na predominância da inveja, o objeto mau e a morte ascendem, enquanto na predominância da gratidão, o objeto bom e a vida prosperam. Para entender melhor como se dá esse campo de batalha, vamos adentrar na ligação existente entre a inveja e a criatividade, e como o ímpeto da primeira visa destruir a segunda, esta sendo um representante da vida. A relação da inveja com a criatividade: o ódio à vida No texto seminal de Klein (1957/1991a ) destaca-se a afirmação de que o primeiro objeto da inveja e da gratidão é o seio [12] nutridor materno. Por essa razão, também é o primeiro alvo da destrutividade, que é direcionada à criatividade. Esse objeto é tomado pelo bebê como fonte de criatividade.visto que dele surgem aspectos vitais e tudo que lhe é desejável. Apesar de o ataque invejoso ocorrer contra o seio e o alimento produzido, o estrago da destrutividade é dirigido para a criatividade materna, incluindo todos os seus atributos e capacidades. Esse ciclo causa interferências danosas para o objeto bom e a saúde do ego, pois todos esses elementos encontram-se inter-relacionados: O seio “bom” que nutre e inicia a relação de amor com a mãe é o representante da pulsão de vida e é também sentido como a primeira manifestação da criatividade (…). A capacidade de dar e preservar vida é sentida como o dom máximo e, portanto, a criatividade torna-se a causa mais profunda da inveja. ( Klein, 1957/1991a, pp. 233-234 ) Quando se satisfaz com o seio, é como se o bebê presumisse o seguinte: se eu possuísse esse seio que jorra leite, me oferece vida e me mantém vivo o tempo todo, nada me faltaria. Ao se dar conta do seu infortúnio pela falta desse dom de criar, surge a inveja e o ódio. Essa construção pode ser remontada à história de Ofélia, pois, no fundo, ela sabia que nunca iria produzir aquilo que a narradora lhe oferecia através do pinto. Nunca poderia gerar um corpo como aquele, um piar, uma penugem ou ter patas. A capacidade de dar esse tipo de vida nunca seria dela. E ao reconhecer a criatividade concedida pelo outro, consequentemente, percebia a sua limitação, por isso cobiça a narradora do conto, porque, por ter um pinto, considera que a mulher “tem tudo”, que nada lhe falta, e frisa “eu também quero”, de tal modo que, nesses dizeres, percebemos como se expressa a projeção da plenitude narcísica da criança. A menina dirigia seu ataque invejoso à criatividade, por isso Klein intuiu que a inveja se dá tanto em experiências de frustração (seio mau) quanto de gratificação (seio bom), diferente da opinião comum entre os psicanalistas da época, que a consideravam oriunda apenas em situações de privação. Essas relações de objeto, arcaicas, em que a inveja e gratidão, ou a criatividade e destrutividade, se presentificam, servem de modelo para as relações futuras e para a saúde mental do indivíduo. Um exemplo do cotidiano que representa o embate existente entre a inveja e a criatividade na vida adulta se refere às pessoas que enfrentam inibições na capacidade de trabalhar, pensar e dar frutos em suas produções. E, por isso, Klein propõe que: “a inveja da criatividade é um elemento fundamental na perturbação do processo criativo” (1957/1991a, p. 234). Essa estagnação se dá pelo ímpeto de estragar e destruir tudo que é sentido como bom, seja a fonte externa do bebê (a criatividade materna) ou os seus correlatos internos (a capacidade de criar). Se só se inveja o que é bom, é preciso destruir o que é bom para não invejar. Os objetos, assim, passam a ter um caráter hostil, tal como podemos observar nas críticas destrutivas voltadas para si ou para o outro, as quais têm como base a inveja e o ataque ao seio. Cintra e Figueiredo (2010) consideram que pessoas presas nesse ciclo podem estar sendo afetadas pelos estragos ocasionados por um superego invejoso. Essa instância é o resultado de projeções com base na inveja, a qual tem o intuito de impedir que as reparações reais se deem e “acabam condenando ao fracasso os movimentos de interesse e realização no mundo” (p. 144). Devido ao ódio sentido, o indivíduo se vê assolado por uma persecutoriedade e culpa colossais, no qual a única saída é se punir severamente, vedando as construções criativas que poderiam se erguer. Outros casos de pessoas que não possuem uma criatividade genuína, em razão da não instalação do bom objeto interno e da força da inveja, trata-se daquelas que apresentam uma avidez para alcançar a criatividade a qualquer custo, mesmo que isso implique em “puxar o tapete” de quem for preciso para obter sucesso. A respeito dessa temática, Klein declara o seguinte: Se a identificação com um objeto internalizado bom e propiciador de vida puder ser mantida, ela se torna uma força propulsora para a criatividade. Embora superficialmente isso possa manifestar-se como cobiça por prestígio, riqueza e poder que outros tenham alcançado, seu objetivo real é a criatividade. ( Klein, 1957/1991a, pp. 233-234 ) Caso o indivíduo confiasse na sua própria criatividade, essa dinâmica não ocorreria, porque a inveja estaria amenizada. Esse movimento benigno pode ser visto naqueles que se preocupam com a criatividade do outro ou os que oferecem críticas construtivas aos trabalhos alheios. É a elaboração da inveja que permite esse caminho: “Tenho observado que a criatividade cresce em proporção à capacidade de estabelecer mais seguramente o objeto bom, sendo isso, nos casos bem-sucedidos, o resultado da análise da inveja e destrutividade” ( Klein, 1957/1991a, p. 257 ). A partir desses exemplos, vemos que a inveja levanta todas as armas contra a vida nas suas múltiplas formas criativas, ainda mais se o objeto bom não estiver consolidamente internalizado no núcleo egoico. Em outra passagem do texto, Klein utiliza uma referência da literatura para realçar a inveja como força destrutiva da criatividade a partir do livro Paraíso perdido (2018) de John Milton. A autora menciona que Satã possuía uma inveja profunda de Deus, o criador. Devido a isso, deseja usurpar o céu (fruto da criação divina) e o seu ímpeto desassossegado é estragar e destruir a vida celestial, então, compra briga com Deus e instaura uma guerra. No entanto, é expulso e cai do céu. Assim, o diabo assume o risco de perder algo bom (o céu) no intuito de aplacar a sua inveja devoradora. Depois de caído, o diabo e outros anjos criam o inferno, como um espaço que se opõe ao espaço celestial, tornando-se o seu rival. O motor dos atos de satanás se baseia na força destrutiva de tudo, de querer atacar e estragar a criatividade de Deus. A autora realiza uma observação: “essa ideia teológica parece provir de Santo Agostinho, que descreve a Vida como uma força criativa, em oposição à Inveja, uma força destrutiva” ( Klein, 1957/1991a, p. 234 ). Complementa o trecho com a primeira carta aos Coríntios: “O amor não inveja”. Assim, a inveja odeia que o amor se manifeste como potência de vida através da criatividade, que se encontrava barrada e não integrada em Satã (objeto muito mau e perseguidor) na relação com Deus (objeto muito bom e idealizado), figuras cindidas na obra descrita. Satã nos mostrou que a inveja é um eterno ataque contra a própria vida, contra si mesmo, contra o desejo, contra a capacidade de amar e de criar. Assim como ele, Ofélia seguia o mesmo rumo, pois todo movimento do pinto fazia lhe contorcer os ossos. Destino esse que dificultava a menina de confiar na sua aptidão de gerar e manter a vida, ainda mais depois de ter constatado que matou um frágil e indefeso pinto com a inveja que escorria pelos seus dedos. Com a morte da inveja, houve, pelo menos no conto, o fim do pequeno sopro de criação e vitalidade que a narradora lhe ofereceu — o pinto. O que a menina não imaginava era que, ao aniquilar o outro, na verdade, estava matando muito mais a si mesma. Ao pensar sobre as mortes ocasionadas pela inveja, vamos discutir a seguir de que forma a esperança e a desesperança, como manifestações ou não da vida, ocorre no processo analítico, na relação entre analista e analisando. Enredamentos entre a inveja, a esperança e a desesperança no trabalho analítico Tão difícil quanto falar sobre a inveja que um bebê sente da mãe, é tratar sobre a inveja que um analisando tem de um analista e da análise. Na situação analítica, por exemplo, a reação terapêutica negativa — ou a resistência ao processo clínico — tende a ser uma via expressiva da inveja que o analisando vive quando se depara com a capacidade do analista de oferecer vida, o que causa entraves na possibilidade de introjetá-lo como objeto bom ( Feldman, 2020 ). Esse aspecto pode ser manifesto pelas críticas destrutivas [13] realizadas pelo analisando, no intuito de aniquilar qualquer elemento bom e de valor que o espaço analítico possa oferecer. Pode existir alguma fantasia de que o outro, ao oferecer algo bom, do qual você precisa, pode te ameaçar com base em uma humilhação ( Frayze-Pereira, 2018 ). E assim, quanto mais o analista é atacado, mais ele é sentido como um objeto estragado, o qual deve ser rejeitado. Tal como podemos observar na seguinte passagem: Encontramos essa inveja primitiva revivida na situação transferencial. Por exemplo: o analista acabou de dar uma interpretação que trouxe alívio ao paciente e que produziu uma mudança de estado de ânimo, de desespero para esperança e confiança. Com certos pacientes, ou com o mesmo paciente em outros momentos, essa interpretação proveitosa pode logo tornar-se alvo de uma crítica destrutiva. Ela, então, não é mais sentida como algo bom que ele tenha recebido e vivenciado como enriquecimento. ( Klein, 1957/1991a, p. 215 ) No trecho citado, a interpretação do analista (objeto bom) ocasionou uma mudança no paciente do desespero à esperança. Isso nos faz pensar que aceitar a oferta de amor do outro reduz, bruscamente, os sentimentos de agonia, angústia e desesperança, revestindo o ego com uma camada protetora para lidar com as situações difíceis da vida. Por isso, caso o analisando seja menos invejoso, os seus aspectos bons e os dos outros serão valorizados, e o que é oferecido pelo analista, a partir das palavras e gestos acolhedores, pode ser sentido como uma dádiva a ser fruída e preservada. Diante desse impasse entre o bom e o mau, o analisando pode se confrontar com a dor de ter danificado a criatividade do analista, algo como: Eu sinto raiva por você possuir e desfrutar da sua criatividade e capacidade de oferecer vida, ao mesmo tempo, sinto culpa por desejar estragar os seus dons, porque você é bom para mim . Isso ocorre mesmo nos casos em que a inveja não desponta excessivamente, pois o pesar pelo ódio e destrutividade se mantém aceso. Essa é uma dinâmica que dificulta a análise da inveja, por estar ancorada em um remorso que não oferece saídas elaborativas. Caso o processo analítico consiga atingir relativamente a integração e aumentar a capacidade de fruição, o que for oferecido de bom no setting vai se tornar um alimento dentro do ego. Esse aspecto se torna a raiz e, ao mesmo tempo, o tronco do sentimento de esperança, ou seja, combustíveis oriundos da pulsão de vida, o que fica expresso pelo aparecimento de insights na análise: O insight também acarreta sensações de alívio e esperança, as quais por sua vez tornam menos difícil reunir os dois aspectos do objeto e do self (...). Essa esperança baseia-se no crescente conhecimento inconsciente de que o objeto, interno e externo, não é tão mau quanto parecia ser em seus aspectos excindidos. ( Klein, 1957/1991a, p. 228 ) Nos meandros da inveja até a sua elaboração, Klein (1957/1991a) discute o caso de uma mulher que carregava em si a fantasia de uma vida insatisfatória na infância. Esse sentimento causou danos às suas posteriores relações de objeto e abalou a sua esperança em relação à vida: “seu ressentimento do passado ligava-se à desesperança quanto ao presente e ao futuro” (p. 236). A inveja e o rancor do seio materno semearam dúvidas se o objeto podia ser encarado como algo bom ou não, impedindo a fruição de todas as benesses que o seio poderia lhe ofertar. Elaborar esses afetos e viver a situação analítica como uma “alimentação feliz e satisfatória” provida por uma analista sentida internamente como um seio, o qual é fonte de vida, possibilitaram que a paciente se sentisse mais “esperançosa quanto ao futuro e quanto ao resultado de sua análise” ( Klein, 1957/1991a, p. 238 ). A autora destaca, ainda, o quanto as falas interpretativas do analista estão correlacionadas ao sentimento do analisado de ser compreendido, pois, a partir dessas intervenções clínicas, o indivíduo entra em contato com a própria realidade psíquica e os seus aspectos bons, o que pode “ter o efeito de reavivar a esperança e fazer com que o paciente se sinta mais vivo” ( Klein, 1961/1994, p. 100 ). Quando esse percurso clínico é possível, a esperança do analista eclode: “É na análise dos efeitos das perturbações arcaicas no desenvolvimento em seu todo que reside nossa maior esperança de ajudar nossos pacientes” ( Klein, 1957/1991a, p. 267 ). Nesse momento, a esperança favorece a elaboração da inveja ao mesmo tempo que a análise da inveja promove a esperança. Com isso, o ego passa a ficar assentado em um alicerce amoroso, no qual o objeto bom funciona como um “ Airbag psíquico”, que amortece os impactos ocasionados pela destrutividade advinda da pulsão de morte. Elaborar a inveja permite que o indivíduo consiga encarar o seu eu total, desnudando-se em frente a um espelho, podendo juntar os pedaços de si que estavam desordenados e em cacos na situação anterior. Seu mundo interno, em torno do bem e do mal, torna-se mais realista, sendo possível enxergar com mais clareza os efeitos dos seus impulsos amorosos e agressivos. A intensidade da inveja provoca uma visão turva, embaçada e confusa, enquanto a capacidade de fruição serve para ajustar o foco da “retina mental” pelas “lentes” da esperança. Caso a esperança não se estabeleça firmemente através da fruição do objeto bom, a inveja pode prevalecer no mundo interno, e, com isso, o desespero se torna protagonista da cena. Nessa via, Segal (1975) estabelece que na inveja, o bebê não consegue definir claramente o que é bom ou mau, essas qualidades encontram-se misturadas e confusas. Com isso, um drama se instala, no qual a bondade é danificada e, consequentemente, não introjetada, mobilizando a desesperança: “fortes sentimentos de inveja conduzem ao desespero. Um objeto ideal não pode ser encontrado e, portanto, não há esperança de amor ou de qualquer ajuda” (p. 53). Esse desespero pode ser visto na música Invejoso de Arnaldo Antunes (2009) : Invejoso, querer o que é dos outros é o seu gozo, e fica remoendo até o osso, mas sua fruta só lhe dá caroço. Invejoso, o bem alheio é o seu desgosto. Queria um palácio suntuoso, mas acabou no fundo desse poço . Sem encontrar uma maneira de transformar as agonias da vida, o invejoso acaba no “fundo do poço”, somente há um vazio escuro sem esperança. Para sair do fundo do poço, é necessária uma corda que puxe aquele que se encontra sem saída. Klein chamou isso de seio bom, mas podemos traduzir essa corda como os bons encontros e boas contingências que acontecem na vida, mas somente isso não é suficiente, pois é fundamental ter uma abertura dentro de si para aproveitar e guardar esses acontecimentos como lembranças, o que Klein chamou de pulsão de vida. Imaginemos que, enquanto permanecia no buraco, a pessoa tivesse um fio de esperança que alguém pudesse resgatá-la. Ao ser salva, pôde sentir gratidão, voltar a ser e criar no mundo. Enquanto outra poderia se negar a ser resgatada, ou, ao subir, acreditar que o feito tenha se dado por sua causa e não pela ajuda do outro. Para entender a capacidade que alguns têm de realizar o primeiro movimento, diferente da inveja que predomina no segundo, vamos discutir o tópico seguinte. Gratidão, criatividade e esperança: entrelaços no nosso mundo interno Agradeço à vida, que tem me dado tanto Me deu o riso e me deu o pranto Assim eu distingo fortuna de falência Os dois materiais que formam meu canto E o canto de vocês que é o mesmo canto E o canto de todos que é meu próprio canto. (Violeta Parra) Discutimos que, na inveja, a fruição do seio se torna obstruída e, por isso, impede o desfrute do bom objeto quando ele está disponível. Na gratidão acontece o caminho inverso, pois nela há a capacidade de gratificação oral do bebê ( Klein, 1963/1991c ). A gratidão do bebê se traduz em amar o seio: aquilo que não se tem, nem se pode produzir por si só, e do qual se depende. Ser grato é admitir que o objeto de amor possui atributos que são necessários e vitais. Podemos ler a gratidão da seguinte forma: A gratidão é a base da consciência emocional da pessoa em relação à vitalidade, à criatividade, ao amor, ao consolo e à compreensão inerentes a seus objetos bons, consciência que os eleva acima do nível do psicologicamente inanimado. A gratidão também implica o amor e a admiração dessas qualidades de sustentação da vida que força à identificação com elas, identif icação que, por sua vez, tende a animar o mundo interno da pessoa. ( Caper, 1990, p. 232 ) Alcançar esse estado possibilita que o indivíduo reconheça que algo bom pode advir do outro, ao mesmo tempo que se encontra meios de contenta mento nessa partilha. Não só recebo o que é bom, mas desejo manter dentro de mim, e retribuir o que recebi para os outros. Há certo anseio de ser, ao mesmo tempo, objeto de amor e fonte de vida, ao se conceder o desfrute do objeto bom para o outro. Em alguma medida, reconhecer e aceitar algo bom é ser “penetrado” — pelas palavras, pelas sensações e afetos. Se sou permeável para adquirir esses objetos do mundo, consigo apreciar a bondade interna e externa, bases da gratidão e do reconhecimento da generosidade no bom. Da mesma forma, Ofélia pôde se deleitar com a gratidão sentida pela narradora, por ela ter lhe proporcionado um encontro com o pinto, mesmo que tenha sido por um breve momento: “Ela sorriu”. A menina estava deslumbrada. Amou a capacidade de amar o que não tinha, e o amor recebido. Assim, a partilha da gratidão se tornou uma centelha no meio das sombras refletidas pela inveja. Lembremos que, quando há confiança na própria capacidade de oferecer vida, a inveja é atenuada e, com isso, o seio bom vai ser sentido cada vez mais como bom quanto mais houver satisfação, e por conseguinte, gratidão e generosidade, criando uma cadeia circular que se retroalimenta ( Petot, 1982/ 2016 ). Em outras palavras, cria-se um ciclo benigno em torno da pulsão de vida, no qual se pode dar ao outro aquilo de bom que foi recebido ( Spillius et al., 2011 ). Esse sentimento de generosidade “está na base da criatividade, o que diz respeito tanto às atividades construtivas mais primitivas do bebê quanto à criatividade do adulto” ( Klein, 1963/1991c, p. 351 ). Ser generoso está atrelado à recuperação de estados de raiva e ressentimento, pois há mais força e riqueza no interior do indivíduo. Tais elos benignos só se dão no contato e assimilação do objeto bom internalizado e doador de vida, no qual, a identificação com este oferece um impulso à criatividade [14] ( Spillius et al., 2011 ). Um objeto com essa qualidade serve como a base da gratidão, generosidade, criatividade e esperança: Vemos na análise de nossos pacientes que o seio em seu aspecto bom é o protótipo da “bondade” materna, de paciência e generosidade inexauríveis, bem como da criatividade. São essas fantasias e necessidades pulsionais que de tal modo enriquecem o objeto originário que ele permanece como a base da esperança, da confiança e da crença no bom. ( Klein, 1957/1991a, p. 211 ) Com o seio bom firmemente introjetado, uma menininha comunicou para Klein (1959/1991b) , que o seu amor pela mãe era maior do que todas as outras pessoas, pois ela nada seria se sua mãe não tivesse lhe dado a vida e cuidado dela quando bebê. Esse é um belo recorte de como a gratidão sentida por ela expandiu sua capacidade de amor, reconhecimento e apreciação ao que lhe foi dado: Se o objeto bom está bem estabelecido, a identificação com ele fortalece a capacidade de amor, as pulsões construtivas e a gratidão (...). E estão assentados os alicerces da saúde mental, da formação do caráter e de um desenvolvimento bem-sucedido do ego são estabelecidos. ( Klein, 1957/1991a, p. 263 ) Para que isso aconteça, é necessário ter repetidas experiências de amor, cuidado e segurança. A partir disso, a confiança no mundo interno e externo se instala ( Figueiredo, 2012 ). Com ancoragem nas memórias felizes da vida, a esperança se liga à confiança de que é possível encontrar objetos que cuidam, no qual o resultado é que “a esperança e confiança na existência da bondade, como pode ser observado na vida cotidiana, auxiliam as pessoas em meio a grandes adversidades” ( Klein, 1957/1991a, p. 194 ). O representante dessa repetição no setting é o analista, visto que os momentos prazerosos, sejam no início da vida ou a posteriori , servem como o estofamento para o bom objeto se firmar no ego. É a partir desse desfrute do encontro analítico, e da interpretação como um dos seus meios, que se forma o esteio da fruição e gratidão, juntamente com o sentimento de que o paciente extrai e absorve o que o espaço oferece de bom, sem precisar destruí-lo. É interessante pensar que mesmo o indivíduo não possuindo um objeto bom internalizado, a análise e a figura do analista fomentam o processo da sua constituição e a expansão: Assim como as repetidas experiências felizes de ser nutrido e amado são instrumentais, na infância, para o estabelecimento seguro do objeto bom, também durante uma análise, experiências repetidas da eficácia e verdade das interpretações dadas levam a que o analista — e retrospectivamente o objeto originário — sejam erigidos como figuras boas. ( Klein, 1957 /1991, p. 265) Na análise, o objeto bom ganha contornos mais firmes a partir da elaboração gradual de situações emocionais, seja do tempo presente e/ou das relações de objeto mais arcaicas do indivíduo, que se referem às camadas mais profundas da mente. Esse processo deve ocorrer repetidamente, tanto na transferência positiva quanto na negativa. O analista, por sua vez, deve ter uma “perseverança” em analisar esses aspectos, especialmente os sentimentos mais hostis na transferência, para que o paciente encare a própria realidade psíquica, seus conflitos, sofrimentos e possa alcançar a integração que dá força ao ego, ao mitigar o ódio a partir do amor. Esse caminho progressivo inclui insights sobre as cisões do self , em que o paciente aos poucos recupera, (re)conhece e tolera a sua própria “verdade”, como diz a autora, ou, de outro modo, as próprias facetas destrutivas: o ódio, a agressividade, a destrutividade, a inveja dirigida à criatividade do analista, o desprezo — muitas vezes sentidos como onipotentes e irremediáveis. Nessas condições, o analisando consegue ser grato, pois passa a tolerar cada vez mais frustrações, visto que é na criação de um ambiente amistoso, confiável e compreensivo, frente às pulsões mortíferas, que o contato com a realidade psíquica pode se dar. Com isso, as insatisfações podem ser suportadas e a gratidão consegue despontar: “trata-se de criar condições para o restabelecimento do contato afetivo e da experiência de uma intimidade que não intimida e nem ameaça, mas transmite segurança, por meio da presença atenta, viva e implicada do analista” ( Cintra e Ribeiro, 2018, p. 115 ). Assim, a análise é um percurso em que o analista se torna um objeto interno como fonte de vida e quando o indivíduo se identifica com esse objeto, o self passa a ter a sensação de uma bondade e criatividade própria. Da mesma forma que o analista pode ser uma figura a ser internalizada como objeto bom e que favorece o processo criativo do paciente, seja no setting ou fora dele, Meltzer (1973) propõe que a subjetividade está edificada pela introjeção dos pais internos, e, a depender da qualidade e da forma com que o indivíduo se relaciona com esses objetos, a criatividade e as tendências construtivas podem se manifestar, devido à libido que une o casal parental. Em uma concepção convergente, Spillius et al. (2011) declaram que o objeto parental inteiro e total, quando internalizado seguramente, vai se tornar a base da criatividade, seja no âmbito da sexualidade, da intelectualidade ou da estética. Quanto mais distante da inveja e imerso na sua elaboração, mais esse transcurso criativo se efetiva para o indivíduo. Diante desses elementos, ao pensar sobre a condição de ter vivências amorosas e alegres com o casal parental para introjetar o bom objeto e ser criativo, destaco que Ofélia tinha pais orgulhosos e agressivos. A mãe era desconfiada, ríspida e arredia. Ao longo da narrativa, presumimos que a menina vivia em um ambiente com muita rigidez, frieza e restrições, em que os momentos de fruição eram raros. Havia pouca tolerância para o erro, a falha e o desvio. Nem a própria Ofélia acreditava e confiava na capacidade de manter vivo o amor dentro de si. Pontes construídas para o domínio da inveja, e não da gratidão. A vida de uma “Ofélia” é muito mais sofrida, pois o movimento da gratidão, que vitaliza o indivíduo, não se cumpre. As quedas no viver são sentidas com mais dureza, e o que pode ser fácil e leve, acaba se tornando mais árduo e pesado. Se a menina tivesse perdurado o seu instante de gratidão e tolerado a inveja da narradora, a morte do pinto teria sido evitada e ela poderia encher seu mundo interno de amor a partir desse encontro que a transformou. No entanto, para a menina, o amor era fonte de dor e sofrimento. [15] Ao contrário dela, o amor de um aluno por um professor foi a motivação para a sua criatividade e gratidão, expressas na carta a seguir: Uma carta à gratidão Para finalizar as ideias sobre o sentimento de gratidão, remetemos a uma coincidência na história que costura os pontos trazidos ao longo deste tópico. No ano de 1957, foram escritos os textos Inveja e gratidão e uma carta de Albert Camus para o seu professor primário, Louis Germain, após ter recebido o Nobel de literatura. A significação do mestre em sua vida parte do incentivo educacional ofertado para Camus, visto que sua família era muito pobre e não apoiava o seu caminho para a escola secundária, mas sim, para o trabalho formal. Podemos pensar que a gratidão que o autor sentia, dentro de si, favoreceu sua criatividade amplamente (e vice-versa), a ponto de fazê-lo ser reconhecido com um prêmio dessa magnitude. A sua abertura psíquica de receber e dar amor pode ter impulsionado seus dons, habilidades artísticas e intelectuais, o que fica evidenciado pelo livro Discursos da Suécia , dedicado ao seu mentor. A homenagem de Camus ao seu professor está descrita a seguir: Caro Monsieur Germain, Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir falar-lhe de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as minhas forças. Reflexões finais: a inveja e a gratidão com base nas ondulações pulsionais Considerando, mais uma vez, a pulsão de vida e de morte ligadas e constitutivas no psiquismo, junto ao entrelaçamento da inveja com a desesperança e destrutividade, e a gratidão com a esperança e criatividade, realçamos o dinamismo próprio das posições subjetivas existentes nas nossas vidas, o qual faz com que esses fenômenos não sejam categorias separadas completamente, mas mantidas em uma inter-relação sustentada pelo paradoxo. Por isso, é possível que na inveja exista desesperança, mas também, criação e esperança. Para ilustrar essa ideia, referimo-nos a Boris (1976) o qual argumenta que o lactente, quando satisfaz sua libido oral, ao mesmo tempo que é nutrido, sustenta uma esperança de que o seio seja dele, que ele próprio possa alimentar-se de forma autônoma. Ao se dar conta que o seio, ainda que seja predominantemente gratificador, vem de um outro, separado e independente, ocorre nele a inveja e uma crise da esperança, visto que a realização do seu desejo pode se dar em alguns momentos e em outros não, o que legitima as suas próprias faltas e dependências. Em outras palavras, enquanto a gratificação traz esperança, a frustração traz desesperança, especialmente quando se percebe uma diferença entre o eu e o outro. No pensamento do autor, é como se, metaforicamente, o bebê fosse como Eva no mito de criação, que ao ter mordido a maçã do conhecimento, teve seu mundo ampliado, o que a levou a pensar: “Ah! Essa riqueza e vida são coisas que eu acreditava ter e produzir, mas como isso não acontece, preciso buscar fora de mim!”. Portanto, na crise da esperança, o desejo se instala e algumas transformações podem se dar, visto que essa experiência pode ser a abertura para a vida e as infinitas possibilidades de ser, fazer e criar no mundo, tal como Eva se deu conta depois de ter sido expulsa do paraíso. Outra analogia sobre essa questão pode ser vista na fábula “A raposa e as uvas”. Como não conseguiu alcançar a videira com as uvas verdes que tanto ansiava, a raposa começou a depreciar os frutos, a negar a frustração do seu próprio desejo. Inicialmente ela tinha esperança de ser uma raposa que alcançasse as uvas doces, mas essa esperança foi perdida. Mesmo dominada pelo impulso invejoso, imaginamos que a raposa seguiu o seu caminho no bosque atrás de outros frutos, criando estratégias mais ou menos elaboradas para alcançá-los e satisfazer o seu desejo. Apesar da força descomunal da inveja, com toda a crueza e amargura que ela produz, há algo em cada um que nos mobiliza para seguir adiante. Esse empuxo pode ser entendido como a pulsão de vida que nos convoca a todo momento para realizar uma jornada que leva da inveja à gratidão, e que abarca aquilo de bom que podemos dar e receber nas relações. A obra Divina Comédia (1896/1998) de Dante também metaforiza como a pulsão de vida e de morte estão amalgamadas e como a esperança pode existir mesmo em meio à inveja. No purgatório, apesar de as almas invejosas permanecerem distantes do paraíso, e escoradas em uma parede à beira do precipício, existia nelas a esperança de alcançar a pureza dos pecados cometidos, a partir da expiação, pois só assim seria possível entrar no reino do céu. Na entrada de cada pecado capital, encontra-se um anjo que guarda a passagem e purifica a alma até que se consiga subir para outro nível de profanação mais branda. Mesmo prestes a cair em uma cova, fossa ou “buraco sem fim”, as almas, cobertas por túnicas ásperas e com os olhos costurados, [16] possuíam a crença de que o fim da dor e do sofrimento estavam prestes a acontecer. No translado dessa perspectiva literária para a clínica, em muitos momentos, o analista se torna o “guardião” da esperança, na espera empática de que a “purificação” da inveja ocorra no analisando, para que a ascendência ao céu, como símbolo de um espaço criativo, aconteça. Portanto, a vida carrega a potência de nascer, mesmo em um espaço aparentemente árido e sombrio, como Otto (2009) afirma: “nasceram flores num canto de um quarto escuro”. Com isso, a criatividade, a esperança e a gratidão junto à desesperança, à destrutividade e à inveja unem-se em uma dança incessante de sintonias e desajustes, alguns giros harmônicos ou pisões no pé, onde cada uma esbarra com a outra no “salão psíquico”, formando pares mais ou menos ritmados a depender da eufonia entre as duplas de dançarinos (mundo interno) com a toada reproduzida pela banda (mundo externo). Notas 1 Este artigo faz parte da dissertação Criatividade e esperança na clínica psicanalítica: ideias a partir de Melanie Klein e Donald Winnicott, de Maysa Bezerra, orientada por Marina Ribeiro. A defesa ocorreu no mês de agosto de 2023. A pesquisa teve apoio financeiro da CAPES e foi fruto de um trabalho em equipe realizado no grupo de pesquisa LIPSIC – USP/PUC-SP. 2 Membro do LIPSIC-USP/PUC-SP (São Paulo, SP, Brasil) e sócia do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (Recife, PE, Brasil). 3 Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Brasil). 4 Um detalhe importante é que as palavras esperança (hope) e criatividade (creativity) são muito citadas nesse texto, o que possibilitou uma articulação mais sólida e clara entre essas manifestações psíquicas. 5 Mezan (1987) utiliza esse conto para discutir sobre a inveja a partir de vários autores, incluindo Melanie Klein. Os pontos principais abordados no texto, com base na leitura de Frayze-Pereira (2018) , se tratam da “1º) associação da inveja com o olhar; 2º) a alegria do invejoso corresponde à dor do outro; 3º) a realização de seus propósitos não deixa o invejoso feliz e realizado (ao atacar os felizes, ataca a si próprio); 4º) a inveja contém desejo, mas nele não se esgota; 5º) o desejo de privar o outro da felicidade é essencial, muito mais importante do que obter a posse da coisa invejada” (p. 8). Nesse tópico, fazemos leituras similares, mas também distintas. É importante ressaltar que bebemos da fonte do autor, principalmente no que se refere ao uso do conto para pensar a fenomenologia da inveja. 6 Os trechos retirados diretamente do conto foram aspeados. 7 Sobre esse aspecto, Sodré (2020) argumenta que: “a necessidade de frisar a inveja como uma parte essencial da natureza humana levou a um uso exagerado das palavras ‘inato’ e ‘constitucional’ ligadas à inveja, de um modo que penso ter acabado por se tornar inútil — como se uma condenação extra estivesse ligada a ela: afinal, nós não falamos de ciúme inato ou complexo de Édipo inato — nós apenas assumimos que estes são todos parte da natureza humana” (p. 14). 8 É na continuidade das experiências de gratificação, vividas como fonte de vida e de amor, que se forma a base do objeto bom no núcleo egoico, o qual se torna estruturante para o self . 9 Cintra e Figueiredo (2010) destacam que “os aspectos constitucionais são, para Melanie Klein, por exemplo, uma propensão maior para a oralidade, que pode estar fundamentada em aspectos do metabolismo e do equilíbrio hormonal do recém-nascido. Se essa oralidade se manifestar por uma excessiva voracidade, temos então o terreno favorável ao surgimento da inveja” (p. 128). Nesse âmbito, Klein (1957/1991a ) afirma que a “capacidade tanto para o amor como para os impulsos destrutivos é, até certo ponto, constitucional, embora varie individualmente em intensidade e interaja desde o início com as condições externas” (p. 211). 10 Melanie Klein considera que a concepção desse seio inesgotável é inata e que, em certa medida, isso serve de apoio para a vida e para a criatividade ( Roth, 2020 ). 11 Sobre esse aspecto, Britton (2020) destaca que: “Em inglês, a palavra ‘inveja’ ( envy ) tem duas raízes, uma no francês arcaico ( envie ), significando ‘desejo’, no sentido de admiração, e outra na expressão invidia , do latim, significando ‘maldade’, ‘má intenção’” (Oxford English Dictionary)” (p. 60). 12 Em toda a obra de Klein podemos perceber o uso de terminologias que fazem referência ao corpo e de suas partes — incluindo órgãos genitais — para simbolizar a criatividade. Para a autora, a dimensão corporal está atrelada à procriação e às tendências reparadoras, tendo o seio como objeto central. Como nos lembra Didier Anzieu, o falo é o seio ( Petot, 1982/2016 ). 13 Klein (1957/1991a ) realiza uma ressalva e diz que, obviamente, como profissionais, esta mos sujeitos a receber críticas caso cometamos falas e atos indevidos, mas o aspecto essencial da inveja é sentir que recebeu algo bom do analista, mas que, ainda assim, esse objeto deve ser depreciado e destruído. 14 Petot (1982/2016) considera que não existe um processo direto que leva da gratidão à criatividade. Na verdade, é a criatividade que ocupa um lugar central, funcionando como uma matriz da qual se ramificam outros fenômenos. 15 Nos dias atuais, Ofélia poderia ser vista como uma defensora do movimento Good vi bes only , chamado ironicamente por alguns de Gratiluz ou Positividade Tóxica, o qual vai na contramão da noção de gratidão postulada por Klein. O imperativo de mostrar que está bem o tempo todo ou de resolver as dificuldades da vida sozinho, sem recorrer à ajuda dos outros, pode ser pensado como fruto da inveja, e não da gratidão. Para se sentir grato de forma genuína, é necessário elaborar, minimamente, a inveja e os impulsos destrutivos que provêm dela, como a frustração, o fracasso e o ódio. O uso compulsivo de frases motivacionais e citações de autoajuda apenas negam e abafam os nossos instintos mortíferos, esquecendo-se de que não há como nos curarmos das pulsões mais avassaladoras do id, mas há como conciliá-las com o ego ao reconhecer e aceitar que somos constituídos por aspectos bons e maus. É crucial que o analista esteja atento a isso, bem como aos riscos de intervenções que possam se aliar a esse discurso que vemos na contemporaneidade, especificamente no ocidente. Devemos levar em conta que a gratidão referida por Klein não se equivale à narrativa de Poliana no jogo do contente, muito pelo contrário, afasta-se dessa falta de amadurecimento velada de otimismo e constrói trilhos para o contato mais íntimo com a realidade psíquica. 16 Lembremos que a palavra inveja vem do latim invidia, nome formado pelo radical - ved , encontrado em vedére que significa olhar ( Mezan, 1987 ). Referências Alighieri, D. (1998). A Divina Comédia. (34ª Ed.; I. Eugenio Mauro, Trad.). Ed. 34. (Trabalho original publicado em 1896). Almeida, A. (2020). Intervenção psicanalítica na escola. Zagodoni. Antunes, A. (2009). Invejoso. In Iê Iê Iê. Faixa 6. Brasil: Universal Music. Boris, H. (1976). On Hope: It’s Nature and Psychotherapy. Int. Rev. Psycho-Anal., 3 , 139-150. Britton, R. (2020). Ele se sente lesado: a personalidade patologicamente invejosa. In P. Roth & A. Lemma (Orgs.), Revisitando “Inveja e gratidão” (pp. 60-65). Blucher. Caper, R. (1990). 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- A vida é bela: o ambiente como guardião da criatividade e da esperança [1]
Este artigo foi publicado em 2024 no Jornal de Psicanálise. Autores: Maysa Marianne Silva Bezerra [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3]. Resumo: Este artigo pretende discutir os temas da esperança e desesperança a partir da noção de criatividade primária, com base no pensamento de Donald Winnicott. Na leitura realizada, observamos que esses fenômenos se entrelaçam aos primeiros encontros existentes entre um bebê e seu ambiente. Relações iniciais mal ou bem-sucedidas fazem emergir, portanto, a esperança ou a desesperança. O entendimento acerca desses temas pretende se dar por meio das representações do filme italiano A vida é bela, dirigido por Roberto Benigni (Benigni, Ferri & Braschi, 1997). Palavras-chave: esperança, desesperança, criatividade Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. (Andrade, 2012) Guido Orefice, protagonista do filme A vida é bela (1997) [4], é um judeu italiano que vive na cidade de Arezzo, na região da Toscana, onde trabalha como garçom no hotel de um tio e, em paralelo, administra uma pequena livraria. Interpretado pelo diretor do longa-metragem, Roberto Benigni, o personagem, embora enfrente diversas dificuldades financeiras, apresenta uma marcante capacidade de transformar a realidade ao redor, em razão de sua postura perspicaz, criativa e bem-humorada. É um homem simples, de alma leve e vida pacata. Logo nas primeiras cenas, o seu modo de ser é retratado pelo forte interesse que demonstra numa brincadeira corriqueira do amigo Ferruccio. Denominada a “Teoria de Schopenhauer”, a dinâmica tenta provar que, com a força do pensamento, tudo é possível, até mesmo ser o que se deseja. Um dos momentos em que a brincadeira dá certo é durante a apresentação de uma ópera, quando Guido olha fixamente para a mulher pela qual está apaixonado e diz repetidas vezes: “Olhe para mim, princesa! Olhe para mim! Vire para cá”. Algum tempo depois, ela de fato se vira e o encara por alguns segundos. Seu nome é Dora, uma jovem de família abastada que, mais tarde, casa-se com ele e dá à luz o filho do casal, Giosué. O enredo da obra se dá no decorrer da Segunda Guerra Mundial – desde o período que a antecede, na década de 1930, até o fim do conflito, em 1945 – e tem como pano de fundo o Holocausto, tragédia que dizimou a vida de milhões de judeus, corroborada pelo governo fascista de Benito Mussolini, na Itália. No filme, os ataques antissemitas aparecem aos poucos: primeiro, quando soldados invadem e reviram toda a casa de Guido, seguido pelo momento em que pintam o cavalo de seu tio com os escritos: “Atenção, cavalo judeu”. As práticas do nazismo, com o apoio do regime fascista italiano, vão se escancarando, como na cena em que diversas pessoas são retratadas espremidas dentro de uma caminhonete, entre elas, o protagonista e o filho, já com 5 anos. Sem saber que estão a caminho de um campo de concentração em Berlim, na Alemanha, Giosué questiona o pai sobre para onde estão viajando. Guido responde que é uma surpresa planejada por meses em comemoração ao aniversário do garoto, e, caso revele o destino, sua mãe ficará muito zangada. Na chegada ao local, o homem pergunta ao menino: “Está contente? Viu só este lugar? Está cansado?”. Então, ele responde: “Sim, não gostei do trem”. Para se aliar ao mundo da criança, o pai afirma “Também não gostei” e, em seguida, grita em tom de protesto: “Nós vamos voltar de ônibus! Com bancos! Já avisei”. Giosué, com o sentimento de quem foi compreendido, diz: “É melhor”. No que Guido replica: “Também acho. Viu quanta gente? Tem gente lá fora fazendo fila para entrar… furando a fila. Todos querem entrar”. O espectador nota, pouco a pouco, o esforço do protagonista em preservar o filho que tanto ama do terror anunciado. Há uma visível tentativa de salvaguardá-lo da violência que estão começando a viver e que só tende a piorar. Ao tentar dar sentido para a realidade que o invade de forma tão cruel, o menino lança a seguinte questão: “Papai, me conta que jogo é este?” O homem aproveita a ideia que o filho lhe ofereceu e responde: Nós todos somos concorrentes, entendeu? É tudo organizado. Os homens ficam desse lado, e as mulheres ficam do outro. Há os soldados, e eles explicam os horários, só que tudo isso é difícil, não é fácil. Quando alguém erra, é mandado de volta para casa. É preciso ficar atento. Segundo ele, para ganhar o prêmio, o jogador precisaria ser o primeiro a alcançar mil pontos. Interessado, o menino pergunta qual é o prêmio, e o tio de Guido responde: “É um tanque!” Apesar de recordar que já tem um, Giosué demonstra entusiasmo ao escutar do pai: “É um tanque de verdade, novinho em folha!” Depois dessa fala, a criança direciona um olhar mágico e enfeitiçado para o cenário ao redor. De alguma forma, o pai consegue transformar uma realidade completamente aterrorizante e aflitiva em uma brincadeira leve e instigante para o filho. Em nenhum momento, Giosué sente o que está vivendo como algo traumático. Isso se deve à construção lúdica de Guido, que serve de invólucro para a criança – tal qual a bolsa que envolve e sustenta o bebê no útero materno –, mas só existe porque o menino lança a proposta do jogo, que, prontamente, é acolhida e elaborada. Em determinada cena, soldados alemães entram no dormitório onde Guido e outros judeus estão alojados e perguntam quem sabe falar alemão para traduzir as regras do local para o grupo. Mesmo não conhecendo o idioma, o protagonista se dispõe a ser o intérprete e se posiciona ao lado de um dos soldados para ditar as “regras do jogo” ao filho, enunciando algo totalmente diferentes do que os militares estão falando: Todo dia, anunciaremos a classificação naquele megafone! O último colocado levará um cartaz escrito “burro” nas costas! Nós fazemos o papel dos homens muito maus que gritam! Quem fica com medo perde pontos! Em três casos, perdem-se todos os pontos. Vai perder: 1. quem começar a chorar; 2. quem quiser ver a mamãe; 3. quem sentir fome e quiser merendinha! Podem esquecer! (Benigni, Ferri & Braschi, 1997) Seguindo a narrativa, o menino mostra-se espantado ao mesmo tempo em que se diverte e ri da situação. Nesse sentido, tudo o que põe o menino em risco de contato com o terror transforma-se em uma brincadeira, uma outra realidade vivida entre pai e filho. Sempre, porém, que a realidade invade o menino de maneira abrupta, violenta e crua, e o jogo perde sua sustentação, o pai consegue criar um jeito de resgatá-lo, como é o caso da passagem em que menino profere: “Papai, este lugar é horrível, fede! Quero ficar com a mamãe! Estou com fome, e eles são muito maus, gritam”. O homem responde ao filho que tudo é muito difícil porque o jogo é sério, e o prêmio, muito valioso e disputado – sendo essa a razão de os soldados precisarem ser tão duros. Quanto mais a guerra se intensifica do lado de fora do campo de concentração, mais as regras do jogo dos mil pontos se estreitam no lado de dentro. Em outra circunstância, dominado pelo medo, o menino diz: “Eles fazem botões e sabão com a gente. Queimam a gente no forno. Um homem estava chorando e disse que vamos virar botões e sabão”. Guido não desiste. O pai ri e diz que o filho acredita em muitas bobagens. Apesar de todo o esforço, a criança parece ter sido capturada pelo horror da realidade e reivindica: “Basta, papai! Quero voltar para casa”. No entanto, toda objeção de Giosué é transformada em um novo elemento para que ele volte ao jogo. Guido argumenta que o tanque é novinho em folha, e eles já somam 687 pontos, estando muito próximos de vencer. Depois de lamentar bastante o fato de outra criança ganhar o prêmio que seria de Giosué devido à sua desistência, ele consegue fazer o menino voltar atrás e mudar de ideia. Imagens como essa passam a sensação de que o pai joga uma corda para que o filho a segure antes que caia de um precipício. O jogo fica mais difícil à medida que o fim da guerra se aproxima. Nas palavras do pai, os soldados estariam furiosos, pois o menino seria o único participante com o paradeiro ainda desconhecido. Dessa forma, Guido convence Giosué a permanecer escondido o dia inteiro dentro de um armário abandonado no campo – caso alguém o visse, a dupla seria desclassificada. Conforme sua orientação, mesmo que ele demorasse para voltar, o menino deveria permanecer no esconderijo e somente sair quando tivesse certeza de não haver qualquer pessoa por perto. Deixando a criança no único espaço seguro, o homem acaba sendo capturado por soldados nazistas e é fuzilado. Horas mais tarde, certificando-se de estar sozinho, o menino abandona o abrigo, sendo em seguida avistado por um tanque americano que anuncia o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao perceber o imponente veículo, com os olhos arregalados e brilhando, Giosué exclama: “É verdade!” O “prêmio” aparece quando o garoto segue as últimas instruções do pai. Ele obedece a todas as regras para conseguir alcançar os mil pontos, e o jogo se cumpre. Na cena seguinte, já nos momentos finais do filme, a voz de um homem adulto surge ao fundo. “Essa é a minha história. O sacrifício que meu pai fez, o presente que ele me deu”, diz. A seguir, algumas definições e ideias winnicottianas serão apresentadas no intuito de demonstrar de que forma, diante da barbárie do nazismo, o pai e seu filho são capazes de sustentar os recursos do jogo, da criação e da esperança pelo fim da guerra e pela vida. A esperança e o viver criativo Ouve o barulho do rio, meu filho Deixa esse som te embalar As folhas que caem no rio, meu filho Terminam nas águas do mar Quando amanhã por acaso faltar Uma alegria no seu coração Lembra do som dessas águas de lá Faz desse rio a sua oração Lembra, meu filho, passou, passará (Antunes, Brown, Jorge & Monte, 2006) Antes de adentrar nos temas propostos, é prudente ressaltar que, na perspectiva winnicottiana, o início da vida é crucial para o desenvolvimento de diversos processos maturacionais. Ser, viver, criar e relacionar-se não é dado a priori, mas é constituído no contato da criança com o mundo. Com base nisso, pretendemos discutir como a esperança está substancialmente atrelada às experiências primordiais, em especial, a criatividade primária. Para entender de que forma esse entrelaçamento ocorre, vamos trazer a imagem da amamentação. Um bebê, logo após o nascimento, encontra-se em um estado de dependência absoluta em relação ao ambiente que o circunda. Um dos seus primeiros impulsos instintivos é chorar, e geralmente sinaliza, quando não foi amamentado, que sente fome. Quando esse anseio de ser alimentado surge (inicialmente não entendido dessa forma, mas como um intenso desconforto), o bebê está pronto para criar algo. De que maneira? A necessidade fisiológica permite que ele tenha a preconcepção inata do seio, de uma fonte de satisfação do que ele pode encontrar, mesmo sem referências de uma experiência anterior. De acordo com a reflexão de Winnicott (1979), nesse momento em que o bebê realiza o gesto espontâneo de ir ao encontro de algo, sinalizando que sente fome, e a mãe oferece o leite, o bebê “cria” aquilo que existe para ser encontrado. Essa é a construção do objeto a partir da adaptação da mãe à sua necessidade – nesse caso, a fome. O resultado da sobreposição de ambas as experiências, o que vem de fora e o que vem de dentro, é a criatividade primária, amparada pela ilusão de onipotência. [5] O bebê, então, sacia seu apetite pelo leite que entra na sua boca e corre pelo seu corpo, apaziguando as excitações desconfortáveis que havia sentido outrora. O invólucro, antes, era representado pela placenta, agora, se torna o leite, gerado pelo seio, ao preencher o vazio do corpo, quase como um manto quente e aconchegante que o bebê coloca dentro de si. Essa explosão de estímulos vivenciada na amamentação, junto ao cheiro da mãe, a batida do coração, a textura da pele sentida pelo toque, a temperatura do leite, a voz e o embalar são como instrumentos de uma banda que podem ser executados separadamente, mas, quando tocados ao mesmo tempo, compõem uma sinfonia. Ao pensarmos no estado de arrebatamento sentido pelo maestro, no momento de uma apresentação musical, encontramos similaridade à ilusão de onipotência do bebê, pois o seu arranjo, em um primeiro momento, foi necessitado e querido para, posteriormente, vir a ser descoberto, no instante do espetáculo. A junção desses dois tempos resultaria na concepção e crença de que a banda-seio foi criada e encontrada por si mesmo, e não pelo outro. Se os primeiros momentos de vida acontecem desse modo, quando o ambiente é suficientemente bom, ou seja, reconhece, acolhe e atende, ativamente e com devoção, às necessidades do lactente, o sentimento de continuidade na existência do ser é estabelecido. Isso propicia uma relação espontânea e criativa com a vida, e a criança concebe um senso subjetivo da realidade, como se o mundo tivesse sido criado por ela, tal como Deus, o todo-poderoso. Essa é uma condição necessária, pois é nesse ambiente satisfatório que a vida psíquica se estrutura (Rocha, 2007). Tais vivências só podem ocorrer devido à função de escudo protetor que a mãe-ambiente exerce para o filho, atenuando ou eliminando estímulos excessivos (sejam relativos a uma presença, ou a uma ausência maciça dos objetos) que podem irromper da realidade externa. Dessa forma, o bebê não precisa lidar precocemente com objetos não-eu, ou seja, a ilusão de onipotência não é rompida antes da hora por uma intrusão externa, e sim por um processo criativo do próprio bebê. Caso esse tipo de encontro harmônico entre bebê e ambiente não ocorra, o indivíduo vai construir uma forma de ser em oposição à criatividade primária, [6] que consiste na submissão. Nesta, ele aparelha em si um falso self patológico, em vez de um verdadeiro self. Articulando essas ideias iniciais ao enredo do filme A vida é bela (Benigni, Ferri & Braschi, 1997), percebemos que Giosué, ao perguntar para Guido “que jogo é este?”, realizou um gesto espontâneo e concebeu um objeto do qual precisava, que logo foi acolhido pelo pai, sendo em seguida ampliado, enriquecido e reoferecido ao menino como o jogo dos mil pontos. Esse objeto só pôde ser criado porque o pai estava ali para fazer o filho encontrá-lo, ou seja, a sua constituição se deu na sobreposição da realidade da criança à do pai, mesmo com a guerra acontecendo ao redor. O jogo, como sobreposição das realidades interna e externa, serviu de anteparo, como uma película protetora para as necessidades da criança diante de seu contexto, sendo-lhe oferecido apenas aquilo que estava dentro de sua ilusão de onipotência ou, em outros termos, dentro de sua capacidade de compreensão. Um garotinho de 5 anos não teria condições maturacionais de entender o que era um campo de concentração, a razão de ele existir e a ameaça que representava à sua vida. Sem saber, o menino dependia dessa construção do jogo que o fazia desconhecer a brutalidade do nazismo, sendo Guido a sua capa protetora diante de uma exterioridade incognoscível. Assim, a função desse pai, tal como a de uma mãe suficientemente boa, foi sustentar e favorecer a criatividade primária da criança ao permitir que ela criasse e encontrasse o objeto, a despeito do que estava acontecendo na realidade externa. O crucial, nesse caso, foi a presença do pai proteger a criança da experiência de estar no campo de concentração. Quando, por exemplo, o tanque apareceu no final do filme, o objeto surgiu no instante de sua necessidade, de uma forma que Giosué poderia aceitar e assimilar como algo criado por ele. Por não o ter percebido como vindo de fora, o objeto não agrediu o seu ser. Assim, a ilusão de onipotência da criança realizou-se, como se ela fosse Deus e tivesse o domínio do mundo, em razão do jogo constituído ao longo da trama. No enredo, podemos ver que em nenhum momento o pai impôs a dura realidade da guerra ao filho, nem fez as suas necessidades sobreporem- -se às do garoto – muito pelo contrário, Guido servia como suporte para sustentar o ego frágil da criança. Isso fez com que o menino não fosse submetido a uma autoridade que explora, como a figura dos soldados nazistas, e sim às regras do jogo que faziam sentido, de tal modo que a realidade, ao invés de impor um caráter de submissão, propiciou seu impulso para a vida. Diferentemente do trabalho exercido por Guido e outros judeus no campo de concentração, que nada tinha de criativo, pois as atividades realizadas esmagavam a espontaneidade do ser de cada um deles. A partir da discussão teórica articulada ao filme, vemos que na experiência da criatividade primária, a apresentação da realidade externa acontece a partir da necessidade do indivíduo e, se repetida muitas e muitas vezes, a experiência da criação do objeto permite que a esperança ecloda: Um milhar de vezes houve a sensação de que o que era querido era criado e constatava-se que existia. Daí se desenvolve uma convicção de que o mundo pode conter o que é querido e preciso, resultando na esperança do bebê em que existe uma relação viva entre a realidade interior e a realidade exterior, entre a capacidade criadora, inata e primária, e o mundo em geral, que é compartilhado por todos. (Winnicott, 1979, p. 101, grifo nosso) Diante dessas ideias, R. J. F. Ferraz vai afirmar que a esperança se dá justamente a partir desses encontros harmônicos entre o bebê e a mãe, quando o lactente experimenta a ilusão de criar a si mesmo, os objetos e o mundo, de ser espontâneo no ser e fazer, pois é no viver criativo que o indivíduo “pode ter a esperança de que a vida vale a pena ser vivida, ainda que ela seja difícil em si mesma” (Ferraz, 2019, p. 7). Dessa forma, um observador de uma mãe com o seu bebê, no momento da amamentação, pode refletir o seguinte: o bebê teve a ilusão de que criou o seio, pois o leite chegou delicadamente na hora da sua necessidade, quando estava pronto para criá-lo, e isso foi capaz de gerar esperança em seu viver. À medida que esse processo de amamentação se repete, ao mesmo tempo que o bebê tem a ilusão de criar o seio, ele tem a experiência de perdê-lo, pois, quando dorme, a imago da mãe se desvanece até o momento de acordar, chorar e encontrá-la novamente, com o aparecimento do seio (Pinheiro, 2021). Na ausência ou afastamento da mãe, o bebê consegue mantê-la viva dentro de si por um tempo limite, uma duração que mantém a esperança de sua volta e amparo. Caso o retorno dela ultrapasse o intervalo que o lactente suporta, a imago materna começa a desaparecer, e, por perder internamente a memória da mãe, a aflição surge na criança. Nesse momento, o bebê encontra-se preso a uma agonia de clamar por ela e não obter resposta. Se a mãe retorna, esse sentimento se apazigua, mas, caso ela não reapareça, o seu distanciamento provoca um trauma no bebê, e, mesmo no seu retorno, a falha experimentada deixa uma marca de descontinuidade na vida dele. A capacidade de ter esperança, por sua vez, vai se ligar a essa ondulação entre perder e reencontrar o objeto de amor, no qual se estabelece um “circuito (fome-busca pelo objeto/seio-encontro-perda-nova busca-reencontro do objeto/seio sobrevivente)” (Pinheiro, 2021, p. 158). A continuidade dessas experiências primárias vai fazer Ferraz (2019) acreditar que a esperança é ontológica, assim como a criatividade, porque está fundamentada no ser e existir, não sendo sinônimo de expectativa ou de uma positividade cega. Por isso, não pode ser traduzida como um sentimento, sensação ou emoção. A esperança está na base do gesto espontâneo que emerge do self verdadeiro, o que significa que não é necessário utilizar a mente, a consciência ou o pensamento para estar ligado a ela. Para entendermos melhor essa ontologia da esperança que a diferencia meramente de um sentimento consciente, proposta pelo autor, podemos articulá-la com a noção da virtude teológica na concepção do cristianismo, ou seja, ela não seria algo que se conquista por esforço, entrega, obediência e prática no cotidiano, mas por outros meios. Se a analisarmos no sentido cristão, a esperança seria entendida como um dom, na medida em que é uma graça, uma benesse ou dádiva concedida por divindades, tal como canta Caetano Veloso: “a esperança é um dom que eu tenho em mim, eu tenho sim” (canção composta por Peninha, 1977). Essa analogia é utilizada por Ferraz (2019) porque, no início da vida, a esperança é algo que se instala sem labor, a partir da contingência existente na arte do encontro: “o bebê não faz esforço para ter esperança. Ele a tem quando o si-mesmo encontra o objeto” (p. 7). Assim, a concepção ontológica, na qual a esperança está assentada, diverge dos afetos da vida psíquica, pois se relaciona às bases da existência, do si-mesmo, do viver, anteriores a qualquer afeto, emoção ou sentimento. Por isso, a esperança é muito mais do que, simplesmente, uma capacidade de apontar para o futuro, seja pelo sonhar, planejar ou desejar. Ao contrário disso, na perspectiva de F. F. Cesar e M. Ribeiro (2021), a esperança tem uma característica de profundidade, densidade e enraizamento nas nossas vivências primordiais, o que possibilita uma dimensão constituinte da subjetividade e do vir a ser, pois está atrelada à experiência de criação de si mesmo e do mundo, ou seja, da criatividade primária. Esses dois processos encontram-se entremeados e promovem a vida psíquica, o tornar-se real: A esperança não é algo com que se nasce. Ela é tecida no amor dos começos, advém de um encontro singular com o objeto primário. Ela é mais-além, não coincide com estado de ânimo – é algo da ordem essencial para a constituição psíquica e para a capacidade de crer, capaz de conduzir à confiabilidade pessoal, assim como à crença em geral (Cesar & Ribeiro, 2021, p. 132) Esse é o sentido da esperança (ontológica), algo que nos move e sustenta sem dele nos darmos conta, mas que é estruturante para o viver. Sua definição assemelha-se à imagem de um bebê que é carregado e embalado nos braços da mãe, sem saber que tem um outro acalentando-o, bem como à de quando temos acesso à água do chuveiro, mas nos esquecemos dos canos, infiltrados e percorrendo as paredes, que a trazem, ou até mesmo à da luz que acendemos em meio à escuridão, e que chega graças aos fios encapados que estão embutidos nas nossas casas. Quando Ferraz (2019) afirma que “a esperança é a última que morre, ou melhor, é quando morre a esperança que se morre, pelo menos no sentido psíquico” (p. 9), podemos entender, a partir de mais um ponto de vista, a analogia citada acima, ou seja, o modo com que a esperança se apresenta é fundamental na constituição do nosso ser, do nosso psiquismo e da nossa capacidade de esperar. Na compreensão de Gurfinkel (2016), essa capacidade relaciona-se com a esperança, podendo ser denominada também uma crença no tempo de que o objeto será encontrado. Na sua perspectiva, essa espera é instaurada a partir do uso do objeto transicional, o qual se constitui como um símbolo materno com caráter paradoxal, pois, ao mesmo tempo que representa a mãe, não é; ao mesmo tempo que une, também separa; pois mantém a presença de algo que não está presente. Esse objeto – que pode ser um paninho, ursinho, cobertor, entre outros – permite a constituição da esperança e da capacidade de esperar pelo retorno da mãe. Dessa forma, quando esse estado consegue ser alcançado pelo indivíduo, refletindo uma relação sintônica entre a díade mãe-bebê, a esperança aparece. Em confluência, para Ferraz (2019), tal dimensão poderia se traduzir da seguinte forma: Ter esperança é a única coisa que possibilita ao indivíduo poder enfrentar a cada dia a dura tarefa de existir, e a falha do encontro do si-mesmo com o ambiente desde os seus primórdios e ao longo do desenvolvimento na infância fere, desorganiza ou nem permite que se constitua a capacidade de esperar a partir do registro ontológico, como dito anteriormente. (Ferraz, 2019, p. 7) O filme A vida é bela (Benigni, Ferri & Braschi, 1997) serve como um exemplo reflexivo para essas questões. O personagem do pai exibe criatividade e esperança que se alimentam mutuamente, sendo elementos fundamentais para ajudar a si mesmo e ao seu filho a enfrentar a brutal realidade da guerra. Mesmo num cenário de horror, Guido não deixou de sustentar a crença de que o filho poderia escapar das armas do nazismo. Enquanto o menino, ainda que em alguns momentos sem esperança, se deixava impulsionar para a vida com as incansáveis convocações do pai. Nesse jogo interdependente vivido entre eles, a criança passou a alimentar a espera da chegada do tanque como forma de lidar com os momentos tortuosos do presente. À medida que constituímos esses elementos essenciais que fazem sentido para a nossa vida, temos mais aptidão para crer nos nossos próprios recursos e nos recursos do mundo para seguir em frente (Motta & Silva, 2021). A esperança se mantém, sustenta e é um potencial para a nossa capacidade de suportar as perdas, mudanças, dificuldades, quedas e as restrições vividas. Isso só é possível quando as ressonâncias e marcas dos bons encontros, experimentadas desde os primórdios, vão criando registros e memórias, constituindo uma salvaguarda psíquica para momentos tenebrosos. São essas experiências iniciais que, apesar dos percalços cotidianos, fazem com que possamos continuar vivendo e seguindo sem nos destruir completamente ou sem que percamos nossos rumos, mesmo que haja a oscilação da esperança para estados opostos, o que é esperado. Se pensarmos em Guido, vemos que, mesmo tendo sua esperança abalada e sua vitalidade esmorecida pela realidade terrífica, ele conseguiu manter a esperança do filho ao favorecer entre eles a capacidade de criar e brincar. O jogo não negava o cenário de guerra, mas incluía no campo lúdico (transicional) os elementos presentes. Nos momentos de desesperança do filho, o pai o resgatava, para que ele não fosse morto (literalmente), mas podemos pensar em uma salvação da morte psíquica, caso o menino entrasse em contato com a atrocidade da guerra. Entre eles era vivida uma esperança de que, mesmo diante de tamanho terror, a vida ainda valia a pena ser vivida. Conforme estamos discutindo, o cuidado sem pausa que um ambiente promove na vida de um bebê oferece a ele a continuidade do ser, mas isso nem sempre é possível, pois a vivência da criatividade primária e a capacidade de ter esperança não necessariamente se realizam na vida de um indivíduo, visto que o ambiente pode propiciar falhas constantes nas adaptações às necessidades do bebê. Quando isso ocorre, a esperança pode sofrer abalos, e, com isso, acabar predominando a desesperança no viver, tal como discutiremos a seguir. A desesperança como resposta a uma vida não criativa E o tempo que levou uma rosa indecisa A tirar sua cor dessas chamas extintas Era o tempo mais justo. Era tempo de terra Onde não há jardim, as flores nascem de um Secreto investimento em formas improváveis. (Andrade, 2002) Diferentemente da criatividade primária, que se dá a partir de um ambiente confiável e suficientemente propício aos cuidados, há casos em que os objetos primordiais apresentam-se de uma forma insuficiente, seja na presença intrusiva de um adulto cuidador que não se deixa esquecer ou, na sua ausência, que implica abandono (Cesar, 2019). Em ambas as situações, o bebê fica à mercê da própria sorte, pois não é permitido a ele criar o seu mundo e alcançar, posteriormente, o estado de integração. Caso existisse uma dinâmica alternada entre presença e ausência, o ambiente se mostraria capaz de assegurar o clima necessário para estabelecer uma crença na vida (Rocha, 2007). Quando esse caminho não é possível, os gestos do si-mesmo e a ilusão de onipotência do lactente sofrem uma ruptura, diante da qual “a espontaneidade fica perdida, e o que não se constitui, ou fica ferido no indivíduo, é a capacidade para a esperança” (Ferraz, 2019, p. 7). O que ocorre nesse processo é um trauma que impede, rompe ou aniquila a continuidade do ser nos primeiros estágios do desenvolvimento maturacional. O bebê passa a reagir às invasões sofridas e adquire um padrão fragmentado do ser, ou, em outros termos, um comportamento organizado em torno de uma defesa que precisou existir por um tempo contínuo e repetitivo, submetido a um ambiente não confiável (Winnicott, 1962/1983). No caso desse padrão, trata-se do momento em que o bebê percebe a realidade externa antes do tempo e precisa dar conta de algo que ainda não tem a capacidade de compreender. O resultado disso é o estado de desolação e desesperança, como se houvesse a sensação de que não se pode contar com ninguém ou crer em nada, muito menos que o estado de coisas da vida possa mudar: É verdade que um padrão se estabeleceu em seu relacionamento primitivo com a mãe, relacionamento que se transformou cedo demais e de maneira abrupta, de algo muito satisfatório em desilusão e desespero e no abandono da esperança na relação de objeto. (Winnicott, 1971/1975, p. 51) Nesse sentido, Winnicott (1990) ressalta que a incapacidade de viver criativamente embota a existência da esperança, e, caso a mãe não consiga adaptar-se às necessidades do seu filho, ele não terá nenhuma crença em estabelecer e manter relações excitadas (nas quais o instinto prevalece) com objetos ou pessoas que não foram criados por ele, o que seria, na perspectiva de um terceiro, o mundo real, externo ou compartilhado. Assim, a desesperança e o desespero surgiriam de traumas de abandono afetivo, principalmente os mais antigos, que teriam acontecido na época pré-verbal, de acordo com Elisa Cintra. [7] Segundo Winnicott (1949/2021), um trauma pode ser definido como algo que a criança viveu, mas não teve condições de experimentar, ou algo que não ocorreu, mas que precisava ter sido integrado. Essas vivências primárias traumáticas traduzem-se em um estado de confusão, no qual o indivíduo precisa erguer defesas primitivas para lidar com elas, e é isso que gera a desesperança congênita: Podemos dizer que o mais importante é o trauma representado pela necessidade de reagir. A reação, nesse estágio do desenvolvimento humano, implica uma perda temporária de identidade. Isso provoca um senso extremo de insegurança e lança a base para expectativa de novos exemplos de perda da continuidade do self, e mesmo de uma desesperança congênita (embora não herdada) quanto à possibilidade de alcançar uma vida pessoal. (Winnicott, 1949/2021, p. 342) Figueiredo (2008) lembra que essa desesperança não tem a ver com inatismo ou genética, mas é adquirida no momento que o bebê precisa reagir a um ambiente que não se adapta às suas necessidades, o que instaura falhas na constituição psíquica, e, com isso, a falta de esperança. Essas falhas graves existentes na comunicação entre mãe e bebê malogram a matriz básica de ter fé (Cesar & Ribeiro, 2021). Desse modo, quando há rupturas contínuas e severas no encontro do si-mesmo com o ambiente, a esperança dilui-se, e “verifica-se que a mesma ocupa um lugar fundamental na constituição do indivíduo, a tal ponto, que perdê-la ou não a ter experimentado é vivida como ‘morte’” (Ferraz, 2019, p. 6). Portanto, a vida interna seria expressa pela criatividade e esperança, já a morte dentro, pelo seu oposto, uma profunda desesperança e estado de submissão, o que pode levar o indivíduo à morte subjetiva e/ou factual, por meio do suicídio. Para Winnicott (1971/1975), nesses casos extremos, viver ou morrer passa a não ter relevância, pois o indivíduo perdeu o contato com o si- -mesmo e não sabe quem poderia ser ou o que deixou para trás. Tudo o que é real, pessoal e original, proveniente da criatividade primária e o que, de fato, importa, fica oculto e não existe. Viver nas margens da desesperança (Cesar & Ribeiro, 2021) é uma espécie de sub-viver, o que vemos acontecer nos sofrimentos e adoecimentos severos, e nele estar acometido por esse estado deixa os indivíduos expostos a paralisias ou expectativas traumáticas. Como o que acontece com aqueles que foram traumatizados, dominados no lar, prisioneiros ou vítimas da perseguição de um regime político cruel, pois são os que sofrem e apenas existem, mas não vivem, visto que “abandonaram a esperança, deixaram de sofrer e perderam a característica que os torna humanos, de modo que não mais percebem o mundo de maneira criativa” (Winnicott, 1971/1975, p. 113). A maioria dessas pessoas têm sua criatividade intensamente danificada, mas nunca completamente destruída, pois, mesmo nos casos citados ou em outros, há de existir uma parte, mesmo que escondida, que carrega uma criatividade que remonta às experiências originais de sua vida e que carece de encontros que enriqueçam seu viver. Há uma eterna espera de integração das partes cindidas, uma esperança de que o verdadeiro self venha à tona e seja possível experimentar o sentido unitário do ser e de sentir-se real, sendo este o único meio para ser criativo. Enquanto vive à espera para agir no mundo, o gesto espontâneo encontra-se obstruído, mas com potencialidades para surgir. Diante dessas formulações, podemos pensar que a criatividade e a esperança podem surgir mesmo em ambientes e situações não favorecedoras de sua existência, como em cenários de guerra. Esse potencial para a vida e para as relações humanas é herdado, inato, mas, caso não seja acolhido como a manifestação do gesto espontâneo, pode permanecer congelado. Correlacionamos essa ideia à proposição de H. N. Boris, quando diz que a “desesperança não é a perda da esperança em si. É a perda da esperança para as próprias esperanças. As esperanças permanecem” (Boris, 1976, p. 141). No filme A vida é bela (Benigni, Ferri & Braschi, 1997), a desesperança se faz presente constantemente, como um cenário sombrio sempre à beira de desabar e inundar a existência de Giosué, especialmente nos momentos em que a realidade se mostra mais cruel e violenta. Essa atmosfera é evidenciada nas cenas em que o menino reclama do odor do ambiente, da escassez de alimento, dos gritos dos soldados, ou quando expressa seu medo de ser incinerado no forno e transformado em sabão ou botão. Apesar disso, a sustentação da esperança empreendida pelo pai, por meio da construção do espaço de ilusão, da criatividade e do brincar propiciou a esperança do menino, de que uma hora ou outra o jogo iria acabar, e que o término daquele cenário cruel estava por vir. Com o exemplo do filme, vimos que, quando um indivíduo tem registros de cuidados contínuos, fica mais fácil confiar e lembrar que nem tudo está perdido, pois a vida reserva coisas boas, apesar dos infortúnios que a atravessam. De maneira oposta, quando essas vivências não acontecem, a tendência é retrair-se para a vida e, em vez de ser e fazer no mundo, submeter-se a ele e sobreviver mergulhado em meio à desesperança. Notas 1 Este artigo faz parte da dissertação de mestrado Criatividade e esperança na clínica psicanalítica: ideias a partir de Melanie Klein e Donald Winnicott, de Maysa Marianne Silva Bezerra, sob a orientação de Marina F. R. Ribeiro. A defesa do trabalho ocorreu no dia 11/8/2023. A pesquisa teve apoio financeiro da Capes e foi fruto de um trabalho em equipe realizado no grupo de pesquisa LipSic – usp/puc-sp. 2 Mestre em Psicologia Clínica/ ip-usp e sócia do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (cppl). 3 Psicanalista, profa. associada ip-usp, profa. e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do ip-usp; coordenadora do Lipsic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea). Autora de vários livros e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. 4 O filme pode ser considerado controverso por abranger variados prismas de análise, suscitando tanto aclamação entusiástica quanto críticas severas. As divergentes opiniões que a obra provoca, no entanto, não serão abordadas neste artigo, visto que o afastam de seu objetivo. 5 Vale ressaltar que, embora a fome seja uma necessidade fisiológica, o bebê tem várias necessidades emocionais e egoicas que vão além da fome. Trata-se da experiência de ter a ilusão de onipotência, que é uma experiência complexa e multifacetada. 6 É primária porque está ligada ao nascimento, aos fatores herdados e à tendência inata à integração, ou seja, ao impulso de amadurecer devido à disposição da natureza humana para o desenvolvimento do ser. 7 Comunicação oral pronunciada em uma reunião no dia 10 de junho de 2022. Referências Andrade, C. D. de (2002). Campo de flores. In C. D. de Andrade, Claro enigma [Poesia Completa]. Nova Aguilar. Andrade, C. D. de (2012). A flor e a náusea. In C. D. de Andrade, A rosa do povo. Companhia das Letras. Antunes, A.; Brown, C.; Jorge, S. & Monte, M. (2006). O Rio [gravado por M. Monte]. 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- RESENHA: Melanie Klein. Autobiografia comentada
Organização: Alexandre Socha Blucher, 2019 Marina F. R. Ribeiro (1) (1) Psicanalista, Profa. Dra. IPUSP, coautora com Elisa M.U. Cintra do livro Por que Klein? (Ed. Zagodoni, 2018), entre outros livros e artigos. Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersujetividade e Psicanálise Contemporânea, LipSic (IPUSP e PUCSP). Apresentar um livro é sempre algo desafiador e de considerável responsabilidade. Considero que os textos são sempre autorais, mesmo aqueles que são predominantemente teóricos. E, aquele que escreve a resenha de um livro, o faz inescapavelmente a partir de suas impressões e ressonâncias. O livro em questão é um convite à reflexão de como vida e obra estão inexoravelmente entrelaçadas, sendo que apenas um delicado e respeitoso trabalho de aproximação é capaz de iluminar algumas facetas desse amálgama. Primeiramente, penso ter sido uma excelente ideia traduzir e publicar um texto kleiniano ainda inédito em língua portuguesa, tanto pelo seu caráter histórico, quanto pela presença afetiva que emana nas linhas e entrelinhas. Alexandre Socha, organizador do livro, nomeia sua introdução de “Melanie Klein, personagem de si mesma”, introduzindo o leitor a uma instigante reflexão sobre o gesto autobiográfico: “o debruçar-se sobre as próprias memórias como um modo de apegar-se à vida, bem como de despedir-se dela” (Socha, 2019, p.16). O paradoxo emocional e o tom nostálgico capturam o leitor nessa apresentação, o ethos rememorativo, como escreve Socha. Destaco que o livro apresenta a cuidadosa e implicada tradução de Elsa Susemihl(2), psicanalista e estudiosa da obra de Klein e de Bion. Encontramos ao longo do texto notas que esclarecem e orientam o leitor e que demostram seu conhecimento da obra kleiniana, atestando o valor das traduções feitas por psicanalistas. A autobiografia de Klein está acrescida do comentário de quatro psicanalistas e ainda, no apêndice, o testemunho de James Gammill sobre o seu contato como supervisionando de Klein entre os anos de 1957-1959, mesmo período em que os fragmentos autobiográficos foram escritos. Entre os comentadores, encontramos duas autoras nacionais (Liana Pinto Chaves e Izelinda Garcia de Barros) e dois internacionais (Robert D. Hinshelwood e Cláudia Frank), que juntos compõem de forma equilibrada e harmônica o livro. (2)Apenas o apêndice foi traduzido por Paulo Sérgio de Souza Jr. Do texto inédito de Hinshelwood (2019), eu gostaria de destacar alguns pontos que considero pertinentes a questões da psicanálise contemporânea. Em primeiro lugar, a ousadia de Klein ao sustentar uma mudança de foco no trabalho de análise, da questão energética freudiana, para os afetos e suas angustias. Em segundo, sua problematização quanto à precisão da interpretação, sugerindo que o analista observe cuidadosamente o efeito de sua fala dentro da sessão de análise, levantando a questão da verdade emocional que se mobiliza e se procura traduzir no ato da interpretação. Se o analista for bem-sucedido em sua capacidade de colocar em palavras a angústia, de construir uma narrativa, é observável a mudança que se segue à interpretação: a criança passa a brincar livremente e o adulto a pensar. O analista precisa ser capaz de capturar em palavras a dor da ansiedade. Como sinônimo de fantasias inconscientes encontramos no texto de Hinshelwood a expressão dramas narrativos, referindo-se, talvez, ao vasto campo de pesquisa sobre a narratividade na sessão, a capacidade narrativa exitosa da dupla analítica, a linguagem de êxito (Bion, 1970) ou linguagem bem-sucedida, promovendo transformações no campo analítico. A impressão é que Klein transferiu seu método de observar as narrativas do brincar das crianças para a observação das narrativas dos processos de pensamento de um adulto. É como se a “sala de brincar” passasse a ser o próprio espaço mental. (Hinshelwood, 2019, p.102) No texto de Liana Pinto Chaves destaco a proximidade com minhas breves impressões descritas no final desta resenha: a autobiografia como um acerto de contas amoroso com seus objetos internos e externos, e uma reconciliação com a mãe, aproximando vida e morte. Liana nos lembra que a autobiografia forma um mesmo conjunto de reflexões com o artigo publicado postumamente, “Sobre o sentimento de solidão” . Cláudia Frank traz importantes dados históricos sobre a trajetória dos textos e do pensamento kleiniano na Alemanha, além de uma erudita apresentação de alguns autores pós-kleinianos e seus desenvolvimentos conceituais. Izelinda Garcia de Barros enfatiza a importância da experiência com a maternidade e de como esta marca a proposta teórica e clínica de Melanie Klein. Destaca que a construção teórica kleiniana é fruto das trocas conscientes e inconscientes entre Ferenczi e Klein entre 1912 e 1918, autor pouco citado em sua obra devido a questões políticas. A obra de Ferenczi sofreu uma condenação pelo silêncio, ficou por muitos anos banida dos institutos psicanalíticos. Na autobiografia Klein escreve que tem muito a agradecer a Ferenczi e que ele era um homem de talentos incomuns e tinha o traço de um gênio. O apêndice escrito por James Gammill é um relato de sua experiência pessoal como supervisionando de Klein. Comenta que se sentia à vontade com a Sra. Klein quando apresentava seu material clínico, o que nos leva a pensar que Klein era acolhedora e continente com os psicanalistas próximos a ela. Ele relata que Klein lhe fazia contribuições precisas e consistentes, especialmente quanto ao timing das interpretações e a escolha de palavras, enfatizando a importância de o analista conhecer o vocabulário do paciente e sua forma única de se expressar.Gammill escreve que para Klein era importante que um psicanalista fosse dedicado de maneira autêntica e profunda à psicanálise, e aqui encontramos uma preciosidade, um comentário de Klein sobre o trabalho de Bion: O que é que ela [uma determinada analista] estava querendo dizer, então, quando afirmou que compreendia perfeitamente o que o Dr. Bion queria comunicar na conferência dele? Frequentemente tenho de reler várias vezes o texto das conferências do Dr. Bion antes de começar a captar alguma coisa daquilo que ele tem a dizer. Tenho a impressão de que ele trabalha com algo novo em psicanálise, mas não tem serventia alguma fingir que é fácil e evidente. (Gammill, 2019, p.199/200) É manifesto nesse comentário o respeito e a admiração que Klein nutria por Bion, seu paciente nos anos de 1945 a 1953, que depois tornou-se um dos kleinianos mais geniais, conjuntamente com Hanna Segal, Herbert Rosenfeld e Money-Kyrle. Klein reconhece nessa fala citada por Gammill que Bion postulou um novo paradigma para a psicanálise. Seus textos epistemológicos foram publicados após a morte de Klein em 1960. Entretanto, ainda em seu livro de 1970, Atenção e Interpretação, Bion se considerava um kleiniano, anos depois de ter formulado um pensamento original e autoral, provavelmente num gesto de gratidão e reconhecimento à sua analista. Para finalizar a resenha do livro e capturada pelo ethos rememorativo da proposta do organizador Alexandre Socha, relato algumas ressonâncias pessoais geradas pelo texto autobiográfico de Melanie Klein. Breves impressões da autobiografia de Melanie Klein Será a escrita autobiográfica a elaboração momentânea de uma vida? Chegando ao fim da trajetória, nós nos remetemos ao começo, na busca por aquilo que inspirou o caminho, o sentido encontrado no a posteriori do percurso. Obra e vida inevitavelmente se entrelaçam, sendo produto da nossa racionalidade essa distinção insustentável. A narrativa autobiográfica pode ser lida como um sonho, assim como uma sessão de análise (Scappaticci, 2018). Inspirada por esse vértice, teço alguns breves comentários. A autobiografia de Klein seria o testemunho de um processo de elaboração da experiência da proximidade da sua morte? Uma despedida amorosa? O sentimento de nostalgia que transborda pelas margens do texto autobiográfico de Melanie Klein seria a busca pelo sentido do que a moveu na vida? Sentido alcançado no a posteriori , e que implica um estado de lucidez daqueles que construíram recursos psíquicos para se deparar com a verdade emocional de suas vidas e com o árduo enfrentamento de suas perdas. A leitura dessa breve autobiografia nos remete à construção de uma cena psíquica, uma cena onírica, na qual é possível se despedir da vida com amorosidade e sentimento de gratidão.Os vínculos amorosos podem ser compreendidos como um objeto bom constituído por cenas de trocas afetivas gratificantes, memórias em sentimentos. Já não há tempo para discórdias ou para os difíceis trabalhos do ódio. É preciso partir, carregando o que há de mais precioso na mente, as cenas amorosas que constituem nossos objetos bons. .... Mas penso na minha infância como uma infância com uma boa vida familiar e daria qualquer coisa para tê-la de volta por um só dia; nós três, meu irmão, minha irmã e eu sentados em volta da mesa, fazendo nosso trabalho escolar, e os muitos detalhes de uma vida familiar unida. (Klein, M. 1959/2019, p.42) Klein descreve idilicamente a cena dos irmãos juntos na mesa fazendo os deveres, uma cena amorosa que permaneceu vitalizada em sua mente. O estudo auto didático é uma marca da família. Klein indubitavelmente foi uma autodidata admirável, uma mulher além de seu tempo. A leitura da autobiografia de Klein inspira-me à seguinte compreensão: morrer entrelaçada aos objetos bons significa morrer tranquila, sem a predominância de estados paranoicos de mente. A morte parece ser representada na autobiografia como um encontro com essas cenas amorosas que constituem o frágil tecido psíquico, sempre ameaçado por intensas turbulências. A morte ou sua proximidade pode ser uma experiência psíquica avassaladora. Como se despedir da vida de forma vitalizada e amorosa? Parafraseando Winnicott: quero estar vivo quando morrer. Penso que Klein oferece ao leitor, generosamente, o testemunho da intimidade do processo de elaboração da sua própria morte(3) e de sua vitalidade, como Socha escreve na introdução, o paradoxo entre apegar-se e o desprender-se. É algo relativamente comum diante da proximidade do fim da vida a experiência de que iremos, de forma imaginária, encontrar a mãe, quase como se voltássemos para o lugar de onde partimos, ou que a lembrança desse vínculo primordial que nos conduziu para a vida agora pudesse nos conduzir suavemente para a morte. Nas duas grandes cesuras de uma vida, nascer e morrer, temos a mãe ao nosso lado. A mãe real ao nascer, e a mãe imaginada ao morrer. Klein escreve sobre morrer quase sem angústia, e talvez ela se inspirasse nesse momento na morte de sua mãe para que ela também tivesse uma experiência próxima. Tons de idealização estão presentes na sua escrita, mas talvez para o enfrentamento da cesura da morte esse sentimento seja necessário e apaziguador. Nunca imaginei que alguém pudesse morrer do jeito que ela morreu, completamente de posse de suas faculdades mentais, calma, sem nenhuma ansiedade e, de forma alguma com medo ou relutante em morrer. (Klein, M. 1959/2019, p.54) Klein descreveu com maestria os trabalhos psíquicos do luto e a criatividade que emerge da mais intensa das dores, a de perder entes queridos. Nossa autora escreveu que na elaboração dos processos de luto a pessoa perdida torna-se um objeto interno bom. Nesse texto autobiográfico ela descreve isso de forma surpreendente, aproximando a morte dos seus dois irmãos que tiveram a vida interrompida precocemente: sua irmãzinha Sidonie, quando Klein tinha quatro anos, seu irmão Emmanuel, quando ela tinha 20 anos(4). Escreve sobre a profunda admiração que nutria por eles e de como ela tinha imagens vivas dos irmãos na sua memória: “A doença do meu irmão e sua morte precoce é mais um, entre os outros lutos na minha vida, que ainda permanece vivo em mim” (Klein, M. 1959/2019, p.48). É bela a passagem na qual Klein escreve sobre como o irmão Emmanuel, que ela tanto admirava, fonte das suas inspirações, mistura-se em sua mente com o filho morto, Hans, com o filho vivo, Eric, e o neto Michael, descrevendo a plasticidade da experiência estética dos objetos na mente: Meu filho mais velho, Hans, que morreu aos 27 anos de idade quando praticava alpinismo, tinha uma grande semelhança com meu irmão, particularmente em seus primeiros anos, assim como acho que também Eric tem. Penso, também, que meu neto, Michael, tem algo de sua aparência, mas posso estar enganada porque todas essas figuras tinham muito em comum nos meus sentimentos. (Klein, M. 1959/2019, p.51) Compreendo o objeto bom como uma reserva de memórias afetivas, um conjunto de cenas e de narrativas, um atravessamento de distâncias atemporais (Cintra & Ribeiro, 2018). Uma cena psíquica que funciona como uma tênue âncora na turbulência da transitoriedade da vida, favorecendo, mesmo que de forma breve, um reconhecimento de que somos nós na turbina do tempo, que encontramos algo da pequena Melanie, uma invariância que se conecta com a Sra. Klein ao final de uma tumultuada, dolorosa e criativa vida. O texto é o testemunho de uma mulher que teve a ousadia de sofrer a própria dor, e de acreditar que isso é o que transforma, o que é verdadeiramente importante. O analista precisa encontrar o ponto de urgência, o ponto de maior angústia no aqui e agora da sessão ou da vida, “tocar” a ansiedade, como escreve Hinshelwood (2019) e ser capaz de construir uma narrativa bem-sucedida. Ao ler a autobiografia, tenho a impressão de encontrar uma carta de despedida à vida, de alguém que parte com o sentimento de realização do que foi possível e de amorosidade pelos seus objetos internos e externos, com suas plásticas e únicas narrativas psíquicas. Klein, personagem de si mesma, como nomeia Socha. (3) A autobiografia foi escrita um ano antes da morte de Klein, sendo que ela já lutava com um câncer. (4) Klein perdeu seu pai quando tinha 18 anos, dois anos antes da morte do irmão. Seu pai era 24 anos mais velho que sua mãe, e na autobiografia ela relata que ele já estava senil alguns anos antes de morrer. Após a morte do irmão Emmanuel, Klein casa-se com seu melhor amigo, Arthur Klein, inviabilizando com o casamento e o nascimento dos filhos a ambição de estudar medicina e psiquiatria. Klein está de mãos dadas com seus objetos queridos e amados para morrer na companhia deles. Está nostálgica, generosa, entristecida, mas tranquila com suas realizações e com a continuidade do seu legado... Dentro dos limites da capacidade humana, sinto que fiz algo que talvez no futuro possa se provar ter sido uma grande contribuição para a compreensão da mente humana. (Klein, M. 1959/2019, p.81) Referências bibliográficas Bion, W.R. (1970/2007). Attention and Interpretation. London, UK: Ed. Karnac. Cintra, E.M.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP: Ed. Zagodoni Scappaticci, A. L. (2018). A Autobiografia de Wilfred Bion. Psicanálise, uma atividade autobiográfica. Jornal de Psicanálise, 51(95), 241-254.
- O gênero do analista: Reflexão necessária?! Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica [1]
Este artigo foi publicado em 2012 no Boletim Formação em Psicanálise . Autoria de Marina F. R. Ribeiro. Resumo: O presente artigo faz uma breve reflexão sobre as possíveis ressonâncias psíquicas na situação analítica quanto às identificações masculinas e femininas que constituem o gênero do analista. Para criar “filhos” artísticos ou intelectuais, a pessoa deve assumir seu direito de ser tanto o ventre fértil quanto o pênis fertilizador. J. McDougall, 1997 Gustave Flaubert, ao ser interrogado sobre sua inspiração quanto à famosa personagem — Madame de Bovary — respondeu: Madame de Bovary c´est moi !.[2] Podemos pensar que essa é uma ilustrativa referência à capacidade de identificação de um homem com os desejos femininos, inclusive no que diz respeito aos mais secretos: os sonhos de realização erótica. Será que a capacidade psíquica de Flaubert, de um livre trânsito quanto às suas identificações bissexuais, promoveu o desabrochar da sua realização criativa[3]? Qual o significado disso? Talvez vocês já conheçam a seguinte anedota: Caso um ser de outro planeta desembarcasse na Terra, estranharia o fato de que o ser humano se caracteriza pela existência de dois sexos. Se formos contaminados por essa estranheza, poderíamos pensar que talvez um recém-nascido, encontra-se diante desses angustiantes enigmas: de onde eu vim?, quem sou?, quem são esses – mãe e pai?, qual o relacionamento entre eles?, o que eu tenho, ou não, a ver com isso?. “Questões pré-edípicas e edípicas”, dirão alguns psicanalistas; outros dirão, simplesmente, questões edípicas, já que estamos humanamente mergulhados nesta trama, ou lama, desde o início — somos feitos desse barro. É, relativamente, cotidiano aos analistas algumas destas falas: - É estranho falar sobre esse assunto (sexualidade) com uma analista, talvez com um homem seja mais fácil. - Eu queria uma mulher como analista; acho que elas são mais compreensivas. - Quero a indicação de um homem analista, pois ele precisa de uma referência masculina. - Jamais faria uma análise com uma mulher, as mulheres não são confiáveis por princípio. - Já fiz alguns anos de análise com um homem, agora quero uma analista mulher. - Para mim, tanto faz, pode ser homem ou mulher. - Não quero uma mulher analista, tenho medo de me apaixonar. Outras tantas poderiam ser acrescidas a essas; e cada comentário revela a especificidade da situação. Contudo, para além do que é próprio a cada dupla analítica, podemos pensar com Jacques André (1996, p. 11): A dimensão psicossexual da sexualidade humana, a bissexualidade psíquica, a plurivocidade das identificações, tudo isso constitui, ao mesmo tempo, as descobertas da psicanálise e as condições de possibilidade de seu exercício. É isso que permite a um homem ser psicanalista de uma mulher (e vice-versa)”. Ou seja, “... o jogo das identificações libera da atribuição anatômica, mas não torna assexuado.” Considerando que o analista não é um ser assexuado, nem tão pouco um ser aprisionado a um sexo biológico; coloco a questão a ser pensada aqui, da seguinte forma: como o analista compõe em si mesmo suas identificações femininas e masculinas – sua bissexualidade psíquica; e de que forma essa composição está presente de maneira criativa (lembrar aqui a referência a Flaubert) no campo analítico? O objeto de reflexão é a dupla analista-analisando e sua trama identificatória da feminilidade e da masculinidade, multiplamente vetorizada dentro do espaço analítico. Explico. Parto da revolução que Bion provocou no establishment psicanalítico: de que o funcionamento mental do analista na sessão tem a mesma importância e peso que o funcionamento mental do paciente. Sendo assim, a trama identificatória, no sentido de como o analista compõe sua identidade sexual em seus aspectos femininos e masculinos, está presente no espaço analítico. A situação analítica — confessemos! — é de extrema intimidade psíquica. O setting proporciona essa estranha, interessante e bela conversa, como escreve Meltzer (1995) e, também, protege tanto o analista, quanto o analisando, assim como viabiliza e favorece contornos para que a análise aconteça. Thomaz Ogden (2010) escreve que a grande invenção de Freud foi a de conceber uma maneira inédita de relacionamento entre duas pessoas. No entanto, nossas teorias, muitas vezes, podem ter a função da roupa magnífica e invisível do Rei, que diante do olhar do infantil revela toda a sua verdade: o Rei está nu! Despidos de teorias, podemos, assim penso, ter uma experiência emocional transformadora: a verdade é o alimento da mente, nos diz Bion. E fora do setting, parcialmente apartados das intensidades pulsionais da dupla analista-analisando, podemos teorizar com os fios invisíveis dos conceitos. O necessário trabalho de elaboração teórica do analista acontece fora da sala de análise. Guignard (2001 apud Antonino Ferro, 2005, p. 15) escreve sobre essa intimidade analítica: De fato, nenhum psicanalista, mesmo que se esforce para diferenciar o que pertence a ele e o que pertence ao paciente, poderá impedir aos objetos psíquicos da dupla corrente trânsfero-contratransferencial de circular de forma pouco reconhecível no campo ‘quântico’ do espaço analítico, segundo as múltiplas valências das pulsões do Eu dos dois protagonistas. Tendo em vista essa extrema implicação do trabalho analítico, nada do que diz respeito à constituição psíquica do analista está fora do campo de reflexão. Posto isso, vou tecer conceitualmente o que se propõe aqui, dentro da brevidade deste artigo. Tenho como convidado especial o conceito de bissexualidade psíquica. O termo bissexualidade foi sugerido a Freud por Wilhelm Fliess; há vários comentários esparsos ao longo da obra. Em 1923, em O ego e o id, ao discutir as identificações com os pais e o complexo de Édipo, Freud escreve: A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo (...) Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. (FREUD, 1923/1980, p. 46). Apenas em 1938, Esboço de Psicanálise, Freud usa o termo bissexualidade psicológica e não mais bissexualidade constitucional. A bissexualidade, compreendida como identificação – primária e secundária – com os aspectos masculinos e femininos dos pais, é indissociável da constelação edípica e de suas múltiplas vetorizações homo e heterossexuais. No que diz respeito à temática — masculinidade e feminilidade — Freud (1925/1980, p. 320) escreve: ... todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. Estamos sempre diante de uma composição única e intrincada entre masculinidade e feminilidade, obra da singularidade da história individual e suas articulações inéditas e contínuas. Masculinidade e feminilidade são construídas ao longo do desenvolvimento a partir de uma rede complexa de influências identificatórias, na qual os pais têm uma influência significativa, como descreve McDougall (1999, p.15): Acrescento que podemos seguramente propor que a realização destas duas identidades fundamentais – por exemplo, nossa identidade de gênero, assim como nosso senso de identidade sexual – não são de forma alguma transmitidas por herança hereditária, mas pelas representações psíquicas transmitidas, em primeiro lugar, pelo discurso de nossos pais, juntamente com a importante transmissão proveniente do inconsciente biparental – ao qual, mais tarde, é adicionado o input do discurso sociocultural do qual os pais são uma emanação. A trama identificatória – masculinidade e feminilidade – constituída na vida adulta é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, que demanda muitos anos. Há um longo percurso para se tornar um ser capaz de realização sexual genital. Caminho próprio a cada um e extremamente plástico. Compreendo que realização sexual genital é, também, uma boa metáfora para toda e qualquer realização criativa e transformadora. Desejamos ter tanto a potência feminina da mãe, como a potência masculina do pai, sendo que essa composição não reconhece, até certo ponto, limites anatômicos, ou seja, anatomia não é destino, mas, convenhamos, faz história. Explico: a conformação corporal e a especificamente dos órgãos sexuais induzem fantasias. Green (1991, p. 103) escreve sobre essa questão: Contesta-se muito, atualmente, a paráfrase de Napoleão utilizada por Freud: ‘a anatomia é o destino’, insistindo-se com toda razão sobre o papel das fantasias que têm o poder de se libertar das formas anatômicas para atingir o gozo. Mas não podemos esquecer, também, que a forma e a configuração do corpo, assim como a conformação dos órgãos sexuais, induzem fantasias. Viu-se raramente a metáfora do pênis evocar o vaso ou o recipiente e a da vagina encontrar na espada ou na faca uma comparação que se bastasse a si mesma. É nesse sentido – anatomia faz história e induz fantasias – que parece ser significativo considerar as díades analíticas possíveis, com suas múltiplas identificações homossexuais e heterossexuais, vetorizadas no espaço analítico. O inconsciente biparental – pai e mãe – é uma complexa rede de identificações bissexuais, femininas e masculinas. Contudo, é preciso destacar que a feminilidade tem um estatuto primário. Homens e mulheres , nascemos de mulheres: somos, antes de tudo, filhos de nossa mãe, escreve Chasseguet-Smirgel (1988). A sedução materna é constitutiva do humano psicossexual. Essas idéias já estão presentes nos textos freudianos: a mãe é a primeira sedutora (FREUD, 1938/1980); é o primeiro objeto sexual para os dois sexos (FREUD, 1905/1980); é quem libidiniza o bebê e marca no corpo (do bebê) uma geografia de prazer e desprazer: zonas erógenas, corpo erógeno. Freud (1938/1980) em Esboço de Psicanálise sustenta que: ...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores — para ambos os sexos. (FREUD, 1938/1980, p. 217) O prazer da mãe com o corpo de seu bebê é uma cena partilhada familiarmente e, também, publicamente[4]. Porém, há um recalque quanto ao caráter sensual dessa intensa paixão entre a mãe e seu bebê. A dupla alteridade — da mãe e do inconsciente da mãe - parece dar o peso do traumático na inserção do bebê no mundo adulto sensualizado. McDougall (1999) diz que a sexualidade humana é inerentemente traumática. Descreve três traumas universais, que são verdadeiras feridas narcísicas da humanidade: a alteridade, contraponto da onipotência; a monossexualidade, contraponto da bissexualidade; a inevitabilidade da morte, contraponto da imortalidade. McDougall (1999, p. 16) escreve: Alguns indivíduos nunca resolvem nenhum desses traumas universais e, em alguma medida, todos nós os negamos nos mais profundos recessos de nossas mentes, lá onde temos a liberdade de sermos onipotentes, bissexuais e imortais. Expressando de outra maneira, estamos em uma constante, e muitas vezes dolorosa, negociação com as diferenças: a diferença em relação ao outro, a diferença dos sexos e a diferença das gerações. A constelação identificatória bissexual de um adulto é decorrente do infindo trabalho de elaboração dessas diferenças, ou seja, do complexo de Édipo — desse barro de que somos feitos e de que sempre seremos constituídos. Nesse sentido, a bissexualidade psíquica é tributária das diferenças. Exemplifico: há no encontro criativo e transformador entre analista e analisando um trânsito com suficiente fluidez entre identificações femininas e masculinas, que sempre tem como norte o luto pelas diferenças e o reconhecimento da monossexualidade. Nascemos precocemente em uma “situação edípica”, como escreveu Klein (1928), e nunca deixamos de estar implicados nesse território tão característico do humano. A capacidade psíquica de reconhecimento da diferença dos sexos e das gerações é fruto da sofisticada elaboração depressiva do complexo de Édipo[5]. Mãe e pai serão sempre os dois grandes carvalhos do nosso jardim[6]; referência identificatória primordial quer nos tornemos herdeiro ou não, nessa inescapável partilha. Godfrind (1997), psicanalista belga, tem um artigo com o sugestivo título: A bissexualidade psíquica: Guerra e paz dos sexos. Comenta a importância de o analista ter um trânsito psíquico suficientemente lúcido com sua própria bissexualidade. Isso contribui para que o analista possa acompanhar seus pacientes na descoberta e integração de suas próprias contradições internas, em proveito de uma afirmação identitária sexual, dentro do pleno reconhecimento do outro sexo, não pelo combate ou pelo denegrimento, mas por viver com o outro sexo uma relação sexual construtiva e harmoniosa. No entanto, mesmo em uma situação de paz, resta o risco da guerra – o nosso desejo infantil e narcísico de ser homem e mulher; pai e mãe. Eis o que diz Ogden (1992, p. 115)[7] sobre as identificações bissexuais: Quando se tem que fazer uma eleição entre a mãe e o pai (entre masculinidade e feminilidade) não se chega a ser nem masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925, 1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos. Resta-nos somente nascer psicossexualmente, embalados por um movimento que tenda ao favorável – à paz, à confiança, à criatividade – quanto às identificações bissexuais do inconsciente parental – berço psíquico que nos recepciona. E claro, ser criativo, na medida do que é alcançável psiquicamente a cada um, ao se tornar herdeiro dessas identificações. Estamos sempre em uma negociação que implica constantes e contínuos lutos com o infantil em nós. Negociação, essa, partilhada pelo analista e pelo analisando, de maneira assimétrica – ao menos assim desejamos e pretendemos que seja. A transformação emocional na sala de análise é de ambos. A criatividade é da díade. Caso não aconteça dessa maneira, não podemos considerar como uma transformação verdadeira para a especificidade da dupla em questão. Provavelmente, ao escrever Madame de Bovary, Flaubert mergulhou em suas identificações femininas e emergiu dessa criativa imersão livre e integrado o suficiente na sua bissexualidade psíquica para responder: Madame de Bovary, sou eu. Um analista passa ao largo dessa questão? Pouco provável NOTAS 1 Esse texto é uma versão modificada de uma apresentação oral feita no Instituto Sedes Sapientiae em 2008. O conteúdo aqui expresso também faz parte da minha tese de doutorado, publicada em 2011: De mãe em filhas. A transmissão da feminilidade. Ed. Escuta, 2011 2 A história de Bovary foi sendo publicada em capítulos até ser lançada em livro em 1857. O escândalo levou Gustave Flaubert (1821-1880) às barras do tribunal, acusado de ofensa à moral e à religião. Um dos juízes lhe perguntou quem era, afinal, essa tal de Madame de Bovary, e Flaubert deveria agradecer a pergunta pois lhe deu a deixa para uma das respostas mais famosas da história das ideias – “Madame de Bovary c´est moi”, disse. Assumindo que era, ele próprio, o responsável pela persona de uma das mais famosas adúlteras da literatura, Flaubert defendia a autonomia e universalidade da criação artística. Madame de Bovary era ele, era o leitor, éramos todos nós, e o magistrado inclusive (O Estado de S. Paulo, domingo 08 de junho de 2008, D3). 3 McDougall (1998, p. 247) diz: ...a necessidade de o escritor ser capaz de se identificar profundamente com personagens de ambos os sexos, foi imortalizado por Flaubert, que, perguntado sobre a origem de sua inspiração, ao escrever Madame Bovary, respondeu: ‘Madame Bovary, c´est moi!’. A recusa inconsciente de perceber e explorar a capacidade que todos temos para identificações ambissexuais pode desenvolver o risco de produzir bloqueio no escritor. 4 A publicidade utiliza-se das intensas sensações evocadas por esta cena. 5 SEGAL (1992, p. 8) escreve: ...algumas idéias centrais vislumbradas por Klein, tais como a ligação entre a posição depressiva e o complexo de Édipo, e, naquele contexto, a importância central da aceitação final de um casal parental genital criador e a diferenciação entre as duas gerações e os dois sexos. 6 Faço uma analogia com o título do livro, As duas árvores do jardim, de CHASSEGUET-SMIRGEL (1986). 7 Tradução livre. REFERÊNCIAS ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 150 p. CHASSEGUET-SMIRGEL, J. As duas árvores do jardim. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988, 160 p. FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. v. 7. (1923). O ego e o id. v. 19. (1925). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. v. 19. (1938). O esboço de psicanálise. v. 23. GODFRIND, J. La bisexualité psychique: Guerre et paix des sexes. In: Fine, Alain, ed; Le Beuf, Diane, ed; le Guen, Annick, ed. Bisexualité. 1997. p. 130-46 (Monographies de la Revue Française de Psychanalyse), Paris: PUF. GREEN, A. O complexo de castração. Rio de Janeiro: Imago, 1991, 116 p. GUIGNARD, F. Entrevista com Florence Guignard. Revista de Psicanálise da SPPA, Porto Alegre, v. 12, n.12, p. 371-380, agosto de 2005. ______. F. Prefácio. In: FERRO, Antonino. 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- Cumulonimbus: um continente para a complexidade [1]
Este artigo, de autoria de Davi Berciano Flores [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3], foi publicado em 2024 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 31, número 2, na edição intitulada Meltzer – O conflito estético e o florescimento do psiquismo . Resumo: Este trabalho visa percorrer algumas concepções de espacialidade na obra de Wilfred Bion, mapeando a busca do autor por múltiplas formas de alcançar o espaço psíquico, a fim de abarcar a complexidade do fenômeno clínico e do encontro entre duas mentes. Os principais pontos da obra do autor são a Teoria do Pensar (1962/2022), Transformações (1965a/2014) e a noção de Cesura (1975/2014). Para percorrer tal percurso, tomaremos como ponto de partida – ou hipótese definitória – um fragmento intersubjetivo extraído de um atendimento clínico, no intuito de abordar os vértices do desenvolvimento do pensamento bioniano. Em busca por um arcabouço que contemple a noção de complexidade, colocaremos a obra do autor em diálogo com passagens da obra de Freud, assim como com textos de James Grotstein (2003) e de Edgar Morin (2015). Palavras-chave: Bion; Complexidade; Espacialidade; Psicanálise; Transformações; Cesura, Morin Uma hipótese definitória (4) – a nuvem Certa vez, um paciente5 , com cerca de trinta anos de idade, enquanto me encarava de baixo para cima como um menino, fechava os olhos e, ao fazêlo, espremia-os. Depois abria-os, fixando-os nos meus, em silêncio. Sua boca contorcia-se, como se investigasse um espaço bagunçado – pelos movimentos dela, não sei bem como, via o seu corpo todo se movimentar em algum tipo de investigação interna. Com um semblante de expectativa, ele parecia buscar um jeito de exprimir o que lhe passava internamente, já com um perceptível anseio delirante de que eu fosse lhe entender, independente das palavras que viesse a encontrar. Seus olhos cerrados eram, a meu ver, tanto um tique quanto um esforço para encontrar algum pensamento na escuridão. A bem da verdade, fechar os olhos é um evento significativamente trabalhoso para alguns pacientes mais psicóticos: a escuridão não é, a priori, um espaço para pensar. Do mesmo modo que uma criança, ao apagarmos a luz, pode se contrair diante de um nada terrorífico. Depois de tanto espremer os olhos, neste esforço de apertar o escuro até surgir uma forma, o paciente arregala os olhos e diz, com cara de insight: “tem uma nuvem na minha cabeça! Sabe?”. Diante da pressão ansiosa desta aparente busca por alguém que o entendesse, não pude me conter: “Sei! Claro!”. Talvez eu já estivesse preparado para responder afirmativamente antes que qualquer forma surgisse em sua mente. Uma conversa estava pronta antes de um pensamento surgir6 . Ele buscava algo para me entregar, queria uma conexão, e foi isso o que lhe dei. Saí desse encontro com uma sensação cômica – uma nuvem! Um gigante inalcançável de partículas aglomeradas aguardando uma precipitação. Existiria forma mais volátil e imprecisa para expressar o que se passava dentro de si? Mais do que isso, a fisionomia de “eureca!”, de quem havia encontrado a palavra perfeita, associada à imprecisão volumosa e trespassável de uma nuvem, levou-me a boas gargalhadas silenciosas em diversos momentos após este encontro. Uma nuvem! Acompanhada de uma expressão emocional de conclusão implacável. Hoje consigo entender que meu humor buscava, também, digerir uma experiência que continha clivagens : – O semblante de insight diante de uma experiência mal compreendida; – O senso de revelação após uma visão turva e imprecisa; – Minha consequente resposta desconectada do que eu, de fato, pensava; – Os olhos espremidos levando à ilusória impressão de que pensamentos surgiriam da contração muscular. Um aglomerado complexo de partículas – teoria do pensar “O silêncio dos espaços infinitos me apavora.” (Blaise Pascal, 1670) “Para ver um mundo em um grão de areia E um céu em uma flor selvagem, Segure o infinito na palma da mão E a eternidade em uma hora.” (William Blake, 1803) Encontramos correspondências entre os dados dissociados citados acima e o pensamento de Bion (1957/2022), quando ele diz que o estado psicótico de mente leva a clivar partes da personalidade ao projetá-las, mutilando atividades mentais (que bem podem ser alegoricamente vistas como pequenas gotículas de água em estado de suspensão). Em outro texto, Bion (1953/2022, p. 40) já havia demonstrado como as expressões verbais de um paciente esquizofrênico podem deflagrar clivagens: “Como é que o elevador sabe o que fazer quando pressiono dois botões ao mesmo tempo?”, cita ele quando, ao descrever a fala de um paciente psicótico, encontra estados que geram dois movimentos antagônicos. Bion referese a gestos, frases, estados mentais, que indicam dois sentidos simultaneamente, resultando em uma tendência psíquica de ruptura ou deflagrando a mutilação do pensamento, a falta de conexões entre dois botões que podem nos levar a sentidos distintos. Ao tratar deste tipo de paciente em que a parte psicótica da personalidade está significativamente presente, Bion (1957/2022, p. 90) diz: Descobri não apenas que há pacientes que recorreram cada vez mais ao pensamento verbal comum, mostrando assim uma maior capacidade para esse tipo de pensamento, e maior consideração pelo psicanalista como um ser humano comum, mas também que esses mesmos pacientes pareciam estar se tornando cada vez mais hábeis neste tipo de discurso aglomerado, em vez do discurso articulado. O ponto principal sobre o discurso civilizado é que ele simplifica muito a tarefa do pensador, ou do orador. (...) Há algo de extraordinário nesse tour de force pelo qual modos de pensamento primitivos são usados pelo paciente para enunciar temas de grande complexidade. (grifo nosso) Nesta citação encontram-se, em status nascendi, ideias que se desdobrarão em partes significativas de sua obra e outras que iluminam o episódio da nuvem na cabeça. Comecemos pelo fragmento clínico: Bion fala em “discurso aglomerado, em vez do discurso articulado”, ou seja, que, neste encontro, a nuvem, um aglomerado quase amorfo, ocupou o lugar do que poderia ser a descrição, narrativa, de uma experiência interna complexa. Fora do discurso civilizado, que facilita a tarefa do pensador, estiveram o paciente (em contração) e o analista (em descontração) tentando digerir a tal nuvem que se formou. Por fim, Bion fala no tour de force, ou seja, os olhos espremidos em busca de imagens internas, o esforço bem-sucedido através do qual pensamentos primitivos alcançam a grande complexidade da mente. Vejamos agora a citação de uma perspectiva teórica: Bion já trata de aglomerações e articulações como formas distintas de expressão de um pensamento. Refere-se, ainda, a um pensador cuja tarefa é facilitada se os pensamentos já lhe chegam articulados em ideias. Encontra, por fim, continuidade e ruptura entre pensamentos primitivos e a “grande complexidade”. Podemos fazer duas perguntas que, em um nível, são evidentemente distintas, mas, em outro, apontam para a mesma questão: 1. Como é possível enxergar elementos posteriores da obra de Bion, apresentados entre 1962 e 1977, em um parágrafo de 1957? 2. Quais destinos teria uma nuvem dentro da cabeça? Cinco anos depois da citação acima, Bion apresenta, em A teoria do pensar (1962/2022), o início de uma importante reviravolta epistemológica em sua obra, resultante de uma série de textos desenvolvidos ao longo da década de 50. Foi quando ele passou a abordar o funcionamento psicótico e suas características, dentre elas os ataques aos vínculos (ou elos de ligação), que resultam em uma mutilação das associações, ruptura de relações e, em decorrência, perda da capacidade de simbolização (Bion, 1959/2022); a identificação projetiva, através da qual partes do self são expulsas e projetadas em um objeto; a tendência do psicótico em optar pela ação ao invés do pensar, ou um pensar com características de ação (acting out), fato constatável nos mecanismos de expulsar algo ou atacar os vínculos entre dois elementos quaisquer. Quando pede para ver um brinquedo, uma criança estica a mão no intuito de pegar, e é para esta direção que o pensamento psicótico aponta, no sentido de transformar as atividades do pensar (e as funções do ego) em ações que implicam em sensorialidade e concretude. Bion (1953/2022, pp. 38-39) explicita isso na seguinte passagem: Esquizofrênicos empregam linguagem de três modos interligados: como modo de agir; como método de comunicação; e como modo de pensar. Quando outros pacientes se dariam conta de que a necessidade seria pensar, um esquizofrênico demonstrará preferência em agir. Em consequência, um esquizofrênico passaria por cima de um piano para obter entendimento sobre o motivo de alguém tocar um piano. Reciprocamente, se um esquizofrênico tiver um problema cuja solução depende de uma ação – por exemplo, o ato de nos transladarmos de um lugar para outro –, lançará mão de um pensamento, um pensamento onipotente, à guisa de meio de transporte. Quando Bion trata do trânsito entre a busca por entender e a subsequente transformação disto em um gesto, ou o revés, a transformação de um gesto em um pensamento onipotente, estamos diante de diferentes formas através das quais um pensamento pode se manifestar e, mais do que isso, diferentes expressões, no espaço dos pensamentos. Uma das grandes viradas da obra de Bion consiste na compreensão de que, nas áreas psicóticas, não apenas partes do self podem ser ejetadas para fora do funcionamento mental, como também qualquer função mental. Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/2010), Freud aponta que, uma vez inaugurado o princípio de realidade, que consiste na capacidade de reconhecer a falta, tolerar a frustração que ela gera e, por fim, substituí-la por um processo interno, surgem funções do ego, capazes de oferecer um caminho interno de possibilidades diante da inviabilidade de perpetuar a hegemonia absoluta do princípio do prazer na realização imediata com o objeto de satisfação (no caso do bebê, a ausência do seio materno). A falta de um objeto de satisfação inaugura um novo espaço interno ou, dentro do pensamento freudiano, podemos entender que a necessidade de descarga, originalmente regida pelo princípio do prazer, agora se vê impedida e busca novas vias de realização, internas. Estamos, mais uma vez, dentro do pensamento freudiano, neste movimento entre buscas de dentro para fora (a descarga busca um objeto externo, ou, fenomenologicamente, alguém passa por cima de um piano) e retornos do fora para dentro (na ausência do objeto, a descarga busca um objeto interno ou, fenomenologicamente, surge um pensamento onipotente). Para Freud, as funções do ego, estas possibilidades internas, consistem nas seguintes categorias: atenção (sensorialidade e consciência), notação (memória e registro), julgamento (capacidade de avaliar se uma ideia é falsa ou verdadeira), descarga motora (capacidade de alterar a realidade) e, por fim, o pensamento em sua totalidade, visto como um campo capaz de tornar a frustração tolerável. Na obra de Freud, sem o incremento bioniano de que as funções do ego podem se derramar para fora da mente (e, claro, é importante citarmos Klein7 como a ponte fundamental para que ocorra tal transformação teórica), o ego consiste em uma instância interna e, mais especificamente neste momento de sua obra, trata-se de um ego que se aproxima da noção de consciência8 . Ao longo de sua obra, Freud avança no intuito de identificar uma parte significativa de inconsciência do ego, tirando seu poder enquanto instância controladora, mas, ainda assim, deixando-o como centralizador de um sistema. Grotstein (2003) escreveu sobre o estranhamento vivenciado quando, ao despertar, não se reconhecia como o sonhador do sonho que teve. Trata-se de um motivo aparentemente singelo, se considerarmos a complexidade das páginas que o seguem, mas foi a nuvem de Grotstein: a hipótese definitória que inicia um campo de pensamento. Para o autor, a questão da autoria dos fenômenos mentais é questionável, e a maneira como tratamos destes é fundamental para pensarmos os fenômenos clínicos e os eventos que se passam dentro de nós. Dentro da mesma questão, Grotstein (2003, p. 24) atesta que o ego freudiano, com sua “latinidade muito alienante”, “dissimula sua natureza numênica9 e misteriosa como ‘eu’, o sujeito da experiência, especialmente em seus pontos inconscientes”. Aqui, Grotstein está dentro da tradição bioniana de pensamento, ao tratar do engodo que a noção de “ego” pode acarretar. A natureza numênica de que fala, “númeno”, é o nome dado por Kant à coisa-em-si, ou seja, aquilo que existe independentemente de como somos capazes de percebê-lo. A ideia de “ego” sugeriria uma autoria sobre fenômenos que, na realidade, portam uma qualidade fundamentalmente numênica. Ou ainda, dito de outro modo, o ego freudiano parece ser o autor dos pensamentos, uma fábrica que molda o próprio sujeito, enquanto, na realidade, trata-se de um nome que indica um contorno quando, clinicamente, o fenômeno consiste em significativa imprecisão e falta de alcance. Poderíamos dizer, ainda de um outro modo, que a noção de “ego” consiste em um insight de forma sobre um terreno informe. Nas palavras de Grotstein (2003, p. 23, grifos do autor): Encontrei-me tentando desconstruir o conceito do sujeito, mais particularmente aquele que conhecemos como “Eu”, diferenciado de “mim” ou “self”. Comecei a perceber que eu queria trazer entidades psíquicas, o inconsciente e seus habitantes (seu sujeito interno e seus objetos internos), assim como o ego e o id, para fora das sombras e névoas que os envolveram e os obscureceram na roupagem enganosa e enganadora da ciência determinística que foi a obra de Freud, e restaurá-las à sua verdadeira vida. Edgar Morin (2015, p. 5) aproxima-se da observação de Grotstein: “O conhecimento científico também foi durante muito tempo e com frequência ainda continua sendo concebido como tendo por missão dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem”. Para Morin, os modos simplificadores de conhecimento “mutilam mais do que exprimem as realidades ou os fenômenos de que tratam”. Dissipar e mutilar, curiosamente são os dois verbos utilizados por Morin para tratar dos modos de conhecimento que nos impedem de alcançar a complexidade. Estamos aqui, evidentemente, em um campo de conexões entre o pensar psicótico (que mutila e dissipa) e o pensar científico. Parece-nos que se trata de pensar quais são as características psicóticas de uma metodologia de investigação, isto é, de que maneiras dissipamos e mutilamos o conhecimento para podermos alcançar o âmbito numênico10. Quando não podemos reduzir as coisas a uma ideia simples, estamos diante do terreno da complexidade, de acordo com Morin (2015). Seria a nuvem uma ideia simples para expressar um estado de mente? Para Morin (2015, p. 5), a ideia de complexidade envolve “uma pesada carga semântica, pois traz em seu seio confusão, incerteza, desordem”. Retomando o debate a respeito do ego freudiano, não se trata de considerar Freud ingênuo em suas construções. Pelo contrário, ele inaugura um caminho para a complexidade e, apesar de seu sistema de pensamento resultar em uma série de aspectos lógicos, teorias de causalidade e determinismos que circunscreviam a vida mental, Freud (1910/2013, pp. 128-129) dava notícias de que, por debaixo de tal sistema, desta tentativa de domar os fenômenos da mente, existia algo fora de seu alcance: “Nisso esquecemos que praticamente tudo na vida humana é acaso (...), acaso, porém, que participa das leis e da necessidade da natureza e não tem nenhum nexo com nossos desejos e ilusões”. Esta teoria freudiana, em Bion (1962/2022), resulta no fato de que qualquer função do ego pode também ser expulsa e, portanto, ser identificada fora do continente psíquico. Assim, uma memória é capaz de surgir encapsulada em um objeto ou alguém pode estar cônscio dos pensamentos oriundos de outra mente, que expulsou para fora uma parte da capacidade de conscientizar-se. Esta teoria, em última instância, resulta em uma impossibilidade generalizada de identificar em que os processos mentais se encerram ou quais as fronteiras daquilo que é próprio, singular, autoral, pessoal. O fato de que os pensamentos não têm um lugar, uma sede na qual irão surgir, de que não são patenteados em algum momento, ilumina a vida psíquica de outra maneira: por que um analista lembra de determinado analisando ao abrir o armário da cozinha de sua casa? Como é possível que a lembrança de uma analisanda venha à mente de seu analista toda vez que ele passa pela mesma bifurcação em certa rua? Naqueles espaços físicos, naqueles lugares, no desenho dos caminhos ou no ranger da dobradiça do armário, estão os pensamentos aguardando um pensador. De outra perspectiva, um paciente pode dizer que estava há pouco pensando em algo, mas que, no momento em que entrou na sala do analista, não consegue mais alcançar tais ideias. Estaria o pensamento em repouso na sala de espera? Um outro paciente comenta que, ao vir para a análise, errou, pela segunda vez, o mesmo ponto do caminho, entrando em uma rua antecipadamente Diz ainda desconfiar que, em ambas as vezes, pensava na mesma coisa. Poderíamos entender que uma parte do pensamento está contido em sua mente, mas que algo segue identificado em uma conversão invisível na tela do Waze11? O que esta linha invisível, que indicaria um outro caminho (entendido pelo paciente como “errado”), seria se pudesse ser expressa em palavras? Uma das tantas hipóteses esboçáveis: “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise”12. Abre-se, na Teoria do pensar (Bion, 1962/2022), um campo de infinitas possibilidades de interação entre um aparelho para pensar pensamentos e pensamentos em busca de um pensador. Temos aqui a primeira expressão do espaço de complexidade na obra de Bion, no qual pensamentos têm trânsito livre entre mentes e dentro da mente, entre objetos, entre pontos distintos do espaço, enquanto pensadores buscam expressá-los através de seus aparelhos de pensar. Como registro das possibilidades destes movimentos, Bion busca um eixo cartesiano, ou seja, duas coordenadas: uma representando os usos do pensar; a outra, a genética dos pensamentos. A interação entre uma coordenada e outra, as infinitas formas através das quais um pensamento pode se expressar em um pensador, ou um pensador pode encontrar um pensamento, resulta em inúmeros pontos de encontro neste espaço, figurado matematicamente, mas que expressa possibilidades do pensar. Dentro deste modelo epistemológico, a proposta é pensar relações. Um eixo em relação com o outro gera uma interação, da qual conhecemos os efeitos, as evidências13. Elementos colidem, outros se aproximam, projeta-se algo para dentro de outro algo, um outro algo é introjetado de volta, constituindo inúmeros movimentos de relação que consideram movimentos internos e externos, fenômenos intrapsíquicos e intersubjetivos. Morin (2015, p. 6), apesar de não citá-lo, parece descrever o esforço de Bion em sua teoria do pensar: Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera reflexo do que há de real na realidade. Podemos fazer um simples cálculo de probabilidade ao pensarmos nas possibilidades de combinação dentro de um sistema complexo (uma mente que gera pensamentos) e no número de combinações possíveis na interação entre dois sistemas complexos (uma mente e outra mente, ou mentes capazes de pensar e pensamentos que buscam pensadores). Evidentemente, há uma profusão de possibilidades quando levamos em consideração o encontro entre dois sistemas. Dentro da tradição bioniana, não se pode mais falar em uma autoria sobre os pensamentos ou sobre os fenômenos psíquicos em geral, já que sempre existem dois sistemas em contato. O resultado desta impossibilidade consiste em uma mudança de linguagem, de comunicação dos fenômenos mentais, uma maior parcialidade diante do fato de que somos, sempre, sistemas complexos em contato com coisas que não sabemos bem o que são. Desta forma, Bion (1962b/2021) demonstra como podemos tratar um fenômeno de relação entre elementos sem recorrer a uma autoria, o que poderia resultar, inclusive, em um tipo de acusação, revertendo a perspectiva de um fenômeno dinâmico à estática de um lugar, de uma origem, de um ponto imóvel no espaço. Primeiramente, Bion (p. 24) aponta qual seria a versão comum, que pressupõe uma autoria, um lugar fixo: A inveja que X sente de seus sócios é um fator que temos que levar em conta em sua personalidade” é uma formulação que qualquer leigo poderia fazer e pode significar muito ou pouco; seu valor depende de nossa avaliação da pessoa que faz a formulação e do peso que ela mesma dá às próprias palavras. A força da formulação é afetada se eu conecto ao termo “inveja” o peso e o significado que lhe foram dados pela sra. Klein. Em seguida, Bion propõe como seria a mesma observação se tomássemos os elementos observados como funções e fatores, fora do campo de autoria, levandonos a um delicado senso de movimento, dinâmico, transitivo: Agora, suponha uma outra formulação: “A relação de X com seus sócios é típica de uma personalidade na qual a inveja é um fator”. Essa formulação expressa a observação de uma função na qual os fatores são transferência e inveja. O que se observa não é a transferência ou a inveja, mas algo que é uma função de transferência e inveja. À medida que uma análise prossegue, é necessário deduzir novos fatores a partir das mudanças observadas na função e distinguir diferentes funções. Quando Bion diz à medida que uma análise prossegue, entendemos que a observação de uma relação é um ponto no tempo, não devendo ser considerada mais do que isso. No momento seguinte da sessão, tal observação já pode ter se alterado. Vejamos agora o que Grotstein (2003, p. 37) tem a dizer sobre o dia que despertou e não se identificou com o sonhador de seu sonho, tampouco com o sonho sonhado: Percebi que admitimos este incrível fenômeno sem questionar. Dizer “tive um sonho na noite passada” é, de certo modo, presunçoso. Tudo o que podemos honestamente dizer é “fui privilegiado de testemunhar e experimentar uma parte de um sonho na última noite. Gostaria de poder ter testemunhado e experimentado o sonho todo”. Notamos invariâncias14 significativas entre as citações. Tanto Bion quanto Grotstein buscam uma linguagem que seja capaz de expressar movimento e libertar o sujeito da autoria sobre os pensamentos, propondo a transitividade como solução à busca por um lugar de origem. Grotstein (2003, p. 47, grifos do autor) segue: A simples verdade ocorreu-me no momento em que despertei, de que eu não poderia ter sonhado este sonho, primeiro porque eu geralmente não falei do jeito que os personagens do sonho falaram, e segundo porque eu estava dormindo na hora que o sonho aconteceu – portanto, eu não poderia ter sido seu sonhador! Para Grotstein (2003), portanto, há um sonhador que sonha o sonho e um sonhador que entende o sonho depois de sonhá-lo. Trata-se, no nosso entendimento, de uma revisitação ao pensamento bioniano, mas a partir de outra perspectiva. Também poderíamos entender que ambos revisitam o pensamento freudiano, uma vez que as noções de processos primários e secundários apontavam para a existência de uma diferença significativa de experiência entre o fenômeno do sonhar e o discurso manifesto sobre este. Ao fim de sua obra, Bion (1979/2014, p. 473) versa sobre o assunto e demonstra a exploração destas mudanças de estado. Em seguida veremos de forma mais detalhada como o autor chega ao tema, mas vamos antecipar a citação, dado que conversa com o Bion de 1962 e com Grotstein: Suponhamos que se considere o sono como um estado particular da mente no qual se vêem paisagens, visitam-se lugares e põem-se em prática atividades que não são realizadas habitualmente quando estamos acordados, ainda que possam ser realizadas quando estamos acordados e que são reminiscências de sonhos. Falando metaforicamente, as pessoas dizem que vão a lugares onde sempre sonharam ir. Quando se trata de mudança não do fluido aquoso para o gasoso mas para um estado de mente no qual se está quando adormecido (“S-state”) para quando se está acordado (“W-state”), a mudança é retrospectiva da passagem do fluido aquoso ao gasoso, pré-natal e pós-natal (...). Temos uma desvantagem a favor do estado de vigília (“W-state”); as pessoas contam sem hesitar que tiveram um sonho, por conseguinte querendo dizer que não aconteceu na realidade. E segue (pp. 474-475): Se o sono (“S-state”) é considerado como digno de respeito, assim como a vigília (“W-state”) – se o árbitro for imparcial – então onde estivermos, o que se vê e experimenta deve ser considerado como tendo um valor que é igualmente válido. Isto está implícito quando Freud, como muitos antecessores, considera os sonhos dignos de respeito. Assim poderemos dizer que a elaboração da vigília deverá ser considerada tão digna de respeito quanto a elaboração onírica. Qual direção um elemento tomará em nossa mente? A nuvem, por exemplo. De uma determinada perspectiva, poderia ser pensada como um aglomerado de associações que, regressivamente, encontram-se transformadas em partículas e acumuladas em um continente informe. De outra, pode consistir em uma forma rudimentar encontrada para representar um campo de complexidade que não se converteu em possibilidades associativas. Esta dúvida de sentido – ou, podemos ainda pensar, este dilema de direção15, a questão sobre qual botão do elevador será apertado pela mente (para cima ou para baixo, em direção à complexidade articulada ou à primitividade aglomerada) – resulta em esforço para simplificar o que se entende por complexidade. As provocações de Bion, assim como os questionamentos de Grotstein, apontam para a mesma direção: hierarquizar os estados de mente, atribuindo-lhes diferentes valores – ou, ao invés disso, atribuir uma mesma autoria a estados distintos de mente –, pode nos levar a leituras enviesadas, mutilando a complexidade dos processos psíquicos. Ao considerarmos o campo de possibilidades, é preciso reconhecer os contraditórios, ou seja, que a complexidade pode ser aglomerada e a primitividade articulada. Em termos práticos, é possível que um analisando, com imprecisão e poucas palavras, aproxime-se mais da própria experiência emocional do que alguém que, prolixamente, ocupa a sessão com centenas de palavras. O que você vê naquela nuvem? – transformações Assim como Bion apresenta mudanças de direção em seus pensamentos, e justamente para incorporar, à teoria, os fatos até aqui demonstrados, apresentaremos agora um plot twist, ou seja, uma repentina mudança de direção no enredo da história clínica que protagoniza este capítulo. Poucas semanas após o encontro com referido paciente e sua visão interna de uma nuvem – e após as íntimas gargalhadas do analista com tal ideia –, repentinamente ele próprio encontra-se angustiado no consultório de seu analista, deitado no divã, dizendo: “Acho que quem está com uma nuvem dentro da cabeça, agora, sou eu”. Que fenômeno seria este? De maneira súbita, uma expressão aparentemente inadequada se revela, para o analista, como uma linguagem de êxito16 para expressar a própria experiência emocional. O que o analista viu na nuvem do paciente? Tomando como perspectiva o tempo, aparentemente o analista primeiro disse que entendeu para, depois, de fato entender o que o paciente dizia naquela ocasião. Teria vivido uma inversão no oposto17, como no trabalho dos sonhos em Freud (1900/2019)? Existiria algo de si que o entendia, e do qual se defendeu pela angústia de ser habitado por uma nuvem? Rir teria sido uma atitude de viver o paradoxo do absurdo nebuloso que é ser habitado, eventualmente, por uma nuvem? Ou será que, agora, entendia mesmo algo? Ou simplesmente valia-se da mesma expressão para alcançar um fenômeno radicalmente distinto? Cumulonimbus, um continente de partículas expelidas que são identificadas de maneira projetiva em um invólucro amorfo, carregado de possíveis precipitações de tempestades emocionais. A busca por estabelecer uma hierarquia, por vezes tipicamente freudiana, por outras tipicamente humana, resulta, para o pensamento complexo, na tentativa de transformar um campo de possibilidades em uma seta, dando-lhe um único sentido (e um único destino). De algumas perspectivas, a complexidade tem seu gérmen na teoria freudiana: a inversão no oposto (Freud, 1900/2019), característica do trabalho dos sonhos, bem como a noção de lembranças encobridoras (Freud, 1899/1969, 1901/1969), aponta para um funcionamento inconsciente que não concebe cronologias ou hierarquias, mas oferece expressão aos pensamentos de forma plástica, assim como em múltiplas dinâmicas e camadas. No campo da complexidade, é possível primeiro dizer algo e depois sentir o que foi dito; é possível uma nuvem nascer em uma mente e, com rajadas de vento típicas da identificação projetiva, arrastar-se até outra. Seria incauto definir qual a natureza da nuvem, se é do analista ou do analisando. Conforme Flores (2021), tolera-se o paradoxo: a nuvem é do analista, é do analisando, bem como é, neste instante, já do leitor do presente texto, e de algum modo está entre nós. Aberto tal eixo, um espaço de possibilidades, Bion inaugura o tema das transformações, algo que entendemos ser, até certo ponto, uma continuidade e, ao mesmo tempo, o início de uma ruptura com sua teoria do pensar. A noção de transformações, enquanto conceito, talvez nasça antes do livro que carrega seu nome, Transformações: passagem da aprendizagem para o crescimento (Bion, 1965a/2014). O título já é indicativo de que o livro viria do aprender, como em Aprender com a experiência (Bion, 1962b/2021), mas encontraria uma solução que rumaria disto para outra lógica, a do crescer. Neste livro, que seguiremos chamando apenas de Transformações , Bion conduz sua teoria do pensar para outro patamar, tratando da observação das mudanças que um pensamento pode ter em nossa mente e, de maneira mais específica, de como o espaço ao nosso redor – o qual, como já sabemos, mal pode ser definido nitidamente como interno ou externo –, só pode ser alcançado através de transformações, dado que estamos sempre diante de algo que é, ao mesmo tempo, tangível e intangível. As transformações são esforços parcialmente bem-sucedidos e, portanto, parcialmente frustrados, de alcançar o incognoscível, o âmbito numênico, a coisa-em-si kantiana, ou o que Bion passou a chamar de O, aquilo que está lá mas que, diante de nossa limitação de percepção (e do mistério envolvido em qualquer relação de objeto), jamais será desvendado pelo conhecimento. Em termos epistemológicos, Bion dá, em sua teoria, um lugar privilegiado para a verdade na condição de algo inalcançável, incognoscível. Justamente por ter esta característica, as expressões humanas são esforços de observação, tentativas de agarrar o intangível, que segue mostrando sua faceta misteriosa aos pensadores. Monet, ao pintar um campo de papoulas, encontra a transformação de uma experiência por meio de manchas de tinta. Com sorte e a certa distância do quadro, seremos capazes de identificar, com nossos olhos, a experiência de Monet que se interlaça, de alguma maneira, com a nossa. Quando o paciente diz ter uma nuvem na própria mente, ele pinta com poucas palavras e gestos uma experiência. O analista, como em uma exposição, precisa de uma determinada distância (dias) para encontrar uma invariância – e, até lá, irá rir como uma forma de se defender e mantê-la em seus pensamentos, até achar algo que lhe permita uma conexão com a experiência de seu analisando, conduzindo-os a duas pinturas com características parecidas. É desta forma que Bion extrapola sua teoria das observações para teorias psicanalíticas: existiriam transformações kleinianas, freudianas, etc, ou seja, teorias que encontraram invariâncias sobre fenômenos psíquicos que muitos de nós conseguimos observar. A noção de transformação já vinha sendo visitada pelo autor anteriormente, no livro Elementos de psicanálise (Bion, 1963/2014), quando fala de transformações de elementos-beta em elementos-alfa, ou seja, na possibilidade de mentalizar uma experiência sensorial que é sentida como coisa. Vemos tal transformação quando o paciente espreme seus olhos e busca uma via de encontrar, em uma palavra e busca por entendimento, algo que ele vive internamente. No mesmo livro, Bion (1963/2014), ao se referir ao sistema auditivo, vale-se da noção de transformação “música ↔ ruído”, um fato habitualmente conhecido por nós. Podemos ouvir uma conversa como um ruído que nos incomoda ou, de repente, encontrarmo-nos curiosos querendo escutá-la. O processo capaz de converter ruído em música consiste em uma transformação. Para além disso, Bion considera que a capacidade de estabelecer um contato indireto com O, com o incognoscível, pode interferir na apreensão do espaço e do tempo, resultando em transformações capazes de aumentar as deformações da percepção e a natureza do pensar. Para Bion, primeiramente, há transformações das quais tratamos mais, como as transformações em K (knowledge, conhecimento), a qual é o esforço que estamos fazendo nestas linhas – ao produzirmos um texto para tratar de determinado assunto –, e as transformações em movimento rígido, equivalentes à transferência freudiana, que resultam em uma transposição, o deslocamento de uma experiência de outro espaço-tempo para um novo lugar. A transformação em movimento rígido, no plano cartesiano, resulta em uma mesma forma, deslocada no espaço, que preserva sua estrutura. Também existem transformações mais próximas da disrupção, da deformação e da destrutividade. São as transformações projetivas, que seriam equivalentes ao mecanismo da identificação projetiva (ou seja, a expulsão e manifestação persecutória de um elemento para fora da mente), e as transformações em alucinose, que seriam a maior deformação a que a mente poderia chegar, resultando na fronteira com o colapso psíquico, caracterizada por arrogância, estupidez, avidez e destrutividade em suas mais diversas formas18. Nestes casos, a qualidade do pensamento conecta-se com a onipotência, com a sensação de controle, com a soberba. Ao pensar nas transformações em alucinose e, de modo mais amplo, no funcionamento psicótico, Bion identifica que, quanto mais hiperbólica for uma transformação, ou seja, quanto mais deformações existirem a partir do ponto zero, O, de onde se inicia um determinado processo do aparelho do pensar, maior será a qualidade estática do pensar. No sofrimento psicótico, algo precisa ser estancado, contido, antes que inunde e afogue a capacidade de pensar. No curso das transformações mais psicóticas, Bion considera a reversão de perspectiva como um fenômeno clinicamente importante, que resulta em um congelamento do contínuo processo do pensar. Sandler (2021, p. 849) assim a define: “A origem clínica foi uma observação: a da falsa concordância. Por exemplo: um paciente reage a uma interpretação por meio de uma negativa silenciosa, acompanhada de aceitação – por vezes encomiásticas – dessa mesma interpretação. A força que a intepretação poderia ter fica drenada e sugada”. Reverter a perspectiva significa, portanto, tornar estática uma situação dinâmica. Seria isso que o analista viveu diante da nuvem de seu paciente? Uma falsa concordância? Haveria, afinal, diante do paradoxo da falta de alcance das palavras com a urgência de concordância emocional, uma expressão melhor do que uma concordância antecipada e, portanto, falsa? Afinal, levando-se em consideração a construção de conhecimento científico (e a apreensão dos fenômenos ao nosso redor), não é assim, por vezes, que nos aproximamos das coisas? Novamente Morin (2015, p. 10) nos acompanha e, de sua perspectiva crítica a respeito da evitação da natureza complexa dos fenômenos, permite-nos, mais uma vez, unir fenômenos clínicos e o contato com a teoria: “Gostaria de mostrar que esses erros, ignorâncias, cegueiras e perigos têm um caráter comum resultante de um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender a complexidade do real”. Discursos articulados tornam-se aglomerados sucintos, experiências emocionais tornam-se nuvens de partículas em tensão, a transitividade complexa torna-se a posse de um frame. Se esta solução, por um lado, salva o sujeito do movimento contínuo da vida, das fantasias, do terror eventual da experiência humana, por outro gera sofrimento, já que consiste em um esforço facilmente derrotável. Se olharmos pela perspectiva freudiana, na qual o id sobrepuja as capturas do espaço e do tempo, temos bases instintivas que vencem nosso esforço de controle. Se olharmos de uma perspectiva bioniana, O, a verdade incognoscível, são desmontados os nossos gestos de razão e concordância, com sua dinâmica desconhecida e com seu ressurgimento espontâneo no exato momento em que houver qualquer ilusão de captá-la. Por fim, Bion apresenta, em Transformações , um último tipo de transformação, o qual não caberia no plano cartesiano, em qualquer ponto ou deformação. Seriam as transformações em O, ou seja, um momento de uníssono (at-one-ment) em que o sujeito, ao invés de entrar em contato com O, torna-se O. No lugar de aprender, há crescimento; no lugar de conhecer, há uma experiência ontológica de transformação. Se pensarmos no plano cartesiano, trata-se do local em que os dois eixos se juntam, o ponto zero, um estado em que algo não precisa estar associado a outro algo, como ocorre nos eixos da Teoria do pensar, e, então, a dupla analítica é capaz de se encontrar diante do mesmo ponto da experiência. Esta possibilidade de transformação, em O, para fora do espaço cartesiano, leva Bion a novas formas de pensar sua clínica. O estado de mente sem memória, sem desejo e sem necessidade de entendimento (1965b/2014, 1967/2014) busca uma presença no aqui-e-agora da sessão que permita revelar todas as camadas e movimentos fugazes promovidos pela mente em um encontro analítico. Entre nós, entre as nuvens, entre nós e as nuvens – cesura Há, ainda, um conceito que nos interessa muito para o presente trabalho, apresentado por Bion mais ao fim de sua obra. Uma vez que O configura-se como uma verdade incognoscível (ou seja, não podemos conhecê-la, mas eventualmente tornamo-nos) e que buscamos nos aproximar dela, sem hierarquizarmos qual o caminho certo para encontrá-la, mas trocando com nossos pacientes as transformações que fazemos da experiência emocional que vivemos em uma sessão, então é preciso encontrar um ponto do espaço que privilegie o olhar para os trânsitos, para o movimento infinito de O. Este espaço, o entre, que tolera simultaneamente a continuidade e a ruptura entre estados de mente, Bion denominou de “cesura”, associando-a a um trecho de Freud (1926/1969, p. 162) quando diz “Há muito mais continuidades entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar”. Esta noção de cesura resulta da possibilidade de encontrar trânsitos, continuidades, saltos quânticos no funcionamento mental entre a mente embrionária, a mente primitiva e a mente edípica. Ou, pensando no fragmento clínico apresentado, um trânsito entre um pensamento articulado e uma cumulonimbus. Nas palavras de Bion (1975/2014, p. 49): Reformulando a afirmação de Freud, para minha própria conveniência: Há muito mais continuidade entre quanta19 autonomamente apropriadas e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos fariam acreditar. Então...? Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a contra-transferência, o humor transitivo-intransitivo. Ao fim de sua pesquisa, Flores (2021, pp. 143-144), ao tratar exatamente do mesmo tema, identifica uma passagem oportuna para pensarmos a respeito das evoluções das noções de complexidade em Bion: A ideia de cesura parece elevar um campo de conceitos intersticiais para um novo patamar. Intersticiais porque notamos, ao longo de seu trabalho, que Bion desenha fronteiras conceituais para fundamentar suas observações. Quer seja a barreira de contato (...), ou até mesmo as hifenizações que ligam palavras que dariam outro sentido se soltas, estes espaços de trânsito entre elementos expressam, em abstrações, a dinâmica de uma teoria que Bion, insistentemente, aponta falhar inexoravelmente toda vez que se aproxima da experiência emocional. Bion, mais próximo ao fim de sua obra, passa a empreender um esforço de se transportar para além dos pares antitéticos, para além dos conceitos que pressupõem alternâncias. O resultado é o exercício de, através da imaginação radical, ocupar lugares intersticiais, olhar desde a cesura. A ideia de cesura resolve, em termos epistemológicos, o problema da ruptura com as articulações, vínculos. Troca o dilema entre dois botões por um lugar intersticial que busca, ao máximo, evitar a negação de qualquer parte envolvida na apreensão de um funcionamento complexo. Na dupla seta, ↔, na compreensão espectral dos conceitos, deveríamos estar em um ponto exatamente no meio da reta, sem tender à escolha de um lado, mas observando os trânsitos, as mudanças, as transformações. Parece que estamos diante do pensamento complexo, mas as linhas escritas até aqui infelizmente pouco nos aproximam dele. São expressões em K, conhecimento, de uma experiência inalcançável, em sua complexidade, pela condição espacial da palavra. A organização espacial de um texto não nos aproxima da experiência psíquica. São alternâncias de pensamento dentro de uma estreita linearidade, com infinitos pensamentos (alguns pensados por nós, a maioria ainda não) escondidos nos pontos e nas vírgulas até aqui redigidas. Gostaríamos que as palavras pudessem levar quem as lê a um encontro com a fugacidade dos pensamentos, no entanto, isto é impossível. A mente move-se mais rápido e em mais camadas do que as palavras, do que os olhos, do que a boca contraída de um paciente ou as gargalhadas silenciosas são capazes de alcançar. As palavras interrompem o pavor gerado pela infinitude e são, inclusive, uma proteção contra a dinâmica insana que corre por baixo de nossa capacidade de apreensão, linearmente associativa e espacialmente tridimensional, denominada por Freud de processo secundário. Pressupor que a complexidade pode ser exprimida em linhas consiste em uma inevitável cegueira. Nas palavras de Morin (2015, p. 14): Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixaram cegos. Ao longo de inúmeras mudanças de estilo, Bion buscou resolver o problema da falta de alcance da linguagem para expressar a experiência psíquica. Escrita biográfica, poética, psicanalítica, matemática, diálogos imaginários, comunicações inquietantes. Esboçou a grade de pensamentos, em uma tentativa de organizar de maneira espacial como os pensamentos não-pensados e o pensador podem se encontrar, mas o instrumento é imóvel. Se por um lado nos inquietamos diante da imobilidade da grade, logo recordamos que quem está do outro lado é um pensador com pensamentos, e que somos nós que devemos dar movimentos ao imóvel apresentado por Bion. Morin (2015, p. 6) acompanha-nos no desamparo e na impotência diante da complexidade, fazendo das linhas e palavras o único alcance possível para estados complexos: (...) a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo (um dos principais aspectos do pensamento simplificador); este isola o que separa, e oculta tudo o que religa. Neste sentido, o pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas ele sabe desde o começo que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma onisciência. Ele faz suas as palavras de Adorno: ‘a totalidade é a não verdade’. Ele implica o reconhecimento de um princípio de incompletude e de incerteza. Mas traz também em seu princípio o reconhecimento dos laços entre as entidades que nosso pensamento deve necessariamente distinguir, mas não isolar umas das outras. Nosso tour de force para alcançar a nuvem Espremamos os olhos, agora, na tentativa de identificar, a partir da nuvem de palavras acima, quais os possíveis vértices de observação do fragmento intersubjetivo referidos desde o início do texto. Não buscamos aqui, na conclusão, afirmar algo acerca do fenômeno – uma nuvem na cabeça –, mas esboçar hipóteses, desenhar vértices desta experiência, construir um campo de complexidades. Se partirmos da perspectiva da Teoria do Pensar, podemos, por exemplo, conjecturar que o paciente depositou na mente do analista uma intriga feita de duas partes clivadas: uma expressão de insight acompanhada de uma imagem de imprecisão, resultado de uma identificação projetiva que levou o analista à própria análise, em busca de digerir tal processo. O riso e a memória persistente são os efeitos contratransferenciais deste evento, a partir da mente do analista. Podemos lançar outras hipóteses sobre o mesmo fenômeno, levando-se em consideração que há um pensador e pensamentos em busca deste. A nuvem formada na mente do paciente pode ter sido originada de falas do analista, as quais se converteram nesta imagem, o que foi possível pelo aparelho de pensar de alguém cuja parte psicótica da personalidade era expressiva. A própria ideia de nuvem pode ser vista como expressão simbólica, o resultado de um longo trabalho da função α, capaz de converter em imagem onírica uma experiência emocional, da mesma forma que também pode ser vista como a pré-concepção, pela interpretação do analista, de algo que poderia ter sido mais investigado ao invés de cair em súbita concordância. Há, ainda, a possibilidade de estarmos tratando de duas ou mais nuvens, fenômenos distintos em cada mente e que, por ocasião do encontro, parecem se referir a um ponto comum. A partir da concepção de Transformações , é possível pensar que há um fenômeno incognoscível para analista e paciente, definido como nuvem, o qual permitiu que ambos estivessem em contato e pudessem ter vivido um encontro. Podemos igualmente pensar que a nuvem foi mera coadjuvante de um encontro no qual estava em jogo se duas pessoas seriam capazes de sustentar uma conversa, daí a resposta rápida do analista em confirmar a existência de uma equivalência interna, mesmo sem saber o que estava dizendo. A partir da noção de transformações, a assim nomeada nuvem do paciente, bem como todas as interpretações que fizemos acima, são transformações sobre um elemento incognoscível que apenas tangenciamos. A partir de seu ponto de vista, o paciente nomeia a própria experiência, e o analista, assim como nós agora, escrevendo, produz transformações sobre tal fenômeno, em busca de invariâncias que nos permitam alcançar o fenômeno original mobilizador deste texto. Por fim, a partir da noção de Cesura, podemos entender que, para além de todas as perspectivas anteriores, é importante notarmos que há um elemento em transitória transformação. É neste trânsito que mora o trabalho analítico em que devemos prestar atenção: entre o paciente e sua expressão verbal, há um tour de force feito na escuridão de seus olhos fechados; entre sua comunicação e a nuvem da mente do analista, há um trânsito de elementos que percorrem tal espaço intangível; entre o fatídico evento e o divã do analista em questão, há inúmeras transformações feitas de risadas silenciosas e intrigas mentais; entre este longo evento e a escrita do presente trabalho, houve, também, um tour de force em busca de transpor, em tantas linhas, um breve insight – uma nuvem! NOTAS 1 Este artigo foi extraído da tese de doutorado de Davi Berciano Flores, atualmente em curso sob orientação da Profª Drª Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Psicólogo e psicanalista. Professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e da especialização em psicanálise da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), membro do LIPSIC e do GBPSF. 3 Psicanalista. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e coordenadora do LIPSIC. 4 A expressão hipótese definitória é utilizada por Bion (1963/2014) como um dos elementos de sua Grade, especificamente a primeira casa do eixo referente aos usos do pensar. A expressão tem um valor próximo do senso comum para o leitor não habituado à obra do autor, bem como um sentido mais específico para os leitores mais familiarizados com os usos da Grade. De forma rápida, podemos definir hipótese definitória como uma primeira ideia com potencialidade para todas as possibilidades (López Corvo, 2008, p. 183). Trata-se, em outros termos, de um ponto de partida para uma investigação, definindo um campo de busca (Symington & Symington, 1999, p. 54). 5 Os dados apresentados foram devidamente alterados e ficcionalizados, bem como foram omitidos detalhes que pudessem permitir a identificação do paciente. Optamos por apresentar apenas a primeira parte do fragmento clínico na primeira pessoa do singular. A proposta desta apresentação consiste em priorizar os fatos identificados na relação da dupla analítica, a partir do que denominamos “fragmento intersubjetivo”, ou seja, aquilo que mobiliza a mente do analista a articular elementos clínicos com aspectos teóricos a partir de sua visão pessoal e transitiva (Ribeiro, Flores & Ramos, 2022). 6 Esta observação aproxima-nos da noção de pré-concepção na obra de Bion (1962/2022), que corresponde à noção de pensamentos vazios em Kant. Consiste em um “estado incipiente” e traduz o “status de um estado expectante”, no qual há concepções (moldes, sondas) que buscam realizações, como no modelo inato do bebê que nasce com uma pré-concepção do seio, ou seja, um estado expectante, um molde, um pensamento vazio em busca de uma realização (Sandler, 2021, p. 859). 7 Dentre os textos que poderíamos citar, destacamos Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (Klein, 1946/1991), no qual a autora apresenta a noção de identificação projetiva, que se tornará um conceito importante dentro do movimento kleiniano. Na obra de Klein, a identificação projetiva é vista como um mecanismo de defesa, em que partes do self do bebê, em sua primitividade, são expulsas e depositadas dentro do corpo da mãe. Elevada a um conceito na obra de outros autores – incluindo Bion –, a identificação projetiva torna-se uma via de comunicação, na qual elementos projetados para fora do self do bebê (e do paciente) podem ser digeridos pela mãe (e pelo psicanalista) para então serem reintrojetados de forma mais digerida e, portanto, tolerável. 8 Bion retoma a ideia freudiana, apresentada em Interpretação dos sonhos (1900/2019): a consciência é um órgão de apreensão psíquica (Bion, 1962b/2021). 9 A noção de númeno, oriunda da obra de Kant, diz respeito ao “intuível para além do fenômeno que não pode ser concebido”. Corresponde ainda à “coisa-em-si, a realidade absoluta da qual não temos conhecimento empírico ou sensível, mas que podemos alcançar somente pela via da intuição.” (López Corvo, 2008, p. 238). 10 Podemos pensar que o âmbito numênico é justamente o que não conseguimos captar das coisas, aquilo que não é perceptível, mas que supomos estar lá. Levar isto em consideração diz mais de uma concepção de objeto de investigação, bem como da capacidade de alcance do conhecimento científico. Quando pensamos em características psicóticas de uma metodologia de investigação, estamos nos referindo ao fato de que há textos/obras que privilegiam mais o âmbito numênico, reconhecem-no, enquanto outras construções teóricas consideram menos este campo como algo que compõe o modelo teórico. Neste sentido, há metodologias que são mais mutiladoras da complexidade e outras menos. 11 Aplicativo de localização via GPS para carros, que indica caminhos através dos mapas para chegar a um destino. 12 Freud (1909/2013) aproxima-se da mesma ideia ao tratar, no campo da linguagem, de deformações por elipse. Nestas, palavras são escandidas da frase, de modo que o entendimento de algo pode ocorrer com extensão de representação. Era assim que uma única palavra poderia ser evitada ou dita de forma ritualística pelo Homem dos Ratos, evocando uma ideia sem necessariamente acessá-la. No caso deste paciente, o conjunto de palavras pode regredir para a ação contida na frase, reduzindo a articulação de pensamento “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise” para a ação “desviar meu caminho da análise”, abandonando o campo das ideias e convertendo-se em uma descarga motora que as palavras poderiam conter. 13 Em um momento mais avançado de sua obra, Bion (1976a/2014) vale-se do termo “evidências”, que pode servir tanto como leitura de seu paradigma epistemológico quanto de seus futuros constructos voltados a uma psicanálise predominantemente ontológica. 14 Invariância surge como conceito na obra de Bion somente em Transformações (1965a/2014), tratando-se de um conceito matemático do século XIX, depois aplicado em outras ciências práticas, como a física, a química, a teoria musical e, por fim, a psicanálise de Bion. A noção de invariância indica que, entre dois fenômenos, algo permanece inalterado, ainda que sejam de naturezas distintas. Deste modo, é possível depreender que, entre eles, há algo que nos permite associá-los em alguma perspectiva. 15 Nas palavras de Bion (1976b/2014, p. 125): “A cesura que nos levaria a acreditar; o futuro que nos levaria a acreditar; ou o passado que nos levaria a acreditar – isso depende da direção em que você está viajando e do que você vê”. A questão sobre a direção que tomamos para observar um fenômeno é tema recorrente na obra de Bion, e cada vez mais premente à medida que ela avança. A noção de cesura, citada neste trecho, será apresentada mais adiante. 16 Language of achievement, traduzido como “linguagem de êxito” ou “linguagem de consecução”, consiste em uma noção de Bion que busca dar nome à busca por interpretações e expressões que tenham “durabilidade e extensão”, tendo efetividade na realidade psíquica e material de um paciente. (Sandler, 2021, p. 508). 17 Freud (1900/2019) denominava a “inversão no oposto” como um dos artifícios realizados pelo trabalho do sonho para permitir que o conteúdo desconhecido da inconsciência acessasse o estado de vigília, de modo que pudesse aparecer em conteúdo manifesto. Inverter no oposto resulta em alterar a ordem cronológica dos fatos, bem como outras lógicas que indicam um caminho capaz de, plasticamente, ser invertido de forma onírica. Um bom exemplo deste fenômeno psíquico é observado por Freud (1909/2015) quando se refere aos ataques histéricos, em que, por vezes, a paciente por ele observada iniciava seu ataque expressando o fim de uma cena narrativa, encerrando o ataque na posição de início da mesma narrativa. O arc de cercle, por exemplo, consiste em um arco do corpo oposto ao do coito, resultando em defesas psíquicas para dissimular os reais fatos, simbolicamente encobertos pelas defesas psíquicas. 18 Não à toa encontramos, nas transformações em alucinose, algo que se aproxima muito da crítica que Morin (2015, p. 15) faz às tentativas de eliminar a complexidade da apreensão da realidade, permitindo-nos “(...) compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes”. 19 Unidade de medida da física, comum às teorias quânticas. REFERÊNCIAS Referências Bion, W.R. (1953). Notas sobre a teoria da esquizofrenia. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 27-38). Rio de Janeiro: Imago, 2022. Bion, W.R. (1957). A diferenciação entre a personalidade psicótica e não-psicótica. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 45-62). Rio de Janeiro: Imago, 2022. Bion, W.R. (1959). Ataques contra os vínculos. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 87-100). 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- Transformações em K e em O: vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e ontológica
Este artigo, de autoria de Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, foi publicado em 2024 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 31, número 1, na edição intitulada Bion: transformações, evoluções e expansões II . Resumo: Neste texto, aproximo a nomeação de Thomas Ogden (2020) de uma psicanálise epistemológica e uma psicanálise ontológica com as transformações em K (conhecimento) e transformações em O (tornarse) de Bion (1965). Proponho a existência de dois vértices oscilantes, realçando que há um movimento contínuo entre ambos. Compreendo que uma psicanálise epistemológica e ontológica já estava presente no livro de Bion, Transformações (1965/2014), ao abordar as transformações em K e as transformações em O, ou seja, o conhecer e o tornar-se. A obra Transformações pode ser lida como o testemunho de um processo de transformação em O, uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion a partir de sua mudança para Los Angeles. Nos últimos capítulos de Transformações , Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. Palavras-chave: Transformações; Psicanálise ontológica; Psicanálise epistemológica; Bion; Thomas Ogden “O analista precisa focalizar sua atenção sobre O, o desconhecido e incognoscível. O sucesso da psicanálise depende de se manter um ponto de vista psicanalítico; o ponto de vista é o vértice psicanalítico; o vértice psicanalítico é O. O analista não pode estar identificado com O: ele precisa sê-lo.” (Bion, 1970/2007) Ogden (2020) usa as expressões “predominância da psicanálise epistemológica” e “predominância da psicanálise ontológica”. Vértices oscilantes é uma construção própria para nomear o fenômeno da constante transição entre esses dois campos. Vértice psicanalítico é um termo usado por Bion em vários textos e supervisões, uma analogia feita a partir da geometria, um modelo usado pelo autor (Sandler, 2021). Segundo Ogden (2020), a psicanálise epistemológica está relacionada ao conhecimento e à compreensão, ou seja, ao campo das representações e diferenciações, tendo Freud e Klein como principais autores; por outro lado, a psicanálise ontológica tem Bion e Winnicott como referências, e é relativa ao ser e ao tornar-se - campo do não representado e do indiferenciado. A psicanálise ontológica propõe que o paciente descubra sentidos de maneira criativa, de modo a tornar-se mais plenamente humano: “o enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornarse mais pleno e as experiências mais vivas e reais” (Ogden, 2020, p. 24). Nesse sentido, Ogden destaca que, em Bion, a experiência de sonhar, considerada em todas as suas formas, acaba por se sobrepor ao sentido simbólico dos sonhos. Além disso, Ogden considera Bion como um pensador ontológico, afirmando que sua concepção de rêverie e função alfa, bem como sua proposição para o estado de mente do analista na sessão (capacidade negativa), demonstram a predominância ontológica no seu pensamento. Importante destacar a existência de um enriquecimento mútuo entre esses vértices oscilantes da experiência clínica – entre o conhecer e o ser. Assim, a cada momento da sessão e atento ao movimento intersubjetivo do campo analítico, o analista pode tornar figura um dos vértices, com o outro permanecendo como fundo, e vice-versa. Da mesma maneira, é capaz de identificar, a posteriori, qual vértice predominou naquele encontro analítico. Discorrerei a seguir sobre essa mudança do vértice epistemológico para o vértice ontológico no livro Transformações (Bion, 1965/2014) a partir da leitura de Figueiredo (2000; 2011)2 . No livro Transformações (1965/2014), Bion propõe uma reflexão sobre a eficácia psicanalítica e não apenas acerca das verdades do conhecimento psicanalítico. Retoma, assim, a questão da finalidade da interpretação na psicanálise, sustentando que o fenômeno é conhecido, mas a realidade é tornada; sendo assim, a interpretação deve ir além da ampliação do conhecimento que o paciente tem de si mesmo. Ou seja, a interpretação deve favorecer uma transformação no sentido do tornar-se si mesmo, de uma transformação em O, vértice ontológico, e não apenas no sentido de um conhecimento de si, vértice epistemológico. Compreendo que há uma suplementariedade3 entre esses dois vértices, assim como uma oscilação contínua, da qual podemos falar apenas de predominâncias a partir de uma compreensão espectral dos conceitos4 . Transformações representa uma guinada na direção que Bion vinha seguindo em seus trabalhos anteriores. Anteriormente a essa obra, Bion estava interessado em aprender com as experiências emocionais, ou seja, nas transformações em K (conhecimento), as quais pertencem ao campo das representações, ou seja, estava voltado ao que denominamos na introdução de psicanálise epistemológica (Ogden, 2020). A partir do final dessa publicação, Bion dedica-se às transformações em O, que ocorrem em um nível não representacional da experiência, no ser e no tornarse, ou seja, no âmbito de uma psicanálise ontológica (Ogden, 2020). O livro Transformações (1965/2014) é considerado um dos mais enigmáticos e difíceis textos de Bion. Além disso, o próprio livro pode ser lido como o testemunho de um processo de transformação em O; uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion. Uma mudança ocorre nos últimos capítulos de Transformações , quando Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. O subtítulo do livro aborda justamente essa mudança na obra: do aprendizado para o crescimento. Considero produtivo e criativo quando um conceito, no caso cesura5 , é usado para pensar a própria obra do seu criador. A cesura ocorre justamente no livro Transformações , em especial nos seus três últimos capítulos. A partir do insight que Bion teve no final do livro Transformações , momento no qual postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na sua vida e obra. Aos setenta e um anos, Bion muda-se para a Califórnia – Los Angeles (1968), para surpresa de seus pares ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a própria verdade emocional? Uma transformação em O? Na sua leitura, Figueiredo (2000) relata os vestígios deixados no texto do livro pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica. É justamente nos anos californianos, um período criativo e produtivo da sua vida, que Bion fez quatro viagens ao Brasil (1973, 1974, 1975 e 1978), a convite de seu amigo e colega Frank Philips, ministrando seminários e supervisões, enquanto semeava um legado que tem gerado várias publicações. Bion (1965/2014) propõe, no início de Transformações , que esse livro dispensaria outros livros, algo que, evidentemente, não se sustentou. A obra Atenção e interpretação (1970/2014) é uma expansão dos insights presentes no livro Transformações , principalmente no que se refere às transformações em O. A partir da postulação das transformações em O, o vértice psicanalítico para Bion passa a ser O, e não mais K. Como citado na epígrafe desse texto, o analista não pode estar identificado com O, ele precisa sê-lo (Bion, 1970/2014). Tal ideia promoveu uma mudança na compreensão dos conceitos postulados por Bion antes de 1965 e, principalmente, levou a uma retomada, em outros patamares, do que Freud propôs como método psicanalítico da atenção livremente flutuante. O analista precisa ter a disciplina de, ao receber seu analisando, estar em um estado sem memória (passado), sem desejo (futuro) e sem compreensão prévia, como proposto por Bion (1965/2014; 1967/2014). O analista necessita estar aberto para a experiência nova que irá evoluir do encontro entre duas personalidades, a do analista e a do paciente, ou seja, estar à deriva, deixando-se flutuar por experiências ainda não vividas pela díade. Essa proposta metodológica de Bion é, segundo Gerber e Figueiredo (2018, p. 81), uma “verdadeira renovação da escuta em atenção livremente flutuante em sua dimensão ética: ouvir o outro sem preconceitos, sem filtros, sem lembranças, sem expectativas ou desejos específicos”. A obra de Bion considera de forma enfática a complexidade do funcionamento mental, além de remeter constantemente o leitor ao desconhecido, mantendo o texto insaturado, aberto a outros possíveis significados, sempre momentâneos. No instante em que temos a impressão de compreender algo na leitura, já perdemos essa sensação efêmera de apreensão do conteúdo. Por tal motivo, sugerimos uma leitura dos textos de Bion a partir do estado de mente proposto por ele (1965/2014, 1967/2014): sem memória, sem desejo, sem compreensão prévia, o que sabemos ser um desafio considerável para o analista, e talvez ainda mais para alguns leitores de textos psicanalíticos que estejam em busca de compreensões saturadas e conclusivas. A leitura dos textos pode tornar-se uma experiência de transformação para o leitor, exigindo o que Bion (1970) chamou de paciência: a tolerância ao não saber, ao estar à deriva. Também é necessário ter fé, denominada como uma atitude científica por Bion, de que algum sentido emergirá do caos do estado esquizopanóide de mente para se entrar em um estado de segurança, o estado depressivo de mente, chegando assim a um K (conhecimento), sempre provisório e momentâneo. Oportuno lembrar que Bion ofereceu aos conceitos kleinianos tridimensionalidade, complexidade e plasticidade significativas, principalmente aos conceitos de posições esquizoparanóide e depressiva, de identificação projetiva e de inveja (Cintra & Ribeiro, 2018). A teoria das transformações é uma teoria da observação clínica no aqui e agora da sessão analítica. Uma observação de como evoluem os fenômenos clínicos entre analista e analisando, a sequência de transformações que acontecem em uma sessão envolvendo a dupla analítica em complexa interação. Além disso, também é a interpretação, a construção do analista ou sua formulação verbal, compreendida como um produto das inúmeras transformações que ocorrem durante uma sessão de análise, sendo que a própria interpretação gera novas transformações. O livro Transformações aborda a eficácia psicanalítica, e não apenas as verdades do conhecimento psicanalítico. Bion retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise: “se estou certo ao sugerir que os fenômenos são conhecidos, mas a realidade ‘é tornada’, a interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento” (Bion 1965/2014, p. 259, tradução minha)6 . Em outras palavras, a interpretação deve favorecer uma transformação em O, necessita ajudar no tornar-se si mesmo, não apenas um conhecimento de si. Em toda transformação há uma invariância7 , algo que permanece inalterado. Zimerman (2004) esclarece o conceito com o exemplo da água: líquida, gasosa ou como um cubo de gelo, o elemento invariante é a molécula de H2O. Outra analogia para compreender essa díade transformação / invariância é feita com a fotografia de uma mesma pessoa aos cinco e aos cinquenta anos: qual invariância permite que ocorra um reconhecimento de que é a mesma pessoa? No material clínico, como é possível reconhecer uma invariância? Compreendemos que a invariância pode favorecer o surgimento do fato selecionado, ou seja, aquilo que será objeto da interpretação por parte do analista, ou pode surgir como um fato fundamental na compreensão do funcionamento psíquico do analisando. Em outras palavras, o sofrimento psíquico do paciente pode estar condensado em uma imagem que emerge na sessão e é captado por meio da capacidade de rêverie do analista. Partindo do modelo apresentado por Bion (1965/2014), o analista observa o reflexo das árvores no lago, nunca as árvores diretamente, ou seja, há graus diferentes de distorções naquilo que é percebido, dependendo da turbulência da água e das condições atmosféricas. As árvores na beira do lago são uma manifestação de O, pois O é incognoscível. A turbulência da água e as condições atmosféricas são as emoções que circulam na sessão, no campo analítico, os vínculos L, H e K8 . Bion chamará essas distorções de hipérboles, com diferentes graus de transformação da experiência emocional original, no sentido de um distanciamento, como as ondas que reverberam ao lançarmos uma pedra no lago. A teoria das transformações abrange e contém a teoria freudiana da transferência (transformações em movimento rígido) e a teoria kleiniana da identificação projetiva (transformações projetivas). A transformação em moção rígida aproxima-se da transferência conforme postulada por Freud: algo do passado do paciente é transferido ao analista e, geralmente, isso é identificado como uma invariância, um elemento que permanece e é reapresentado continuamente na transferência. Nas transformações em movimento rígido, a invariância é reconhecível com certa facilidade. Temos as transformações projetivas, postuladas a partir da expansão do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein. Bion, na teoria sobre o pensar (1962), propôs os conceitos de continente e contido e considerou que as mentes se comunicam via identificação projetiva, alocando o conceito kleiniano em outro patamar de complexidade e no campo da intersubjetividade. As transformações projetivas comportam graus distintos de distorção, sendo que as transformações em alucinose distorcem ao limite extremo, ou seja, vão até o ápice da distorção hiperbólica, até o limite entre o mental e o não-mental, quando se torna difícil reconhecer uma invariância, pois a distorção é brutal. Temos as transformações em K (conhecimento) e, ao final do livro Transformações, Bion aborda as transformações em O, o tornar-se si mesmo. As várias formas de transformação podem ocorrer em diferentes momentos de uma mesma sessão, sendo que a análise deveria favorecer as transformações em K e em O, o aprender com a experiência (K) e o tornar-se (O)9 . Podemos compreender, como vértices oscilantes entre o campo da psicanálise epistemológica, o conhecer, e o campo da psicanálise ontológica, o tornar-se. A partir de Transformações , Bion (1965/2004a) compreende que o contato com a realidade psíquica ocorre de forma a-sensorial, ou seja, uma apreensão que acontece por meio da intuição e não pela captação sensorial. O estar em O do analista, como Bion (1970/2014) escreve, é o estado de mente que favorece a intuição psicanalítica, no que se refere ao contato com a realidade psíquica do paciente, um conhecimento quase sem a mediação de elementos sensoriais. Bion (1965/2014, 1967/2014) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade e são intensificados por esta, não favorecendo a intuição, motivo pelo qual essa sugestão técnica é de difícil compreensão ainda hoje: o analista precisa receber seu paciente em um estado mental sem desejo, sem memória e sem compreensão prévia, como se fosse sempre a primeira vez. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo em 1965 (publicado como texto em 1967), realizada nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: No entanto, como analistas, sabemos – e acho que isso se torna cada vez mais evidente à medida que a experiência se acumula – que realmente lidamos com alguma coisa; que a experiência psicanalítica, por mais céticos que sejamos, é realmente uma experiência emocional e realmente existe, mesmo que nunca venhamos a saber ou estar em condições de dar uma descrição sequer aproximadamente correta do que ocorre. Por isso, penso – e acho muito útil fazê-lo – em qualquer descrição clínica como sendo, por natureza, uma representação pictórica, ou, digamos, uma representação sensória (porque estou pensando no que acontece em uma situação analítica). Eu transformo essa situação em imagens visuais e depois uma transformação em formulações verbais, como aquelas que conhecemos aqui. (Bion, 1965/2014, p. 10, tradução minha) O analista está diante do desafio de lidar com o aquém da sensorialidade, com o não sensorial, captado pela intuição psicanalítica, com o terceiro olho da mente, com a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente. Além disso, precisa lidar com o sensorial, aquilo que pôde ser transformado em uma representação pictórica pela sua capacidade para a rêverie. Não suficiente, o psicanalista precisa se defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens que emergem do encontro analítico: as formulações verbais. Há, também, a geração de imagens a partir das interpretações ou construções feitas pelo analista, em uma circularidade que se retroalimenta e que favorece a intimidade psíquica e a expansão do campo analítico. É dessa forma que compreendo quando Bion (1965/2014) escreve sobre o diâmetro gerado pela interpretação, que não pode ser nem limitado e nem amplo demais, mas precisa favorecer o contato íntimo entre as duas mentes, a do analista e do analisando, em constantes transformações de um O comum à díade. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion,1992/2014). As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967/2014). Precisamos de um facho de intensa escuridão para intuir no aqui e agora da sessão, tornando visível o invisível da experiência. Em carta a Lou Andreas-Salomé, Freud sugeriu um método para alcançar um estado de mente cujas vantagens compensassem a obscuridade, no caso de o objeto investigado ser particularmente obscuro. Freud fala de cegar-se artificialmente. Assinalei a importância da abstinência de memória e desejo como um método para conseguir essa cegueira artificial. (Bion, 1970/2007a, p. 57) A função do analista na sessão, a partir da postulação das transformações em O, passa a ser uma oscilação contínua entre conhecer (K) e ser (O), ou seja, vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e uma psicanálise ontológica. Em outros termos, uma transformação contínua de O para K, e de K para O, a partir do atravessamento das turbulências hiperbólicas, das distorções da realidade psíquica sempre presentes, Figueiredo (2014, p. 127) escreve: Bion nos fala da experiência de O - a experiência emocional em sua condição de Origem de toda a nossa vida somatopsíquica: aqui não se trata de ‘conhecer’, mas de ‘tornar-se’, reconciliar-se em profundidade com a própria experiência emocional inconsciente, sem defesas e subterfúgios, inclusive sem a redução desta experiência ao campo dos sentidos instituídos e reconhecíveis pela consciência. Neste contexto, que ultrapassa a epistemologia clássica, pois o que está em jogo é a correspondência entre a representação e o seu objeto, dá-se ‘uma outra verdade’, a verdade em O, da maior importância para a clínica psicanalítica, cujas metas não se reduzem a conhecer ou reconhecer-se - embora passem por isto - mas se projetam no rumo de uma efetiva transformação subjetiva, o que só acontece a partir do contato profundo e sem disfarces do sujeito consigo mesmo, com o inconsciente infinito que o habita e move. Ainda que possamos compreender as transformações em K e em O como vértices oscilantes, a transformação princeps é o tornar-se: “Seu valor terapêutico é maior quando elas conduzem a transformações em O; menor quando conduzem a transformações em K” (Bion, 1970/2007a, p. 41). Bion, inspirado em Nietzsche, diz que, em uma análise, o paciente se torna quem ele é, o melhor que se pode ser com aquilo que se é a cada momento, pois o inconsciente é infinito; é o que nos move, uma constante imanência. Retomando as transformações em O, Figueiredo (2000) e Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2011) fazem uma discriminação de três concepções de O abordadas em Transformações, ou seja, qual é a concepção ou o estatuto de O no plano da teoria das transformações? Como esta concepção oscila ao longo do livro de Bion? Primeiramente, vemos O sendo evocado através das formas platônicas: O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza, mas conteria as matrizes dos possíveis fenômenos, ou seja, comporta uma ordem, que seriam as formas transcendentais. Essa concepção de O como formas platônicas colabora para a compreensão das preconcepções inatas, do arcabouço da mente, das tendências herdadas para organizar o mundo segundo certos padrões, como relata Figueiredo (2000). Na segunda concepção, O não comporta as formas platônicas, mas uma potencialidade para distinções ainda não desenvolvidas. No entanto, segundo Figueiredo (2000), nessa concepção, a razão da resistência10 ser deflagrada não é compreensível. O que geraria tal resistência? Quando há um movimento em direção a O, em direção à experiência da verdade emocional do analisando, o que causaria a resistência? Bion escreve que a verdade emocional é o alimento da mente, mas tememos o contato com essa verdade, ou seja, resistimos a ela, resistimos ao desconhecido em nós. Na terceira, última e plena acepção de O como o infinito vazio e sem forma do qual o mundo emerge em estado ainda caótico, as razões da emergência da resistência passam a ser compreensíveis. A resistência é gerada diante da angústia ao infinito vazio e sem forma, ao desconhecido. Bion (1965/2004a, p. 165) usa a seguinte formulação poética de John Milton em Paradise Lost para representar O: “Nascente mundo de profundas, obscuras águas do infinito vazio e sem forma arrebatado”. Figueiredo (2000) considera que é apenas nesta terceira compreensão que O corresponde à coisa-em-si kantiana, a qual não pode ser conhecida, ainda que suas qualidades primárias e secundárias possam ser apreendidas, citando Bion: Não estou interpretando a fala de Milton, mas usando-a para representar O. O processo de vinculação constitui uma parte do procedimento pelo qual é “do infinito vazio e sem forma arrebatado”; este processo é K; É preciso ser distinguido do processo por meio do qual O é “tornado”. O sentido de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e conteúdo, todos estão associados com K. (Bion, 1965/2004, p. 165) Dessa forma, como compreende Figueiredo (2000), Bion acentua o hiato entre a lógica do mundo dos conceitos (K) – o senso de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e contido – e o plano do infinito vazio e sem forma no qual a experiência emerge. Esse hiato tem uma reverberação significativa no universo teórico da psicanálise: o intervalo entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre o saber de si e o tornar-se si mesmo. A partir do livro Transformações (1965/2004a), passa a ser fundamental a qualidade das transformações realizadas na sala de análise e na dupla analítica, dentro do campo analítico. Transformar é trans + formar, formar para além, que implica tanto movimentos formativos quanto desintegradores, pois transformar pode formar e também destruir formas. Na experiência do inconsciente implicada na psicanálise, é preciso que se reconheça a dimensão do tornar-se e a dimensão do desfazer-se, movimento este pouco realçado em outros textos. O movimento de desformar, desfazer-se em O, é uma ênfase da leitura de Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro, (2011, p. 159): “Tornar-se O, entendido agora como infinito vazio e sem forma, é, ao contrário, um movimento desconstrutivo de retorno ao sem forma, às noites escuras da alma. No primeiro caso é o de deixar-se fazer por O, no outro, é deixar-se desfazer em O”. O termo transformação é desdobrado em três: as Transformações (T) englobam transformações em termos de processo (T α) e transformações em termos de produtos (T β). Quando estamos diante de T paciente β, consideramos como o produto de uma transformação; esse é o material clínico que será apresentado ao analista. No entanto, tal material continua contendo uma dimensão beta. Estamos sempre diante de uma sequência infinita de transformações, nas quais a origem (O) é incognoscível, ao passo que aquilo que se apresenta como forma ou representação permanece continuamente com uma dimensão beta, enigmática. Bion fala dos limites da representação, do constante formar e desformar, sempre parcial, ou seja, a dimensão beta da experiência está sempre presente. Mawson escreve: “Uma leitura atenta de Bion, entretanto, permite perceber que se trata de uma ideia epistemológica relativa aos limites da representação” (2014, p. 215, tradução minha). Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro, (2011) dizem que o material clínico – ainda que já contenha algumas formas e padrões dos quais é possível extrair invariantes – está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada, bem como a interpretação a ser formulada. O material clínico contém uma dimensão beta, enigmática11, intrusiva, perturbadora, que convoca o analista a uma experiência sempre de turbulência emocional, um mau negócio, como escreve Bion em seu último artigo (1979/2014). Será que o analista pode propiciar uma transformação em O a partir da interpretação e do conhecimento psicanalítico? O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza. Contudo, ele já possui em si as matrizes dos possíveis fenômenos. A experiência que Bion denomina mística será um modelo para esta modalidade de transformação, que já não é uma transformação DE O, mas uma transformação EM O, já não é um conhecimento de O, mas um tornar-se O, ou seja, o intervalo, ou hiato como escreve Bion (1970), entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre ter um conhecimento de si e o tornar-se si mesmo, conforme dito acima. Embora Bion não esteja se apresentando como místico, não deixa de nos sensibilizar a lembrança de que, para ele, a procura das formas adequadas de expressão é tão necessária quanto fracassada, pois é sempre uma aproximação que comporta distorções, como escreve Figueiredo (2000). Tal como o místico, o psicanalista tem uma experiência de O que não pode ser nem desqualificada nem transformada em representação adequada, uma vez que toda transformação de O é, de alguma forma, hiperbólica. Poderíamos dizer que L, H, e K são sempre inadequados a O, embora sejam apropriados a transformações DE O. Em cada um destes vínculos há uma espécie de exagero e distanciamento, o qual está na raiz do que Bion chama de hipérbole. Para Bion, ser O ou tornar-se O nem é uma possibilidade teórica, nem pode ser um imperativo categórico, ou seja, superegoico, como diz Figueiredo (2000). A passagem a O, muito mais que o conhecimento de O, é o que está presente nas situações de resistência, ou seja, no ato de se desfazer no desconhecido, nas águas turvas e profundas. A iminência de O, como sentimento de aceitar e acolher O, pode ser a melhor solução – ainda que penosa – que deflagra a resistência a O. O conhecimento (K), inclusive, pode ser um dos modos de não ocorrer a transformação EM O, de impedir sua iminência. O que está em jogo não é o conhecimento e suas vicissitudes, ou seja, as capacidades cognitivas do homem e seus limites, mas a possibilidade assustadora de passar a O, de transformar-se em O, em sua iminência e imanência: o infinito vazio e sem forma. Segundo Figueiredo (2000), uma situação patológica se instala quando o encontro com O deve ser evitado e adiado infinitamente. Neste desviar-se, ficamos às voltas apenas com as transformações de O. Isso quer dizer que não só prevalece o vínculo H, mas também que, quando prevalece L e K – situações em que O está apenas hiperbolicamente presente –, há sempre uma resistência a O operando, uma resistência ao desconhecido. O fator que gera a resistência é a angústia diante do infinito vazio e sem forma – nada de entes – e, provavelmente, o pavor do mundo emergente de águas turvas e profundas, pois aqui ele não é conquistado a partir do nada, na forma de algo simples e bem discriminado. Nesta versão, o estatuto de O como incognoscível encontra a sua plena formulação. É a ideia de O como infinito vazio e sem forma – um nada de entes, em termos heideggerianos, ou seja, o momento no qual o mundo emerge em estado ainda caótico. Neste caso, fica muito mais fácil identificar as razões da resistência, da evitação ao desconhecido. Assim, podemos supor que O seja um campo de possibilidades de evolução, em si mesmo inacessível, mas cujos produtos podem ser conhecidos, ou que O é o infinito vazio e sem forma a partir do qual são conquistadas as qualidades secundárias e primárias as quais compõem os entes. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “Postulo, portanto, que O em qualquer situação analítica está disponível para transformação por analista e analisando igualmente” (Bion 1965/2014, p. 169, tradução do autor). A turbulência gerada pelo encontro analítico – o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979/2014) –, rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma rêverie na mente da analista, que também passa a ser um fato selecionado da sessão. A imagem pictórica da rêverie já é o produto (T analista β) de um processo de transformação (T analista α). O analista, em estado de capacidade negativa (sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia), estado de mente receptivo a O e também favorecedor da intuição psicanalítica, é arrastado pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido, ficando à deriva. É preciso ter paciência (estado de mente esquizoparanoide) e fé, o ato de fé (Bion, 1970/2014) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo) capaz de propiciar uma evolução em K, o conhecimento de um elemento psíquico no campo analítico. A experiência da rêverie, de “ver” uma imagem, é algo do âmbito do que Bion (1970/2007a, pp. 49-50) chamou de transformação em alucinose: para avaliar a alucinação o analista precisa participar do estado de alucinose. A partir daquilo que eu disse, ficará claro que isso é assim, pois postulei que um vínculo K pode operar apenas sobre um background de sentidos; é capaz apenas de produzir um conhecimento “sobre” algo, e precisa ser diferenciado do vínculo O, essencial para transformações em O. Antes que se possa dar interpretações de alucinose, que são elas mesmas transformações O→K, é necessário que o analista se submeta, em sua própria personalidade, à transformação O→K. Abstendo-se de memórias, desejos e das operações da memória, o analista pode se aproximar do âmbito da alucinose e dos “atos de fé”, através dos quais pode ficar, sozinho, “uno às” alucinações de seus pacientes e assim efetuar transformações O→K. A representação pictórica na rêverie é uma transformação de O em K, uma experiência que se fenomenaliza em uma imagem, um ideograma afetivo (1992/2014); tal imagem está no âmbito da alucinose, pois não há nenhum apoio sensóreo na captação dessa realidade psíquica. Tal fato acontece pela capacidade de intuição do analista, que evolui para uma rêverie, ou seja, entra no campo das representações. Podemos refletir que, na mente do analista durante a rêverie, diante da turbulência emocional do encontro, ocorre uma transformação de O para K, ou seja, algo sem forma (O) evolui para uma forma (K), a imagem pictográfica. Isso ocorre pela capacidade de rêverie do analista, sua função α, lembrando que a rêverie é um fator da função α, uma função transformadora da brutalidade dos fatos. K é uma forma, algo que se fenomenizou, passível de representação por uma imagem com características estéticas que, posteriormente, pode ser transformada pelo analista em uma narrativa, uma formulação verbal como escreve Bion (1965/2014). De forma resumida, podemos dizer que O se manifesta em K (Bion,1970/2014), se fenomenaliza em K. A experiência estética na sessão analítica é outro vértice surgido a partir do livro Transformações. Bion inicia o livro descrevendo a mutação que o artista faz ao pintar um campo de papoulas e as invariâncias que tornam possível o reconhecimento desse campo de papoulas. No entanto, essa analogia irá se tornar cada vez mais complexa ao longo do livro. Seria a transformação em O uma experiência estética? Ou a transformação em K? As distorções hiperbólicas das transformações projetivas e a transformação em alucinose poderiam ser compreendidas como experiências estéticas? Como geralmente estamos diante de construções imagéticas da mente, os ideogramas afetivos (Bion, 1992/2014), uma experiência estética parece estar sempre presente nos diversos vértices de transformação que poderiam até ser pensados como vértices estéticos da experiência emocional. A linguagem poética que Bion passa a usar com mais frequência após o livro Transformações e, indubitavelmente, na publicação da trilogia Memória do Futuro e dos textos autobiográficos, é uma linguagem da imaginação estética, uma linguagem de êxito, como escreveu em Atenção e Interpretação (1970/2014). Somente a linguagem poética pode ser uma evolução das transformações em O e de O. A mente se organiza como poiesis, a diuturna capacidade de sonhar as experiências emocionais, uma criação estética, imaginativa, constante e infinita. Estamos no âmbito da transição entre a teoria do pensar em Bion (1962/2014) e a teoria das transformações (1965/2014) – vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e ontológica, como proposto no início deste texto. O horizonte da psicanálise ontológica favorece o movimento do paciente na direção de tornar-se si mesmo, tornar-se verdade12, sendo que a capacidade do analista de criar narrativas imaginativas e palavras aladas13 é fundamental nesse processo contínuo de vir a ser que consiste no existir humano. NOTAS 1 Psicanalista. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). 2 Apresento neste texto a leitura de Figueiredo (2000) e Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2011) do livro Transformações (Bion, 1965/2014). O livro Bion em sete lições: lendo transformações teve origem em aulas ministradas na pós-graduação da PUCSP em 2000, as quais posteriormente foram editadas e reescritas para serem publicadas como um livro por Gina Tamburrino e por mim em 2011. O nome sete lições faz referência ao fato de que foram aulas ministradas por Luis Cláudio Figueiredo. 3 Fazendo referência ao pensamento de Derrida, Coelho Junior e Figueiredo (2004, p. 24) compreendem a suplementaridade das dimensões intersubjetivas, argumentando que “cada dimensão é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos”. 4 “Os sistemas abertos têm sua primeira grande expressão no trabalho em que Bion descreve um modelo espectral de partes psicóticas e não-psicóticas da personalidade (1956/2014). O modelo espectral nos traz o alerta para as limitações da capacidade de observação, pois o modelo expõe o fato de que, colocadas as partes em simetria, vamos observar apenas determinados fatos, e que podem ser bem limitados em relação ao todo.” (Chuster, 2023). A compreensão espectral dos conceitos de Bion é enfatizada em vários textos do psicanalista brasileiro Arnaldo Chuster. 5 Vermote (2019) no livro Reading Bion refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana; dividindo seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros. 6 If I am right in suggesting that phenomena are known but reality is ‘become’, the interpretation must do more than increase knowledge. 7 Os termos transformações e invariâncias tem origem na matemática. 8 Love, Hate e Knowledge. 9 Vermote (2019, p. 166, tradução minha) considera que, no livro Atenção e interpretação (1970/2014), Bion “conseguiu integrar T (K) e T (O) como uma trilha dupla de funcionamento e mudança psíquica”. 10 Se permanecermos estritamente dentro de uma conceptualização bioniana, a resistência se refere ao desconhecido, ou seja, ao espectro conhecido-desconhecido e ao aprender e não aprender com a experiência emocional. Lembrando também que, em relação à díade consciente-inconsciente, Bion propõe a díade finito-infinito. 11 A afetação enigmática, a intuição analiticamente treinada, é uma afetação do O da dupla analistaanalisando, o uníssono da experiência. 12 A verdade é tornada concomitante ao tornar-se quem se é. 13 Ideias desenvolvidas em dois artigos: Narrativas imaginativas na sala de análise, W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto (2017) e Palavras aladas guiando o encontro analítico (2022). REFERÊNCIAS Bléandanu, G. (1993). Wilfred R. Bion: a vida e a obra. Rio de Janeiro: Imago. Bion, W. R. (2014). Transformations. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 5, pp. 115-280. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2004a). Transformações: do aprendizado ao crescimento. (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2014). Memory and desire. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 7-18). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2014). Notes on memory and desire. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 203-210). (Trabalho original publicado em 1967). Bion, W.R. (2014). Attention and interpretation: a scientific approach to insight in psychoanalysis and groups. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 211-330). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1970). Bion, W.R. (2007a). Atenção e Interpretação (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970). Bion, W.R. (2014). Cogitations. In The complete works of W. R. Bion. (Vol. 11, pp. 1-350). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1992). Bion, W.R. (2014). Making the best of a bad job. In The complete woks of W. R. Bion. (Vol. 10, pp. 136-145). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1979). Cesar, F.F., Ribeiro, M.F.R. & Perrota, C. (2022). Palavras aladas guiando o encontro analítico. Revista de Psicanálise da SPPA, 29, pp. 297-314. Chuster, A. (2023, 11 de março). Trabalho apresentado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Cintra, E.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo: Escuta. Derrida, J. (1967). De la Grammatologie. Paris: Minuit. Figueiredo, L.C. (2000). Anotações de aulas ministras na pós-graduação da PUCSP. Figueiredo, L.C., Tamburrino, G. & Ribeiro, M.F.R. (2011). Bion em nove lições: lendo transformações. São Paulo: Escuta. Gerber, I. & Figueiredo, L.C. (2018). Por que Bion? São Paulo: Zagodoni. Grotstein, J. (2007). A beam of intense darkness: Wilfred Bion’s Legacy to Psychoanalysis. London: Karnac. Grotstein, J. (2019). Listening to and reading Bion. In R. Vermote (Ed.). Reading Bion (pp. 238- 243). New York and London: Routledge. Mawson, C. (2014). Editor’s introduction. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 213‑217). London: Karnac. Ogden, T. (2020). Psicanálise ontológica ou O que você quer ser quando crescer? Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-45. Ribeiro, M.F.R. (2017). Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20, p. 181-193. Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge. Zimerman, D. (2004). Bion da Teoria à Prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed.
- Reflexões sobre conjugabilidade e parentalidade. Um caleidoscópio de constituições familiares
Este artigo foi publicado em 2016 no Jornal de Psicanálise . Resumo: O artigo faz uma reflexão sobre as novas formas de constituição familiar na contemporaneidade, com base na compreensão da complexidade dos vínculos intersubjetivos e de suas características polissêmicas e potencialmente transformáveis. Compreende-se que os aspectos intersubjetivos e intrassubjetivos são indissociáveis. O artigo apresenta algumas características da família contemporânea: horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. É discutida a questão da patologização do desconhecido, fruto das angústias diante do novo que se apresenta. Os conceitos de bissexualidade psíquica de Freud e a denominação neossexualidades de McDougall são usados na compreensão das novas formas de conjugabilidade e parentalidade. Palavras-chave: conjugabilidade, parentalidade, vínculos intersubjetivos, constituições familiares A imaginação humana não tem limites. O psiquismo é de uma plasticidade ímpar, assim como as múltiplas e infinitas formas de conjugabilidade 1 e parentalidade. 2 Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a complexidade vincular característica do humano. Bion (1962) foi um dos psicanalistas que estudaram e aprofundaram as questões vinculares, compreendendo os vínculos como elos que unem duas pessoas ou mais, no campo intersubjetivo. E, também, os elos intrassubjetivos que unem partes de uma mesma pessoa. Bion dedicou-se à análise do vínculo entre analista e analisando e entre os membros de um grupo. Os vínculos são polissêmicos e potencialmente transformáveis. As reflexões aqui expostas privilegiam o aspecto intersubjetivo, considerando que todas as dimensões presentes nos vínculos estão inextrincavelmente ligadas e são indissociáveis umas das outras. A ênfase é na polissemia e plasticidade dos vínculos, características que parecem inviabilizar normatizações. Levando em conta a potencialidade transformadora dos vínculos intersubjetivos, parto para uma reflexão panorâmica do que observamos nas complexas composições conjugais e parentais das famílias contemporâneas. 3 Um caleidoscópio estonteante O que era inimaginável há alguns anos hoje está nas ruas, na Internet, nas revistas. A ideia de família despedaçou-se em um caleidoscópio estonteante. Uma mãe menopausada gestando, uma avó que gera o neto, uma irmã que gera o sobrinho, as doações e adoções de gametas... a lista de novidades é grande, e tende a se estender ainda mais. A tecnologia de reprodução humana deu asas à imaginação, causando surpresas, discussões, preocupações. Como podemos pensar as relações familiares diante dessa explosão do conhecido que considerávamos estável? Como não tornar patológico o desconhecido? A patologização pode ser compreendida como uma tentativa de organizar a angústia diante da vastidão de constituições familiares que encontramos hoje. O desconhecido acirra as angústias. Se a capacidade da mente de enfrentamento diante do novo for frágil, o apego ao conhecido e a patologização do desconhecido tornam-se modos defensivos de lidarmos com a experiência. O apego ao que já conhecemos muitas vezes é mais forte do que imaginamos ou do que gostaríamos. O desconhecido, o estranho causa medo e desamparo, levantando todo o arsenal de defesas do eu, tanto no campo intersubjetivo, quanto no intrassubjetivo, que são indissociáveis. Temos a tendência de considerar o conhecido, aquilo que não estranhamos, como bom e profícuo. Os historiadores, entre outros estudiosos, podem favorecer o desprendimento de nosso relativo conhecimento histórico, além do desapego narcísico daquilo que nostalgicamente consideramos bom apenas por ser conhecido. Em outras palavras, conseguimos ter um olhar panorâmico sobre aproximadamente três gerações que nos antecedem e três que nos sucedem, apenas. Na história da humanidade somos um grão de areia na cadeia de gerações, mas para nós isso é simplesmente tudo. Precisamos, pois, dos historiadores para compreender que as relações humanas já foram muito diferentes dessa referência que ainda temos: a sagrada família. 4 Philipe Ariès (1978) realizou um estudo iconográfico sobre a história social da criança e da família, atualmente uma obra de referência no assunto. O autor considera que, a partir do século XVI, com os quadros que representavam a sagrada família, teve início a família conjugal que conhecemos hoje, os pais e seus filhos. Como nascemos dentro desse contexto, a sensação subjetiva de que o mundo sempre foi assim é inevitável. Nessa perspectiva, a sagrada família ainda parece ser uma forte referência de um passado nostálgico e idealizado, quando havia uma organização familiar boa e saudável. A sagrada família gerou e gera vínculos patológicos e pessoas psiquicamente doentes, assim como pessoas suficientemente razoáveis em seu funcionamento psíquico. Mesmo com todos os manuais para pais das décadas de 1950, 1960, 1970 e assim por diante, os quais tendem a perpetuar-se nas prateleiras, criar um filho e constituir a vida familiar continua a ser um grande desafio, sem receita, sem causalidades simplificadoras e, portanto, reducionistas da complexidade dos vínculos humanos. O ambiente psíquico da família é, pois, o nascedouro de todas as patologias e também do humano suficientemente saudável. Segundo Weissmann (2009, p. 142), a família constitui-se com base em uma "rede de relacionamentos entre sujeitos atravessados pelo parentesco, na qual subjaz uma matriz vincular inconsciente que os abarca". A família contemporânea caracteriza-se por ser horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. Há uma conjugalidade afetiva, com ou sem filhos (Roudinesco, 2003). Hetero, homo, monoparental, pluriparental, e o que mais vier! De toda forma, a família continua a ser desejada como lugar de pertencimento. Penso que a pluralidade de constituições familiares existente hoje é fruto da plasticidade do psiquismo humano e da maior liberdade de manifestação das diferenças. Hoje aquilo que ficava escondido está nas ruas. Além disso, a tecnologia de reprodução humana tem viabilizado essa expansão de possibilidades, já que a procriação biológica sem a intervenção de técnicas não seria possível para pares do mesmo sexo biológico. Diante de tamanha diversificação, e do risco de elegermos critérios nos quais predomina mais o medo do desconhecido do que algo que colabore com a compreensão da complexidade, trago a seguir o conceito freudiano de bissexualidade psíquica 5 e a ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall. 6 O conceito de bissexualidade psíquica O termo "bissexualidade" foi sugerido a Freud por Wilhelm Fliess; há sobre isso vários comentários esparsos ao longo da obra freudiana, e aqui faço uma brevíssima apresentação do conceito, pois este já foi objeto de uma análise aprofundada em minha tese de doutorado citada acima. Em 1923, em O ego e o id, ao discutir as identificações com os pais e o complexo de Édipo, Freud (1923/1980a) escreve: A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo ... um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. (pp. 46-47) Apenas em 1938, em Esboço de psicanálise, Freud usa a expressão "bissexualidade psicológica", e não mais bissexualidade constitucional. A bissexualidade, compreendida como identificação - primária e secundária - com os aspectos masculinos e femininos dos pais, é indissociável da constelação edípica e de suas múltiplas vetorizações homo e heterossexuais. No que diz respeito à temática da masculinidade e feminilidade, Freud (1925/1980b), escreve: todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. (p. 320) Estamos sempre diante de uma composição única e intrincada entre masculinidade e feminilidade, obra da singularidade da história individual e suas articulações inéditas e contínuas. A bissexualidade psíquica está na base das identificações edípicas. Ogden (1992) escreve sobre as identificações bissexuais: Quando se tem de fazer uma eleição entre a mãe e o pai (entre feminilidade e masculinidade) não se chega a ser nem masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925, 1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos. (p. 155) Essa breve apresentação do conceito de bissexualidade psíquica dá a dimensão da complexidade da questão abordada aqui. As constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade que compõem uma identidade sexual assemelham-se a um caleidoscópio - são infinitas as composições possívei s. Logo, qualquer normatização pode levar a uma estagnação do que é próprio do humano suficientemente saudável: a constante expansão, transforma ção e criatividade. As neossexualidades McDougall (1999, 1991), psicanalista estudiosa da psicossexualidade humana, denomina neossexualidades as inúmeras possibilidades de vínculos entre duas pessoas. A autora não considera esse termo um conceito, mas sim uma forma de escutar os analisandos no que se refere à experiência da sexualidade, destacando que esta só pode ser considerada sintomática quando gera sofrimento no paciente ou em seus parceiros. Se o respeito às diferenças e à alteridade do outro estão presentes, não há motivos ou razões para considerarmos uma manifestação estranha a nós como patológica. Uma vez mais precisamos reconhecer que quando nossos analisandos recontam estas condições complicadas ou incomuns de fazer amor com parceiros que consentem nisto, embora seus relatos possam nos levar a procurar pelo sentido oculto de tais cenários, se estas neossexualidades não causam nenhum sofrimento a nenhum dos parceiros e não são sentidas como indevidamente compulsivas, não temos nenhuma razão para levar estes analisandos a encarar outros objetivos sexuais por causa de nossos próprios julgamentos de valor. Se tal é nossa ambição, o problema é nosso, e não deles! (McDougall, 1999, p. 24) Inicialmente, McDougall (1999) apresenta essa forma de denominar arranjos sexuais inusitados como uma maneira de autocura por parte dos pacientes. Considera que a erotização é um caminho para lidar como os traumas psíquicos, fazendo com que Eros prevaleça sobre Thanatos: "O que eu chamo de uma neossexualidade representa a melhor solução que a criança pôde encontrar para adquirir não somente uma vida e uma identidade sexuais, mas, algumas vezes, simplesmente uma identidade" (McDougall, 1991, p. 64). Em seu livro As múltiplas faces de Eros considera que "a sexualidade humana é inerentemente traumática e força o ser humano a um eterno questionamento" (McDougall, 1999, p. 12). Partindo dessa compreensão, a sexualidade humana, em suas diversas manifestações, pode ser considerada como uma conciliação sintomática; sendo assim, a totalidade da sexualidade consistiria em neossexualidades. Esta é a articulação provocadora e interessante que McDougall faz: a experiência da psicossexualidade humana é constituída de neossexualidades. Penso que essa maneira de denominar as manifestações sexuais considera a complexidade da questão para refletirmos sobre o novo que se apresenta, e o novo sempre se apresenta ao longo da história - a criatividade humana não tem limites. Neossexualidades parece nos livrar de preconceitos frutos de nossas angústias diante do que não conhecemos. Trata-se de uma denominação que, em vez de favorecer um vértice patológico, enfatiza aquilo que ainda não é conhecido e compreendido. 7 Como bem descreve McDougall (1999), masculinidade e feminilidade são construídas ao longo do desenvolvimento com base em uma rede complexa de influências identificatórias, na qual os pais têm uma influência significativa: Acrescento que podemos seguramente propor que a realização destas duas identidades fundamentais - por exemplo, nossa identidade de gênero, assim como nos-so senso de identidade sexual -, não é de forma alguma transmitida por herança hereditária, mas pelas representações psíquicas transmitidas, em primeiro lugar, pelo discurso de nossos pais, juntamente com a importante transmissão proveniente do inconsciente biparental - ao qual, mais tarde, é adicionado o input do discurso sócio-cultural do qual os pais são uma emanação. (McDougall, 1999, p. 15) A trama identificatória constituída na vida adulta é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, que demanda muitos anos. Há, de fato, um longo percurso até nos tornarmos capazes de realização sexual genital. Caminho próprio a cada um, e extremamente plástico. A constituição da identidade sexual é, portanto, algo muitissimamente complexo, fruto de uma constelação identificatória de masculinidade e feminilidade própria a cada um. Ser é ser do próprio sexo, e existem inúmeras, únicas e infindáveis formas de ser. Cada um compõe identificações masculinas e femininas de maneira única para ser do próprio sexo. O reconhecimento das diferenças e da alteridade do outro está presente nos vínculos suficientemente saudáveis, independentemente da exterioridade na qual se apresentem. Esclareço: a composição manifesta de um casal, dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher, não acompanha nem revela a intrincada rede identificatória, predominantemente inconsciente, que está em jogo no funcionamento psíquico de uma dupla. As aparências não revelam essas complexas composições psíquicas de cada casal, constituídas por uma rede intrincada de constelações identificatórias. 8 No âmbito da plasticidade do psiquismo e das constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade, a capacidade psíquica de reconhecimento da diferença entre os sexos e da diferença entre as gerações pode estar presente em uma relação entre duas pessoas biologicamente pertencentes ao mesmo sexo. A sexualidade humana é uma psicossexualidade, sem formas fixas ou predeterminadas. Nesse sentido, podemos pensar que a sexualidade humana é imaginativa, decorrente das sensações corporais em concomitância com as múltiplas identificações provenientes do inconsciente do casal parental. As sensações corporais são o solo da imaginação da psicossexualidade humana. A identidade sexual de cada um de nós é única, como uma digital. 9 As novas constituições familiares Tendo em mente o conceito de bissexualidade psíquica e o termo "neossexualidades", volto ao tema específico do artigo, as novas constituições familiares. A tecnologia de reprodução humana pode ser convocada a fazer parte tanto em vínculos manifestamente homo ou hétero, gerando uma série de desafios para os profissionais, além dos debates sociais e éticos sobre o tema. Há também aqueles casais que optam por adotar uma criança, e, nesse contexto, a participação de um terceiro - clínica de reprodução assistida ou judiciário - tem levantado acaloradas e difíceis discussões (Vieira, 2011; Toledo, 2008). Os vínculos veiculam tanto aspectos criativos quanto outros que geram sofrimento. É característica dos vínculos humanos a concomitância e alternância tanto do amor, como do ódio, podendo predominar a amorosidade ou não, independentemente da forma pela qual se constituem. Existem vínculos nos quais predominam variáveis que geram sofrimento: o desrespeito à alteridade que pode levar a situações de violência. Perante o vértice no qual predominam vínculos que geram sofrimento, médicos e equipe são convocados a situações extremamente delicadas. Ante o vértice dos vínculos nos quais predominam o respeito às diferenças, aqueles que não geram níveis elevados de sofrimento em seus participantes, também há grandes surpresas, mas, geralmente, mais fáceis de serem recepcionadas, pois a capacidade psíquica de consideração à alteridade está presente. Esses são, então, os vínculos nos quais predominam os aspectos criativos e construtivos, independentemente da forma manifesta com a qual se apresentam, homo ou hétero. O que acontece hoje não é inédito: já acontecia na cultura greco-romana. Na Roma antiga, os grandes generais tinham em casa a esposa e os filhos, e no exercício do poder, o fiel escudeiro, além de, muitas vezes, amante. Segundo Veyne (1985, p. 43), na Roma antiga as condutas sexuais não eram classificadas como homo ou hétero, mas como passivas e ativas. A passividade era a questão importante para essa sociedade, enquanto a bissexualidade era manifesta e aceita. Com o advento do cristianismo, a sagrada família tornou-se o modelo abençoado, e as relações homo foram consideradas pecaminosas, migrando das saunas públicas para lugares escondidos e culposos. Os vínculos homoafetivos talvez sejam os mais polêmicos e alvos de uma patologização defensiva, também, infelizmente, por parte dos profissionais envolvidos. A psiquiatria, por muitos anos, considerou como uma manifestação patológica a homossexualidade, que só deixou de pertencer há bem pouco tempo às classificações psiquiátricas (Roudinesco, 2003), e a homossexualidade masculina parece ter sofrido uma maior repressão social. Por causa disso, o escritor Oscar Wilde, por exemplo, na Inglaterra vitoriana, foi preso e condenado por atentado ao pudor - flagrante indecência. Em seu conhecido livro O retrato de Dorian Gray, insinua uma relação amorosa homossexual. A prisão e o afastamento dos filhos foram experiências tão devastadoras psiquicamente para Wilde, que esse gênio da literatura morreu precocemente, incapaz de voltar a criar. Cabe um breve comentário acerca do imbróglio, também por parte dos psicanalistas nas últimas décadas, quanto à questão da homossexualidade. Bulamah e Kupermann (2013), no artigo intitulado "Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico", por meio da análise de arquivos e artigos, apresentam a discriminação sofrida por candidatos homossexuais à formação. Tanto Roudinesco (2003) como Bulamah e Kupermann (2013) citam uma carta de Freud escrita em 1935 a uma mãe americana preocupada com a homossexualidade do seu filho. Faço aqui uso da mesma citação, pois expressa de forma clara o que Freud (1951) pensava sobre a questão: A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas nada existe nela de que se deva ter vergonha, não é nem vício nem um aviltamento, e seríamos incapazes de qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos altamente respeitáveis, dos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e entre eles encontramos alguns dos homens mais grandiosos (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, e também uma crueldade. (p. 787) Como um grande e criativo pensador, Freud manteve-se aberto e ético quanto à questão da homossexualidade, mesmo considerando o momento histórico no qual viveu, imerso em uma forte normatividade heterossexual. Interessante pensar que, até onde sabemos, não há registros de discussões ou manifestações preconceituosas quanto à homossexualidade feminina. No caso clínico A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher, Freud (1920) relata que a característica da escolha do objeto de amor revela uma composição sempre dúplice de aspectos femininos e masculinos entrelaçados, satisfazendo tanto as tendências homossexuais como as heterossexuais, ou seja, a bissexualidade de base que estrutura o complexo de Édipo. Nesse relato clínico, analisa o caso de maneira isenta de qualquer julgamento normativo, como era sua característica. A relação amorosa entre mulheres (Martinez, 2011; Corrêa, 2012) escapou parcialmente dessa mão de ferro moralista; parece ter usufruído de um maior benefício social, talvez por não provocar tantas reações fóbicas, pelas próprias características da feminilidade. Até há pouco tempo, as relações entre pares do mesmo sexo biológico estavam no armário, não podiam aparecer ao sol. A pluralidade dos vínculos conjugais homo expandiu-se e ganhou visibilidade. Se há pouco tempo as relações homo eram vividas a sete chaves, com culpa e embaraço, hoje são públicas - que nossos olhos e mentes se acostumem às novas cenas amorosas, que não mais se restringem àquelas do mocinho beijando apaixonadamente a mocinha. As cenas que vejo hoje na rua não fazem parte de minha infância, como farão parte da das novas gerações. Encontramos boa amostragem fazendo um passeio na Avenida Paulista, ícone paulistano. O estranhamento inicial talvez possa ser sucedido por uma familiarização com a diversidade de manifestações amorosas a que assistimos. Uma jovem universitária comentou recentemente que quase todos os seus colegas mostravam-se disponíveis a experiências sexuais consideradas inusitadas pela geração anterior, ou, também, podemos refletir que essas experimentações sexuais não eram declaradas nas gerações passadas, permanecendo veladas. Precisamos também considerar que há hoje uma supervalorização narcísica do prazer sexual, talvez em detrimento do compromisso afetivo entre os pares, o qual implica enfrentamento das inevitáveis frustrações da convivência cotidiana. Em determinado episódio do programa de televisão (GNT) Novas famílias, dirigido por João Jardim e que aborda essas novas constituições familiares, um casal constituído por dois homens e dois filhos frutos de um processo de fertilização assistida e barriga solidária, adverte: "nossos filhos vão crescer sem estranhar o nosso amor". De fato, se os filhos são considerados uma bênção da união do casal, dentro das referências sociais ainda predominantes, a sagrada família, os pares do mesmo sexo biológico também desejam essa inclusão. Muito além disso, desejam a experiência da parentalidade, ser pai e mãe. As funções materna e paterna não estão encarceradas em um sexo biológico, são funções psíquicas e, portanto, também plásticas em sua realização. O desejo de ter um filho é carregado de fantasias inconscientes, desejo primordial, de nos vermos e nos sucedermos em nossos filhos, como escreveu a poetisa Lya Luft (1997, p. 37): "naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo, amado meu, como eles se verão futuramente quando nós formos sombra na memória". Ter filhos é uma maneira de realizar o desejo narcísico de imortalidade do eu: algo que é próprio a cada um pode ter continuidade em um filho. 10 A tecnologia de reprodução humana apresentou uma oferta que viabiliza a procriação onde isso biologicamente não era possível, gerando inéditos arranjos familiares. Pesquisas sobre as novas constituições familiares surgidas com auxílio das técnicas de reprodução assistida estão sendo feitas (Souza, 2014), e muitas outras surgirão. O exercício da parentalidade entre pares do mesmo sexo biológico não parece ser estritamente atual, provavelmente já ocorria de maneira informal e não explicitada. Lembro-me do relato de uma paciente, nascida na década de 1940, pertencente a uma família de cinco filhos: o pai tinha sempre ao seu lado um grande amigo, e os dois trabalhavam e viajavam juntos. Na memória dos seus olhos de criança, que enxergam afeto e ternura, era um tio querido e amado por todos; já adulta, percebeu que não era apenas o melhor amigo do pai, mas também seu amante. O que é significativo, marcante, é o afeto - a forma pela qual ele se manifesta não segue regras, nem formatações; ao contrário, os vínculos são polissêmicos e plásticos. A novidade parece ser a intervenção de um terceiro, o médico ou o sistema judiciário (no caso das adoções), deslocando a situação vivida informalmente na intimidade dos lares para o lugar público, demandando novos formatos legais e inúmeras discussões. A medicina tornou possível que duplas homossexuais gerem filhos com o uso da tecnologia de reprodução humana, além dos casos de adoção, abrindo uma grande e polêmica discussão ética na sociedade (Almeida, 2012; Rodriguez, 2012). No entanto, o exercício da parentalidade fora do modelo da sagrada família parece anterior ao advento das novas tecnologias de reprodução humana. A diferença é que hoje se trata de um assunto público e publicável. Diante desse caleidoscópio de constituições familiares a céu aberto, talvez o mais importante e desafiador seja não tornar patológico o desconhecido, e ter sempre em mente a plasticidade das constituições dos vínculos humanos, nos mantermos abertos à compreensão da alteridade do outro e das neossexualidades. Finalizo com um belíssimo conto de Mia Couto (2013) chamado O embondeiro que sonhava pássaros. A história é uma descrição fantástica sobre um vendedor de pássaros que encantava as crianças na rua. Os pais paulatinamente se sentiram ameaçados por aquele desconhecido que maravilhava crianças e pássaros. "Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?" Perseguido pelos moradores João Passarinheiro é inquirido pela polícia: Inquirido sobre a sua raça, respondeu: - A minha raça sou eu, João Passarinheiro. Convidado a explicar-se, acrescentou: - Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia. (p. 65) Todos nós somos únicos, e os vínculos que estabelecemos também são únicos. A compreensão das contemporâneas formas de conjugabilidade e parentalidade passa pela capacidade e disponibilidade de compreender e conhecer o novo. Por fim, quando uma humanidade inteira, um eu, é capaz de compreender outro eu, algo de extraordinário e sublime acontece, e o extraordinário torna-se comumente humano. Agradecimentos Agradeço a Claudia Perrotta, Gina Tamburrino, Lisette Weissmann e Raquele Ferrari pelas sugestões para o desenvolvimento deste artigo. NOTAS 1 O termo "conjugabilidade" surgiu como um neologismo derivado da palavra "conjugar" (Diehl, 2002). 2 Concepção contemporânea do processo mental de se tornar mãe ou pai, também um neologismo (Solis-Ponton, 2004). 3 Este artigo se abre como possibilidade de reflexão com base em duas pesquisas desenvolvidas anteriormente: Psicanálise e infertilidade: desafios contemporâneos (dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, 2003), publicada como livro em 2004 com o título de Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea. E, também, a tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (PUC-SP, 2009), publicada como livro em 2011. Além de dois artigos que tangenciam questões próximas: "A bissexualidade psíquica: livre trânsito" (2008) e "O gênero do analista: reflexão necessária? Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica" (2012). Utilizo-me também nesta reflexão do conceito de bissexualidade psíquica (Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d) e da ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall (1999, 1997 e 1991). 4 Uso essa denominação "sagrada família" como referência compartilhada por muitos e por várias gerações. 5 Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d. 6 McDougall, 1999, 1997 e 1991. 7 S. Muszkat (2014), em recente artigo, também utiliza o conceito de neossexualidades para pensar sobre a ampla gama de expressão das sexualidades, muito além dos padrões binários normativos da heterossexualidade. 8 Termo desenvolvido na tese de doutorado De mãe em filha. A transmissão da sexualidade, 2009. 9 Tema desenvolvido em minha tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (2009). 10 Para um aprofundamento remeto o leitor ao meu livro Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea, 2004. REFERÊNCIAS Almeida, M. R. (2012). Os processos subjetivos no acolhimento e na adoção de crianças por casal homoafetivo: um estudo de caso . Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Ariès, F. (1978). História social da criança e da família (D. Flasksman, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. Bion, W. R. (1991). Learning from experience. Londres: Karnac. (Trabalho original publicado em 1962). Bulamah, L. C. & Kupermann, D. (2013). Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico. Estudos da língua(gem), 11 (1),147-64. Corrêa, M. E. C. (2012). Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade . Tese de Doutorado. Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. Couto, M. (2013). Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras. Diehl, A. (2002). O homem e a nova mulher: novos padrões sexuais de conjugabilidade. In A. Wagner (Org.), Família em cena. Petrópolis, RJ: Vozes. Freud, S. (1980). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 118-216). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905) Freud, S. (1980a). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-86). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923) Freud, S. (1980b). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 303-322). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925) Freud, S. (1980c). Sexualidade feminina. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 257-282). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1931) Freud, S. (1980d). Esboço de psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 165-332). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1938) Freud, S. (1951). Letter to an American mother. American Journal of Psychiatry, 107, p. 787, Arlington. Luft, L. (1997). Secreta mirada. São Paulo: Mandarim. McDougall, J. (1991). O romance do perverso: as neo-sexualidades. In J. McDougall e cols., O divã de Procusto (D. R. Unikowski, trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. McDougall, J. (1997). As múltiplas faces de Eros. Uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana (P. H. B. Rondon, trad.). São Paulo: Martins Fontes. McDougall, J. (1999). Teoria sexual e psicanálise. In P. R. Ceccarelli (Org.), Diferenças sexuais (C. L. V. C. Cesar, trad.). São Paulo: Escuta. Martinez, A. L. M. (2011). Considerações sobre o psicodinamismo de famílias homoparentais femininas: uma visão psicanalítica . Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP. Muszkat, S. (2014). As neossexualidades e a discussão do modelo binário. Revista Brasileira de Psicanálise, 48 (4),106-114. Ogden, T. (1992). La relación edípica transicional en el desarrollo feminino. In T. Ogden, La frontera primaria de la humana experiencia. Madri: Julian Yebes. Ribeiro, M. F. R. (2003). Psicanálise e infertilidade: desafios contemporâneos . Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Unversidade Católica, São Paulo. Ribeiro, M. F. R. (2004). Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo. Ribeiro, M. F. R. (2009). De mãe em filha. A transmissão da feminilidade . Tese de Doutorado em Psicologia Clínica, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Unversidade Católica, São Paulo. Ribeiro, M. F. R. (2011). De mãe em filha. A transmissão da feminilidade. São Paulo: Escuta. Ribeiro, M. F. R. (2012). O gênero do analista: reflexão necessária?! Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica. Boletim Formação em Psicanálise, 20, 71-81, São Paulo. Ribeiro, M. F. R. (2008). Bissexualidade - livre trânsito. Mente e cérebro, 2, 60-65, São Paulo. Rodriguez, B. C. (2012). A representação parental de casais homossexuais masculinos . Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Roudinesco, E. (2003). A família em desordem (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Solis-Ponton, L. (Org.) (2004). Ser pai, ser mãe. Parentalidade: um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo. Souza, C. V. B. (2014). Casais de mesmo sexo, parentalidade e novas tecnologias reprodutivas. Dissertação de Mestrado em Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. Toledo, L. C. C. (2008). A família no discurso dos membros de famílias homoparentais . Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Veyne, Paul. (1985). A homossexualidade em Roma. In P. Ariés e A. Bejin (Orgs.), Sexualidades ocidentais 3 (L. A. Watanabe e T C. F. Stummer, trads.). São Paulo: Brasiliense. Vieira, R. S. (2011). Homoparentalidade: estudo psicanalítico sobre papéis e funções parentais em casais homossexuais com filhos . Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Zimerman, D. E. (2004). Bion da teoria à prática. Uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed. Weissmann, L. (2009). Famílias monoparentais. São Paulo: Casa do Psicólogo.
- A (in)capacidade de sonhar: a precariedade da rêverie materna na clínica da psicose
Esta é uma resenha do livro Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações de Victor de Jesus Santos Costa, publicado pela Editora Dialética em 2022. A resenha foi publicada em 2023 na Revista USP, na seção Estilos da Clínica . Autoras: Ana Fátima Aguiar e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro. A leitura de"Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações"avivou em mim o desejo de comunicar e fazer circular as ressonâncias, reflexões e os pensamentos evocados. Como analista e pesquisadora, posso dizer, inicialmente, do meu interesse particular pelo tema do livro, a rêverie, um fenômeno humano complexo, um movimento comunicativo intersubjetivo, que se manifesta a partir de um estado de mente aberto e receptivo. No que se refere às produções psicanalíticas em geral, temos aqui, neste livro, um precioso material, construído a partir de uma pesquisa bibliográfica minuciosa, muito bem fundamentada, de uma densidade teórica impressionante. Neste livro, Victor de Jesus Costa nos presenteia com uma investigação robusta sobre o papel da rêverie materna, apresentando com muita profundidade e competência o conceito em sua origem, ou seja, na perspectiva bioniana, e além disso, nos apresenta as diferentes concepções sobre a capacidade de rêverie do analista e seus aspectos clínicos a partir das formulações de importantes autores, em especial Thomas Ogden, mas também Antonino Ferro, James Grotstein, André Green, Luís Cláudio Figueiredo, Elias da Rocha Barros, entre outros. Embasado nesses autores, Costa desenvolve, com rigor científico e qualidade, as aproximações entre rêverie materna e reverie do analista, sem o intuito de igualar, ou mesmo criar fronteiras rígidas, mas sim, de promover uma maior compreensão sobre cada qual, para que possamos pensar com mais clareza as possíveis conexões entre tais experiências. Além da teoria, encontramos também a experiência clínica do autor com pacientes psicóticos, em um modelo de atendimento institucional que promove uma visão global do paciente, e que torna o material aqui apresentado ainda mais rico e relevante para se pensar a clínica da psicose de uma forma ampla. O que vemos é um trabalho sensível, ético, implicado, inovador por seu caráter multiprofissional que consegue entender o funcionamento psicótico em seus aspectos tanto individuais como sociais (incluindo a família e as instituições). Costa vai nos mostrando como o trabalho clínico com tais pacientes foi gerando nele importantes inquietações... Ele se pergunta por que o desenvolvimento psíquico de um paciente psicótico despertava angústias intensas em algumas mães? Victor se questionava se haveria algo na dinâmica mãe-filho(a) que contribuiria para o surgimento dessas angústias. Suas reflexões partem, portanto, da experiência clínica e se encaminharam para que, aos poucos se transformassem em um objeto de estudo, do qual nasce esta obra, fruto de uma pesquisa na qual observamos uma vasta e cuidadosa investigação teórica e que nos brinda com uma rica articulação com sua clínica. O ponto principal do livro é a relação intersubjetiva entre mãe-filha, as quais Victor nomeou Adelina-Daniela, evidenciando um anagrama que condensa uma de suas hipóteses clínicas. É uma conjunção que diz muito sobre os elementos dessa dinâmica intersubjetiva e que está muito bem explicitada ao longo do texto. Com base na experiência clínica vivenciada com Adelina-Daniela, Vitor procura compreender o papel da rêverie materna (ou a precariedade dela) na relação entre mãe e filho(a) na qual ambos possuem histórico de crises psicóticas. O diálogo entre a teoria e o caso clínico Adelina-Daniela é desenvolvido a cada capítulo, o que favorece ao leitor construir novos pensamentos em relação à clínica da psicose e sobre a relação mãe-filho(a) neste contexto. A leitura do livro “Mulheres que não sonharam” nos envolve e nos mostra os conceitos como o esteio que dá corpo à clínica, enquanto a experiência clínica dá vida ao campo teórico. O caso clínico de Adelina-Daniela aponta para a hipótese central do autor de que os conteúdos não sonhados pelas gerações anteriores podem contribuir para o sofrimento (bem como exigir trabalho psíquico) para a geração atual. É a partir dessa ideia que se seguem as demais reflexões e questionamentos desenvolvidos neste trabalho. O livro se mostra, desse modo, uma importante ferramenta para quem se interessa pelo tema da rêverie, bem como pela clínica da psicose. Mas é indicado também aos psicanalistas em geral que se valem de uma leitura consistente teoricamente, permeada pela sensibilidade clínica, e que aponta novos horizontes para pensarmos a psicanálise na atualidade. [...] Diversos afetos tais como tristeza, solidão, abandono eram quase que inaudíveis em meio ao impressionante e surpreendente “barulho” oriundo da violência presente em suas histórias. Por meio dessa escuta, fruto da suspensão do julgamento de realidade, tornei-me capaz de ouvir uma mulher profundamente entristecida, também uma mulher que carregava muito ódio do mundo e de todos por ter vivido uma vida tão turbulenta e solitária [...] O vínculo que se estabeleceu entre nós, durante boa parte da análise, era caracterizado por me fazer experienciar intensos afetos que, aparentemente, mostravam-se impossíveis de serem vividos por ela. (Costa, 2022, p.98) A partir de sua experiência com mãe e filhos na clínica da psicose, e com base no aprofundamento teórico do qual resultou esse livro, Victor se questiona sobre quais seriam as consequências psíquicas na mente do filho quando a mãe, ao invés de metabolizar os pensamentos perturbadores da criança, projeta nela seus próprios pensamentos. Como toda boa pesquisa, esse trabalho permite que formulações sejam feitas e abre caminhos para pensarmos a importância da criação de novas ferramentas técnicas para o manejo na clínica da psicose. Entendo que um psicanalista é sempre um pesquisador do funcionamento psíquico e suas manifestações. Cito aqui Thomas Ogden (2013), um dos autores privilegiados no livro de Victor Costa, que diz que a psicanálise que deve ser viva e criativa, e nos convida a estarmos abertos ao movimento cambiante da vida para que a análise possa se tornar, tanto para o analisando quanto para o próprio analista, um acontecimento humano. Por meio de uma psicanálise viva e fluida, Ogden nos coloca diante de uma clínica implicada, que se dá a partir de uma presença e de uma escuta receptiva na experiência analítica. É exatamente o que acompanhamos com a leitura do livro de Victor de Jesus Costa. Vemos um trabalho clínico sensível e disponível, que possibilita a abertura para uma escuta atenta e continente de processos psíquicos complexos. Pensar sobre a rêverie na clínica da psicose, tanto no que se refere à relação mãe-bebê, como também na dinâmica analista e analisando, amplia e reforça a compreensão, bem como a relevância das experiências emocionais vividas intersubjetivamente. As reflexões e problematizações teórico-clínicas levantadas por Victor culminaram em uma produção relevante, consistente, que tem muito a contribuir para o avanço do pensamento psicanalítico e para os estudos sobre a intersubjetividade na clínica psicanalítica contemporânea. Separei um pequeno trecho do livro de Costa que gostaria de apresentar aos futuros leitores de “Mulheres que não sonharam”. Nele, Victor discorre sobre os sentimentos vividos na análise de Adelina, relato que nos permite, como leitores, compreender a necessidade de que haja um estado de abertura de mente do analista para ser habitado pela desordem do analisando, disponibilizando-se a receber seus conteúdos hostis e caóticos. Neste pequeno fragmento podemos entrar em contato com as turbulências e percalços que o analista vive com a analisanda, e o quanto a capacidade de rêverie do analista, estado de mente capaz de receber tais conteúdos não representados de seu analisando, tem uma função de extrema importância para que a dupla possa, então, sonhar sonhos que não puderam ser sonhados: [...] me senti puxado para seu mundo interno, um mundo permeado de personagens difusas e hostis. Acredito que essa minha sensação pode apontar um caminho a ser pensado. Esse mundo difuso e hostil sugere a mim que a diferenciação entre o mundo externo e o interno era precária na mente da paciente e associo-o às peripécias trágicas vividas e sofridas por ela. Ao intuir que a história de vida relatada por Adelina era composta por histórias que, de tão absurdas, beiravam à incredulidade, e que contudo, eram ainda, em certa medida, críveis, comecei a deixar em suspenso se tratar-se-iam de dados de realidade, fantasia ou delírio. (Costa, 2022, p.99). Considero o recorte acima citado uma forma de ilustrar a implicação de Costa como analista e a sensibilidade com a qual ele acolhe e dá continência a conteúdos psíquicos tão desprovidos de metabolização e representação. O trabalho teórico-clínico desenvolvido pelo autor aponta para a necessidade de nos abrirmos para uma compreensão da clínica da psicose a partir de uma psicanálise ampliada, que se atenta às questões psíquicas, sociais e institucionais desses pacientes. Desse modo, o livro promove um olhar para o papel das dinâmicas intersubjetivas nos processos de constituição do psiquismo, bem como, para a relevância da intersubjetividade como um elemento central na relação analista-analisando, fundamental para as transformações (de ambos) em análise. Desse lugar implicado, podemos construir, como descrito por Ogden, um pensamento psicanalítico vivo e humano. Referências Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação. São Paulo: Escuta. Ribeiro, M. (2020). The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed. The International Journal of Psychoanalysis, 103 (6), 929-947. Doi: 10.1080/00207578.2022.2084402.
- Reflexões paradoxais sobre o envelhecer em alguns textos de Freud [1]
Este artigo foi publicado em 2024 na Revista Brasileira de Psicanálise. Autores: Pedro Vinicius de Souza Brito [2] e Marina F. R. Ribeiro [3]. Resumo: A longevidade populacional contemporânea pôs em questão as teorias que não contemplavam essa etapa da vida. Esse é o caso da psicanálise. Desde seus textos iniciais, Freud se opôs ao tratamento psicanalítico de pessoas muito idosas. Entretanto, ele próprio não deixou de exercer a psicanálise, e alguns dos seus mais importantes estudos se deram nessa fase da vida. Diante dessa contradição, os autores investigam o que pode ter influenciado esse posicionamento e observam uma série de questões sociais, fisiológicas e econômicas que marcaram a velhice de Freud. Utilizam seus textos para analisar sua percepção em relação à terceira idade e compreender como ele enfrentou as diversas questões que marcaram sua vivência nesse período. Discutem a ideia de que, ainda que Freud não indicasse a psicanálise para os idosos, as mudanças sociais do contemporâneo permitem defender e recomendar a psicanálise durante a velhice. Palavras-chave: psicanálise, psicoterapia, envelhecimento, perdas. A não recomendação da psicanálise para idosos O primeiro texto de Freud que descreve a relação da psicanálise com os idosos é “A sexualidade na etiologia das neuroses” (1898/1978). Nesse texto, Freud argumenta que a psicanálise fracassa também com as pessoas muito idosas porque, devido ao acúmulo de material nelas, o tratamento tomaria tanto tempo que, ao terminar, elas teriam chegado a um período da vida em que já não se dá valor à saúde nervosa. (p. 257) Nesse fragmento, Freud afirma que o aglomerado psíquico, analisado durante o tratamento psicanalítico, seria tão extenso que, ao chegar ao fim da análise, o paciente não conseguiria usufruir dos resultados. De certa forma, direciona para uma perspectiva de fragilidade quanto à possibilidade do idoso de enfrentar naquele momento o conteúdo das sessões psicanalíticas. Além disso, permite inferir sobre a brevidade da vida: as pessoas da terceira idade não teriam tempo suficiente para elaborar o que foi alcançado pelo tratamento psicoterápico. De acordo com Soares (2021), o posicionamento nesse texto pode ser relacionado com a época que Freud passou na Salpêtrière, na França, de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, ao frequentar as aulas do professor de neurologia Jean-Martin Charcot. Surpreendido com as explicações sobre o tratamento da histeria, Freud se debruçou sobre os trabalhos desenvolvidos por Charcot. Uma importante obra do autor com a qual ele provavelmente teve contato foi Leçons cliniques sur les maladies des vieillards et les maladies chroniques. Nesse texto, o argumento principal girava em torno da existência de patologias exclusivamente senis (por exemplo: artrite, artrose), ou seja, a partir dessa perspectiva, ao envelhecer as pessoas iriam naturalmente adquirindo determinadas enfermidades. Portanto, a velhice era sinônimo de doença. O contato de Freud com essa teoria pode ter acontecido durante a tradução do francês para o alemão das obras de Charcot sobre neuropatologia. Como lembra Saraiva Júnior (2017), essa hipótese é baseada na redação do texto “Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim” (1885/1996), no qual Freud relata: “Quando tomei conhecimento de que Charcot tencionava publicar uma nova coletânea de suas conferências, ofereci-me para fazer uma tradução alemã; graças a essa tarefa, entrei em contato pessoal mais próximo com o professor Charcot” (p. 40). Em outro trecho do relatório, Freud descreve a construção da Salpêtrière: A Salpêtrière, que foi o primeiro local que visitei, é um amplo conjunto de edifícios que, por seus prédios de dois andares dispostos em quadriláteros, assim como por seus pátios e jardins, lembra muito o Hospital Geral de Viena. Com o passar do tempo, a Salpêtrière serviu a finalidades muito diferentes, e seu nome (assim como a nossa Gewehrfabrik) provém da primeira dessas finalidades. Os edifícios foram, afinal, convertidos em lar de mulheres idosas (Hospice pour la Vieillesse (Femmes), [1813]) e proporcionam asilo a cinco mil pessoas. (p. 39) Nesse fragmento, temos uma percepção do volume de pacientes idosos que eram cuidados por Charcot e sua equipe no hospital, refletindo a importância dos escritos de Charcot sobre essa fase da vida. Ao relembrarmos a forma como Freud não indicava a psicanálise para pessoas mais velhas, percebemos a presença de critérios organicistas e fisiológicos na defesa de sua posição. De alguma maneira, ao falar da velhice, parece que Freud manteve uma ênfase no processo de degeneração do cérebro, como defendia Charcot. Em 1905, Freud apresenta o ensaio “Sobre a psicoterapia” no mesmo local onde, anos antes, discursou sobre seu texto com Joseph Breuer, Estudos sobre a histeria (1893-1895/1976). Com isso, Freud volta aonde primeiramente recebeu inúmeros questionamentos referentes ao processo psicanalítico, que estava começando a ser estruturado. Ele esclarece que, naquela primeira oportunidade, ainda não tinha muitos dos achados que permitiram desenvolver a teoria psicanalítica. Nesse segundo momento, pretende esclarecer de modo didático o que de fato está circunscrito à psicanálise. O ponto que iremos focalizar nesta comunicação diz respeito ao item 3 no texto: A idade dos doentes é relevante na seleção para o tratamento psicanalítico, na medida em que às pessoas próximas ou acima dos 50 anos, por um lado, costuma faltar a plasticidade dos processos anímicos nos quais a terapia se fia – pessoas idosas não são mais educáveis – e, por outro lado, o material a ser trabalhado prolonga a duração do tratamento até o imponderável. (Freud, 1905/1977, p. 274) Nesse fragmento, Freud reafirma a indicação que fez em 1898, de que a psicanálise não deveria ser proposta para pessoas idosas. No artigo de 1905, especifica a idade próxima ou acima de 50 anos como limítrofe para o atendimento psicanalítico. Os argumentos seriam a dificuldade em lidar com aquilo que aparecerá na análise, bem como o prolongamento do tratamento, que exigiria vários anos de acompanhamento. É interessante observar que os argumentos são muito parecidos com os do texto de 1898. Sobre as diferenças, em 1905, de maneira mais clara, Freud estipula uma idade de corte (50 anos). Além disso, se antes havia uma preocupação quanto ao fim da análise, agora ela se torna algo que se direciona para o “imponderável”. Outro ponto que merece destaque nesse fragmento é quando Freud diz que “pessoas idosas não são mais educáveis”. A primeira indagação é: o que Freud quis dizer com “educáveis”? Acreditamos que seria a capacidade do paciente de, uma vez que eventos se tornem conscientes, elaborar e aprender uma nova forma de enfrentar esses eventos. Seja este ou outro o significado da frase, ela mostra ainda a influência da visão médico-fisiológica do envelhecimento como algo degenerativo. Para debatermos a idade estipulada por Freud, devemos analisar a questão da expectativa de vida na época. De acordo com dados do Office for National Statistics (2015), do Reino Unido, entre o fim do século 19 e o começo do século 20, época na qual Freud escreveu esses textos, a expectativa de vida na Europa era de 51,5 anos para homens e 55,4 anos para mulheres. Portanto, Freud pode ter embasado sua recomendação no conhecimento da baixa expectativa de vida. Contudo, a realidade hoje é extremamente diferente. Afinal, houve ampliação da cobertura médica à população, bem como desenvolvimento de ações de prevenção e tratamento de doenças em muitos países. No caso do Brasil, por exemplo, as Tábuas Completas de Mortalidade de 2021, disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge), mostram que a expectativa de vida dos brasileiros é de 73,6 anos para homens e 80,5 anos para mulheres. Isso representa uma diferença de 22,1 anos a mais para homens e 25,1 anos a mais para mulheres em comparação aos dados da época de Freud. Esse aumento na expectativa de vida é um argumento para defender que, se antes as pessoas não teriam tempo para trabalhar com o conteúdo das suas sessões, agora, com o envelhecimento da população, o prolongamento das sessões não seria um problema. Outro ponto levantado é a idade que Freud tinha quando escreveu o texto de 1905: ele estava com quase 49 anos completos. Portanto, causa estranheza que ele não tenha recomendado a psicanálise para uma faixa etária que estava muito próxima de sua idade. King (1974) observa: O que me surpreende nos comentários de Freud é que ele se refere a pessoas da sua idade – perto ou acima dos cinquenta anos – e, no entanto, a sua própria experiência deve ter lhe mostrado que os seus processos mentais ainda eram elásticos e ele era, até certo ponto, capaz de aprender com a experiência. Talvez indique quão difícil é aceitar que nós mesmos envelhecemos, assim como outras pessoas. É importante lembrar que, mesmo vivendo até os 83 anos, Freud não alterou nem fez qualquer observação contrária à não recomendação da psicanálise para pessoas da terceira idade. O último texto em que abordou o tratamento de idosos foi “Análise terminável e interminável” (1937/1974a). Nesse texto, com 82 anos, Freud escreve: Com os pacientes que tenho em mente, porém, todos os processos mentais, relacionamentos e distribuições de força são imutáveis, fixos e rígidos. Encontrase a mesma coisa em pessoas muito idosas, em cujo caso ela é explicada como sendo devida ao que se descreve como força do hábito ou exaustão da receptividade – uma espécie de entropia psíquica. (p. 236) Como explica Soares (2021), nesse fragmento Freud enfatiza a rigidez psíquica das pessoas idosas, indicando o quanto nessa época ainda estava presente o caráter senil da velhice. A autora observa que a “entropia psíquica” seria uma forma de dizer como essas pessoas vivem dentro de um sistema de constante repetição. É interessante perceber que não houve mudança na concepção de Freud em relação aos idosos, mesmo ele já fazendo parte dessa faixa etária. No próximo tópico, abordaremos algumas das situações enfrentadas por Freud durante a velhice. Usaremos como recorte biográfico os acontecimentos na vida dele a partir dos 50 anos. Selecionamos esse número porque foi essa a idade que ele definiu como a faixa etária que não deveria passar pela terapia psicanalítica. A ideia do artigo não é narrar toda a velhice de Freud, mas mostrar a relação entre as situações vividas, aquilo que foi escrito e como ele via sua própria velhice. O passar pela velhice: o enfrentar as perdas Para começar este tópico, levantamos alguns dos escritos de Freud a partir dos 50 anos, ou seja, a partir do ano 1906. O objetivo é perceber o quanto ele teorizou durante essa fase da vida: – 1910: Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância – 1911: “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)” (o caso Schreber) – 1913: Totem e tabu – 1915: “O inconsciente” – 1917: “Luto e melancolia” – 1920: Além do princípio do prazer – 1923: O ego e o id – 1924: “Neurose e psicose” – 1927: O futuro de uma ilusão – 1930: O mal-estar na civilização – 1939: Moisés e o monoteísmo – 1940: Esboço de psicanálise Como podemos ver através desse breve levantamento, Freud teve grande parte de sua teoria desenvolvida durante a velhice, o que permite reafirmar o quanto essa fase da vida pode ser produtiva, a despeito de todas as questões individuais que devem ser enfrentadas. Para iniciarmos o tema da velhice de Freud, o primeiro fato que vamos discutir é a Primeira Guerra Mundial, que começou em 1914. Como explica Jones (1957/1989), os filhos de Freud foram para a frente de batalha e, curiosamente, a questão da morte passou a ser mais problematizada em seus escritos a partir desse período. Alguns textos que representam esse momento são “Reflexões para os tempos de guerra e morte” e “Sobre a transitoriedade”. De acordo com Peter Gay (1988/2021), a belicosidade humana esteve presente nos escritos de Freud dessa época, e termos como agressão foram ganhando cada vez mais espaço em sua teoria. Em 1917, escreve “Luto e melancolia”, obra em que mergulha nas considerações sobre as perdas enfrentadas pelas pessoas e como elas atravessam esse momento. Tanto Jones (1957/1989) quanto Gay (1988/2021), ao falarem sobre o comportamento de Freud neste ano, afirmam que ele acreditava muito em seu fim iminente. Nas palavras de Gay: “Como sempre, Freud, ao se deter sobre a morte, detinha-se sobre a sua própria” (p. 387). Esse ensaio metapsicológico pôs a morte no centro do debate em uma época em que estavam acontecendo inúmeras baixas nos exércitos. Com a derrota do exército alemão, a preocupação quanto à vida dos seus filhos fazia-o fumar de maneira compulsiva inúmeros charutos (Jones, 1957/1989). A morte se aproximou de Freud no ano de 1920. A primeira foi a de seu amigo e benfeitor da psicanálise Von Freund, devido a uma recidiva de câncer. De acordo com Gay (1988/2021), a morte do amigo fez com que Freud pensasse em sua própria morte; é importante lembrar que, nesse momento, Freud não sabia de seu câncer. Um golpe maior aconteceu apenas cinco dias após a morte do amigo: Freud perdeu a filha Sophie, grávida do terceiro filho. Ele sofre um enorme impacto com essas perdas. Em 27 de janeiro de 1920, escreve a Oskar Pfister: “Trabalho o máximo possível e me alegro que isso me impeça de pensar demais. A perda de um filho parece produzir uma grave ferida narcísica. O que se conhece como luto chegará provavelmente depois” (Meng & Freud, 1963, p. 84). Em 4 de fevereiro de 1920, também escreve a Sándor Ferenczi sobre essas perdas: A morte, embora dolorosa, não afeta minha atitude diante da vida. Estive durante anos preparado para aceitar a perda de nossos filhos, mas agora foi a vez de nossa filha. Como ateu convicto, não posso acusar ninguém. … No fundo de meu ser sinto, não obstante, uma ferida amarga, irreparável e narcísica. (Brabant et al., 2000, p. 78) Nessa carta, Freud explica de maneira clara o quanto está sofrendo devido àquela perda. Mostra que, por mais que se possa estar preparado para a morte, nunca se está de fato. Na mesma época, escreve para Eitingon: “O Além do princípio do prazer está finalmente acabado. O senhor poderá comprovar que o livro já se encontrava escrito pela metade quando Sophie ainda estava viva e saudável” (citado por Goldfarb, 1997, p. 85). Nessa obra, pela primeira vez apareceu o termo pulsão de morte e, de acordo com Max Schur, doutor que acompanhou Freud de 1929 até sua morte, esse termo pode ter aparecido pela primeira vez um mês depois dessas perdas, em uma carta enviada a Eitingon. Gay (1988/2021) reforça que o termo apareceu na correspondência de Freud uma semana depois da morte de Sophie. Nessa perspectiva, aquilo que estava acontecendo na vida de Freud exerceu influência em sua teoria (Goldfarb, 1997). Gay (1988/2021) explica que a morte da filha nunca foi superada pela família Freud, de modo que, quando acontecia de alguma pessoa do círculo próximo da família perder um filho, na carta de condolências havia uma menção a Sophie. Freud, por exemplo, passou a carregar uma foto da filha no relógio de bolso, e quando surgia o assunto, ele dizia: “Ela está aqui”, e mostrava o retrato de Sophie. Segundo Gay (1988/2021), na primavera de 1923, Freud começou a apresentar os primeiros sinais de que estaria com câncer no palato. No entanto, ele manteve em segredo sua suspeita, pois imaginava que a primeira indicação seria que suspendesse o consumo de tabaco. Escreve para Ernest Jones nesse ano: “Eu estava certo do caráter benigno do problema, mas como o senhor sabe, ninguém pode garantir o comportamento dele quando se permite que aumente ainda mais” (p. 562). Nesse trecho, podemos perceber que Freud, médico, tentava de alguma maneira tranquilizar-se quanto à gravidade do problema. Pode ser essa a razão que o conduziu à escolha de Marcus Hajek para fazer a cirurgia de remoção do tumor, porque era alguém que não estava no círculo próximo de amigos médicos – talvez, uma forma de ocultar para os outros o que estava acontecendo. A cirurgia, porém, teve várias intercorrências, fazendo com que Freud fosse levado ao hospital. Ao sair, escreveu para as pessoas suavizando o problema e até dizendo, em algumas cartas, que o consumo de tabaco estava liberado, com moderação. Em 1924, escreve para Lou Andreas-Salomé: Eis aqui uma pessoa que, em vez de trabalhar duramente até uma idade senil e então morrer sem escalas preliminares, contrai uma doença horrível na maturidade e deve submeter-se a tratamentos e cirurgias, gastar neles o dinheiro que tanto lhe custou adquirir, gerar descontentamento e depois se arrastar um longo tempo indefinido na qualidade de inválido. … Não posso me acostumar a viver como um sentenciado. (Pfeiffer, 1972, p. 139) Gay (1988/2021) explica que os médicos que trataram Freud, principalmente no início da doença, não lhe contaram da gravidade do que haviam encontrado, pois temiam as consequências disso na saúde dele. Outro fator importante era a maneira como Freud conversava com seus médicos sobre a própria morte. Em um encontro com o doutor Deutsch, pede que o ajude a “desaparecer desse mundo com decência” (p. 752), se acontecesse de ter que passar por um sofrimento prolongado. O receio era que, caso a verdade sobre a gravidade da doença fosse contada, Freud escolhesse não passar por todos os sofrimentos que passou. A última cirurgia que ele realizou se deu em 1939, totalizando aproximadamente 30 ao longo do tratamento do câncer. Foi uma operação coordenada pelo doutor Max Schur, com o radiologista Hans Pichler, na qual fizeram uma incisão lateral no rosto de Freud para alcançar a ferida suspeita. A cirurgia foi muito debilitante, impedindo-o de escrever e atender pacientes. Em 1927, acontece um dos episódios que mais marcaram a vida de Freud: a morte de seu neto Heinele, filho de Sophie. Ele escreve para um casal de amigos: “Acho esta perda muito difícil de suportar. Não acredito ter experimentado jamais uma tristeza tão grande. … Tudo perdeu o significado para mim. … Para mim, ele significava o futuro e com ele me arrebataram o futuro”. Escreve também para o amigo Binswanger: “Desde a morte de Heinele, não me interesso mais pelos meus netos, e também não encontro mais encanto algum na vida” (Fichtner, 2003, p. 185). Uma importante observação de Gay sobre esse episódio é a seguinte descrição de Freud: “Minha filha mais velha e seu marido praticamente o adotaram e se apaixonaram tão profundamente por ele de um modo que ninguém poderia ter previsto. Ele era realmente uma pessoa encantadora” (1988/2021, p. 653, grifo nosso). O ponto de reflexão é que, quando Freud escreveu esse texto, o neto ainda estava vivo. Da mesma forma, quando o pai de Freud também estava perto da morte, ele usava o pretérito para falar dele. Podemos pensar que era uma maneira de encarar e aceitar o inevitável. No ano de 1938, Freud sofre o luto pela perda de sua pátria. A saída dele de Viena envolveu uma série de relações diplomáticas estabelecidas, bem como sua persistência em não sair do país. Como relata Jones (1957/1989), foi apenas com a invasão nazista em Viena que ele aceitou a transferência. O biógrafo comenta: Em várias ocasiões de sua vida, ele aventara a possibilidade de dar esse passo [sair de Viena] e em várias outras fora convidado a dá-lo. No entanto, algo profundo de sua natureza sempre se opôs a essa decisão, e mesmo nesse momento final e crítico ele ainda se mostrava sobremaneira relutante em admiti-la. (p. 223) Vemos nessa descrição o quanto foi difícil para Freud sair de sua cidade. Podemos pensar na dor e no luto de perder a pátria, como ele mesmo teorizou em “Luto e melancolia”, em 1917. A detenção de seus filhos Anna Freud e Martin Freud pela Gestapo foi o estopim para que a dor da possibilidade de perder mais um filho fosse maior do que a dor de deixar a pátria. Quando chega a Londres, escreve para Eitingon: “O sentimento de triunfo por estar livre está fortemente misturado com o pesar, pois sempre amei imensamente a prisão de que fui solto” (Jones, 1957/1989, p. 234). Através desses escritos, percebemos o quanto a velhice de Freud foi marcada por perdas bastante significativas. Podemos observar que parte da sua produção teórica foi permeada por aquilo que estava acontecendo com ele e ao seu redor. No próximo item, abordaremos o modo como Freud enxergava a sua velhice. Freud velho: a negação da terceira idade Como dissemos anteriormente, até o momento de sua morte, Freud não mudou sua oposição em relação ao tratamento psicanalítico para idosos. No entanto, a psicanálise, como já vimos, atravessa toda a sua velhice. Segundo Gilleard (2022), Freud conseguiu atravessar vários desafios, tanto na vida pessoal quanto no desenvolvimento da teoria psicanalítica. Entretanto, a sua própria velhice foi um assunto pouco refletido por ele. Nos momentos nos quais ela aparece, está atrelada a questões de adoecimento e morte. O autor acrescenta: A velhice para Freud sempre permaneceu apenas como uma posição objetal. Para ele, a idade não era uma característica da subjetividade, nem uma experiência interior sobre a qual se poderia refletir. Freud permaneceu externo a esse debate, como se um “Freud velho” tivesse existido como uma terceira pessoa, um reconhecimento de como ele era visto, e não de como ele se sentia. (p. 334) A argumentação de Gilleard se baseia no conceito de irrealizável, discutido por Sartre e Simone de Beauvoir. Esta defende que “nosso inconsciente não conhece o que é ser velho” (De Beauvoir, 1970/1977, citada por Gilleard, 2022, p. 335). A autora prossegue dizendo que há uma profunda diferença entre reconhecer e perceber a velhice. Para ela, foi a falta dessa percepção que não permitiu a Freud explorar sua própria experiência com o envelhecer. Outra autora que se debruçou sobre essa questão foi Woodward (1991). Segundo seu levantamento da correspondência de Freud com Lou Andreas- -Salomé, quando ela tentava discutir com ele as virtudes e os ganhos da velhice, ele rapidamente rejeitava essa perspectiva. Um exemplo é a resposta que Freud escreveu quando ela o parabenizou pelo 71º aniversário. Introduziu a carta felicitando a ela e ao marido por poderem desfrutar do sol e continuou: “Mas para mim chegou o mau humor da velhice, a desilusão completa, comparável ao congelamento da lua, o resfriamento interno” (Pfeiffer, 1972, citado por Gay, 1988/2021, p. 371). Outro dado interessante apontado por Woodward (1991) é a intensa ocorrência conjunta das palavras doença e velho na obra de Freud, o que remete à influência que Charcot parece ter exercido sobre ele na conclusão da velhice como doença. Lipson (2018) também busca compreender as razões pelas quais um psicanalista não atenderia uma pessoa idosa. Para ele, as atitudes do próprio analista em relação à sua velhice são uma forma de entender como ele aborda essa temática. No caso de Freud, vimos que, em todos os momentos em que ele falou sobre a pessoa idosa e sobre a própria velhice, estavam juntas palavras que passavam o significado de fragilidade, doença e morte. Ao completar 70 anos, Freud deu uma entrevista a George Sylvester Viereck (1926/2010). A primeira pergunta foi se Freud ainda praticava a psicanálise, e a resposta foi: “Certamente. Neste momento estou trabalhando em um caso muito difícil, tentando desatar conflitos psíquicos de um paciente novo interessante”. Portanto, o próprio posicionamento de Freud permite questionar como por um lado há impossibilidade de atender um paciente idoso, mas por outro é permitido ser um psicanalista idoso. Nessa entrevista, vários temas são discutidos, entre eles a velhice. Em determinado momento, Freud comenta: “A velhice, com seus manifestos incômodos, chega para todos. Atinge um homem aqui e outro ali. Seus golpes sempre atingem um lugar vital e a vitória final pertence inevitavelmente ao Verme Vencedor”. Sua fala parece bastante carregada com “o peso” da velhice, ou seja, com as mudanças intrínsecas na vida de cada pessoa, que deverão ser, de alguma forma, enfrentadas. Outra característica é a presença da morte no discurso sobre a velhice, dando a entender que essa fase da vida seria simplesmente um esperar que a morte chegue. A luta contra o câncer também esteve presente na conversa: “Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção”. Aqui ele expõe as dificuldades advindas do tratamento do câncer e das várias cirurgias feitas. A cada nova intervenção, aumentava a dificuldade em fazer as atividades mais habituais, como comer, falar e beber, e principalmente realizar atendimentos. Mais adiante na entrevista, quando questionado se gostaria de voltar à vida de outra forma, Freud fala sobre a morte: O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo. Na sua origem a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto. Nesse trecho, Freud faz uma análise muito próxima daquilo que escreveu em Além do princípio do prazer, em que conceitua a pulsão de morte. Novamente vemos que a questão da morte é muito mais elaborada do que a do envelhecimento. É interessante pensar que a questão do suicídio foi algo que acompanhou Freud. Lembremos o já mencionado pedido para que os médicos o ajudassem a desaparecer desse mundo com decência. Podemos refletir sobre as complicações e desconfortos que Freud sentia em decorrência das diversas cirurgias pelas quais passou. Podemos pensar também em seu receio de se tornar alguém sem forças, sem vontade, sentindo imenso desconforto, impedido de realizar atividades de forma independente, ou seja, “aquilo” que absorveu de sua experiência com Charcot: a degeneração do ser na velhice Ao completar 77 anos, Freud escreve a Jones: Com as pessoas velhas, devemos ficar contentes quando a balança se equilibra entre a inevitável necessidade de descanso final e o desejo de aproveitar ainda um pouco do amor e da amizade dos que lhe são próximos. Creio ter descoberto que essa necessidade de repouso não é algo elementar e primário, mas expressa o desejo de se livrar de um sentimento de insuficiência em relação a detalhes dos mais significativos da existência. (Jones, 1957, citado por Goldfarb, 1997, p. 81) Nesse trecho da carta, Freud parece ter certos momentos nos quais vislumbra algum lado positivo no envelhecimento, refletindo sobre a importância de apreciar determinadas situações da vida. Uma abordagem próxima a essa visão alternativa àquela que apenas vislumbra a degeneração do ser é a carta escrita por Freud em 1936, aos 80 anos, “Um distúrbio de memória na Acrópole”. Nesse texto, ele conta sobre uma viagem de férias cujo destino mudou para Atenas. Ao chegar à cidade, Freud exclama: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!” (1936/1987, p. 244). E passa a explicar o efeito de ver algo que, até então, era apenas falado e explicado, como algo que talvez fosse revisitado. Na conclusão da carta, diz: “E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho que ter paciência e não posso viajar mais” (p. 247). Nesse fragmento, podemos apontar, de um lado, a noção de debilidade que Freud tinha em relação à velhice, pelo fato de não conseguir mais viajar; de outro, o quanto as memórias continuam vivas na terceira idade e como, através da maturidade e da paciência que os anos fornecem, permitem revisitar o que aconteceu e refletir sobre as percepções e os sentimentos que envolvem uma lembrança. Para auxiliar na argumentação da entrada do idoso na clínica psicanalítica, podemos lembrar uma das primeiras lições de Freud (1915/1974b): o inconsciente é atemporal. Ou seja, dizer que um idoso não deveria ser tratado pela psicanálise devido à sua idade é um argumento que questiona esse princípio. No texto sobre a viagem a Atenas, o trecho destacado mostrou que as lembranças continuam vivas durante a velhice, e o passar dos anos fornece mais subsídios para interpretar o que se viveu. Conclusão Conforme as pessoas envelhecem, cada vez mais as teorias precisam acompanhar esse movimento. Diante de todo esse panorama, tentamos discutir, ao longo do trabalho, como a psicanálise é uma ferramenta que pode ser implementada no tratamento de idosos. Como observamos, o impedimento defendido por Freud pode ser interpretado dentro de seu contexto de aprendizado sobre o envelhecimento: a visão degenerativa do cérebro defendida por Charcot e a baixa expectativa de vida na Europa quando ele escreve os textos de 1898 e 1905. O contexto histórico no qual Freud poderia ter se baseado para postular que a psicanálise não fosse aplicada aos idosos mudou. Por essa razão, e por entender que a existência do psicanalista idoso [4] permite a coexistência do paciente idoso com a atemporalidade do inconsciente, buscamos estudar o paradoxo de como o envelhecimento esteve na obra de Freud e como ele viveu essa fase da vida. Outro ponto importante é pensar na dualidade que Freud viveu entre aceitar e não aceitar o envelhecimento. Do lado profissional, o passar dos anos contribuiu para um amadurecimento teórico e o surgimento de textos imortais. Do lado pessoal, as perdas que marcaram sua velhice, o câncer e as guerras contribuíram, aparentemente, para reforçar a perspectiva da degeneração fisiológica e psíquica ocasionada pela velhice. O aumento da expectativa de vida fortalece a importância da escuta psicanalítica para pessoas idosas. Além disso, a genialidade dos textos de Freud continua atravessando gerações e sendo essencial também para auxiliar no atendimento e na reflexão sobre a velhice. 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Aging and its discontents: Freud and other fictions. Indiana University Press. Notas 1 Trabalho derivado da dissertação de mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós- -graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). 2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). 3 Professora doutora associada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). 4 Um ponto interessante é observar o elevado número de pessoas com mais de 60 anos que exercem a psicanálise e a importante contribuição teórica e prática de sua clínica para o desenvolvimento da área.
- Sobre a androginia da mente: bissexualidade psíquica e funcionamento mental [1]
Este artigo foi publicado em 2023 no Jornal de Psicanálise . Autores: Gabriela Lara da Cruz Lucas Macedo [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3] Resumo: Este artigo busca aproximar o conceito de bissexualidade psíquica desenvolvido por Freud das noções de continente-contido, centrais à Teoria do pensar do psicanalista inglês Wilfred Bion. A partir dos desenvolvimentos teóricos de ambos os autores, defendemos a existência de uma mente andrógina que resguarda um funcionamento bissexual, isto é, uma dialética constante entre masculinidade↔feminilidade em uma espécie de coito fértil que dá origem tanto aos nossos pensamentos-filhos como, também, ao acoplamento entre as mentes que se assemelharia à metáfora de um casal em cópula. As noções de masculinidade e feminilidade, resguardadas no conceito de bissexualidade psíquica, transcendem a esfera anatômica, alcançando o estatuto de posições psíquicas que dão sinais de uma mente edípica primordial. Palavras-chave: continente/contido, masculinidade/feminilidade, bissexualidade psíquica. nascer bissexual é tão normal quanto nascer com dois olhos; um homem ou uma mulher sem o elemento da bissexualidade seria tão desumano quanto um ciclope. (Freud & Bullitt, 1930/1967, p. 64) A verdade não está nos objetos, mas na relação entre eles. (Bion, citado por Bléandonu, 1993) Em seus diálogos com Fliess, entre os anos de 1898 e 1904, [4] Freud desenvolveu um de seus conceitos mais polêmicos e inovadores, o de bissexualidade psíquica. Freud atribui a essa noção enorme importância, colocando- -a como premissa fundamental para entender os mistérios da sexualidade humana. Para o psicanalista, não nascemos homens nem mulheres, mas com “uma predisposição originalmente bissexual” (Freud, 1905/2020, p. 28), apenas no progresso de nossa pulsionalidade, ao assumir nosso próprio sexo em suas infinitas possibilidades, considerando todos os conflitos inerentes a esse complexo processo que se ancora sobretudo na diferença dos sexos, é que alcançamos uma certa conformidade em nossa identidade sexual. Freud defenderá uma bissexualidade constitucional que será o pavimento do complexo de Édipo, o solo no qual se sustenta e se desenrola a trama edípica. Nesse sentido, lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade inerente a todos os seres humanos. A bissexualidade, para o psicanalista, se entrelaça a duas correntes indissociáveis: a feminilidade e a masculinidade. Ambas constituem a subjetividade de maneira a dar contornos singulares a nossa identidade – o barro do qual somos feitos. No entanto, Freud, no decorrer de toda a sua obra, compartilha com seus leitores sua dificuldade em dar contornos às noções de masculinidade e de feminilidade ao apontar, por exemplo, a complexidade dessas categorias que seriam “confusas” (1905/2020), “de conteúdo incerto” (1925/2010a), que a “psicanálise não pode esclarecer” (1920/2014), e que, por fim, atrelá- -las à atividade e à passividade “é pouco” (1920/2014). A partir das declarações freudianas sobre a impossibilidade de chegar ao cerne dessas dimensões, podemos afirmar que Freud nunca equiparou feminino e masculino à anatomia, pelo contrário elevou essas categorias a qualidades mentais ou posições psíquicas. Ao nosso ver, o psicanalista já intuía que restringi-las a uma lógica binária, castrado/não-castrado, é perder a relação dialética entre masculinidade e feminilidade (David, 1975/2018). Freud, apesar dos desafios que enfrentou no que concerne ao alcance de um corpus teórico harmônico que abrigasse a bissexualidade, nunca abandonou esse conceito, chegando a afirmar que ele é “fator decisivo” para a compreensão das manifestações sexuais (1905/2020, p. 140). No entanto, não deixou de revelar seu descontentamento por não conseguir extrair, dessa importante noção, todo o seu potencial. Os desafios freudianos, primeiramente, dizem respeito ao “continente negro”, ao mistério e assombro do psicanalista diante da psicossexualidade feminina, e, posteriormente, como ele revela em “O mal-estar na civilização” (1930/2010), a impossibilidade de articular a teoria da bissexualidade à das pulsões. Se Freud, com esse conceito em mãos, ficou em uma espécie de encruzilhada, ele deixou, em contrapartida, aberturas para outros psicanalistas articularem: 1) Bissexualidade e gênero (Green, 1973/1988; McDougall, 1997; Godfrind, 1997; Elise, 2019). 2) Bissexualidade e criatividade (McDougall, 1997; Elise, 2019). 3) Bissexualidade e funcionamento mental (Nosek, 1996; Sandler, 1999) – o que revela a fertilidade desse conceito. Neste artigo, damos preferência a uma faceta menos explorada do conceito de bissexualidade, a sua relação com o funcionamento mental. Ao nosso ver, a bissexualidade psíquica respalda nossa hipótese de uma mente andrógina, ideia que encontra seus alicerces na Teoria do pensar do psicanalista inglês Wilfred Bion (1962/1991). Acreditamos que os gérmens da teoria bioniana, inauguradora de um novo modo de pensar a psicanálise e a clínica, encontram-se na teoria freudiana da bissexualidade psíquica. Nesse sentido, não há Bion sem Freud e, do mesmo modo, quando mergulhamos nas ideias bionianas, não encontramos mais um Freud sem o clarão que Bion coloca sobre os textos fundadores da psicanálise. A ideia freudiana de que masculinidade e feminilidade transcendem a anatomia e são, portanto, elementos psíquicos parece ser o embrião das ideias de Bion a respeito de da noção de continente-contido, assinalados como ♀♂, postos um ao lado do outro de modo que podemos inferir uma relação dialógica que está expressa na afirmação: “A verdade não está nos objetos, mas na relação entre eles” (Bion, citado por Bléandonu, 1993). Acreditamos que foi Bion que possibilitou dar novos contornos à dimensão da bissexualidade psíquica, pois ele levou as noções de masculinidade e feminilidade às últimas consequências, tornando-as dimensões abstratas que nos dão sinais de uma mente edípica primordial. [5] O pensamento, dessa perspectiva, é fruto de um coito fértil entre continente↔contido, ♀↔♂, masculinidade↔feminilidade, revelando uma mente andrógina com um funcionamento (bi)sexual. A noção de continente e contido, central à teoria do pensar e expressa em uma linguagem matemática, biológica e poética (Sandler, 2021), resguarda a condição bissexual da mente. Isso porque, representados como ♀♂, continente-contido nos levam diretamente para a condição natural da mente, sua estruturação edípica e sua capacidade, no encontro fértil entre feminilidade e masculinidade, de gerar a vida psíquica ou, podemos dizer, de gerar humanidade – o que nos transportaria para o além do desumano, representado, por Freud e Bullitt, pelo gigante monstruoso de um olho só (1930/1967). As raízes da teoria do pensar bioniana estariam na noção kleiniana de identificação projetiva (1946), considerada, já por Melanie Klein, não só como um mecanismo de defesa, mas como possibilitadora da comunicação entre as mentes e, portanto, da instauração e manutenção dos vínculos. É importante frisar que Bion (1959/1994a) estenderá esse funcionamento primitivo à relação analítica, isto é, dessa marca originária, marcada pela dependência, percebemos a necessidade vital de duas mentes para a expansão da vida psíquica no início e reinícios de nossa existência – seja no colo da mãe ou no divã do analista. Em O aprender com a experiência (1962/1991), Bion nos alerta que aquilo que denominamos como pensamento, foi, em sua origem, a identificação projetiva. No entanto, na teoria bioniana, o pensamento transcende a lógica racional, aproxima-se do sonhar e abarca a experiência emocional que, por ser perturbadora, exige e engaja o pensamento (Ogden, 2005/2010). Além de explicitar a origem do pensamento, o que o mobiliza e sua natureza, Bion busca compreender, sobretudo, como pensamos, é nesse ponto que a teoria do continente-contido abarca os processos envolvidos nessa capacidade humana – a mais recente da espécie e, talvez, a mais surpreendente. Nessa etapa de sua obra, Bion tece considerações didáticas sobre sua teoria a respeito das noções continente-contido e como ambas se relacionam, evidenciando que há uma relação dialética entre elas. De acordo com o psicanalista, essa teoria expressa a relação primeira e arcaica com a mãe, no que tange aos objetos parciais, por isso mesmo Bion enfatiza o par “boca-seio” [6] que resguardaria essa dimensão ainda inicial e primitiva – esse par tem suas origens na noção kleiniana que aponta o seio como fonte básica de gratificação e frustração. Será do encontro entre seio e boca, ou seja, entre mãe e bebê, que o bebê poderá introjetar o que Bion chama de dispositivo ♀♂. Esse dispositivo se conecta a outros conceitos cruciais na obra de Bion, tais como a função- -alfa que opera, concomitantemente, às noções de continente-contido. A função-alfa, por sua vez, possibilita a formação e o uso dos pensamentos oníricos de maneira a transformar os elementos-beta, representantes da brutalidade da experiência emocional, culminando, então, na criação do sentido, isto é, em uma linguagem que dê conta da experiência emocional. Desse modo, ao mamar o leite, o bebê mama seu aparato de pensar ou poderíamos dizer que o pequeno cientista introjeta seu “método” de pensar, de sonhar, enfim de transformar a brutalidade da vida emocional em sentido. O bebê empreende uma busca epistemológica, sua busca por conhecer a mente da mãe: “o bebê introjeta a atividade de dois indivíduos que descrevo, de modo a nele se instalar o dispositivo ♀♂ como parte do aparelho de função-alfa.” (Bion, 1962/1991, p. 125). Esses seriam os primeiros passos de Bion no desenvolvimento de seu conceito de “continente-contido”, conceito que se relaciona à urgência psíquica de processar e elaborar a experiência emocional. Poderíamos dizer que se, inicialmente, continente-contido seria uma forma de relação expressa pela boca e pelo bico do seio, caminhamos para o desenvolvimento dessa dupla para uma complexa teoria que se inter-relaciona com vários outros conceitos fundamentais da obra Bion, sobretudo à função-alfa. É bonito observar que Bion põe lado a lado a dimensão emocional e o conhecer, revelando que não se fala de uma capacidade cognitiva esvaziada de sentimentos, pelo contrário estamos no terreno da experiência emocional. Desse modo, é no encontro, atravessado pelas emoções, entre a mãe e seu bebê, que se origina a mente ou, em uma concepção bioniana, poderíamos equipará-la ao próprio aparelho para pensar, que, por sua vez, pode promover a expansão da mente. Não sem desafios, uma vez que Bion aponta a capacidade de pensar atrelada à vivência emocional, isto é, ao despertar do amor e do ódio, por isso mesmo, quando conjugados ou em um movimento de impregnação, podem levar ao crescimento, mas também à destrutividade, à ruptura da própria capacidade de pensar. Mais especificamente, em Uma memória do futuro (Bion, 1975), o psicanalista se refere à mente como um peso muito grande: “A experiência que ainda não chegou a uma conclusão é se o animal humano vai sobreviver a uma mente enxertada em seu equipamento já existente. Você acha que pode aguentar um pouco mais?”. Se respirar e digerir são sucessos bem- -vindos, pensar é a conquista mais recente de nossa espécie, sobre isso nos alerta ironicamente Bion em uma de suas palestras em São Paulo: “então um alegre dinossauro, de repente começou a se transformar em um mamífero, e então o pobre mamífero começou a desenvolver uma mente” (Bion, 1978/2020, p. 152). Pobres mamíferos e pobres de nós, analistas, – esses coitados (Freud, 1937/2006) –, que têm de se haver com a mente humana. Nossos pensamentos seriam, de acordo com Bion, “obras-primas” (1978/202, p. 152), no entanto, como qualquer obra de arte subversiva, elas incomodam. Bion ainda aproxima os nossos pensamentos aos nossos filhos, analogia que também nos remete ao desafio e à ambivalência: pois não seriam os filhos que nos retiram amorosa e dolorosamente de nossos lugares narcísicos? Se os pensamentos são nossos filhos e, portanto, nos alerta Bion, devemos estar capacitados para cuidar e protegê-los, poderíamos pensar que o psicanalista britânico infere que o pensar é fruto de uma fertilidade mental, isto é, de uma mente andrógina – poderíamos, então, nos perguntar: seria o casamento entre ♀ e ♂ que aproximaria a (bi)sexualidade e o pensamento? Como uma mãe que carrega em seu ventre um feto em crescimento e, portanto, do mesmo modo que seu útero está em constante expansão também está sua mente que se abre a fim de criar espaço para chegada de uma nova vida e, claro, o bebê que se prepara para buscar/conter o seio, a mente da mãe e, portanto, sua existência psíquica inexoravelmente edípica, pois há três elementos imprescindíveis à constituição da humanidade: o bebê, o seio e a mente da mãe. Desse modo, Chuster et al. (2019) são categóricos ao afirmar que “não pensamos que exista o humano fora do mental, e o mental é sinônimo de edípico. O pré-edípico não é humano” (p. 57) – o casamento edípico, em termos abstratos, é o movimento da vida mental e dos encontros humanos. A espera paciente de uma mãe por um filho e de um filho por sua mãe implica a abertura ao novo e ao mistério. Do mesmo modo, no que diz respeito ao conhecimento e sua evolução, Bion discorre sobre o místico ou gênio (1970/2007) e o desmantelamento do que Bion chamou de Establishment, nos ensinando que a teoria é fértil quando revela um movimento de abertura ao novo. Essa abertura, essa recepção do novo, implica em um mergulho na dimensão do desconhecido, o que é a própria essência do movimento de ♀♂, isto é, do próprio pensamento que, imbuído de coragem, vai em direção ao mistério. Aqui estaria o que Bion chamou de capacidade negativa (Bion, 1977/1989), conceito que evoca a capacidade de tolerar frustração atrelada ao pensamento como potencialidade. Nas palavras de Chuster, enfrentar a tensão psíquica só é possível por intermédio de uma capacidade negativa, “o que significa utilizar mais a intuição ou tolerar o tempo cego de observação cuidadosa até o ponto que essa pode ligar-se a um conceito que dará espaço para o desenvolvimento da observação” (grifos no original, 2022). Nesse sentido, a capacidade humana de penetrar e ser penetrado, ou seja, de exercer a masculinidade e a feminilidade, ganha um estatuto de suprema potência: o do pensamento ou, em outras palavras, do próprio funcionamento mental. Todos somos, assim, psiquicamente portadores de vaginas e pênis, tal qual nos diz Sandler (2021, pp. 211-212) ao defender a natureza bissexual da mente expressa pela dinâmica ♀♂. Em texto anterior, Sandler (1999) defende que feminilidade e masculinidade estão em constante interação e seriam “funções da personalidade” (p. 459). Há, de acordo com o autor, um exercício da feminilidade↔masculinidade, tanto no que diz respeito à dimensão intrapsíquica como também na relação analítica. Para o psicanalista brasileiro, o conceito de bissexualidade psíquica revela uma das observações binoculares de Freud. Se entendermos a ideia de visão binocular de Bion como a capacidade de confrontar e correlacionar distintos vértices, de integrar e não recorrer à clivagem, de tolerar paradoxos e não se apressar a resolvê-los, estamos na direção da complexidade dos processos mentais que nos ensina a compreender os fenômenos psíquicos como coexistentes em uma constante relação e oscilação – a parte psicótica e não psicótica da personalidade, o consciente e o inconsciente, o infantil e o adulto e, claro, a masculinidade e a feminilidade. Sendo assim, esse constante movimento entre ♀↔♂, feminilidade↔masculinidade, representa uma permanente movimentação entre polos e não uma clivagem. Sandler (1999, p. 468) acredita que essa oscilação está mais próxima a um monismo, ao uno – a “O”, ou seja, o marco zero, a origem ou o incognoscível, nas palavras de Bion. A complexidade do conceito de bissexualidade, quando iluminado pelo modo de pensar bioniano, parece transcender a ideia de binariedade e se aproximar da representação de um “casal criando” (Sandler, 1999, p. 468), férteis e enamorados – como as criaturas de Platão no mito do Andrógino quando se encontram em cópula. Mas, afinal de contas, o que almejaria esse encontro amoroso? Esse movimento da mente expresso na interpenetrabilidade entre ♀♂? De acordo com Bion, o que é evidenciado em sua releitura original do mito de Édipo (1957/1994b), essa busca se ancora na mais vital necessidade humana: a mente se lança em busca da Verdade. A mente, nesse sentido, se alimenta da Verdade emocional: “um desenvolvimento mental parece depender de verdade do mesmo modo que o organismo vivo depende de alimento” (Bion, 1965/2004). Bion, ao resgatar o Édipo, leva-o à saturação, a sexualidade estaria à serviço da busca da Verdade. Por esse vértice, a sexualidade é periférica. No entanto, olhemos mais perto: é Freud em Bion, Bion em Freud! Todo o olhar freudiano para a histeria e sua etiologia sempre sexual é uma forma de alcançar a verdade. Há, na teoria bioniana, uma radicalização ou uma abstração suprema das ideias edipianas, pois Bion propõe uma mente edípica tridimensional, já que onde parecem existir dois, há três: a mente da mãe, o bebê e o seio (Chuster, 2022). Em uma perspectiva bioniana, pensar e todo e qualquer processo criativo é edípico e, portanto, sexual, no mais o objetivo analítico é a criação de si próprio, isto é, o desafio é tornar-se mais si mesmo – sendo assim, não teríamos aqui sempre presente um triângulo edípico? Uma cópula e um nascimento? A teria bioniana derrama sexualidade por vias abstratas, mais próximas aos fenômenos mentais, afinal de contas a mente não estaria no terreno da abstração? Nesse ponto, vale introduzirmos as ideias de Leopold Nosek (1996) que se propõe a pensar a intimidade entre sexualidade e pensamento, isto é, entre bissexualidade e continente-contido. Nosek, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em um texto intitulado “Pensamento e sexualidade” (1996), resgata o texto de André Green intitulado Has sexuality anything to do with psychoanalysis? (1995) e, de maneira provocativa, Nosek se pergunta, por exemplo, se o retorno bioniano à primeira tópica freudiana em seu resgate da teoria do sonho e do sonhar que o levará à equação pensamento-sonho e se a abstração bioniana expressa em uma “poética econômica e emblemática” (1996, p. 210) dos símbolos ♀♂ representariam uma dessexualização e uma descorporização da teoria, seguem seus questionamentos: “Abstração cientifizante ou susto? Seria Bion um valoroso soldado mais corajoso na guerra que no assombro da sexualidade?” (1996, p. 210). Na visão de Nosek, “não há estados dessexualizados de mente” (1996, p. 201) de tal modo que a personalidade se organiza tal qual o sintoma, portanto, abarca a sexualidade. No entanto, na teoria bioniana, segundo o autor, o “caráter sexual adquire um caráter minimalista, reduzindo-se a um elemento poético ideogramático: masculino e feminino (♂ e ♀)” (1996, p. 201). Para o psicanalista, continente-contido ganham um estatuto relacionado à dimensão pré-genital, o par boca-seio, que afasta, segundo o autor, a teoria bioniana da complexidade do encontro genital, isto é, da genitalidade. Seria, por assim dizer, um recurso defensivo. Acreditamos, porém, que, ao aproximar o par boca-seio de uma pré- -genitalidade, o intuito bioniano seja o de resguardar, nessa dupla de objetos parciais, o berço da vida mental, a nascente do psiquismo, e da sexualidade. Nesse sentido, na relação mãe e bebê está os primórdios do psiquismo e a base sobre a qual se assenta todas as nossas futuras trocas genitais, uma vez que, no terreno íntimo de carinhos e carícias com a mãe, ancora-se o nosso desenvolvimento sexual e nossa abertura para a alteridade. Desse modo, perguntamo-nos: será que Bion também não tinha a devida clareza do potencial do encontro desse casal originário? E de que, aqui, estaria o berço dos nossos futuros encontros sensuais, sexuais e que almejam a vivência de uma sexualidade plena ou de uma genitalidade? Além da emergência da própria subjetividade, expressa na própria noção de genitalidade? Acreditamos que sim. As provocações de Nosek – como respostas ao furor causado pelo texto de Green (1995) que denuncia uma psicanálise que prescinde de sua nascente, a sexualidade – vão além e nos brindam com reflexões valiosas, expressas em um retorno a Freud e, portanto, à dimensão da sexualidade. O psicanalista discorre sobre a intimidade entre bissexualidade psíquica e a teoria do pensar ou, ainda, sobre a bissexualidade como função analítica. O movimento de aproximar o conceito freudiano de bissexualidade da teoria de pensar de Bion acaba por colocar em primeiro plano a sexualidade no movimento que dá origem ao pensamento e, consequentemente, resgatar o erotismo de nossas mentes e de nossos encontros – na vida e com nossos pacientes. Nessa direção, Nosek infere que nos aproximamos de terreno perigoso: a sexualidade na sala de análise. O psicanalista, então, faz uma série de perguntas que caminham no seguinte sentido: o que fazer com a sexualidade inevitável do analista? É possível colocar a sexualidade para fora da sala de análise? O perigo, nos adverte, é reduzir o fazer analítico à bondade, o que pode carregar uma série de defesas relativas à necessidade premente de elaborar nosso modo de se relacionar sexualmente com nossos pacientes – enfim, a resistência ao encontro entre duas genitalidades. Parece, assim, que a clínica nos exige criatividade, capacidade de transitar na multiplicidade das posições sexuais que uma relação a dois possibilita, em outras palavras ou, melhor, nas palavras de Nosek: “nossa formação deveria permitir não somente uma sexualidade, como também um polimorfismo” (1996, p. 213). É necessário coragem para encarar nossas correntes homossexuais e heterossexuais ou habitar estados sexuais de mente, muitas vezes, inexplorados. E, portanto, fala-se aqui de capacidade de lidar e perlaborar nossa própria bissexualidade: “nesse movimento de subjetividades, estão presentes o intercâmbio de papéis e a bissexualidade tal como definida por Freud. É bastante sugestiva a imagem de quem em cada relação estão presentes no mínimo quatro participantes” (1996, p. 214), mais adiante, “note-se como é fundamental a oscilação da posição na função analítica. Há no caso o início da elaboração do Édipo invertido. Bissexualidade necessária para o pleno uso da potência” (1996, p. 219). Nesse sentido, Nosek segue, em seu texto, em uma tentativa de aproximar as ideias bionianas de conceitos freudianos, sobretudo da bissexualidade e da psicossexualidade, a fim de que possamos vivenciar a “interação fértil da genitalidade” (1996, p. 2015), ampliando a noção de genitalidade – o que já é uma proposta freudiana – para além da “concretude da ação sexual” (1996, p. 2015), movimento fundamental em prol da ética da psicanálise. Do contrário, estamos no terreno da doença, da sexualidade em ato, fenômeno psicótico, ou do terror do encontro das subjetividades que expande a humanidade: Vou definir masculino-feminino, continente-contido em seu aspecto genital como o movimento de uma subjetividade lançando-se sobre outra, perdendo nesta movimentação sua identidade, tornando-se fundida à outra e retornando a si, prenhe de significado. Nesse movimento, a urgência da aquisição de sentido (que é a própria vida psíquica) se mistura com a urgência ou desejo de doação de sentido. Considerem-se os riscos de investimento libidinal, o medo de perder-se de si, do não retorno etc. (Nosek, 1996, p. 214) Parece, assim, que a proposta que encontramos em Nosek caminha em duas direções: 1) um diálogo entre a teoria da psicossexualidade e as concepções bionianas, de modo que possamos compreender que o que se impõe na ideia de continente-contido é o próprio intercurso sexual; 2) a prática analítica livre e ética, de maneira que o analista possa expressar sua sexualidade e permitir que o paciente também o faça, impedindo conluios psicóticos que não abrem espaço para a emergência do sentido ou, em uma linguagem freudiana, para a representação. É imprescindível que nós, analistas, possamos, em nossas análises e com nossos analisandos, elaborar nossa bissexualidade e reconhecer o prazer que habita nosso modo se ser, sempre sexual, pois há gozo em sermos “acolhedores, férteis, penetrantes” (1996, p. 220). Cada ser sexual propõe uma forma de se relacionar e cada dupla encontra sua maneira de se vincular; dessa cópula de mentes, nascem bebês que muito exigem da dupla: cuidar, proteger, compreender, transformar – “Quantos filhos se geram numa análise? E depois de seu surgimento é por vezes preciso uma existência para desenvolvê-los” (Nosek, 1996, p. 216). De modo semelhante, Antônio Sapienza e Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho (1997), também psicanalistas em busca de compreender a proximidade entre sexualidade e pensamento, abordam a intimidade sexual entre analista e analisando, para isso tecem considerações sobre a dupla boca-seio e sobre o casal analítico: A disponibilidade para a interpenetração e intensa complementaridade exporá o casal analítico à mútua aprendizagem com dor mental. Dessa experiência emocional emanam conhecimentos e intuição analiticamente bem equilibrada, que dão conforto genuíno ao existir. Essa é a permanente aposta que o par analítico renova a cada sessão e que Bion denomina Ato de Fé: ampla entrega e interdependência dos parceiros, sem perder os referenciais de funções diferentes, com vantagens mútuas que favorecerão sanidade e maturação mental para ambos. Evoca o funcionamento de cópula sexual, onde as duas partes em conjunção obtêm satisfação e realização de modo compartilhado: a) ao sugar o seio o bebê obtém alimento, prazer e amor, ao mesmo tempo que colabora nas gratificações da mãe em exercer e ampliar suas funções; b) o mesmo acontece no coito amoroso e na união ardente homem e a mulher (Junqueira Filho & Sapienza, 1997, p. 188) Assim como Nosek, a dupla de psicanalistas acredita, ancorados no pensamento bioniano, que, na análise, a verdadeira fome do casal analítico deva ser por sentido, sobretudo, pela transformação do “mar sensorial” da sexualidade concreta em “terra firme de representações emocionais” (Junqueira Filho & Sapienza, 1997, p. 195). Pensamos que o caminho inverso também deve ser encorajado a ser percorrido em uma análise, isto é, se um casal analítico pode se enlaçar, gozar do encontro de duas subjetividades, o paciente pode vir a desfrutar de um pleno uso de sua potência sexual na vida – “da terra firme de representações emocionais” para um “mar sensorial”. De algum modo, acreditamos que, quando a análise é um coito fértil capaz de produzir, procriar e parir, estamos diante de uma experiência obstétrica que permite ao paciente tornar-se mais si mesmo, ou seja, exercitar mais a sua potencialidade diante da vida; nossos analisandos encontram, assim, maneiras criativas de se relacionar sexualmente, afetiva e amorosamente. Da mesma maneira, quando não há em análise um intercurso fértil – ou, em outras palavras, quando um integrante da dupla pode se apresentar agradável demais para que não haja uma relação genuína, erótico demais para intimidar a capacidade de pensar da dupla, racional demais para não se entregar à turbulência de um encontro – no geral a vivência do ato sexual é da ordem do pavor: penetrar ou ser penetrado é destruir/ser destruído, invadir/ser invadido; aqui a lógica inconsciente é matar ou morrer. Talvez, o paradoxo mais temido da psicanálise seja o que envolve sexo carnal e sexualidade enquanto ato psíquico, pois sexo e sexualidade são indissolúveis, mas inconfundíveis. A confusão se dá, por exemplo, nas transferências eróticas pouco elaboradas que revelam um ataque à experiência analítica, uma vez que o filho de uma relação analítica é em última instância o renascimento da própria psicanálise, uma psicanálise “sob medida” para aquela dupla, ambos fechados em uma sala, vulneráveis e entregues um ao outro – a intimidade psíquica é, na maioria das vezes, mais ameaçadora do que o ato sexual, será o vínculo íntimo que libertará o paciente para vivenciar o sexo e a sexualidade. Nesse sentido, um encontro sexual pode ser pensado em seu sentido amplo, em que se coaduna intimidade psíquica e experiência sensorial, isto é, para além de corpos que se interpenetram, a mente, a alma e o coração também estão mergulhados. Na relação sexual e na sexualidade, corpo e mente, sensorial e não sensorial, revelam-se como duas facetas indiferenciadas, não se sabe bem o que é carne, o que é mente. Sendo assim, do mesmo modo que masculinidade e feminilidade podem ser vislumbradas por um ponto de vista espectral [7] e não como vertentes dicotômicas, a sexualidade também pode ser vista por intermédio de um espectro: ela é corpo e ela é abstração, trânsito contínuo entre esses polos. Quando o prazer explode, há um desfalecimento do sujeito no outro, o que pode promover o renascimento e a reinvenção de si próprio – uma transformação em “O”. Não à toa, os franceses chamam o ápice erótico de la petite mort , a “pequena morte”. Depois de sermos arrastados por esse movimento que autores contemporâneos nos levaram, podemos afirmar que sexo e sexualidade habitam a teoria bioniana de um modo original e promissor, uma vez que a sexualidade se impõe nos processos mentais descritos por Bion, revelando que a dimensão freudiana da sexualidade habita sua teoria, elevada, inclusive, a uma potência extraordinária quando percebemos que, de acordo com Bion, a mente é edípica e, portanto, assim também é o funcionamento mental. Dessa perspectiva, a sexualidade está à serviço da Verdade emocional do sujeito, seria, por assim dizer, um continente para a investigação dos processos mentais do paciente. Acreditamos que o movimento de resgate da sexualidade, feito por Nosek, inspirado e impulsionado pela denúncia de André Green, pode ser valioso. A sexualidade está na abstração dos funcionamentos mentais, mas ela apenas ganha esse estatuto por ser também o vislumbre das potencialidades do corpo, já nos diria Freud que o aparato psíquico é intrínseco às funções biológicas do corpo – não há mente que não se ancore em um corpo sensual. Sendo assim, sexualidade, quando diz respeito à psicanálise, está sempre no terreno da psicossexualidade, portanto é ato psíquico e designa humanidade, em um eterno retorno à alteridade que nos funda, ou seja, à relação emotivo-afetiva-sexual com o Outro. Parece, assim, que a aproximação entre a bissexualidade psíquica de Freud e as noções de continente-contido de Bion revela que em ambos os conceitos está em jogo a díade penetrante/penetrado – e suas variáveis: fora/dentro, dar/receber, ter/oferecer – como potencialidades do corpo e da mente. Por esse vértice, pois há outros tantos que a psicanálise nos brinda, é possível vislumbrar as relações primordiais com o Outro, a consequente arquitetura do aparelho mental e o funcionamento andrógino da mente – que evoca sexo, gravidez e nascimento. Referências Bion, W. R. (1975). A memoir of the future – The dream. Imago. Bion, W. R. (1989). Caesura. In W. R. Bion, Two papers: the grid and caesura (51-56). Karnac. (Trabalho original publicado em 1977) Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência. Imago. (Trabalho original publicado em 1962) Bion, W. R. (1994a). Ataques à ligação. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (Second thoughts). Imago. (Trabalho original publicado em 1959) Bion, W. R. (1994b). Sobre a arrogância. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (Second thoughts). Imago. (Trabalho original publicado em 1957) Bion, W. R. (2004). Transformações – do aprendizado ao crescimento. Imago. (Trabalho original publicado em 1965) Bion, W. R. (2007). 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Sandler, P. C. (2021). A linguagem de Bion: um dicionário enciclopédico de conceitos. Blucher. Notas 1 Artigo derivado da pesquisa intitulada “Do potencial andrógino da sexualidade à androginia da mente – reflexões a partir do conceito de bissexualidade psíquica” (2022). 2 Membro filiado do Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Mestre em Psicologia Clínica do ip-usp. 3 Psicanalista e docente da Psicologia Clínica do ip-usp. 4 No volume “Amor, sexualidade, feminilidade” (Freud, 1898-1935/2018) com posfácio de Maria Rita Kehl, há uma seleção de cartas de Freud ao amigo que abordam a temática da bissexualidade psíquica. 5 Nos textos de Arnaldo Chuster, encontramos a referência a uma mente edípica/tridimensional, em que não haveria humanidade sem a triangulação. No mais, para o psicanalista a busca ativa do bebê pelo seio e pela mente materna já revela o triângulo edípico, isto é, desde os primórdios, estamos encharcados no cenário edípico. Mas a ideia de “mente edípica primordial”, reveladora da condição edípica e, portanto, bissexual de mente, me foi ensinada em suas conferências no decorrer do ano de 2022, na Sociedade do Rio de Janeiro. 6 De acordo com Bion, o bebê teria uma pré-concepção do seio que se tornaria uma realização à medida que a mãe disponibiliza a fonte de amor e de alimento. Paulo Sandler (1999) afirma que a intuição e a procura do bebê acerca do seio materno revela a fusão instintual da masculinidade e da feminilidade, ou seja, a bissexualidade psíquica: “a procura potente (masculinidade) por um seio não é separável do intuir (feminilidade) tanto a necessidade interna como a existência de um seio” (Sandler, 1999, pp. 470-471). 7 Arnaldo Chuster (2021) acredita que o modelo espectral é uma maneira de vislumbrar os processos mentais proporciona uma mudança de paradigma, rumo à complexidade da mente humana. Para o psicanalista, vislumbrar a mente por essa perspectiva revela que só podemos ter acesso a uma parcela dos fenômenos psíquicos, posto que há pontos de indecibilidade em um espectro, de fusão, de incerteza. Se os conceitos da psicanálise buscam se aproximar do funcionamento mental ou se constituir como uma metáfora da mente, vislumbrar um conceito a partir de um ponto de vista espectral parece uma proposta promissora.
- A intuição psicanalítica e a rêverie: captando fatos ainda não sonhados [1]
Capítulo do livro Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Diálogos Bionianos I. Ed. Blucher Marina F R Ribeiro [2] ...sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos - não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos. (Bion, 1977/1992, 104) Quando um conceito é citado por vários autores e está presente em um número considerável de textos, podemos dizer que foi uma maneira bem-sucedida de nomear um fenômeno clínico em determinado momento da história da psicanálise. A reverie parece ser um dos conceitos da psicanálise contemporânea pós bioniana que vem erigindo esse imprevisto destino. Fundamentado na compreensão de que a psicanálise é uma pré-concepção em busca de realização (Bion, 1962), cada texto escrito é uma realização possível em um determinado momento a partir de uma intertextualidade. Considerando isso, tudo o que temos é a experiência, tanto na sessão, quanto na escrita de um texto psicanalítico: uma mente produzindo efeitos sobre outra mente, um texto produzindo efeitos a partir de outros textos, continente e contido, reverie e função alfa, um intercurso mental promovedor de transformações e aberturas de novos campos de indagações. A proposta deste texto é apresentar, aproximar e dialogar alguns conceitos na obra de Bion e no texto de psicanalistas pós bionianos: intuição psicanalítica, reverie e função alfa. Para tanto, inicio apresentando uma experiência perturbadora do analista na sala de análise, a seguir faço um exercício metaforizante de aproximação dos conceitos com o material clínico. Trata-se de conceitos e teorias que serão posteriormente cotejados com novas experiências clínicas em um movimento de constante retorno, expansão e criação: um diálogo que se pretende aberto e complexo. O conhecimento é momentâneo, provisório e sempre nos escapa, pois no exato momento em que conhecemos e somos capazes de narrar a experiência analítica, a experiência já passou, já pertence a um passado: mesmo que muito recente, a transformação já ocorreu, a narrativa já se tornou saturada, o texto já foi escrito, tornando-se vivo novamente para um leitor no futuro. A epígrafe do texto é a inspiração para a reflexão aqui exposta. Afinal, o que Bion quer dizer com a interpretação dos fatos? Traduzindo-os em linguagem dos sonhos? Sigo por essas indagações, lembrando que Bion comentava em vários de seus seminários e supervisões que ele fazia apenas perguntas aos seus analisandos, de modo a expandir continuamente o campo investigado. A reflexão teórico-clínica apresentada a seguir tem a mesma intenção: expandir o campo teórico investigado, sem intenções resolutivas. Andando com os sapatos de um morto [3] Ao encontrar Antônio pela primeira vez, sem nenhuma informação a seu respeito, fixo-me incomodamente em seus sapatos e penso: são sapatos de um morto. Como alguém pode usar sapatos de um morto? Percebo-me quase em uma experiência alucinatória: os sapatos produzem o efeito de um campo magnético do qual não consigo desviar os olhos e o pensamento. Vejo a morte e estou paralisada. Ele começa a falar, fico dividida, observando o que é dito e a intensa sensação de morte na qual estou imersa, sem compreender absolutamente nada do que está ocorrendo, arrastada pela experiência perturbadora. Aguardo em um silêncio receptivo. Ao final do nosso encontro, Antônio relata de forma distanciada e breve os fatos de sua vida que precisavam ser sonhados. Fatos esses que estavam contidos e condensados na imagem dos sapatos de um morto, representação pictórica pela qual fui subitamente abduzida ao encontrá-lo. Sua única filha nascera com várias malformações, passou por intervenções cirúrgicas e viveu poucos anos. Antônio havia me procurado após um ano da morte da menina ou da sua quase morte psíquica; ele andava com os sapatos de um morto, desvitalizado, um morto ainda vivo. Sua demanda manifesta de análise era expressa, porém, por outras questões: não conseguia encontrar um lugar de reconhecimento profissional e financeiro. A profissão - vida - mostrou-se de uma brutalidade ímpar, e ali estava ele: um homem andando com a morte acorrentada aos seus pés. E, na mesma sala, a analista, tentando sonhar a brutalidade dos fatos de sua vida. Na vinheta apresentada, a imagem perturbadora que emerge na mente da analista - os sapatos de um morto - surge a partir do estado de reverie [4] , um estado de receptividade amorosa, de hospitalidade, uma abertura para sermos habitados pelo outro. A reverie também implica a capacidade imaginativa da mente da analista, de sonhar a brutalidade da realidade: uma filha que nascera com malformações e faleceu em poucos anos. A receptividade do estado de reverie parece ser, em um primeiro momento, um estado desorganizador para a analista. A analista é abduzida pela experiência, está totalmente à deriva, é arrastada pela imagem pictórica [5] , como um tipo de campo magnético que exerce uma força de atração da qual não é possível escapar, apenas reconhecer e observar o que se desdobrará no a posteriori da sessão. Neste momento, é fundamental o ato de fé [6] do analista, referido por Bion (1970), de que algum sentido irá surgir daquele estado desorganizado e caótico. Bion não parecia estar ocupado com diferenciações conceituais, que são incertas e imprecisas. Digamos que a conceitos psicanalíticos e a pessoas devemos facultar certa imprecisão. Alguma semelhança com as emanações do inconsciente? O inconsciente se apresenta por sombras, fachos de escuridão, imagens pouco nítidas e imprecisas. Ogden (2013, 145) escreve que “...em psicanálise, fazemos bem ao permitir certa inexatidão nas ideias e palavras.”. Exatidão e precisão são ilusões da consciência e do pensamento racional: o analista trabalha com impressões, aproximações, com sombras e luzes tênues. A luz da teoria não deveria ofuscar o enigmático da experiência clínica, mas favorecer a capacidade da mente do analista em transitar por emoções incertas, imprecisas e voláteis. Sobre isso, Bion (1992/2000) escreve: ...De qualquer maneira, sinto dúvidas sobre o valor de uma teoria lógica para representar as “realizações” da psicanálise. Penso que se deveria permitir que a teoria “lógica” e as “ilogicidades” da experiência psicanalítica coexistam até que a “evolução” resolva a desarmonia observada (397). A intenção neste texto não é eleger um vértice de compreensão em detrimento de outro, ou tentar solucionar ilogicidades teóricas, mas promover um exercício de reflexão conceitual e clínico que apure os instrumentos técnicos do analista, suas matrizes teóricas, expressão de Figueiredo (2020) [7] . Ogden (2016, 5) escreve que mesmo a teoria estando ausente dos pensamentos conscientes do analista, e devem mesmo estar durante a sessão, elas constituem uma matriz, um contexto psíquico, um continente metaforizante. A teoria do analista faz parte do seu acervo inconsciente, precisa estar incorporada e esquecida, assim como os exercícios técnicos de um músico. As teorias afinam a capacidade de observação do analista, assim como um músico afina seu instrumento. A mente do analista é seu instrumento de trabalho, que desafina ao longo dos atendimentos, ao longo do que é vivido no consultório e na sua vida privada. O exercício de elucidação teórica seria uma das maneiras de o analista afinar seu instrumento nos momentos em que não está em sessão, e refletir sobre o que nela aconteceu usando conceitos para compreender um encontro com o paciente que já faz parte do passado. Desse modo, trabalha a teoria e os conceitos, preparando-se para a sessão de amanhã, afinando seu instrumento de trabalho, sua própria mente e sua capacidade de observação. Penso que o continente teórico do analista é um exercício conduzido como uma espécie de preparo para a sessão que ainda não aconteceu. Trata-se, também, de uma forma de reparar sua própria mente após as sessões de um dia de trabalho, ou de anos de exercício clínico. A teoria pode exercer, então, uma função de continência para a mente do analista, em constantes turbulências geradas na sala de análise pelo encontro desorganizador de duas personalidades, como escreveu Bion (1979). A partir desse vértice da função da teoria como um continente metaforizante para o analista, faço a seguir uma reflexão sobre o conceito de reverie , a partir e além de Bion, refiro-me aos autores pós-bionianos. Sobre reverie e função alfa a partir e além de Bion A experiência de reverie é sempre um elemento desorganizador para o analista, que ele tende a descartar e muitas vezes se envergonha por considerar uma inabilidade, uma falha técnica, como na situação clínica que inspira este texto. Ao mesmo tempo, é a bússola emocional do analista, se ele tiver a condição e a liberdade psíquica de considerá-la, o que não é tarefa fácil (Ogden, 2013). Importante termos em mente que essa compreensão de Ogden do termo reverie descrita acima é apenas uma, entre outras, distintas do conceito original postulado por Bion em 1962. O termo reverie ganhou sentidos mais amplos e diversos na pena de psicanalistas pós bionianos, tais como Thomas Ogden, Antonino Ferro e no Brasil, o casal Elias e Elisabeth Rocha Barros e Arnaldo Chuster, entre outros autores [8] . Considero um surpreendente fenômeno que uma expressão apresentada de forma pouco evidente pelo seu autor de origem, quase en passant , ganhe proporções diversas em textos posteriores, acredito que devido a sua pregnância clínica. O mesmo ocorreu com o conceito kleiniano de identificação projetiva, que aparece discretamente no texto 1946, “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”. Klein nomeava informalmente esse texto seminal como o seu artigo sobre cisões. Inusitadamente, a identificação projetiva foi, posteriormente, o conceito kleiniano que gerou inúmeras ressonâncias (Cintra e Ribeiro, 2018). Considerando que se trata de conjecturas, qual teria sido, de fato, a intenção de ambos os autores ao nomear esses fenômenos? Impossível dizer, mas a expansão deles no texto de outros psicanalistas indica que o destino de um conceito comporta diferentes compreensões e apreensões, como apresentando no livro Projective identification: A fate of concept (2012). O fato é que o conceito de reverie vem fazendo história na psicanálise, por meio de diferentes vértices de compreensão, no texto de diversos psicanalistas. A conexão que faço aqui entre o destino do conceito de identificação projetiva e a reverie tem também outras ligações, além do explicitado pelo próprio Bion (1962/2014). A saber: O termo reverie aplica-se a todos os conteúdos. Reservo-o entanto apenas àquele que se infunde de amor ou ódio. Nesse sentido estrito, a reverie é estado mental aberto a receber quaisquer “objetos” do objeto amado e, portanto, acolher as identificações projetivas do bebê, se boas ou más. Em suma, a reverie é fator da função alfa da mãe (303). Esse pequeno parágrafo no livro Aprender com a experiência (Bion, 1962) é quase tudo que temos sobre reverie na obra de Bion. Nessa breve articulação que o autor escreve, temos dois outros conceitos: identificação projetiva e a função alfa. Sendo a reverie um fator da função alfa que acontece via identificação projetiva, seguiremos esses indícios no texto de Bion. Também nessa direção, Rocha Barros (2019a), considera que o conceito de reverie pode ser compreendido como um passo na história da psicanálise que se segue ao estudo da identificação projetiva. A identificação projetiva marcou uma compreensão intersubjetiva da constituição do sujeito, que, principalmente a partir da obra de Bion, foi considerada uma forma primitiva de comunicação.Além disso, corroborou à compreensão da complexidade da interação entre as mentes do analista e do analisando na sessão, como desenvolvido em trabalhos anteriores (Cintra e Ribeiro, 2018, Ribeiro, 2020). Em outras palavras, há sempre uma comunicação que acontece de forma inconsciente, questão que intrigava Freud (1915) quando escreveu sobre a comunicação entre inconscientes, sendo a reverie uma forma de captar esses processos, compreensão feita a partir da teoria dos sonhos de Bion, apresentada brevemente a seguir. O termo reverie aparece pela primeira vez na obra de Bion em 1959, quando escreve que em pacientes psicóticos não encontrou capacidade para reverie . (Sandler, 2005). Bion (1962) se refere à reverie de forma passageira, como já dito acima, e ligada à díade mãe-bebê, e não diretamente à díade analista-analisando. Em uma pequena nota encontrada em publicações inéditas de Bion de 2014 [9] , The complete works of W.R. Bion, o autor escreve que os pensamentos são perturbadores e antecedem o pensar, sendo que a reverie é importante para o analista, pois é ela que fabrica os ‘pensamentos’ que ainda serão pensados. Na situação clínica apresentada acima, o pensamento de que a analista estava vendo os sapatos de um morto foi algo perturbador e desorganizador. Contudo, no a posteriori da sessão foi possível refletir que a imagem representava e condensava o sofrimento psíquico do paciente. A capacidade de reverie da analista ‘fabricou’ ou, melhor, gerou o pensamento/imagem (lembrando que pensamos primeiramente por imagens). Seguindo essa publicação de referência, The complete works of W.R. Bion (2014), encontramos um comentário do organizador André Green (2014)se referindo ao livro Cogitações : Uma das partes mais enriquecedoras dessas Cogitações deve, certamente, ser a concepção de Bion do trabalho dos sonhos. Encontramos aqui o germe que o autor mais tarde chamou de capacidade para reverie. Isso significa que o trabalho dos sonhos constitui apenas uma pequena parte deste tipo de atividade encontrada no sonhador. Este trabalho é um contínuo processo que se mantém durante a atividade diurna, mas permanece inobservável (exceto na fantasia consciente), exceto por sua ausência no psicótico. A capacidade de reverie é apenas o aspecto visível de uma forma de pensamento amplamente inconsciente [10] . (355) Retomando, a imagem que surge a partir da capacidade de reverie do analista é apenas o aspecto visível de uma forma de pensamento amplamente inconsciente. Em outras palavras, refere-se à capacidade do analista de tornar visível o invisível da experiência, de tornar apreensível o pensamento onírico da vigília, função diuturna da mente. A reverie é a captação do inaudível e do imperceptível da experiência. Algo é captado pela intuição psicanalítica e transformado pela função alfa em uma forma, uma imagem sensorial: a reverie . Essa é a argumentação teórica que estou construindo neste texto. Os pensamentos oníricos ocorrem tanto na vigília, quanto no sonho da noite. Ferro (2003) expressa sua compreensão da teoria dos sonhos de Bion por meio da seguinte analogia: durante o dia, temos um cameraman filmando diversas cenas, captadas por meio do funcionamento contínuo da função alfa. Durante a noite, temos uma meta função alfa que faz o trabalho de direção, organizando as cenas em um enredo onírico, em um trabalho contínuo de metabolização das experiências emocionais. Ogden (2009), a partir da sua leitura do texto de Bion, compreende que os pensamentos oníricos da vigília são como as estrelas, sempre presentes, mas visíveis apenas na escuridão da noite. Segundo Antonino Ferro (2003), temos duas maneiras de captar o pensamento onírico da vigília: pela capacidade de reverie e pelo flash visual. Para esse autor, o pictograma é uma fantasia visual que sincretiza o que é experienciado na sessão. O flash visual [11] é a projeção do pictograma para o exterior, para fora da mente, assim ele é ‘visto’ quase que de forma alucinatória. Figueiredo (2020) compreende a reverie como um estado de receptividade da mente do analista. O autor acompanha a descrição de Bion: “...é um estado mental aberto a receber quaisquer “objetos” do objeto amado… (Bion, 1962, 303). Figueiredo (2020,1996) também faz uma interessante conexão ao aproximar o conceito freudiano de construção em análise (1937), ao conceito de reverie de Bion, em um texto de 1996, ou seja, antes que a discussão sobre a reverie se tornasse significativa na psicanálise contemporânea. Escreve o autor: “O que responde à escuta do inaudível e à visão do invisível é a fala ‘fenomenalizadora’” (Figueiredo, 1996, 85). Além disso, Figueiredo (2020) destaca a analogia feita por Freud (1937,343) ao final do texto Construções em análise: “Deixe-me seduzir por uma analogia. Os delírios dos doentes se apresentam, para mim, como equivalentes às construções que fazemos nos tratamentos analíticos, …”. Em outras palavras, Freud escreveu em um dos seus últimos textos sobre o aspecto alucinatório das construções do analista. Civitarese (2016a, 298) também fará um paralelo entre a reverie e a resposta quase alucinatória do paciente à construção do analista, descrita por Freud (1937) no mesmo texto. Desse modo, Freud observou que algo de uma experiência quase alucinatória se manifesta na sessão, seja na construção do analista, seja na resposta do paciente a essa construção. Nessa direção, mas por outros caminhos, Bion escreve (1967a/1994): O estado adequado para intuir realizações analíticas (...) pode comparar-se aos estados que supostamente propiciam condições para haja alucinações. O indivíduo que alucina aparentemente está tendo experiência sensorial sem nenhum substrato da realidade sensorial. É necessário que o analista seja capaz de intuir uma realidade psíquica que não tenha nenhuma realização sensorial conhecida. (...). Não penso que o paciente ao alucinar esteja comunicando uma realização que tenha substrato sensorial; não julgo, igualmente, que a interpretação feita em análise se origine em fatos acessíveis ao aparelho sensorial. Como explicar, então, a diferença entre uma alucinação e uma interpretação de uma experiência analítica intuída? (183) A partir dessa questão levantada por Bion, penso que a sensação, na mente do analista, produzida pelo pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1995) ou pictograma afetivo (Rocha Barros, 2000b) gerado do estado de reverie, tem aspectos que se aproximam de uma experiência de alucinação: a analista ‘alucinava’ ao ver os sapatos de um morto, não há nenhum apoio sensório perceptível. A experiência só é compreensível a posteriori , o analista precisa tolerar esse estado de desorganização e desorientação, tendo um tipo de fé psicanalítica de que um sentido surgirá daquela experiência com aspectos alucinatórios, na própria sessão, ou depois de muitas sessões. Portanto, é preciso tolerar não saber, trata-se da capacidade negativa (Bion, 1970) do analista, uma capacidade virtuosamente expectante (Chuster, 2019). Cabe aqui uma distinção entre a reverie ocorrida na sessão que pode ser usada para compor uma interpretação ou construção narrativa e aquela que é apenas uma apreensão e compreensão por parte do analista do sofrimento psíquico inconsciente do paciente, sendo que essa não se transformará em uma interpretação. A reverie como uma bússola [12] para o processo analítico é justamente o que ocorreu na sessão com Antônio: a imagem ‘alucinada’ dos sapatos de um morto condensa e revela o mais íntimo e intenso sofrimento do paciente. A reverie , nesse caso, serviu como um norte para o processo analítico que estava iniciando. Quando a reverie é usada para compor uma interpretação, a imagem tanto pode ser revelada diretamente, diria que essas situações são mais raras, como a imagem produzida exige um extenso trabalho de elaboração por parte do analista para que se torne narrável para o paciente na forma de uma interpretação ou construção analítica. Contemporaneamente [13] , o termo reverie tem sido usado tanto como um estado mental de abertura ao outro, um estado sem pensamento, quanto como produto desse estado mental (Ogden, Ferro, Rocha Barros entre outros), o que se fenomenaliza a partir desse estado, como os pictogramas emocionais e/ou afetivos, exemplificados aqui com os sapatos de um morto. Essa compreensão também está presente nas notas inéditas de Bion (1968/2014) supracitadas, a reverie seria uma forma de fabricar um pensamento, ainda sem pensador. O pensamento/imagem dos sapatos de um morto puderam ser pensados apenas no final da sessão e, também, após o seu término, no momento de reparação da mente da analista, ou seja, a função continente do exercício teórico, referida no início deste texto. O casal Rocha Barros (2019a) compreende que o conceito de reverie está associado à compreensão intersubjetiva do processo analítico e ao entendimento de como são captados os processos inconscientes. Destaco que, para os autores, a reverie acontece via identificação projetiva, que é a intuição kleiniana de que há uma via que conecta o inconsciente de duas mentes e veicula proto-pensamentos [14] , captados primeiramente como imagens pictográficas (Bion, 1992), pictogramas afetivos (Rocha Barros, 2000) ou pictogramas emotivo-sensorial (Ferro, 1995) [15] . Os Rocha Barros (2019a) trazem uma especificação conceitual que corrobora de forma significativa com a compreensão da reverie: são os aspectos de expressividade e evocação: Deveríamos dizer algo mais a respeito de ‘expressividade’. Esse termo vem de R.G. Collingwood (1938) e Benedetto Croce (1925/2002), e se refere a um aspecto da arte que não só pretende descrever ou representar emoções, mas principalmente transmiti-las, produzindo-as no outro, ou em si próprio, baseado na evocação de uma representação mental colorida de emoção. Esse atributo de produzir emoção no outro da expressividade nos parece essencial para entender não apenas a arte, como também a memória afetiva e a função das formas simbólicas na vida psíquica e o processo por meio do qual atuam as identificações projetivas. Uma das funções da expressividade é a de ativar a imaginação [16] . (109) A partir desses aspectos estéticos de expressividade e evocação, retomando o fragmento clínico, quando sou capturada pela imagem, só vejo a morte e estou paralisada. Nesse instante, o excesso sensorial da cena onírica da vigília, a reverie , tem uma intensa expressividade e evocação (Rocha Barros, 2000b, 2011, 2015, 2019, 2019a), neste momento não é possível uma narrativa. A sensação é de um ‘campo magnético’, algo que evoca e convoca, assim como uma pintura em uma galeria de arte na qual somos abduzidos pela imagem, ficando à deriva da experiência, aguardando o tempo do a posteriori para compreender o que aconteceu, cientes de que nem sempre isso é possível. Quando se torna possível narrar a experiência, por meio de um processo de metabolização, a narrativa é parcial, podemos apenas fazer uma aproximação da experiência. Para o casal Rocha Barros (2019), é necessário transformar a reverie do analista em uma forma simbólica passível de ser comunicada ao paciente. Trata-se, pois, do início de um processo de apreensão de uma experiência sensorial. Após um trabalho de reflexão auto analítica, por parte do analista, é possível transformar a reverie em algo passível de comunicação: o analista torna a experiência da reverie algo possível de ser pensado, transforma-a em uma comunicação que pode ser geradora de transformações da dupla analítica. Esse processo exige do analista uma grande habilidade e criatividade na construção de uma comunicação advinda da experiência da reverie e, além disso, uma comunicação que favoreça as transformações do campo analítico (Ribeiro, 2019). Na situação clínica apresentada, a reverie favoreceu a compreensão do sofrimento psíquico do paciente, não se transformou em uma interpretação ou construção da analista. Chuster (2019, 2020) apresenta outro detalhamento conceitual singular, conforme abordado em texto anterior (Ribeiro, 2019), compreende a reverie e a função alfa como vértices de um espectro. O autor expõe que os conceitos de reverie e função alfa fazem parte da contribuição de Bion para a teoria dos sonhos, como já exposto aqui. O sonho é uma função diuturna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais, o que foi denominado como pensamento onírico da vigília (day-dream). A reverie é predominantemente sensorial, e a função alfa é predominantemente simbólica: ambas são compreendidas como vértices de um espectro de infinitas possibilidades. Considerando que quando compreendemos um conceito de forma espectral há um ponto do espectro no qual não há uma distinção entre um e outro, isto é, um ponto no qual não conseguimos distinguir a reverie da função alfa, um ponto de indecibilidade. Arnaldo Chuster (2020, 40) também privilegia e destaca o termo imaginação “...por ser mais próximo linguisticamente do termo reverie (devaneio) usado por Bion, e por contemplar mais adequadamente, em meu entender, a questão da cesura entre dois estados mentais.” A cesura (Bion, 1976) [17] entre o pensamento onírico da vigília e o estado do sonho da noite. Em outras palavras, a reverie seria esse estado de penumbra, esse lusco fusco da mente, no qual estamos parcialmente acordados, mas ainda sonhando, um estado de transicionalidade, como descreve o casal Rocha Barros (2019a). Compreender a reverie /função alfa como vértices de um mesmo espectro (Chuster, 2018, 2019, 2020) parece ser uma posição conceitual que expande e especifica a discussão dos fenômenos clínicos. O que se fenomenaliza na situação clínica, que tem o potencial de se tornar uma narrativa, construção ou interpretação, percorre o espectro entre experiências predominantemente sensoriais e experiências predominantemente simbólicas. Podemos pensar em uma progressão no espectro, iniciando no vértice sensorial, a imagem pictográfica, e seguindo para o vértice simbólico, a narrativa. O uso da reverie em uma narrativa do analista ou simplesmente para a sua compreensão do processo analítico, como uma bússola, é o ápice de um complexo processo de trabalho psíquico. Na situação clínica apresentada foi possível compreender que o processo analítico iniciado tratava-se de um caminhar por terrenos mortos, mortos pelo excesso de dor psíquica, desvitalizados, e que necessitavam da capacidade de ‘ensonhamento’ da analista. No entanto, que estranho fenômeno é esse da analista alucinar os sapatos de um morto? Sem nenhum apoio sensório? Aquém ou além do sensorial, temos a intuição psicanalítica. Conforme Bion escreve (1967), a intuição não é sensória, mas parece encontrar algum apoio indiscernível e não identificável no mundo sensório [18] . Bion (1992) escreve sobre aspectos infra e supra sensoriais, ou seja, o amálgama intuição e reverie se abre como uma questão a ser pensada, ainda que brevemente. Reverie: uma evolução da intuição psicanalítica? Como podemos pensar a conexão entre intuição e reverie ? Será que o estado de reverie da mente do analista tem como esteio, além e aquém do sensorial, supra ou infra sensorial (Bion, 1992), a capacidade de intuição do analista? Em outras palavras, a intuição psicanalítica parece ser um fator primordial da função psicanalítica da personalidade (Bion, 1962), aquilo que não se fenomenaliza, o inaudível e o imperceptível. Essa é a habilidade necessária ao analista, ver e escutar o que não é visível aos olhos e ouvidos, mas é visível pela imaginação, a capacidade de reverie do analista sustentada pela intuição psicanalítica. Partindo da etimologia da palavra intuição, segundo Zimerman (2012, 167), temos: a “palavra intuição é composta dos étimos in (com o significado de dentro de) + o verbo latino tuere (= olhar, enxergar), e denota que essa capacidade de intuição consiste no fato de o analista conseguir ‘olhar para dentro de si’, numa espécie de ‘terceiro olho’, que lhe permita enxergar além daquilo que nossos órgãos dos sentidos captam”. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica, ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion, 1992), como já dito. As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967). Precisamos de um facho de intensa escuridão (Bion, 1967) para intuir no aqui e agora da sessão, tornar visível o invisível da experiência. E, a partir da reverie e sua construção imagética, o analista ainda precisa ser capaz de colocar em uma narrativa a experiência da reverie , isto é, ir em direção ao polo mais simbólico da função. Ressaltando que a narrativa é parcial, precária e provisória, apenas uma aproximação do vivido, pois a experiência ou o fato em si é incognoscível na sua totalidade. Dessa maneira, temos a narrativa possível de cada sessão, as emoções que podem ser contidas, reveladas, criadas pelas palavras: os sapatos de um morto, de alguém vivo que pisa sob terrenos psíquicos desvitalizados, mortos, fatos brutos ainda não sonhados. Sendo que aquilo que se torna palavra é saturado e finito, e abre-se novamente para o campo do insaturado, das emoções que ainda não são palavras, em um ciclo sem fim, na procura incessante do sentido e da verdade da experiência, na busca humana da possibilidade de sonhar o enigmático da experiência. Continuando a reflexão, a imagem produzida pelo estado de reverie traz a inebriante sensação de que estamos quase alucinando, pois não há nenhum apoio sensório identificável. A reverie é um pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1995) ou pictograma afetivo (Rocha Barros, 2001) primeiramente ‘alucinado’ pelo analista. No entanto, nossa alucinação encontra um sentido que nos resgata do caos, que é paradoxalmente enlouquecedor e seminal. Lembrando que Freud (1937) fez uma analogia entre as construções do analista e o delírio dos pacientes. Será essa uma intuição freudiana? Talvez. E o que será que pode favorecer a intuição do analista? Justamente a complexa proposição técnica de Bion (1967): a mente do analista deveria estar em um estado de abertura para o desconhecido, estado esse que implica na opacidade de memória, desejo e compreensão prévia. Bion (1967) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade, intensificados por esta, e não parecem favorecer intuição e reverie , motivo pelo qual Bion faz essa sugestão técnica de difícil compreensão ainda hoje. Uma analogia feita por Bion (1970) nos auxilia a compreender essa proposta metodológica. Memória e desejo são como a luz que entra precipitada no processo de revelação de imagens e queimam o filme. Memória e desejo, passado e futuro, impossibilitam que na penumbra da mente, no lusco fusco do estado de reverie , um estado de transicionalidade (Rocha Barros, 2019), revelem-se imagens que possam ser sonhadas no aqui e agora da sessão, no presente vivido, único tempo da experiência. Ao refletir sobre o texto de Bion (1967) Notas sobre memória e desejo, Ogden (2016, 79) escreve que se trata de um artigo sobre o pensamento intuitivo na situação analítica: Para mim, a reverie (...), o sonho diurno, é paradigmático da experiência clínica de intuir a realidade psíquica de um momento de análise. Para entrar em um estado de reverie, que no cenário analítico é sempre, e em parte, um fenômeno intersubjetivo, o analista deve se engajar em um ato de auto renúncia. Refiro-me ao ato de permitir-se tornar-se menos definitivamente si mesmo, a fim de criar um espaço psicológico no qual analista e paciente possam entrar em um estado compartilhado de intuição, e de estar em uníssono em uma realidade psíquica perturbadora, que o paciente sozinho é incapaz de suportar [19] . Compreendo a reverie como um estado de mente, uma abertura amorosa ao outro, uma hospitalidade, que produz ou favorece a emergência de uma imagem pictográfica. Penso que a imagem que surge é uma evolução da intuição do analista, essa é a hipótese sustentada neste texto. A reverie como um pensamento/imagem que ainda não foi pensada, e que é favorecido pela intuição psicanalítica. A intuição como algo não sensorial, mas com elementos infra e supra sensoriais (Bion, 1992/2000), como já dito, uma capacidade fundamental da mente humana. Retomando o fragmento clínico apresentado, a imagem pictórica que surge na sessão (os sapatos de um morto) tem como esteio a intuição psicanalítica e a capacidade de reverie da analista. Além disso, a imagem também tem outros sentidos: passa a ser o fato selecionado [20] (Bion, 1963) de todo o processo terapêutico que se desdobrará; uma memória para o futuro da análise que se inicia. Um processo analítico no qual analisando e analista andarão por terrenos mortos, terrenos desvitalizados, sem contato com a verdade emocional, nos quais a dor ainda não foi sofrida (Bion, 1970), os fatos não foram sonhados, permanecem sem sentido, sem narrativa, apenas uma dor cega e bruta. Bion (1963/1967/1992/2014) propõe a denominação 'fato selecionado' baseada na obra do matemático Poincaré ( Science and Method , 1914). Um fato selecionado colocaria uma certa ordem na complexidade dos elementos, tornando apreensível aquilo que inicialmente era uma experiência desorganizada. Bion (1967/2014) faz uma analogia do fato selecionado com uma imagem que se fixa em um caleidoscópio, atribuindo um sentido momentâneo aos elementos desorganizados e em movimento; uma imagem que evolui a partir da sessão. Britton [21] (1998) irá abordar no texto The analyst’s intuition: selected fact or overvalued idea? uma discussão que se aproxima, em alguns aspectos, do que estou discorrendo: o fato selecionado, no fragmento clínico exposto, uma reverie , evolui a partir da capacidade de intuição da analista, e inicialmente, a sensação é de algo alucinatório. O fato selecionado orienta o analista na sessão e o coloca próximo da realidade psíquica do paciente. No entanto, Britton (1998) problematiza: como distingui-lo de uma ideia supervalorizada? Justamente na posterioridade da sessão é que poderemos saber se é uma intuição ou uma alucinação do analista. A ideia supervalorizada é um fato pré-selecionado, e não algo que evolui da experiência com o paciente na sessão. As teorias do analista podem ser usadas como fatos pré-selecionados, supervalorizados e alucinados, que podem tornar o analista impermeável às emoções desorganizadoras geradas pela turbulência do encontro de duas personalidades, a do analisando e a do analista. Britton (1998) escreve que a emergência de um fato selecionado envolve três sequências transformacionais: da posição esquizoparanóide para a depressiva; do elemento não contido para o contido; e da pré-concepção à concepção. A ideia supervalorizada seria um fato pré-selecionado, ou seja, a impossibilidade psíquica do analista de aguardar a emergência do fato selecionado, que implica em paciência e tolerância ao não saber, a capacidade negativa da mente do analista. O fato pré-selecionado seria o apego do analista à teoria psicanalítica pela predominância de memória e desejo. Britton (1998, p.108) conclui: “...o problema é que o analista será encorajado a acreditar que suas ideias supervalorizadas são o fato selecionado, pois o acordo consensual é mais valorizado do que a verdade.” [22] No fragmento clínico, o fato selecionado é a reverie dos sapatos de um morto. Um pictograma que organizou momentaneamente a turbulência emocional do encontro com Antônio. A imagem dos sapatos de um morto favoreceu a compreensão do sofrimento psíquico do paciente, não se transformou em uma interpretação ou construção. E, não foi apenas um fato selecionado desse primeiro encontro, foi um pictograma ícone de todo o processo analítico que se desdobrou a partir daquele momento. Por anos a análise caminhou por áreas psíquicas mortas e desvitalizadas que voltaram gradativamente à vida, possibilitando a Antônio uma experiência realizadora consigo mesmo e com as pessoas às quais ele estava vinculado. Considero incomum um fragmento clínico com essas características, que se oferecem de forma generosa para uma compreensão desses complexos processos mentais que ocorrem na turbulência emocional dos encontros analíticos. Nenhum apoio sensório identificável pôde ser destacado [23] . A sensação inicial para a analista era de uma imagem com características alucinatórias, como já dito, e justamente por isso permaneceu como um fragmento clínico a ser metabolizado teoricamente. A intuição psicanalítica e a reverie , alguns apontamentos Podemos pensar, tendo como referência a obra de Bion, em um conhecimento imediato, intuído [24] , semelhante a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento - dedução, associação, comparação, análise, constatação etc - mas algo que aparece como uma imagem, criada de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável. A hipótese que levanto é de que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito [25] ; eu/outro; o formar/desformar, as transformações em K/ as transformações em O [26] . Sendo que também podemos pensar a cesura intuição/alucinação [27] , construção que faço sucintamente neste texto. Cesura é sinapse, é conexão, é o vínculo, escreve Bion (1977). O termo originalmente se refere a um espaço no poema, na estrofe, que promove ritmo, criaconexão, ruptura e movimento. Bion (1977/1981) escreve: Reformulando a afirmação de Freud, para minha própria conveniência: Há muito mais continuidade entre quanta autonomamente apropriadas e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos fariam acreditar. Então...? Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans) - ferência, o humor transitivo-intransitivo. (p.10) Podemos pensar na cesura entre diferentes estados mentais. Por exemplo, o lusco fusco ao acordarmos, momento no qual temos uma cena onírica em mente e por um instante não há diferenciação entre a cena e o mundo da vigília. Temos a impressão de que aquilo foi vivido, e subitamente acordamos e percebemos que a cena foi experienciada em um sonho que rapidamente se evapora na luz do dia. Na cesura entre o sonho e a vigília, há conexão, há continuidade e há ruptura entre dois estados mentais. A partir da compreensão que a mente funciona em uma oscilação contínua entre estados mentais, proponho a cesura intuição/alucinação. A intuição é um fenômeno, uma afetação enigmática [28] , que emerge entre cesuras. Acontece na oscilação entre a área indiferenciada da mente, ainda sem forma, e a área diferenciada, evoluindo para uma reverie . Por esse motivo, podemos ter a impressão de uma alucinação, pois é uma criação imaginativa (Chuster, 2019, 2020), portanto uma forma que encontra sentido apenas no a posteriori . Precisamos do tempo para saber de qual lado da cesura estamos, se da alucinação ou da intuição, como no fragmento clínico dos sapatos de um morto, que inicialmente é vivido como uma alucinação, mas, posteriormente, realiza-se como uma reverie a partir da intuição da analista. A intuição pode ser favorecida pela disciplina de observação do analista no campo analítico. A observação analítica é treinada a partir da proposta metodológica de Bion (1965;1967): sem memória, sem desejo, e sem compreensão prévia. A experiência é percebida, primeiramente, como um elemento bruto (beta), enigmático (Figueiredo, Ribeiro e Tamburrino, 2011). Penso que a proposta de Bion no artigo de 1967, Notas sobre memória e desejo, pode ser compreendida como uma cesura na metodologia analítica. Representa tanto uma continuidade da proposta freudiana da atenção flutuante como uma ruptura, pois convoca a capacidade intuitiva do analista, o seu pensamento associativo, analítico e imaginativo [29] : a imaginação criadora (Chuster, 2019), a capacidade de ser afetado pelo enigmático da experiência e construir um pensamento, a reverie . Memória (passado), desejo (futuro) e compreensão prévia são opacidades que obstruem a capacidade de intuição do analista e a observação psicanaliticamente treinada. Bion (1992, p.324) escreve que a intuição opera entre opacidades e transparências, ou seja, na cesura entre esses dois elementos. Bion (1970) [30] faz uma analogia que nos ajuda a compreender esse processo psíquico, já referida neste texto: os negativos da fotografia antes da época digital. Faço uma apropriação sutilmente diversa dessa analogia: o negativo é uma película transparente escura que recebe quaisquer impressões, ou poderíamos dizer, afetações enigmáticas. A mente do analista precisaria ter essa qualidade negativa, uma qualidade de recepção, de hospitalidade, de continência a qualquer afetação. No processo de revelação, ou melhor, de realização [31] da imagem, feito por elementos que precisam de um período para produzirem efeito e uma sala escura para que a afetação do negativo se realize, há uma composição complexa e única de elementos. Memória, desejo e compreensão prévia podem ser a luz precipitada que queima o filme antes da realização da imagem. A imagem é criada a partir da afetação no polo negativo da mente do analista, sua capacidade negativa, e pela observação psicanalítica, sob a égide da função transformadora alfa que torna o enigmático da experiência em um elemento psíquico sensório passível de ser pensado, a reverie . A observação psicanaliticamente treinada é a disciplina do analista para não queimar o filme com a sua equação pessoal (Bion, 1992) [32] . O treinamento do analista é sua análise pessoal e sua ética analítica. A partir de Bion, os conceitos são compreendidos de forma espectral. Dessa forma, a intuição teria tanto um polo na capacidade de observação psicanalítica, como um polo inconsciente, no qual a função alfa trabalha: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie , um pensamento imaginativo. Em outras palavras, há um trânsito constante, absurdamente rápido, fugaz, e sempre instável, entre a cesura do finito (consciência, forma, área de diferenciação da mente) e do infinito (inconsciente, sem forma, área de indiferenciação da mente). Na oscilação constante das diversas cesuras, a intuição emerge como um raio em céu azul, a afetação enigmática, inevitavelmente turbulenta. A intuição opera em um trânsito constante entre cesuras, na qual a capacidade de reverie /função alfa do analista se sustenta, uma capacidade imaginativa e de criação de elementos psíquicos. Dessa forma, a intuição psicanalítica é favorecida pela capacidade treinada de observação do analista, sua capacidade negativa. Em outras palavras, a intuição psicanalítica acontece entre cesuras, a passagem contínua entre estados mentais: o não-sensorial/sensorial; finito/infinito; transformações em K/transformações em O; conhecido/desconhecido; eu/outro. Além de considerarmos uma contínua oscilação, a partir de uma compreensão espectral dos conceitos, há sempre um ponto de indecibilidade, ou seja, um ponto no qual não é possível saber em qual dos dois polos do espectro estamos. E, talvez, o ponto possa ser, também, uma área, um território de indiferenciação conceitual e fenomenológico. A imprecisão e a indecibilidade fazem parte das nuances das cesuras constitutivas do psíquico, com suas opacidades e transparências. Devido a isso, precisamos facultar uma certa imprecisão aos conceitos psicanalíticos. Os conceitos de intuição, função alfa e reverie estão imbricados, sendo epistemologicamente inviável uma diferenciação nítida entre eles. Se pensarmos sob o vértice da teoria das transformações de Bion (1965), a intuição seria estar em ‘O’, em uníssono com o paciente, e a imagem produzida pela reverie seria uma transformação em ‘K’, um pensamento imaginativo em busca de um pensador. A narrativa que pode ser construída a partir da reverie é a construção do analista. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “...postulo que O em qualquer situação analítica está disponível para transformação por analista e analisando igualmente.” [33] (Bion 1965/2014, p. 169). A turbulência gerada pelo encontro com Antônio - o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979) - rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma reverie na mente da analista: a imagem dos sapatos de um morto, que também passa a ser um fato selecionado da sessão, como explicitado acima. A imagem pictórica já é o produto de um processo de transformação, do qual não temos acesso à origem. A analista em estado de capacidade negativa é arrastada pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido. A capacidade negativa é o estado de mente sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia, estado receptivo a O, e, também, favorecedor da intuição psicanalítica. É preciso ter paciência (estado de mente esquizopananoide) e fé (Bion, 1970) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo), que propicie uma evolução em K, um conhecimento do sofrimento psíquico do paciente por meio de uma imagem pictográfica, a reverie . As compreensões de reverie como a capacidade imaginativa da mente (Bion, 1968/2014), uma imaginação criadora (Chuster, 2019), ou um pensamento imaginativo, são nomeações e transformações bem-sucedidas a partir das primeiras postulações de Bion (1959, 1962). Sob essa perspectiva, podemos pensar na cesura intuição/alucinação, sendo que há um ponto de indecibilidade, um momento que não sabemos se aquela imagem que nos arrebata na sessão, a reverie – os sapatos de um morto - é uma alucinação ou intuição. À guisa de uma conclusão Os fatos, a experiência em si, aquilo que é incognoscível, pode ser transformado parcialmente em sonhos, escreve Bion na epígrafe deste texto. A experiência precisa ser sonhada pela função alfa, essa função transformadora e criadora de sentido. Os fatos precisam ser sonhados, ‘inconscientizados’, a outra via da interpretação dos sonhos. Os sonhos são uma forma de interpretar os fatos, uma transformação da brutalidade da vida em elementos oníricos, que encontram um sentido por meio de imagens e posteriormente narrativas, as interpretações e construções do analista na sessão. A intuição não é sensória, mas tem algum apoio indiscernível e dificilmente identificável no mundo sensório. Fazendo uma analogia, podemos compreender os elementos infra sensorial e ultra sensorial, referidos por Bion (1992/2000), como as sonoridades que não são captadas pelo ouvido humano. Podemos também pensar naquelas pessoas que têm ‘ouvido musical’ e escutam notas musicais que poucos escutam. Essa é uma boa metáfora para o analista: aquele que capta, por meio da intuição, elementos psíquicos inaudíveis e imperceptíveis para alguns. Para os que têm ouvido analítico intuitivo e capacidade de observação treinada, é possível captar notas inaudíveis ou o silêncio imperceptível entre as notas. E, se não estamos alucinando, estamos intuindo elementos psíquicos em estado bruto. Concluindo, penso que a intuição psicanalítica seja uma afetação enigmática que ocorre de forma fugaz no trânsito contínuo e oscilante entre diferentes cesuras, e que evolui para uma imagem, a reverie , por meio de uma imaginação criadora. A expressão imaginação criadora (Chuster, 2019) é exitosa: uma imagem em ação, em movimento, um elemento psíquico, uma reverie , um pensamento (Bion, 1968/2014) em busca de um pensador na dupla analista-analisando. Sucintamente, compreendo a reverie como um pensamento imaginativo que evolui na sessão a partir da capacidade de intuição do analista que ocorre na oscilação constante entre cesuras. Termino este capítulo com a epígrafe do texto de Thomas Ogden (2013) Reverie e Interpretação, citando o poeta Henry James (1884), pois acredito ser esta uma definição conceitual muito bem-sucedida, apreendida pela capacidade de poiesis da mente, ou seja, a reverie por si mesma: A experiência nunca é limitada, e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, um tipo enorme de teia de aranha de finíssimos fios de seda suspensos na câmara da consciência, capturando todas as partículas voláteis do ar em seu tecido. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa (...) capta os mais tênues sinais de vida (...) (146). Notas [1] Esse texto foi originalmente publicado em inglês: The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed , The International Journal of Psychoanalysis, 103:6, 929-947 DOI: 10.1080/00207578.2022.2084402. Agradecemos a autorização do IJP para a publicação da versão em português neste livro. [2] Psicanalista, Professora Doutora do IPUSP, orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Psicologia Clínica do IPUSP. Coordenadora do LipSic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea), autora de diversos livros e artigos. https://www.lipsicpsicanalise.com/ ; https://www.marinarribeiro.com . [3] Esse fragmento clínico foi apresentado em duas reuniões científicas on-line (2020, 2021) disponíveis no youtube nos links: https://www.youtube.com/watch?v=jWHTWg-Gu9E e https://www.youtube.com/watch?v=Z01HZE_p8jo . [4] Estou circunscrevendo a discussão do conceito de reverie neste artigo como uma representação pictórica, uma imagem. Civitarese (2016) refere-se às reveries corporais, devido à complexidade desse debate, que justificaria um texto a parte, permaneço do campo da compreensão da reverie como um pictograma ou ideograma, ou seja, como foi postulado por Bion. [5] Uso a expressão imagem pictórica, pois é uma imagem que é ‘pintada’ na mente do analista, sua origem latina é pictōre, pintor. Bion (2000) no livro Cogitações usa os termos: ideograma, representação pictórica ou imagens pictográficas praticamente como sinônimos. [6] “Ato de fé: ...Assim, ele designa um ato que se realiza no domínio da ciência e que deve ser diferenciado do significado habitual de conotação religiosa. (...). Refere-se à necessidade de o sujeito acreditar que há uma realidade que ele não sabe o que é e que não está a seu alcance. ” (Zimerman, 2004, 78). [7] Comunicação oral (2020). [8] Fred Bush (2019) publicou um livro, The analyst's reveries. Exploration in Bion’s enigmatic concept , dedicado ao conceito e suas diversas compreensões em três principais autores pós bionianos: Thomas Ogden, Antonino Ferro e o casal Rocha Barros. [9] No original: ‘Thoughts are a nuisance’. Thoughts logically and epistemologically, prior to thinking. 10. Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’. [10] No original: “One of the most enriching parts of these Cogitations must surely be Bion’s conception of the dream work. We find here the germ of what the author was later to call the capacity for reverie. What this means is that the dream work constitutes only a small part of this type of activity as found in the dreamer – that this work is a continuous process which also goes on during daytime activity, but remains unobservable (other than in conscious fantasy) except through its lack in the psychotic. The capacity for reverie is merely the visible aspect of a largely unconscious form of thought.” (355) [11] O flash visual é uma expressão de Meltzer (1984/2009). Refere-se a uma imagem que é “vista” externamente, ou seja, que tem um componente alucinatório mais intenso. O que a diferencia de uma alucinação é que o sentido da imagem emerge a posteriori. [12] Expressão de Ogden (2013). [13] Conforme o livro From Reverie to Interpretation. Transforming Thought into the Action of Psychoanalysis (Blue & Harrang, 2016). [14] Proto-pensamentos é uma expressão adotada por Bion (1948-1951) ao se referir a algo que ainda não é um pensamento, mas tem a potencialidade de ser, um ideograma. [15] Considerando que a distinção entre esses termos exigiria um outro trabalho. [16] Itálicos dos autores. [17] “Bion - inspirado em Freud - utilizou esse termo em seus estudos sobre a continuidade que existe entre a vida pré-natal e a pós-natal (...). Assim, a palavra cesura também designa, na obra de Bion, uma espécie de ponte que, na situação analítica, representa a passagem de um estado mental para outro (...)”. (Zimerman, 2004, 79). O conceito de cesura será abordado adiante no texto. [18] Bion no livro Cogitações (1992) usa os termos infra sensorial e ultra sensorial, podemos fazer uma analogia com os raios ultravioletas que são imperceptíveis aos olhos, mas que produzem efeitos. [19] No original: “For me, reverie (…), waking dreaming, is paradigmatic of the clinical experience of intuiting the psychic reality of a moment of an analysis. In order to enter a state of reverie, which in the analytic setting is always in part an intersubjective phenomenon (Ogden, 1994a), the analyst must engage in an act of self-renunciation. I mean the act of allowing oneself to become less definitively oneself in order to create a psychological space in which analyst and patient may enter into a shared state of intuiting and being-at-one-with a disturbing psychic reality that the patient, on his own, is unable to bear.” (Tradução livre) [20] “Fato selecionado: este importante conceito - inspirado no matemático Poincaré - se refere à busca de um fato que dê coerência, significado e nomeação a fatos já conhecidos isoladamente, mas cuja inter-relação ainda não foi percebida, …” (Zimerman, 2004, 86) [21] This chapter is based on a paper written jointly with John Steiner (Britton and Steiner, 1994). [22] No original: “…the problem is that the analyst will be encouraged to believe that his overvalued ideas are the selected fact, as consensual agreement is valued more highly than the truth.” Tradução nossa. [23] Os sapatos concretos do paciente não tinham nenhuma peculiaridade que pudesse ser um apoio sensório para a imagem dos sapatos de um morto. Além disso, não havia nenhuma informação sobre o paciente anterior ao encontro, o que torna esse fragmento clínico interessante para uma aproximação com os conceitos de intuição e reverie . [24] Com relação à localização na obra de Bion do termo intuição, ele aparece no livro Transformações (1965), na conferência ministrada em 1965 em Londres intitulada Memória e Desejo , no pequeno, porém notável texto de 1968, Notas sobre memória e desejo , nos Comentários ao livro Estudos Psicanalíticos Revisados (1967), nos Seminários em Los Angeles (1968) e nos primeiros capítulos de Atenção e Interpretação (1970), e, também no livro Cogitações (1992). [25] Bion sugere os termos finito para consciente e infinito para inconsciente. [26] A frente no texto articulo a intuição com a teoria das transformações de Bion (1965). [27] Sugestão feita por Evelise Marra em reunião científica (2021). [28] Expressão de Luís Cláudio Figueiredo (2021), comunicação oral. [29] Pensamento imaginativo foi uma denominação que surgiu ao longo da escrita deste artigo. [30] Retomada por Chuster (1996). [31] Realização no sentido de tornar visível o invisível, estou usando o termo de forma laica. Realização é um conceito de Bion que tem diferentes compreensões ao longo da obra. [32] Lembrando que para Bion a contratransferência é sempre inconsciente. [33] No original: “I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analyst and analysand equally.” Tradução nossa. Referências Bibliográficas Bion, R. Wilfred (1948-1951). Experiences in groups. The complete works of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Bion, R. Wilfred. 1959. 'Attacks on linking", in The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books, 2014 Bion, R. Wilfred (1962). Learning from experience . 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- Palavras aladas guiando o encontro analítico [1]
Este artigo, de autoria de Fátima Flórido Cesar [2], Marina Ribeiro [3] e Cláudia Perrotta [4], foi publicado em 2022 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 29, número 2, na edição intitulada Psicanálise Brasileira . O texto pode ser acessado em: https://revista.sppa.org.br/RPdaSPPA/article/view/1049 . RESUMO: Neste artigo, propomos uma interlocução com psicanalistas que discutem a psicanálise epistemológica e a psicanálise ontológica, destacando as contribuições de Thomas Ogden, para quem a primeira busca o conhecimento e a compreensão, tendo Freud e Klein como principais autores, enquanto a segunda é descentrada dos aspectos simbólicos da experiência, tendo Bion e Winnicott como referências ao enfatizar a importância de a comunicação na sala de análise abrir campo para a imaginação e o onírico. Entendemos que a psicanálise ontológica busca o que aqui nomeamos de substância-forração intersubjetiva, a qual vai sendo criada entre analista e analisando, de modo a facilitar a confiança no vínculo e favorecer um campo de criação entre a dupla, sendo que, para isso, as palavras isentas de fixidez, ou palavras aladas, possibilitam o contato real e humano. São apresentadas vinhetas clínicas que ilustram formas de a psicanálise ontológica fazer-se presente nos processos psicanalíticos. Palavras-chaves : Psicanálise epistemológica; Psicanálise ontológica; Thomas Ogden; Comunicação na análise “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar” (Lupicínio Rodrigues, 1947). “A natureza da gente não cabe em certeza nenhuma” (Guimarães Rosa, 2006). Introdução “Eu desço dessa solidão Espalho coisas sobre Um Chão de Giz Há meros devaneios tolos A me torturar Fotogra as recortadas Em jornais de folhas Amiúde! Eu vou te jogar Num pano de guardar confetes ...” (Zé Ramalho, 1978) Alice no país das maravilhas, Alice no país dos terrores. Alice me diverte colocando purpurina em seus sofrimentos, ou serão melodramas em que “finge sentir que é dor, a dor que deveras sente?” (Pessoa, 1987, p. 98-99). O prazer nos une, assim como os sonhos, os assombros e os objetos culturais (principalmente músicas e a adoração por ídolos da mesma geração). Em um de nossos encontros, me oferta: “Há tantos devaneios tolos a me torturar, amiúde”. Não canta, apenas recita a seu modo, brincando com a letra da canção. Fico encantada – e surpresa – com a adaptação pertinente que Alice fez para contextualizar seu drama, enquanto circulávamos em torno de outros assuntos. Saboreei o eloquente verso recriado, que virou nossa senha de comunicação. Os devaneios tolos poderiam bem ser suas renitentes desconfianças em relação à fidelidade do marido; entretanto, nada foi falado a respeito, nada foi dito. Celebrei Alice e o verso, e nossos nós de ligação se estreitaram. A partir desta breve narrativa de encontro analítico, seguimos o presente artigo propondo uma interlocução com alguns psicanalistas, Thomas Ogden em especial, que vêm discutindo as diferenças entre psicanálise epistemológica e psicanálise ontológica, destacando a importância de a comunicação na sala de análise também abrir campo para a imaginação e o onírico. Os versos, os sonhos e tantos outros assuntos, tolos ou não, compartilhados por Alice com sua analista, continuam aqui a reverberar, em companhia de Mel e Estela, ganhando corpo em nossas palavras por vezes aladas – essas mesmas que, pensamos, devem impregnar os encontros analíticos, amiúde. 1. Narrativas imaginativas e a dimensão criativa do inconsciente Como vimos no episódio que abre este artigo, Alice e sua analista andaram juntas em planícies onde o encontro ocorre em meio à poiesis . Nomeamos esse lugar de encontro de inconscientes, não sistemático, nem reprimido e que funciona em outra lógica. Podemos pensar que, quando tem essa qualidade onírica e de poiesis , a narrativa da dupla analítica possibilita pensar os pensamentos ainda não pensados, os elementos psíquicos em estado bruto, que ainda não encontraram uma mente para serem contidos; ou, em outras palavras, uma outra mente para ‘habitar’. (Ribeiro, 2019, p. 179) A autora segue citando Mia Couto (2012): “O segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades” (p. 101). Conclui destacando a importância de “construirmos uma narrativa inédita e transformadora, sonhando os sonhos ainda não sonhados na sala de análise” (Ribeiro, 2019, p. 179). No lugar da interpretação, que pode nos direcionar a uma prática de decodificação, podemos usar narrativas imaginativas, termo desenvolvido por Grostein (2010), construídas a partir das mentes do analista e do analisando, ou contação de histórias ou ainda o conceito de construções em análise de Freud (1937). Se as narrativas de Grostein (2010) são preponderantemente visuais, podemos pensar nas palavras trocadas entre paciente e analista em sua materialidade e sonoridade – assim como se saboreiam palavras e versos em um poema. No dizer de Chuster, Trachtenberg e Soares (2014), trata-se de “valorizar o potencial da ‘experiência emocional e seus significados’ para o desenvolvimento do pensamento em si” (p. 74), usando, para isso, não apenas interpretações, mas também construções e descrições. Ou seja, independentemente da nomeação que escolhermos, a imaginação5 deverá estar no centro da comunicação, abrindo campo para a complexidade dos processos mentais. Estamos em uma direção ético-técnica que aponta para o interesse genuíno do analista no psiquismo do analisando, de modo a nos apresentarmos como uma presença maleável, o que nos convoca a acionar ou desenvolver certas qualidades. Podemos falar de uma substância-forração intersubjetiva que vai sendo criada entre a dupla, facilitando que, com o passar do tempo, isso propicie confiança no vínculo e advenha um campo de criação entre dois ou o surgimento de palavras aladas – estas isentas de fixidez, humildes, com um tanto de imprecisão e de deslizes, possibilitadoras do contato real e humano na sala de análise. Para Bollas (2013), esse campo de criação é engendrado no que ele denomina inconsciente receptivo ou, em algumas passagens, inconsciente recebido. O autor aponta uma falha na teoria freudiana do inconsciente: “A repressão, uma parte importante do inconsciente, não é de modo algum a parte mais substancial (...). A organização inconsciente é capaz de receber ou reprimir ideias. Eu presto atenção especial, contudo, a sua função receptiva, pois esta não foi conceituada adequadamente” (p. 26-27). Ainda assim, Bollas (2013) localiza nos escritos freudianos referências à condição de o inconsciente do analista receber o inconsciente do analisando, sinalizando a existência de “diferentes formas de pensamento inconsciente”, e acrescenta: “A criatividade inconsciente, de qualquer profundidade, é extremamente complexa” (p. 29). Será da dimensão criativa desse inconsciente receptivo que emergem as trocas entre analista e analisando? Afinal, é quando as palavras guardam certa imprecisão que podem ser geradoras de potência e criatividade, as reticências, o dito e o não-dito. Em torno da imaginação, que, segundo Ogden (2010), é sagrada na sala de análise, histórias vão se tecendo, em um diálogo recíproco analisando-analista, sendo este último o responsável pelo processo. 2. Psicanálise ontológica na perspectiva de Ogden Na verdade, as reflexões acima se inspiram nas proposições de Ogden (2020) no artigo Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?” , em que diferencia psicanálise epistemológica – relacionada ao conhecimento e compreensão, tendo Freud e Klein como principais autores – de psicanálise ontológica, tendo Bion e Winnicott como referências relativas ao ser e tornar-se. Logo no início, destaca que, enquanto para Winnicott a psicanálise deixa de ser centrada no sentido simbólico do brincar e passa para a experiência de brincar, em Bion, a experiência de sonhar, considerada em todas suas formas, sobrepõe-se ao sentido simbólico dos sonhos. A essa altura, deve ter cado claro que temos nos debruçado no campo da psicanálise ontológica. De fato, na psicanálise contemporânea, observamos uma mudança de ênfase em relação à psicanálise epistemológica, a qual busca chegar ao entendimento do mundo interno inconsciente do paciente e de seu relacionamento com o mundo externo de modo a alcançar mudanças psíquicas. Aqui, a interpretação tem importância central a partir do reconhecimento da questão provocadora de angústia. Por sua vez, a psicanálise ontológica propõe que o paciente descubra sentidos de maneira criativa a m de se tornar mais plenamente humano. Ogden (2020) destaca que o texto descreve o que aconteceu em seu próprio pensamento: “o enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais vivas e reais” (p. 24). No entanto, embora nosso artigo enfatize a psicanálise ontológica, é fundamental a advertência de Ogden no sentido da existência de um enriquecimento mútuo entre ambas, que, na verdade, não existem de forma pura na sala de análise. Psicanálise epistemológica e ontológica são vértices oscilantes da experiência clínica – ou seja, não são excludentes e sim suplementares. Assim, a cada momento da sessão, observamos o fenômeno clínico de modo a identificar qual vértice predomina. Na psicanálise ontológica, o horizonte do analista é o campo do tornar-se si mesmo – campo da ontologia. Na psicanálise epistemológica, o vértice do conhecimento de si predomina. Dizendo de outra forma, podemos pensar em uma contínua oscilação entre o conhecer e o ser, no qual o analista, atento ao movimento intersubjetivo do campo analítico, pode tornar figura um dos vértices, com o outro permanecendo como fundo, e vice-versa. Trata-se, portanto, de estados de predominância entre o ontológico e o epistemológico, uma oscilação entre figura e fundo, mas sempre conectados e coexistentes. Bion, autor estudado com profundidade por Ogden, propõe no livro Transformações (1965/2014) uma reflexão sobre a eficácia psicanalítica e não apenas acerca das verdades do conhecimento psicanalítico. Bion (1965/2014) retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise, sustentando que o fenômeno é conhecido, mas a realidade é tornada; sendo assim, a interpretação deve ir além da ampliação do conhecimento que o paciente tem de si mesmo. Em outras palavras, a interpretação precisa favorecer uma transformação no sentido do tornar-se si mesmo, e não apenas no sentido de um conhecimento de si. Nosso artigo segue essa reflexão na qual predomina o vértice ontológico da psicanálise, ou seja, do ser e do tornar-se. Voltando a Ogden, a respeito do título de seu artigo, o autor destaca que a pergunta “O que você quer ser quando crescer?”, dirigida por Winnicott a todos os adolescentes que atendia, era, na verdade, “a pergunta que todos podemos fazer ao longo da vida, desde muito cedo até o momento antes de morrer”, a qual possibilita a abertura de tantas outras: Quem gostaríamos de nos tornar? Que tipo de pessoa gostaríamos de ser? De que maneiras não somos quem somos? O que nos impede de sermos mais como a pessoa que gostaríamos de ser? O que poderíamos fazer para nos tornarmos mais como as pessoas que sentimos ter o potencial e a responsabilidade de ser? São essas as perguntas que trazem os pacientes à análise, mesmo que pensem que seja para alívio dos sintomas. Às vezes, o objetivo do tratamento é conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de fazer essas perguntas para outro no qual seja capaz de fazê-lo. (Ogden, 2020, p. 23-24) Assim, o horizonte da psicanálise ontológica é favorecer o movimento do paciente na direção do tornar-se si mesmo, o que se desenha com Alice – a poesia embalando o encontro analítico e oferecendo à dupla uma comunicação que não se restringia a uma intervenção epistemológica interpretativa, e sim abria espaço para o campo do sensível, proporcionando trocas pré-verbais e processos de transformação psíquica. A comunicação deu-se no entre, na área intermediária, de uma terceiridade emergente no campo do encontro, em que as áreas do brincar se sobrepõem. Como bem diz Winnicott (1971/1975), “a psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas” e, sendo assim, “o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é” (p. 59). Na psicanálise ontológica, ocupamos um lugar de espera; assim, o primeiro movimento explícito (não desconsiderando que, nas entrelinhas do encontro, eram tecidas compreensões em suspensão) viera de Alice. Novamente fazemos uso das palavras de Winnicott (1969/1975): “Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria; hoje posso fruir mais prazer nessa alegria do que costumava com o sentimento de ter sido arguto” (p. 121-122). Foi mesmo com júbilo que o verso-canção de Alice foi acolhido pela analista – dali brincaram, mas não a partir da experiência de buscar autoentendimento e sim do processo de tornar-se mais plenamente humana. Além da alegria experimentada pelas duas, Alice pôde receber reflexivamente o encantamento da analista, como o encantar-se da mãe com as proezas de sua criança. Assim, a experiência foi predominantemente ontológica, envolvendo modos diferentes de ação terapêutica. Acerca desse aspecto, Ogden destaca oferecer um contexto interpessoal que, na relação analítica, leva a ganharem vida formas de experimentar estados de ser antes impensáveis para o paciente. Quando comentávamos a letra da canção Chão de Giz, Alice falou-me de suas fantasias de que seria uma música dedicada a uma “mulher da vida”. Em vez de buscar uma compreensão do conteúdo da comunicação, camos juntas tentando entender o sentido da letra, mais como uma atividade lúdica do que decodi cadora. Até pesquisas no Google zemos e, desse modo, distanciávamo-nos cada vez mais de suas terapias anteriores, nas quais se enredava em ruminações ressentidas sobre o passado com a mãe ou sobre o pai desconhecido – uma clínica do passado com seus riscos de aprisionamentos circulares e claustrofóbicos. Entrávamos no campo do brincar: Alice precisava se apropriar da leveza que eu percebia nela e da alegria de se sentir vista e celebrada; estávamos, portanto, numa dimensão ontológica. Ainda de acordo com Ogden, talvez a maior contribuição para a psicanálise ontológica de Winnicott sejam os conceitos de objetos e fenômenos transicionais: uma área de experimentação, para a qual contribuem tanto a relação interna quanto a externa, que não é para ser disputada; um lugar de repouso para a perpétua tarefa humana de manter ambas separadas, mesmo que interrelacionadas. Para que o bebê ou o analisando adquiram um estado de ser, é necessário um estado de ser correspondente na mãe ou no analista. O lactante cria o que está ao seu redor esperando para ser encontrado – o objeto é criado e encontrado, o que precisa ser aceito como um paradoxo, e não resolvido por um refraseado que, por seu brilhantismo, pareça eliminá-lo (Winnicott, 1963/1982). Esse estado de ser subjaz à experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo. Também podemos pensar que o encontro analítico constitui-se em um lugar de repouso, de aceitação do paradoxo, de experimentação, e que, com essas qualidades, possibilita que tanto paciente quanto analista adquiram um estado de ser . Em diálogo com Winnicott e Bion, Ogden (2020) destaca que: (...) a necessidade humana mais fundamental é ser e tornar-se mais plenamente si mesmo, o que, a meu ver, envolve tornar-se mais presente e vivo para os pensamentos, sentimentos e estados corporais; tornar-se mais capaz de sentir os potenciais criativos e encontrar formas de desenvolvê-los; sentir que se está a propiciar ideias próprias e a exercer sua própria voz; tornar-se uma pessoa maior (talvez mais generosa, compassiva, amorosa ou aberta) ao relacionar-se com os outros; desenvolver mais plenamente um sistema de valores e um conjunto de padrões éticos humanos e justos; e assim por diante. (p. 34) 3. Estilo analítico sob o vértice da psicanálise ontológica: os deslimites da palavra Ogden (2020) fala da necessidade do desenvolvimento de um estilo analítico próprio, de modo a não adotarmos uma técnica herdada de gerações anteriores. Assim, inventamos a psicanálise, para cada um de um jeito, respondendo espontaneamente, ora usando palavras, ora formas não verbais, com a resposta espontânea chegando sob a forma de ação. A palavra ganha asas e simplicidade, sem perder a complexidade, a qual é tecida na sombra, nos veios subterrâneos do entrecruzamento das mentes do analista e do analisando, com o objetivo de auxiliar este último a se tornar o mais plenamente humano e o mais plenamente si mesmo. A partir do texto do autor intitulado How I talk with my patients 6 (2018), que procura lançar luz no uso das palavras, assim como na necessidade de nos calarmos, de modo tal que alcancemos o paciente, lembramos da importância de evitar o “uso da linguagem que convida o paciente a se envolver predominantemente no pensamento do processo secundário consciente, quando dimensões inconscientes do pensamento são o que são solicitadas” (Ogden, 2018, p. 399). Para tanto, ele propõe que utilizemos mais a descrição em oposição à explicação, a m de facilitar o processo analítico. Da mesma forma, a certeza por parte do analista impossibilita tanto o processo analítico quanto o potencial do paciente para o crescimento psíquico. O propósito de nosso artigo consiste, então, em destacar o predomínio, na comunicação analista-analisando, do processo primário e não o aprisionamento no processo secundário: o encontro vai acontecer no campo da experiência, e não no das intelectualizações. Quando nos referimos a um predomínio do processo primário, pensamos na ressonância entre inconscientes: são as palavras aladas, que precisam incluir mal-entendidos, convidando ao surgimento de conjecturas, à humildade frente ao desconhecido da condição humana, como no episódio clínico seguinte, vivido com Mel. Oscilando entre um retraimento opositor e um exibicionismo em que navegávamos por águas rasas, ou ainda, embora raramente, trocando compreensões mais próximas de um incipiente contato verdadeiro, naquele dia em particular, Mel dissera que não queria falar e que estava com sono. Então eu lhe disse: “tudo bem, você pode dormir que eu te acordo quando terminar a sessão”. Ela se deitou e, como estava frio, perguntei à menina desamparada7 se queria que a cobrisse com uma manta que tenho disponível. Ela assentiu com um leve som. Cobri-a e, depois de um tempo, falei algo do tipo “estou aqui... blá- blá-blá”, palavras plasti cadas e inócuas, impessoais e passíveis de serem assim facilmente percebidas por Mel. Com a cabeça coberta, ela emitiu um sonoro: “Psiu!”. Eu disse: “Ok! Desculpe, rompi nosso trato”. Depois de um tempo, ela tirou o rosto para fora da manta e indagou: “Por que nada me motiva?”. A partir dali começamos uma conversa, na qual ela pôde ser mais próxima e verdadeira como poucas vezes tínhamos experimentado. A dimensão ontológica do encontro analítico predominou nesse momento. A forma com que falamos com o paciente ganha prevalência em relação ao que queremos dizer , ressalta Ogden (2018). Assim como o processo primário é inseparável do processo secundário, igualmente estão ligados o que dizer com o como dizer ; entretanto, a ênfase será dada neste último, que o autor nomeia de fora de si do analista, seus mal-entendidos. Ele também enfatiza que, no encontro analítico, descrever a experiência em oposição a explicá-la facilita a aproximação do que ocorre no inconsciente. O pensamento paradoxal de Ogden (2018) continua quando a rma que a “minha própria experiência é incomunicável; a experiência do paciente, inacessível: eu nunca poderei conhecer a experiência do paciente” (p. 400), pois entende que tanto palavras como expressões físicas não dão conta de comunicá-las. Ainda assim, “podemos ser capazes de comunicar alguma coisa parecida com nossas experiências vividas pela re-apresentação da experiência” (Ogden, 2018, p. 400). Isso pode envolver o uso de uma linguagem que é particular para cada um de nós e para o evento emocional que está ocorrendo, por exemplo, por meio de metáfora, ironia, hipérbole, ritmo, rima, sagacidade, gíria, sintaxe e assim por diante, bem como de expressões corporais como mudanças no tom de fala, volume, andamento e qualidade do contato visual. (Ogden, 2018, p. 400) De fato, nesta perspectiva, reconhecemos de imediato algo muito distante de palavras e atos plasti cados, uma multiplicidade de formas e possibilidades de comunicação-palavras e atos com asas, no sentido de trocas na direção da liberdade inconsciente e da ampliação do tornar-se humano. A brecha entre as mentes , como o autor nomeia, ou a divisão entre a subjetividade do paciente e do analista não é para ser superada, pois “é um espaço no qual uma dialética de separação e intimidade pode dar origem à expressão criativa. A oportunidade de imaginar criativamente as experiências do outro não aconteceria se a comunicação individual fosse possível” (Ogden, 2018, p. 400). Outro paradoxo é assinalado: as partes deixadas de fora das comunicações abrem um espaço em que podemos ser capazes de preencher a lacuna entre nós mesmos e os outros. Ogden alerta-nos que, não sendo possível conhecer a experiência de nossos pacientes, tudo vai depender do que está acontecendo naquele momento entre a dupla analítica. Por isso, sugere evitarmos nomear o que eles estão sentindo, limitando-nos a dizer o que estamos pensando: Quando falo com um paciente sobre o que sinto que está acontecendo emocionalmente na sessão, posso dizer algo como: ‘Enquanto você estava falando [ou durante o silêncio], esta sala parecia um lugar muito vazio [ou lugar tranquilo, ou lugar confuso, e assim por diante]’. Em expressando assim, deixo em aberto a questão de quem está sentindo o vazio (ou outros sentimentos). Foi o paciente, ou eu, ou algo que nós dois temos inconscientemente criados juntos? (o ‘campo analítico’ [Civitarese 2008, 2016; Ferro 2005, 2011] ou o ‘terceiro analítico’ [Ogden 1994]). Quase sempre, são todos os três – o paciente e eu como indivíduos separados, e nossas co-criações inconscientes. (Ogden, 2018, p. 401) Fazer perguntas como “Por que você faltou ontem?”, por exemplo, direciona o paciente a conversar de modo super cial, consciente, em termos de causa e efeito, ou seja, de acordo com o processo secundário. Quando se percebe fazendo esse tipo de pergunta, Ogden interroga-se sobre o que pode estar acontecendo em termos inconscientes que pode estar o assustando. A certeza também vai interferir negativamente no processo analítico quando os pais são responsabilizados – tanto pelo paciente quanto pelo analista – pela situação emocional atual do paciente. Embora este possa ter sido gravemente negligenciado, Ogden ressalta a importância de não focarmos o seu adoecimento ligando-o à culpa dos pais. Se assim procedermos, corremos o risco de roubar dele a possibilidade de experimentar a sua vida de modo mais complexo e humano, podendo inclusive incluir uma compreensão do senso de responsabilidade pelo sofrimento vivido na infância. Então, ao invés de pensar em uma técnica derivada de ideias ligadas a escolas particulares do pensamento analítico, ancorada em um sentimento de certeza, Ogden pensa em estilo clínico como uma criação própria, um processo vivo que se origina a partir da experiência e da personalidade do analista. Vamos assim delineando a função vitalizadora do analista baseada em sua pessoalidade, aberta à imprecisão e à incerteza como fonte de criatividade. Em vez de usarmos o termo técnica , pensemos no desenvolvimento de um estilo clínico , como sugere Ogden (2018). Mais uma vez, ressaltamos aqui a simplicidade necessária na comunicação, enraizada em veios ricos de complexidade. Estamos nos referindo a descrições sucintas de estados de sentimentos. No entanto, lançamos um paradoxo: o simples é igualmente prenhe de riqueza e requer trabalho psíquico da dupla, para que, a partir da fala, surjam aberturas para a expansão psíquica, não apenas do paciente, mas também do analista. O erudito pode vir a ertar com a arrogância, que leva à destruição e à ruptura do vínculo. A arrogância impossibilita o encontro. Eis um exemplo de descrição dado por Ogden (2018): se um paciente chega na sessão apavorado, antigamente ele poderia perguntar: “O que te apavora?”. Em uma experiência recente na qual a paciente compartilhou o seu receio de vir vê-lo, ele disse: “Claro que você está” – uma descrição exatamente como ela é, uma forma de acolher suas fantasias em vez de apresentar tranquilização ou razões lógicas próprias do processo secundário. Acolher a densidade da experiência emocional requer que estejamos abertos aos nossos próprios recursos anímicos, uma densidade que vem sob a forma de leveza, palavras com asas. No exemplo acima, os bastidores (o pensamento mais esticado de Ogden, nem por isso dissociado de um anar pela comunicação mútua inconsciente entre paciente e analista), ou seja, o que vem em parênteses (“o que você está sentindo agora parece apenas natural”), ganhou breves palavras de alcance: “Claro que você está”. Entre o desejo de ser compreendido e o desejo de não ser compreendido As palavras dizem e não dizem, os silêncios são espaços vazios ou comunicam eloquência. Assim, habitamos o imponderável – a rmação que talvez melhor explicite o objetivo deste artigo: a comunicação como possibilidade de não-comunicação. Parafraseando o umbigo do sonho, também podemos falar do umbigo da conversa analítica – assim como “a vida é etecétera” (Rosa, 2006, p. 110 ) , da mesma forma são as palavras quando precisamos abdicar do desejo de tudo entender e de conquistar um ilusório controle. Precisamos manter palavras cambiantes, assim como na brincadeira de bambolê: então está lá, rodando com maestria em torno do quadril e, como os bem-vindos mal-entendidos de Ogden (2018), quando cai a grande argola, vamos de novo – esse é o jogo. Foi assim com Estela: entre tristezas, emergem palavras, intrigantes e belas. Ela me relata que, numa aula do curso de psicanálise, a professora falara que o paciente estava esgarçando. Seus olhos brilham enquanto ela faz gestos com as mãos retratando o esgarçar. Estávamos no jogo do bambolê e, surpresa, digo: “ele estava colapsando”. Foi quando meu bambolê caiu. Percebi o escorregão quando realizei que colocava, no jogo, palavras minhas, xas, descoladas da conversa e do que era esgarçar para Estela. Levanto meu bambolê, retorno ao balanceio, dou lugar à fala de minha paciente. Seu esgarçar remetia a quando os tecidos se gastam e, como uma dança com as mãos, ela fala de seu encantamento frente às bras se afastando. Estela transformou o que eu sonhara como catástrofe em algo belo, e eu disse para ela dessa capacidade, lembrando do verso da canção de Caetano e Jorge Mautner: “Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento, Belezas são coisas acesas por dentro”. Esgarçar passou a ser uma palavra da dupla analítica. Gosto de convidar alguns pacientes a saborearem palavras, mas nem todos entram na brincadeira. Estela entra e me ensina, a partir de seu dialeto (é de região distante), como, por exemplo, “vamos falar potocas”. Potocas, aprendo, é jogar conversa fora, jogar palavras ao léu, saborear a leveza. A palavra potoca só entra quando as belezas estão acesas, dia de tristeza não é dia de potoca. Não entendi de todo o seu encantamento pelo esgarçar: ela é arquiteta de formação, e só pude entender o belo na efemeridade – algo entre o velho e o antigo. A paciente me diz que o texto que mais gosta de Freud (1916/2010) é Transitoriedade . Digo apenas que é muito bonito mesmo, e ca um resto de não entendimento. Esse episódio vivido com Estela remete à afirmativa de Ogden de que “nós falamos com um desejo simultâneo de ser compreendido e de ser mal-entendido, e que ouvimos os outros tanto com o desejo de compreender e de não compreender” (2018, p. 412). O desejo de não ser compreendido vai ao encontro da necessidade de manter uma faceta do eu que permanece isolada, como diz Winnicott (1963/1979). É interessante quando Ogden diz que o desejo de ser compreendido carrega um desejo para o fechamento. Por outro lado, o desejo de ser mal compreendido carrega o desejo de sonhar consigo mesmo e não ser visto pelo analista. Não saber muito faz-se necessário na medida em que pretendemos respeitar o desejo de autodescoberta do paciente. Aqui também nos encantamos com o dizer de Ogden (2018): O trabalho de compreensão acarreta o perigo de ‘matar’ uma experiência que estava viva em uma sessão analítica. Uma vez que uma experiência tenha sido ‘compreendida’, ela é morta. Uma vez que uma pessoa é ‘entendida’, não é mais uma pessoa viva, reveladora e misteriosa. (p. 412) Estela e eu camos encantadas com a palavra esgarçamento; entretanto, e paradoxalmente, mal a entendi e, suspensa em meu não compreender tudo, ela se manteve viva e interessante para mim. Contra a interpretação? As vadias palavras “(...) Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, en m, através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites”. (Manoel de Barros, 1985) Iniciamos este artigo buscando outras possibilidades para libertar a interpretação de seu sentido de decodi cação e trazê-la para o campo da vitalização do par analítico. Fomos, assim, passeando por textos e histórias clínicas que alertavam para o risco da proeminência do conteúdo e do processo secundário. A imprecisão e a incerteza instaladas no que várias vezes nomeamos de palavras aladas possibilitam que seja mantido o vivo do fenômeno, com rasgos e deslizes, ou seja, a experiência do encontro analítico. Palavras e silêncios vivi cadores ao liberar as amarras do anseio de tudo saber. Seguimos na direção do que Ogden (2020) denomina psicanálise ontológica, diversa da psicanálise epistemológica, em que a ação terapêutica principal é a interpretação. Já vimos que as duas psicanálises se enriquecem mutuamente – a primeira relativa ao ser e ao tornar-se, a segunda ao entender e ao conhecer. A interpretação não está banida, mas o seu alcance ocorrerá em função de como falar e não do que falar . Já vínhamos com essas questões quando encontramos o capítulo Contra a interpretação (2020) em livro homônimo da ensaísta, crítica de arte, lósofa e ativista Susan Sontag. Embora ela discorra sobre a interpretação da obra de arte, suas re exões vão ao encontro do que aqui pensamos sobre como nos aproximar e pensar a experiência do encontro analítico. Na maior parte do texto, a autora critica a interpretação, mas veremos que também diz que a questão não é que as obras de arte não podem ser interpretadas, mas sim como interpretar . Na direção do que pensamos em psicanálise, critica a ênfase excessiva no conteúdo que provoca a arrogância, ressaltando ser necessário “um vocabulário descritivo e não prescritivo para as formas [de arte]” (2020, p. 21). De modo similar, enfatizamos um enfoque menor no conteúdo e uma atitude humilde. Assim como Sontag defende uma reverência/respeito à obra de arte, igualmente precisamos (fazendo uso de suas palavras) de uma “descrição cuidadosa, aguda, carinhosa” (2020, p. 22 ) do encontro analítico. Se a interpretação é tradução, ela mata a obra de arte, assim como mata o encontro analítico. A autora considera que, em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera, uma forma de rever, de fugir do passado morto, enquanto em outros é reacionária, covarde, asfixiante. Perguntamos: não podemos transpor tais modos diversos de interpretação – um que liberta, outro que aprisiona e as xia – para determinadas intervenções psicanalíticas? De qualquer forma, Sontag (2020) considera que o nosso tempo é predominantemente de uma interpretação reacionária: (...) numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertro a do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo para erguer, edi car um mundo fantasmagórico de ‘signi cados’(...). O mundo, nosso mundo, já está su cientemente exaurido, empobrecido. (...) Chega de imitações, até que voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte. A interpretação torna a obra de arte maleável, dócil. (Sontag, 2020, p. 16). Se associarmos essas ideias à interpretação em psicanálise, podemos reconhecer as intervenções equivocadas que se baseiam em buscas de entendimento via causa e efeito e processo secundário – o predomínio do intelecto como projeto –, assim como, frente à obra de arte, domar, buscar o domínio do encontro, matando a experiência que liga a dupla analítica. No lugar do intelecto, Sontag (2020) convoca o sensorial: “o que importa é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (p. 23). Podemos associar aqui a proposição da autora à psicanálise do sensível: “nossa tarefa é reduzir o conteúdo para ver a coisa em si (...). A função da crítica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que signi ca” (p. 23). Continuamos propensos a alinhar as ideias de Sontag (2020) à dança/enlace da dupla analítica, não através do cognitivo, mas por meio do sensível, movimentos de tentar pegar com as mãos algo cujas partes escapam, os restos, o que não se compreende: “o silêncio nos poemas reafirma a mágica da palavra, escapou da garra brutal da interpretação” (2020, p. 19). Finalizamos com as belas palavras de Clarice Lispector que traduzem o verbo que voa e escapa, as palavras aladas, aquelas que sustentam a experiência viva. A linguagem é o modo de respeito ao indizível, a humildade de se voltar do encontro com as mãos vazias e livres do anseio pela compreensão: A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguia. (Lispector, 1979, p. 172). NOTAS 1 A expressão palavras aladas é encontrada em várias passagens da Odisseia de Homero, livro escrito entre os séculos III e II AC, tendo inúmeras versões publicadas (Homero, 1996). Estamos usando essa expressão no sentido de palavras que anam , delicadas, palavras com asas e que, assim, contêm e revelam a verdade emocional dentro de uma situação analítica intersubjetiva. 2 Pós-doutoranda Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). 3 Prof. Doutora Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). 4 Doutora em Psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2014), docente do Instituto Sedes Sapientiae. 5 A imaginação a que Chuster, Trachtenberg e Soares (2014) se referem é a captação do pensamento onírico da vigília na sessão, por meio de uma reverie ou uma conjectura imaginativa, por exemplo. Importante considerar que, para Bion, sonhar é pensar. 6 Como eu falo com meus pacientes – além do título, todas as citações referentes a esse artigo de Ogden são traduções nossas. 7 Neste momento em que escrevo menina desamparada , veio-me à mente, inesperadamente, o conto de Andersen (2010) intitulado A pequena vendedora de fósforos , que comovia as crianças por seu tom e nal tristes – no apagar do último fósforo, também se apaga a menina. REFERÊNCIAS Andersen, H.C. (2010). A pequena vendedora de fósforos . São Paulo: Zahar. Barros, M. (1985). Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record. Bion, R.W. (2014). Transformations. The complete woks of W.R. Bion . London: Karnac Books. (Original publicado em 1965) Bollas, C. (1992). A celebração do analisando pelo analista. In Forças do destino. psicanálise e idioma humano, (pp. 93-109). Rio de Janeiro: Imago. Bollas, C. (2013). O Momento freudiano. São Paulo: Roca. Chuster, A., Trachtenberg, R. & Soares, G. (2014). W.R. Bion: a obra complexa . Porto Alegre: Sulina. Couto, M. (2012). E se Obama fosse africano? Ensaios . São Paulo: Companhia das Letras. Freud, S. (2010). A transitoriedade. In Obras Completas , (Vol. 12). São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1916)Freud, S. (1937) Construções em análise. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud , (pp. 291-332). Rio de Janeiro: Imago.Grotstein, J.S. (2010). Um facho de intensa escuridão. O legado de Wilfred Bion à psicanálise . Porto Alegre: Artmed. Jarrell, R. (1955). To the laodiceans. In Poetry and the age . (pp. 34-62). New York: Vintage. Lispector, C. (1979). A paixão segundo GH . Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Homero. (1996). Odisséia . São Paulo: Cultrix. Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas. Uma introdução . São Paulo: Escuta. Ogden, T.H. (2010). Esta arte da psicanálise. Porto Alegre: Artmed. Ogden, T.H. (2018). How I talk with my patients. The Psychoanalytic Quarterly, 87(3), 399-413. Ogden, T.H. (2020). A psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?” Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-46. Ribeiro, M.F.R. (2017). Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto. Revista Latinoamericana Psicopatologia. Fundamental, 20(1), 181-193. Ribeiro, M.F.R. (2019). A função psicanalítica da personalidade. A narrativa do analista e do escritor. Cadernos de Psicanálise , 41(40), 169-187. Rosa, J.G. (2006). Grande Sertão: Veredas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira.Roussillon, R. (2019). Manual de prática clínica em psicologia e psicopatologia . São Paulo: Blucher. Sontag, S. (2020). Contra a interpretação. In Contra a interpretação . (pp.11-23). São Paulo: Companhia das Letras. Winnicott, D.W. (1963/1979). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In O ambiente e os processos de maturação . (pp. 163-174). Porto Alegre: Artes Médicas. Winnicott, D.W. (1975). “O brincar – uma exposição teórica”. In Winnicott, D.W. Brincar e realidade . Rio de Janeiro, Imago. Winnicott, D.W. (2019). O brincar e a realidade . São Paulo: Ubu.
- Os riscos no processo de diferenciação mãe e filha: uma análise do filme Cisne Negro.
O artigo aborda alguns aspectos psíquicos de quando o processo de diferenciação entre mãe e filha é insuficiente. Nessa dupla a semelhança parece contribuir para uma confusão identificatória própria, de modo que estudar a construção da feminilidade nas mulheres exige pensar a complexidade deste vínculo, e suas possíveis armadilhas narcísicas. Para tanto, foram feitas reflexões sobre o fenômeno do duplo (FREUD, 1919/1969), ao qual foram articulados conceitos psicanalíticos contemporâneos de Eric Bidaud (1998), Halberstadt-Freud (2001) e Marina F. R. Ribeiro (2009, 2011). Fazendo uso dos conceitos apresentados, foi analisado o filme Cisne Negro . Daina Edith Paegle Bittar; Marina Ferreira da Rosa Ribeiro; Marina Abud da Silva Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952020000200009&lng=pt&nrm=iso
- Sobre intuição psicanalítica: a afetação enigmática
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2022 nos Cadernos de Psicanálise | CPRJ , volume 44, número 46, páginas 155–168, na edição intitulada Afinando a escuta: um enorme passado pela frente . Resumo : O artigo apresenta reflexões sobre a intuição psicanalítica na obra de Bion, sustentando a conjectura de que a intuição é uma afetação enigmática que ocorre entre diferentes cesuras em constante oscilação. A mente é constituída por diversas cesuras, uma entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. A intuição se fenomenaliza na reverie, ou seja, a intuição (não sensorial) evolui para uma reverie (sensorial) que emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão. A reverie é compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando. Se a situação analítica for intuída com precisão – prefiro esse termo a “observada”, “ouvida” ou “vista”, porquanto ele não traz consigo a penumbra de associação sensorial –, o analista comprova que o inglês falado, comum, é surpreendemente adequado para formular a sua interpretação. (BION, 1967/1994, p. 153). Inspirada 1 na capacidade do analista de acolher o enigmático no encontro com seu analisando, senti-me instigada a refletir sobre um tema complexo e ainda pouco referido em textos: a intuição psicanalítica, especificamente na teoria de Bion, ou seja, o que ainda não sabemos 2 , a afetação enigmática que ocorre na sala de análise. Vou começar pelo que poderíamos chamar uma ilustração teórica a partir do texto de Chuster (2019), no qual o autor destaca que o Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) pode ser compreendido como um texto testemunho de uma intuição freudiana de toda a obra que se desenvolveria posteriormente, uma espécie de memória do futuro (BION, 1975/2014). O Projeto foi um texto freudiano desconsiderado por muitos anos, em função de sua característica não psicanalítica ou, poderíamos dizer, de um pensamento com características que podem lembrar quase um pensamento alucinatório. Quinodoz (2007) escreve que encontramos no Projeto intuições geniais de Freud disseminadas em um texto inacabado. Como podemos pensar psicanaliticamente sobre um conhecimento imediato, intuído, que tem características que podem se assemelhar a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento: dedução, associação, comparação, análise, constatação etc., mas algo que aparece como uma imagem, que vemos, ou seria melhor dizer, criamos de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável. Podemos conjecturar que Freud viu, por meio da sua imaginação criadora – termo de Chuster (2018, 2019, 2020) – uma prévia do que seria a sua futura obra, ou uma intuição de um conhecimento que precisaria de muitos anos para se desenvolver em vários textos e deixar uma marca considerável na História. Mudanças que podemos considerar cesuras (BION, 1977) na história, na qual há um antes e um depois, há continuidade e ruptura. Cesura é um conceito de Bion que nos ajuda na aproximação dessa afetação enigmática – expressão de Figueiredo (2021) – que parece ser a intuição psicanalítica, algo que nos afeta, nos captura de forma enigmática. Cesura é um termo retirado do texto de Freud (1926), Inibição, sintoma e angústia , no qual ele escreve que há mais continuidade entre a vida intrauterina e a vida pós-natal do que a impressionante cesura do nascimento nos faz crer. E aqui, podemos pensar na presença do paradoxo: há uma impressionante ruptura, mas há, também, continuidade. Cesura é sinapse, é conexão, é o vínculo, escreve Bion (1977). O termo originalmente se refere a um espaço no poema, na estrofe, um espaço que dá ritmo, que faz conexão, que gera ruptura e movimento. Bion escreve: “... Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse; a (contra-trans) – ferência, o humor transitivo-intransitivo” (BION, 1977/1981, p. 136). A mente é constituída por diversas cesuras, essa entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. Por exemplo, o lusco-fusco ao acordarmos, momento no qual temos uma cena onírica em mente e, por um instante, não há diferenciação entre a cena e o mundo da vigília; temos a impressão de que aquilo foi vivido e, subitamente, acordamos e percebemos que a cena foi experienciada em um sonho, e rapidamente se evapora na luz do dia. Na cesura entre o sonho e a vigília: há conexão, há continuidade e há ruptura entre dois estados mentais, assim como entre consciente e inconsciente, o eu e o outro, estados indiferenciados de mente e estados diferenciados. A hipótese que levanto é que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito; eu/outro; o formar/o desformar, as transformações em K/as transformações em O 3 . A partir dessas já conhecidas cesuras, podemos conjecturar a cesura intuição/alucinação. A intuição é um tipo de fenômeno, uma afetação enigmática que se dá na cesura, entre a oscilação da área indiferenciada da mente – ainda sem forma – e a área diferenciada, e por esse motivo, podemos ter a impressão de uma alucinação, pois é uma criação imaginativa que encontra sentido apenas no a posteriori da sessão 4 . Precisamos do tempo para saber de qual lado da cesura estamos, da alucinação ou da intuição. Freud ao escrever o Projeto estava em um estado alucinatório ou estava intuindo o funcionamento psíquico? Muitos anos foram necessários para que esse texto fosse considerado um momento fundante da psicanálise, e que fosse encontrado nas linhas e entrelinhas do Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) quase tudo que foi desenvolvido posteriormente. Ao escrever sobre cesura Bion (1977) usou a analogia com a foto de Picasso 5 pintando sobre um vidro, ou seja, podemos ver de vértices diferentes e simétricos a mesma pintura, assim como os estados mentais podem ser vistos por vértices diferentes, porém simétricos, o exemplo de Bion (1979): desamparo/onipotência 6 . Para sustentar a hipótese apresentada acima, de que podemos conjecturar que a intuição ocorre entre cesuras e que há uma cesura intuição/alucinação, irei examinar dois recortes do texto de Bion (1965) no livro Transformações : Pode-se ver alucinação de modo mais proveitoso como uma dimensão da situação analítica, na qual, juntamente com as outras ‘dimensões’ restantes, estes objetos são ‘sensorializáveis’ (caso incluamos a intuição analítica, ou consciência, seguindo uma indicação de Freud 7 , com um órgão sensorial da qualidade psíquica). (BION, 1965/2004, p. 129). 8 Resumindo, Cs (A1) representa uma conjunção constante de relações. Cs (A1) tem a natureza de um tropismo Esta ‘consciência’ é uma consciência ( awareness ) de uma falta de existência, um pensamento em busca de um significado, uma hipótese definitória em busca de uma realização que dela se aproxime, uma psique procurando por uma habitação física, ♀ procurando ♂. (BION, 1965/2004, p. 124). 9 Nesses dois sucintos parágrafos, temos ideias complexas e condensadas a partir das quais vou desenvolver algumas reflexões. Bion no livro Transformações compreende a intuição como um fenômeno próximo à consciência, e a consciência como um órgão sensorial que apreende qualidades psíquicas. Apoiado em Freud (1900), Bion coloca a intuição psicanalítica e a consciência lado a lado, tornando evidente a importância que esse autor deu à capacidade de observação analítica, proposição técnica apreendida por Freud de seu mestre Charcot 10 : continue a observar, até que algo faça sentido – usando termos bionianos – até que uma forma emerja do infinito vazio sem forma, o inconsciente. Aquilo que pode ser treinado pelo analista é sua capacidade de observação, para que a intuição capte um elemento psíquico 11 por meio da eclosão de uma reverie na mente do analista. A intuição emerge na cesura entre consciente/inconsciente, ou como Bion propôs: o finito da consciência e o infinito do inconsciente; o inconsciente como aquilo que ainda não sabemos, que ainda não tem forma: o infinito vazio e sem forma. Podemos, também, conjecturar uma possível intuição de Bion a partir da obra freudiana: algo é percebido, ou melhor, sensorializado pela consciência, um órgão capaz de apreender qualidades psíquicas, órgão que sofre o impacto do elemento bruto da experiência, o elemento beta, o enigmático da experiência (FIGUEIREDO; RIBEIRO; TAMBURRINO, 2011), que precisará ser sonhado pela função onírica alfa, uma função transformadora, para se tornar um elemento psíquico, um pensamento imaginativo, a reverie. Ao usar de forma surpreendente a intuição analítica e a consciência como sinônimos, Bion ilumina outro sentido no texto freudiano, poderíamos dizer ressaltando as qualidades da consciência – “ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, p. 609) – em outras palavras, a consciência nada mais é, ou, ela é um importante órgão sensorial de percepção de qualidades psíquicas, fundamental para a observação analítica treinada e para a intuição psicanalítica. Será que estamos teoricamente diante da carta roubada do famoso conto de Edgar Alan Poe (1809-1849)? A carta está na mesa, tão visível que passa a não ser vista, assim como aquilo que é considerado óbvio ou elementar, mas que nos escapa. Consciência como awareness , ou seja, um estado de mente receptivo para o que parece estar invisível devido ao fato de ser excessivamente visível. A carta roubada está visível para aqueles observadores em estado de capacidade negativa (BION, 1977), uma capacidade virtuosamente expectante (CHUSTER, 2019a) ou, também, uma consciência como awareness. O termo negativo é no sentido do polo que contém, recebe, permite a afetação enigmática. Se estamos na sessão em estado de capacidade negativa, podemos ver a carta roubada, e a imagem que se cria transforma tudo em um antes e um depois, como a carta no conto, promove uma cesura na sessão e, posteriormente, a possibilidade de uma construção narrativa e um sentido para a experiência, pois as palavras precisam tentar dizer o indizível, precisam tentar alcançar, mesmo que à distância e parcialmente, o enigmático de qualquer experiência emocional. A consciência é o órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas, em outras palavras, um dos elementos que compõe a complexidade da intuição psicanalítica. A disciplina de observação do analista no campo analítico pode ser treinada, favorecendo a intuição. A observação analítica é treinada a partir da proposta metodológica de Bion (1965, 1967): sem memória, sem desejo, e sem compreensão prévia. Algo é captado por esse órgão sensorial e posteriormente sonhado, inconscientizado por meio da função alfa. A experiência é percebida, primeiramente, como um elemento bruto (beta), enigmático, que pode gerar estados de enlouquecimento sem a função sonho, a função alpha. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, como escreveu Kant (1724-1804), postulado filosófico que marcou o pensamento de Bion sobre a intuição psicanalítica. Ogden (2016) escreve que o artigo de Bion (1967/2014) “Notas sobre memória e desejo”, é um texto sobre o pensamento intuitivo e como este pensamento se apresenta na situação analítica. O autor considera que esse pequeno e difícil artigo é um marco para a psicanálise, pois ele compreende que Bion propõe uma revisão da metodologia analítica. Penso que a proposta de Bion no artigo de 1967 pode ser compreendida como uma cesura na metodologia analítica, ou seja, representa tanto uma continuidade da proposta freudiana da atenção flutuante, como uma ruptura, pois convoca a capacidade intuitiva do analista, não somente seu pensamento associativo e analítico, mas seu pensamento imaginativo, a imaginação criadora (CHUSTER, 2019), a capacidade de ser afetado pelo enigmático da experiência e construir um pensamento imaginativo, a reverie. Em uma nota ainda inédita de Bion, publicada nas Obras completas , encontrei: a reverie seria uma forma de fabricar um pensamento, ainda sem pensador 12 (BION, 1968/2014). Neste texto Bion se refere à reverie do analista, e não somente entre a mãe e seu bebê (BION, 1962), ideia que foi desenvolvida por outros autores (Ogden, Rocha Barros, Ferro, Civitarese). Compreendo a reverie como a capacidade imaginativa da mente, e quando a mente é imaginativa capta os mais tênues sinais de vida (OGDEN, 2013). A afetação enigmática seriam esses tênues sinais de vida psíquica, captados pela intuição do analista na cesura entre consciente/inconsciente e transformados em uma imagem pela função alfa. Memória (passado), desejo (futuro) e compreensão prévia são opacidades que obstruem a capacidade de intuição do analista e a observação psicanaliticamente treinada. Bion (1992, p. 324) escreve que a intuição opera entre opacidades e transparências, ou seja, na cesura entre opacidades e transparências. Bion (1970) faz uma analogia 13 que nos ajuda a compreender esse processo psíquico: os negativos da fotografia antes da época digital. Faço aqui uma apropriação sutilmente diversa dessa analogia: o negativo é uma película transparente escura que recebe quaisquer impressões, ou poderíamos dizer, afetações enigmáticas. A mente do analista precisaria ter essa qualidade negativa, uma qualidade de recepção, de hospitalidade, de continência a qualquer afetação. No processo de revelação, ou melhor, realização, feito por elementos que precisam de um período para produzirem efeito e uma sala escura para que a afetação do negativo se realize em uma imagem, ou seja, um facho de intensa escuridão que precisa de tempo e espaço. Há uma composição complexa de elementos para que a realização da imagem ocorra. Memória, desejo e compreensão prévia podem ser a luz precipitada que queima o filme antes da realização da imagem. A imagem é criada a partir da afetação no polo negativo da mente do analista, a capacidade negativa, pela captação da consciência como awareness , a observação psicanalítica, sob a égide da função alpha, que transforma o enigmático da experiência em elementos psíquicos. A observação psicanaliticamente treinada é a disciplina do analista para não queimar o filme com a sua equação pessoal (BION, 1992). O treinamento do analista é sua análise pessoal e sua disciplina ética analítica. 14 Podemos pensar na intuição de Bion ao ler Freud, considerando a outra via da interpretação dos sonhos, a interpretação dos fatos, Bion: ...sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos – não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos (BION, 1977/1992, p. 104). A interpretação dos fatos seria a inconscientização da experiência, a transformação do enigmático em elemento onírico (alfa), o que é percebido pela consciência como awareness , ou seja, a capacidade de observação analítica de um pensamento em busca de um pensador, de um contido em busca de um continente, o bebê buscando a mente da mãe, o analisando buscando a mente do analista para dar forma, palavra e sentido a sua experiência, torná-la finita e narrável. Bion (1965) denominou tropismo 15 essa busca. A consciência é da natureza de um tropismo, escreve Bion (1965/2014), essa consciência como awareness é um estado propício para se notar coisas, um estado de prontidão presentificada, que capta algo, uma conjunção constante, uma forma, a carta roubada: invisível por ser excessivamente visível. No início há um tropismo, uma força de atração para algo existir, para que ocorra a realização de uma experiência, como o bebê realiza a existência do seio no encontro com este, mas antes do encontro, há apenas um tropismo intuitivo de que há algo a ser encontrado, mas não se sabe o que realmente será encontrado. A pré-concepção do seio, ao encontrar uma realização, se transforma em uma concepção. O bebê busca o seio, busca o olhar da mãe, a mente da mãe, em uma cena de apaixonamento que funda o humano. 16 A intuição psicanalítica captura algo que demanda uma existência, como um campo magnético, um tropismo, no qual é preciso encontrar sentido e forma para a experiência vivida, torná-la pensável, palavra narrada, finita e saturada. Poderíamos dizer que Bion ilumina, por outro vértice, a compreensão freudiana de consciência como awareness , um estado de observação presentificado, um estado de notação: um órgão sensório que capta a realidade psíquica, capta as nuances sutis do vivido ainda não sonhado, ainda não representado, que precisa da imaginação criadora (CHUSTER, 2019) para se transformar em imagens – reveries – e posteriormente, em construções narrativas na situação analítica. Dizendo de outra forma, não se trata de uma consciência como racionalidade, mas uma consciência como awareness , um estado de prontidão presentificado que pode evoluir para uma futura notação, como a carta roubada no conto, que quando é vista, promove uma cesura na história, um antes e um depois. A partir de Bion, os conceitos são compreendidos de forma espectral, dessa forma, a intuição teria tanto um polo consciente ( awareness) , no sentido da observação presentificada, como um polo inconsciente no qual a função alpha faz seu trabalho: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie , um pensamento imaginativo. Em outras palavras, há um trânsito constante, absurdamente rápido, fugaz, e sempre instável, entre a cesura do finito (consciência, forma, área de diferenciação da mente) e o infinito (inconsciente, sem forma, área de indiferenciação da mente). No movimento e no espaço gerado pela cesura a intuição emerge como um raio em céu azul 17 , a afetação enigmática. Poderíamos pensar que há uma função intuitiva (CHUSTER, 2021) em trânsito constante entre cesuras, na qual a capacidade de reverie/ função alpha 18 do analista se sustenta, uma capacidade imaginativa e de criação de elementos psíquicos. Podemos compreender a intuição psicanalítica, favorecida pela capacidade treinada de observação do analista, uma capacidade negativa, um estado de awareness , de observação presentificada, um tropismo da consciência na direção de uma notação que se dá na posterioridade da afetação enigmática. Em outros termos, primeiramente somos abduzidos pela experiência, somente na posterioridade podemos representar partes do que foi vivido. Retomando a minha conjectura: a função intuitiva (CHUSTER, 2021) acontece entre cesuras, a passagem e oscilação contínua entre estados mentais: o não-sensorial/sensorial; finito/infinito; transformações em K/transformações em O; conhecido/desconhecido; eu/outro. Além de considerarmos uma contínua oscilação, a partir de uma compreensão espectral dos conceitos, há sempre um ponto de indecibilidade, ou seja, um ponto no qual não é possível saber em qual dos dois polos do espectro estamos. E, talvez, o ponto possa ser, também, uma área, um território de indiferenciação conceitual e fenomenológico. A imprecisão e a indecibilidade fazem parte das nuances das cesuras constitutivas do psíquico, com suas opacidades e transparências. Como escreve Ogden (2013, p. 21): “A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão”. Para ilustrar essa complexidade conceitual, faço uso de uma imagem 19 : O encontro entre o Rio Negro e o Rio Solimões na Amazônia é uma boa analogia para a cesura, há pontos de indecibilidade nos quais não sabemos mais se é Negro ou Solimões, analista ou paciente, alucinação ou intuição. O boto que emerge subitamente da água é, na sua parte invisível, a intuição psicanalítica; na sua parte visível, a reverie. O boto, ou melhor, a intuição e sua fenomenalização na reverie , emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão. A reverie , compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo; ou uma imaginação criadora (CHUSTER, 2019), são nomeações e transformações bem-sucedidas da intuição freudiana do caráter alucinatório das construções do analista (FREUD, 1937). Por essa perspectiva podemos pensar na cesura intuição/alucinação, sendo que há um ponto de indecibilidade, um momento em que não sabemos se aquela imagem que nos arrebata na sessão analítica é uma alucinação ou se é uma intuição. Concluindo, penso que a intuição psicanalítica é uma afetação enigmática que ocorre de forma fugaz no trânsito contínuo e oscilante entre diferentes cesuras, e que evolui por meio de uma imaginação criadora para uma imagem, um ideograma, a reverie , um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando. NOTAS 1 As ideias aqui expostas foram apresentadas no II Colóquio Jean Laplanche Brasil em 15 de outubro de 2021. 2 Faço aqui uma referência, que é uma reverência, ao que já foi bem apresentado por Paulo Ribeiro, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho, no texto Sobre intuição e inspiração. Algumas ideias acerca de Bion e Laplanche (2019). Destaco o principal ponto de convergência entre Bion e Laplanche referido pelos autores: uma transferência com o não saber. 3 Transformações em K são as transformações em conhecer ( knowledge ), e transformações em O são as transformações em ser. 4 Com relação à localização na obra de Bion das suas ideias sobre intuição, elas aparecem a partir de 1965, no livro Transformações (1965), na conferência ministrada em 1965 em Londres, intitulada Memória e Desejo , no pequeno, porém notável texto de 1967, Notas sobre memória e desejo , nos Comentários ao livro Estudos psicanalíticos revisados (1967), nos Seminários em Los Angeles (1968/2013) e nos primeiros capítulos de Atenção e interpretação de 1970, e, também, no livro Cogitações (1992). 5 Disponível em: < https://www.arteeblog.com/2012/08/pablo-picasso-pintando-sobre-vidro . html.>. Acesso em: 12 dez. 2021. 6 No texto original: “ It also resorts to omnipotence; thus, omnipotence and helplessness are inseparably associated ” (BION, 1979/2014, p. 137). 7 O texto de Freud, referido por Bion, no livro Interpretação dos sonhos : “Que papel sobra, em nossa exposição, para a outrora todo-poderosa consciência, que encobria todo o resto? Ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, v. 4, p. 609). 8 No texto original: “ Hallucination may be more profitably seen as a dimension of the analytic situation in which, together with the remaining ‘dimensions’, these objects are sense-able (if we include analytic intuition or consciousness, taking a lead from Freud, as a sense-organ of psychic quality )” (BION, 1965/2014, v. 5, p. 229). 9 No original: Cs (A1) is of the nature of a tropism. … This ‘consciousness’ is an awareness of a lack of existence that demands an existence, a thought in search of a meaning, a definitory hypothesis in search of a realization approximating to it, a psyche seeking for a physical habitation to give it existence, ♀ seeking ♂ (BION, 1965/2014, v. 5, p. 223). 10 “Podia-se verificar a maneira como ele, inicialmente, ficava indeciso em face de alguma nova manifestação difícil de interpretar; podia-se seguir os caminhos pelos quais se esforçava por chegar a uma compreensão; podia-se estudar o modo como avaliava as dificuldades e vencia; e podia-se observar, com surpresa, que ele nunca se cansava de observar o mesmo fenômeno, até que seus esforços repetidos e sem prevenções lhe permitissem chegar a uma visão correta de seu significado” (FREUD, 1886, p. 44). 11 O elemento psíquico emerge por serendipidade (CHUSTER, 2018), ou seja, quando encontramos algo sem procurar, e o que é encontrado faz toda a diferença. 12 No texto original: “ Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’ ” (BION, 1968/ 2014, v. 15, p. 77). 13 Encontrei essa analogia de Bion primeiramente nos textos de Chuster (1996). 14 “Bion também desenvolveu um instrumento técnico que teria a função de afinar a intuição do analista, a grade. A grade foi proposta por ele para ser usada fora da sessão, como um tipo de academia para a mente do analista” (CHUSTER, 2019). 15 Sandler (2021, p. 1154) considera que o termo tropismo é um antecessor do conceito de reverie. 16 Os apaixonados também buscam o olhar do outro, a comunicação se dando pelo olhar, continente e contido, penetrado e penetrável. 17 Expressão usada por João Carlos Braga em aula, 2021. 18 Chuster (2019) coloca reverie e função alfa em um espectro, no qual a reverie seria predominantemente sensorial e a função alfa predominantemente simbólica; em seus textos encontramos essa grafia: reverie /função alpha. 19 Disponível em: < https://br.pinterest.com/pin/299278337712804587/?amp_client_id=CLIENT_ ID(_)&mweb_unauth_id={{default.session}}&simplified=true.>. Acesso em: 12 dez. 2021. 20 Sob essa perspectiva, podemos compreender a inspiração como o polo negativo que recepciona, hospeda e contém a afetação enigmática da experiência emocional na sessão. 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- Inveja: a estética contemporânea da violência [1]
Este artigo foi escrito por Janderson Farias Silvestre dos Santos [I], Marina Ribeiro [II] e Igor Marques dos Santos [III], publicado em 2018 na revista Ide (São Paulo) , volume 40, número 65, páginas 75–89. O artigo está disponível online em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062018000100007&lng=pt&nrm=iso Além disso, uma versão relacionada, intitulada “A inveja: diálogos contemporâneos”, foi publicada em 2019 no livro Melanie Klein na psicanálise contemporânea: teoria, clínica e cultura (São Paulo: Zagodoni). RESUMO Este artigo objetiva realizar uma reflexão conceitual sobre a problemática da inveja. A partir do conceito de inveja primária, de Melanie Klein, é proposto um breve diálogo com textos pertencentes à tradição judaico-cristã que tratam da inveja. A fim de mostrar a potência do conceito na atualidade, são feitos alguns apontamentos sobre questões contemporâneas ligadas a atos de violência e que mostram uma estreita relação com a inveja. Em seguida é realizada uma análise de uma produção cinematográfica contemporânea, o filme The Neon Demon (Demônio de Neon), do diretor Nicolas Winding Refn, lançado em 2016. O filme mostrou-se rico em metáforas que nos auxiliam a pensar nos desdobramentos do processo invejoso. Sobre a inveja Também vi eu que todo o trabalho,e toda a destreza em obras, traz ao homema inveja do seu próximo. Também istoé vaidade e aflição de espírito. (Eclesiastes, 4:4) A epígrafe que abre este artigo está presente em Kohelet 2 ( Eclesiastes ), texto hebraico datado de aproximadamente 935 a.C. (Ellisen, 1984/1993), tradicionalmente atribuído a Salomão, considerado pela tradição judaico-cristã um homem dotado de muita sabedoria. Nesse texto, Salomão observa que o trabalho realizado por um homem é, para outro, motivo de inveja, definindo inveja como vaidade e aflição de espírito. Antes de falarmos sobre esses dois atributos, vejamos o texto que antecede imediatamente o supracitado: Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador. Por isso eu louvei os que já morreram, mais do que os que vivem ainda. E melhor que uns e outros é aquele que ainda não é; que não viu as más obras que se fazem debaixo do sol. (Eclesiastes, 4:1-3) A sabedoria salomônica 3 aponta que a inveja não tem conexão direta com os fatos exteriores, não surgindo diretamente das condições do meio circundante. O escritor observa um mundo desolado, repleto de opressão e injustiça. Sua desesperança chega ao ponto de louvar a morte mais do que a vida. E mesmo em meio à desolação há espaço para o surgimento da inveja, pois o sujeito inveja a própria capacidade de realizar trabalho, ainda que este nasça na opressão. A inveja se destina a algo imaterial. Isso nos leva a pensar na própria raiz da inveja que, fundamentalmente, é sempre dirigida a algo imaterial e inapreensível, o que levou Mezan (1986) a fazer uma diferenciação entre objeto de inveja e suporte da inveja. O objeto da inveja é imaginário, inalcançável, só existe no psiquismo do sujeito enquanto promessa de retorno a um estado idealizado de perfeição plena, quando o sujeito era o seu próprio ideal. O suporte da inveja é contingente, e pode ser qualquer coisa: um carro, uma casa, dinheiro ou mesmo a própria capacidade para o trabalho. A raiz da inveja é o que Salomão define como aflição de espírito. O sujeito aflito anseia por algo que amaine a sua aflição, nesse anseio, julga que o outro tem aquilo que ele necessita e, mais do que isso, crê que foi deliberadamente privado do bem tão ansiado. Vê-se, portanto, a raiz destrutiva da inveja que, como observa Mezan (1986), está associada ao desejo, mas não se reduz a ele, na medida em que o sujeito necessita despojar o outro, privá-lo de sua felicidade. Britton (2008) descreve que em alguns sujeitos a inveja domina grande parte da vida mental, aparecendo como uma inveja patológica numa personalidade patologicamente invejosa. Para esse autor, a inveja é um composto que surge da conjunção de vários elementos, dos quais ele destaca o doloroso reconhecimento da separação self/objeto e a frustração advinda do desapontamento do desejo de ter a mesma natureza do objeto amado. Ele considera que esse composto pode se formar na entrada da posição depressiva e que se a essa conjunção de fatores se soma uma quota elevada de pulsão destrutiva constitucional, a inveja torna-se particularmente poderosa e destrutiva. Nesses casos a inveja se tornaria um complexo insolúvel no seio da personalidade. Trinca, por sua vez, refere-se a um sistema mental determinante da inveja , ligado a uma "constelação do inimigo interno" (2009, p. 59), que é uma representação da pulsão de morte. A inveja estaria, então, bastante ligada às ansiedades da posição esquizoparanoide que não foram aplacadas pela internalização eficaz do objeto bom, levando a um incremento da pulsão de morte, ao ódio e à inveja: "a ação da pulsão de morte acompanha a falha e a falta ambientais precoces representadas pelo seio e pela mãe" (Trinca, 2009, p. 55). A inveja, portanto, não é puro ódio, não é apenas impulso destrutivo voltado contra um objeto mau. O ataque invejoso é dirigido contra o objeto bom que supostamente teria privado o sujeito da experiência de completude, deixando-o na iminência de uma desintegração interna. O ódio manifestado em inveja poderia ser entendido como uma defesa contra essa desintegração e a sensação de vazio que ela acarreta (Trinca, 2009). Além disso, estando a inveja ligada à idealização do objeto invejado, menor será a inveja quanto menor for a necessidade de idealização. O rebaixamento dessa necessidade está diretamente ligado à diminuição das ansiedades persecutórias, visto que, como observa Klein (1957/1991b), quanto maior a perseguição, maior a idealização. A passagem do ego ideal para o ideal do ego, passagem que é o cerne do estabelecimento de relações alteritárias saudáveis, implica não apenas uma mudança na direção do investimento libidinal na saída do narcisismo primário (do ego para os objetos) e o resguardo desse narcisismo na figura do ideal do ego (Freud, 1914/1996b), mas, também, do ponto de vista kleiniano, a necessidade de suportar as ansiedades paranoides e, posteriormente, as depressivas, que se somam às anteriores. Se não há uma elaboração bem-sucedida da posição depressiva, que culminaria na firme internalização do objeto bom (Klein, 1935/1996b), está assentado o terreno para a formação de uma personalidade patologicamente invejosa, como diz Britton (2008). Nesse estado, o sujeito não terá realizado satisfatoriamente a passagem do registro do ego ideal para o ideal do ego e terá que recorrer constantemente à idealização como defesa contra a perseguição, já que não tem por núcleo de seu ego o objeto bom primordial. Da idealização advirá a inveja, já que aquilo que o sujeito anseia não encontra respaldo na realidade objetiva. O objeto idealizado sempre se tornará, em algum momento, aos olhos do sujeito, mesquinho, transformando-se na causa do seu sofrimento. Se retornarmos agora ao Kohelet , fica mais fácil entender a origem da aflição de espírito que o autor aponta como subjacente à experiência da inveja. Uma aflição que não pode ser amainada por objeto algum do mundo material. É precisamente esse aspecto de impossibilidade de apaziguamento da inveja, por meio da consecução de quaisquer bens que sejam, que subjaz ao outro atributo da inveja de acordo com o autor de Kohelet : a vaidade. No original hebraico a palavra para vaidade é hebel ( הבל ), palavra que remete a sopro, vapor (Kirst et al. , 2009). Em alguns contextos o autor usa hebel para lamentar a brevidade da vida, "a vida, em sua qualidade é 'vazia', ou 'vacuidade' (e assim insubstancial) e em sua quantidade é 'transitória'" (Kirst et al. , 2009, p. 336). A inveja é, por excelência, sempre um anseio pelo impossível. Klein (1957/1991b) a define como constitucional, querendo dizer com isso, de acordo com Cintra e Figueiredo (2004), que ninguém pode dela se esquivar, na medida em que surge da inevitável diferença entre a idealizada completude do estado pré-natal e o nascimento. Não importa quão suficientemente boa a mãe seja, jamais poderá restituir ao bebê a unidade intrauterina. É nesse sentido, por conseguinte, que poderíamos dizer que a inveja é hebel , é sopro, vapor, um anseio indefinido, sem consistência, que tenta materializar-se de suporte em suporte (Mezan, 1986), sem nunca encontrar concretude no objeto ansiado, pois esse objeto é um seio inexaurível que só existe na fantasia (Klein, 1957/1991b). Em outros contextos de Kohelet , a palavra hebel é usada pelo autor para referir-se a sua "incapacidade de encontrar realização em seu trabalho, tanto por não conseguir ser criativo quanto por não conseguir controlar o livre uso e o destino de suas posses" (Kirst et al. , 2009, p. 336). Ora, se a inveja é hebel , vemos aqui a associação que há entre inveja e trabalho, lembremos a observação do autor de Kohelet : o homem inveja a capacidade do outro para o trabalho. O trabalho está ligado à potencialidade criativa e, com essa constatação, chegamos ao cerne da experiência de inveja como descrita por Klein: "A capacidade de dar e preservar vida é sentida como dom máximo e, portanto, a criatividade torna-se a causa mais profunda de inveja" (1957/1991b, p. 233). Na medida em que a inveja é um derivado da ansiedade persecutória oriunda do nascimento e relaciona-se com a idealização de um seio inexaurível, é ao seio infinitamente criativo, fonte de todos os prazeres e maravilhas existentes, que se destina a inveja. A pergunta que o invejoso parece fazer é: se esse seio é assim tão poderoso, porque ainda me defronto com a perseguição dos objetos maus ("constelação do inimigo interno") e com essa angústia de fragmentação? Como diz Klein: "[...] não é apenas o alimento que ele [o bebê] deseja; quer ser libertado dos impulsos destrutivos e da ansiedade persecutória" (1957/1991b, p. 217). Já que o seio nunca poderá livrar plenamente o sujeito das ansiedades persecutórias, o ataque invejoso torna-se (na fantasia do invejoso) justificado. Desde tempos imemoriais, o homem luta contra seu semelhante para retirar-lhe aquilo que ele tem de bom. Os grandes impérios foram construídos às custas do massacre de povos mais fracos com o intuito de pilhar suas riquezas. O anseio pelo indefinido, que busca materialização de ataque em ataque, de guerra em guerra, adquire novas formas no decorrer da história 4 . Atualmente assistimos ao crescimento do fundamentalismo, não apenas no que tange ao extremismo terrorista, mas também na ascensão de políticos com discursos marcadamente segregacionistas e de desrespeito às diferenças, isto sob o pretexto da justiça. Mas, como observam Chuster e Trachtenberg (2009), "a demanda da justiça não é por igualdade, mas pelo respeito às diferenças. É a inveja que demanda igualdade e sempre equivalendo por baixo" (2009, p. 112). Caetano Veloso já cantou que "Narciso acha feio o que não é espelho". Essa "feiura" não é intrínseca ao objeto olhado, mas simplesmente ao fato de que o que está sendo visto não é o próprio sujeito, porém o diferente, o outro, e esse outro sempre se apresenta como uma afronta à ambição imaginária de constituição de um ego ideal. Nesse sentido, parece-nos ser de grande valia a teoria lacaniana do estágio do espelho (Lacan, 1949/1998), que explica o narcisismo primário 5 a partir de uma relação especular primordial em que se constitui o ego, a princípio um ego ideal . Esse ego rudimentar formado, no bebê, a partir da visão distorcida de si mesmo (por uma gestalt imaginária, segundo Lacan), será sempre o ponto para onde tenderá a idealização do sujeito. A inveja é um sentimento que se origina de um grande sofrimento e que, por outro lado, acarreta sofrimento. Klein já disse que estar "relativamente livre dela é sentido como um estado de espírito de contentamento e de paz" (1957/1991b, p. 235). Na contemporaneidade, vemos os seus efeitos nas patologias narcísicas, nas quais o sujeito se corrói e se autodestrói, em função de um sofrimento que se origina precisamente de feridas narcísicas precoces e inscreve no sujeito um acachapante anseio de retorno a um estado de plenitude idílica. "Há qualquer coisa que eu não gosto na vida", dizia Erna a Klein (1932/1975), num dos primeiros casos em que se apresentou a Klein a problemática da inveja. Essa frase parece ecoar na contemporaneidade como um lamento compartilhado, um lamento indefinido que se manifesta em anseios ainda mais indefinidos. Em 1934, no artigo "Sobre a criminalidade", Melanie Klein questiona a crença de que os criminosos não teriam moralidade. Klein (1934/1996a) diz que, ao contrário do que costumeiramente se imagina, os atos criminosos, notadamente os crimes violentos, seriam oriundos de uma hipermoralidade, uma moralidade persecutória. O criminoso estaria lutando contra um superego arcaico, persecutório. Isso nos remete à constelação de inimigo interno à qual Trinca (2009) se refere como subjacente à experiência da inveja, e nos parece pertinente questionar o lugar da inveja em atos criminosos tão corriqueiros na contemporaneidade, como os sequestros e os latrocínios. Atos em que o que está em jogo não é somente uma agressão deliberada, não se trata "apenas" de destruir ou lesionar o outro ou "apenas" saquear o que ele tem, e, sim, de apossar-se por meio da violência, de atacar o objeto que tem o que eu não tenho. Não basta apenas pilhar as suas posses, há o ataque e a destruição desse outro. No tópico seguinte continuaremos nossa reflexão sobre a inveja a partir de uma produção cinematográfica contemporânea, o filme The Neon Demon (Refn, 2016). Demônio de Neon: a estética da inveja Lançado em 2016, The Neon Demon explora o lado competitivo e agressivo da indústria da moda, com uma perspectiva que enfoca o aspecto estético. Os diálogos são escassos, de linhas únicas. É no aspecto visual do filme que vemos uma primeira porta de entrada para trazermos a temática da inveja para análise: afinal, a inveja se dá pelos olhos. A primeira cena mostra a personagem principal, Jesse, ensanguentada e morta em um sofá, ricamente adornada e em uma posição que evoca certa beleza. À medida que o enquadramento muda, percebe-se que a cena, na verdade, é um ensaio fotográfico. É um choque inicial que dá o tom ao transcorrer de todo o filme: é um filme permeado de metáfora e simbolismo imagético. Jesse termina seu trabalho, levanta-se e vai para o camarim tirar a maquiagem; Ruby, sua maquiadora, já estava no camarim, acontece, nesse momento, um primeiro deslumbramento: Ruby a ajuda a se limpar, apreciando-a a cada vez que passa o pano em sua pele, delicadamente. O cenário em que se estabelece esse primeiro diálogo é instigante: Jesse e Ruby estão de costas uma para a outra, ambas se olhando através do espelho. Ruby admira Jesse mas não olha diretamente para ela, fita o reflexo de Jesse no espelho enquanto vê a si mesma, e diz: "Am I staring?". Esse primeiro contato, portanto, é especular. O deslumbramento de Ruby ao ver Jesse através do espelho assemelha-se ao júbilo da criança que apreende sua própria imagem no espelho e forma os rudimentos do ego, um ego ideal, especular, inserido no registro do narcisismo primário. Ruby, como maquiadora, não está, a princípio, numa relação de competição com Jesse. Ela pode tocar sua pele, sentir seu cheiro. Ela é suprida por isso. É o bebê fundido com o seio idealizado, fruindo plenamente de todo o potencial de prazer que o seio possui. Ainda não há, de fato, a experiência da inveja, por não haver a percepção da separação eu/outro, pois como diz Britton (2008), nos estados de onipotência narcísica o sujeito nega as limitações e qualidades finitas, de forma a evitar a inveja. É claro que, na perspectiva kleiniana, há inveja desde o início da vida, na medida em que ela é derivada da pulsão de morte e está associada à ansiedade persecutória que advém do nascimento (Klein, 1957/1991b). Todavia, gostaríamos de propor, com o intuito de analisar o filme, pensar os primeiros contatos de Ruby com Jesse como uma metáfora para uma relação ideal da mãe com seu bebê, uma relação em que a experiência de inveja ainda seria mínima. Nesse sentido, podemos pensar que a destrutividade cresce, gradativamente, conforme o sujeito se percebe distante do lugar de ideal e necessita projetar esse ideal em outros objetos (Freud, 1914/1996b). Quanto mais o sujeito se ver distante do lugar de ideal, maior será sua propensão para a inveja. É esse gradual distanciamento, isto é, essa saída da relação especular/ego ideal para a projeção do ideal do ego, que Ruby efetua no decorrer do filme, culminando numa fatal inveja. Jesse é apresentada como essencialmente perfeita, convidando quem acompanha o filme a amá-la também. Seus trajes e maquiagens são leves, suas expressões são "imaculadas", como se ela fosse uma figura sem maldade, "pura" (ou pelo menos sem passado), inocente, como um objeto parcial totalmente (e surrealmente) bom. Somos levados, como espectadores, a também idealizá-la e a invejá-la. Porém, em grande parte do filme ela é inacessível. É quieta, nega algumas aproximações. A sensação que fica é de ambiguidade. Ao mesmo tempo que Jesse é a personagem principal do filme, ela é esquiva, alguém sobre quem pouco se sabe. Ela é inatingível, misteriosa, quase não humana. Essa distância nos remete ao objeto idealizado: o diretor mostra a perfeição do objeto, perfeição que é negada não apenas às demais personagens, mas também ao espectador, que é transformado em "expecta-dor", isto é, ficamos na expectativa de saber (e ter) mais de Jesse, e na dor de não tê-la. Por outro lado essa distância na qual Jesse se encontra é reveladora da própria essência do objeto invejado, um objeto que, como destaca Mezan (1986), é apenas suporte de algo imaterial e intangível, que pode ser apenas vagamente vislumbrado, um horizonte inalcançável. A apresentação de Jesse como um objeto ideal, ou melhor, o processo de idealização que somos conduzidos a realizar como espectadores, é notório na cena em que a personagem caminha de modo infantilizado, tendo ao fundo a "cidade grande", que é representada como um lugar maldoso, corrompido. A trilha sonora da cena é uma música delicada e calma, com instrumentos que são utilizados em cantigas infantis. Fica nítida a cisão bom/ mau, imaculado/corrompido. Jesse é apresentada como o objeto ideal que, contrastando diametralmente com os objetos maus, poderia fazer frente aos inimigos internos (Trinca, 2009), isto é, a cidade e os objetos corrompidos. O próximo "experimento cênico" do diretor é colocar Jesse em um fundo totalmente branco, num contexto em que será fotografada para um ensaio. Constrói-se uma tensão, que evoca um clima sexual. Jesse fica sozinha com o fotógrafo da sessão, que a olha sadicamente, agressivamente. O enquadramento todo branco, sem limites e sem sugestões de espacialidade sugere uma indiscriminação criativa; é como a folha branca diante do escritor, que convida a ser habitada, escrita, desenhada. Essa capacidade criativa, essa fertilidade, é um dos benefícios do objeto bom, que o diretor Refn "traduz" do registro afetivo para o visual. Com o início do ensaio, o enquadramento fixa-se em Jesse, pintada de ouro, "esclarecida" pela iluminação, e o fotógrafo de camiseta preta, em sua expressão fria e agressiva, ambos em um fundo totalmente preto. O fotógrafo pinta Jesse com suas mãos, em cenas pausadas, tensas; aparece como figura controladora, o que nos leva a pensar no caráter sádico oral e anal da inveja. Essa cena representa bem a dinâmica ambígua da inveja: uma relação que traz consigo traços destrutivos (que são representados pela tensão incitada pela presença e a ação do fotógrafo) é baseada, porém, num movimento de enaltecimento do objeto. Em outra cena, no quarto do hotel no qual está hospedada, Jesse sonha que o dono do estabelecimento invade seu quarto e coloca uma espada em sua garganta; quando acorda, olha pela janela e vê esse homem a observando; ele então sobe as escadas, e a garota tranca todas as portas de seu quarto. Jesse foge e pede abrigo na casa de Ruby, no entanto, a maquiadora tenta deflorá-la, em um avanço agressivo que é nitidamente incômodo para Jesse. Nessa cena, a dinâmica que se explicita é a trágica continuação da inveja que, frustrando o desejo da pessoa invejosa, aumenta ainda mais sua voracidade. Há um prazer sádico em Ruby em destituir a virgindade de Jesse, traço fundamental de sua imagem de objeto idealizado. A recusa de Jesse em satisfazer a investida sexual de Ruby parece se configurar como o momento em que de fato Ruby é confrontada com a experiência da inveja, pois é nesse momento que, como diria Britton (2008), se inscreve em Ruby a percepção do hiato entre o ego ideal e o ideal do ego, tornando o objeto idealizado o receptáculo do ódio invejoso. Transcorridas algumas cenas, Ruby, trabalhando como maquiadora em um necrotério, vê-se sozinha com um corpo morto de uma mulher, ao qual ela despe e toca sexualmente, masturbando-se em cima do corpo. A voracidade aparece no sexo necrofílico, em que Ruby tenta alcançar seu prazer inatingível com um corpo sem vida, levando-nos a pensar que a voracidade tem uma demanda tão surreal e extrema que pode ultrapassar os limites da vida. Life is so unfair Algumas cenas após o primeiro contato de Ruby com Jesse, ambas vão para uma festa, onde Jesse conhece duas colegas modelos: Gigi e Sarah. No banheiro do lugar, em meio a conversas sobre sexo, Gigi, ao admirar a beleza de Jesse, diz: "Life is so unfair". Aqui fica clara a relação de competição na qual o sucesso de uma envolveria o fracasso da outra. As personagens estão bem-vestidas, há momentos de silêncio em que elas se entreolham, mantendo sempre o foco em (e revelando o desejo por) Jesse, que é "comida" pelos olhares invejosos das três. Enquanto Ruby conhece Jesse num "plano especular", admirando-a como se admirasse a si mesma, Sarah e Gigi são apresentadas a Jesse na festa e conversam face a face. Elas são imediatamente confrontadas com a alteridade de Jesse. Na cena seguinte, no banheiro, elas conversam enquanto se maquiam olhando no espelho, mas quando falam com Jesse olham diretamente para ela. Note-se que nessa cena é apenas Ruby que, em alguns momentos, ao falar com Jesse, continua olhando-se no espelho. Ruby ainda está capturada por sua própria imagem, enquanto para as demais Jesse parece representar, de imediato, a marca da alteridade, o ideal do ego inalcançável, que as retira do registro do ego ideal. Ela é imediatamente reconhecida como um objeto-outro, que não é o ego ideal, mas se apresenta como o ideal do ego. Para alguns sujeitos esse reconhecimento e essa busca podem ser fontes de uma angústia esmagadora, acompanhada pela experiência da inveja. Parece ser o caso de Gigi, Sarah e, como o filme mostrará, também Ruby. Voltando às cenas específicas, temos o momento no qual Jesse e Sarah competem por uma vaga. Para isso, desfilam em frente a um avaliador e sua assessora. O avaliador ignora o desfile de Sarah e se encanta por Jesse. Sarah fica nitidamente desconfortável. Durante o desfile, Sarah sente como se Jesse tivesse lhe roubado sua vaga. Na próxima cena, tendo sido "trocada" por Jesse, ela se olha no espelho, com raiva, e arremessa uma lata de lixo em seu reflexo, estilhaçando-o em pedaços. O espelho quebrado pode ser pensado como metáfora do ego ideal partido, experiência que se dá no reconhecimento da alteridade materna com o advento da posição depressiva (Klein, 1935/1996b). A "retomada" do ego ideal deve ser agora realizada por meio de múltiplas identificações (múltiplos "pedaços do espelho"), como Freud (1923/1996d) já observara. Apesar de seu caráter constitucional (Cintra e Figueiredo, 2004), é nesse momento que a inveja é intensificada, pois é quando o sujeito é desbancado de seu lugar de ideal. Mesmo recebendo uma crítica que pode ser considerada construtiva, Sarah não aceita o elogio de Jesse - desprezo comum, por exemplo, em análises, em que o paciente invejoso pode recusar uma interpretação mesmo tendo lhe feito sentido - há uma dificuldade em usufruir do seio (ou do objeto bom, ou do prazer) de forma prazerosa e plena. Sarah então chupa a ferida de Jesse (causada pelo estilhaçamento do espelho), o que nos remete novamente ao caráter sádico-oral da inveja, sendo uma das fantasias o esvaziamento da capacidade criativa do objeto bom, da capacidade de nutrição (física e psíquica) do seio/leite/sangue de Jesse, que lhe permite a vida. O banquete invejoso A tensão entre Jesse e as três personagens aumenta culminando na cena de sua morte: Jesse, na prancha de uma piscina seca, conta sobre sua infância para Ruby. Ao mesmo tempo que se reconhece como perigosa, como distante e inatingível, Jesse também se reconhece perfeita: "God! Was there ever anything better than this? I mean, look at me. What else is there?". É a fantasia do invejoso: o seio pleno, absoluto, sabendo-se capaz de produzir alimento, nega-o sadicamente para o bebê. Surgem na cena Sarah e Gigi, olhando ameaçadoramente para Jesse, que começa a fugir das três mulheres - ao que descobrimos que não tem sucesso, sendo morta. A próxima cena mostra Gigi e Sarah tomando banho, ensanguentadas, ao passo que Ruby as observa de uma banheira repleta de sangue. O corpo de Jesse (que pela quantidade de sangue supõe-se ter sido esquartejado) é festejado como no banquete da horda primitiva (Freud, 1913/1996a); seu assassinato é uma forma de elas terem acesso a tudo de bom que Jesse possuía. Seguem-se então três reações para essa introjeção violenta e canibalesca de Jesse. A primeira cena após o assassinato mostra Ruby sentada, nua, em meio a um quarto escuro, sem móveis, iluminada pelo luar através de uma grande janela, que parte do chão e alcança o teto. Ela menstrua copiosamente e mostra-se aliviada. A menstruação, sendo um processo natural e saudável do corpo feminino, pode ser aqui entendida como representação da saúde que Ruby atinge com essa introjeção; tendo ingerido o objeto bom, torna-se novamente capaz de criatividade - no filme encenada como uma criatividade biológica, que é a fertilidade, a capacidade de gerar uma criança. Por outro lado, o sangue que escorre de Ruby pode ser também entendido de forma contrária, a saber, como sinal de destrutividade do invejoso em relação ao seu objeto que, em sua relação sádica com este, mina a capacidade criativa do objeto desejado; os bebês de dentro da mãe, fantasiados pelo invejoso, são atacados e mortos, fazendo escorrer uma quantia de sangue que ultrapassa o volume saudável da menstruação, por se tratar, talvez, do sangue desses bebês. Voltam então os cenários claros e calmos, como lembrando da presença de Jesse dentro (no filme, de forma literal) de Sarah e Gigi. Sarah retoma sua capacidade de ser validada (enquanto modelo), de também produzir (nesse caso, produzir num formato capitalista, ganhando cachês). Acompanhando sua amiga em um ensaio fotográfico, Sarah permanece distante das fotos. O fotógrafo, porém, insatisfeito com o desempenho de uma das modelos do ensaio, chama-a para substituí-la. Ela sorri, triunfante. Sua amiga, Gigi, por sua vez, no momento em que está desfilando, começa a passar mal, mostrando um desconforto em seu estômago. Corre para o banheiro, onde se despe rapidamente e começa, aflita, movimentos de vômito. Vomita então o olho de Jesse, corta o próprio ventre com uma tesoura e cai morta no banheiro. É interessante lembrar que toda essa voracidade das introjeções presentes na inveja cria um mundo interno cada vez mais maldoso e, por isso, persecutório. Jesse, ingerida por Gigi, passa a lhe fazer mal de "dentro" para "fora". Passaremos agora a destacar brevemente o entrelaçamento, articulado neste texto, entre a sabedoria antiga e o mundo contemporâneo. O livro dos Provérbios ( Míshlê Shelomoh 6 ), no qual constam textos reunidos de aproximadamente 950 a.C. a 700 a.C. (Ellisen, 1984/1993), dos quais uma parte também é atribuída a Salomão, diz que "o sentimento sadio é vida para o corpo, mas a inveja é podridão para os ossos" (Provérbios, 14:30). Vemos, de maneira literal, esse efeito danoso da inveja em Gigi, que sente dentro de si a corrosão da inveja. Em outro dito dos Provérbios, em forma de pergunta, o autor acentua o potencial destrutivo da inveja: "O furor é cruel e a ira impetuosa, mas quem poderá enfrentar a inveja?" (Provérbios, 27:4). Aliás, a própria Klein (1957/1991b) afirma que há uma grande pertinência em relação às razões psicológicas para que a inveja esteja entre os sete pecados capitais e sugere que talvez ela seja "inconscientemente sentida como o maior de todos os pecados, por estragar e danificar o objeto bom que é a fonte de vida" (1957/1991b, p. 221). No filme, esse estrago é levado às últimas consequências, culminando na morte e desmembramento do objeto bom/Jesse. Em Kohelet , o autor escreve sobre um mundo desértico, repleto de opressão e carente de vida, no qual se observa a inveja (o que talvez seja a própria causa da condição desse mundo). O filme, por sua vez, finaliza-se com os créditos passando em um cenário desértico, com o chão craquelado, enquanto escutamos a primeira música com vocais do filme inteiro. Nesse momento, ego e/ou deserto são lugares inabitados, inférteis, hostis para qualquer moradia. Esse deserto sugere, então, a sensação de vazio interior que a inveja promove no invejoso. Vazio este contra o qual, ao mesmo tempo, a inveja se mobiliza, como pontua Trinca (2009). Considerações finais Apontamos sucintamente que o conceito de inveja primária, apresentado por Klein no fim da década de 1950, ainda hoje mostra sua potência como importante articulador (juntamente com outros conceitos da própria Klein e de outras searas teóricas) para pensar problemáticas do campo clínico e sociocultural. É interessante observar no enredo do filme um tipo de escalada da inveja, que corresponde a uma semelhante escalada da violência. O filme inicia-se com a encenação de uma morte, como que anunciando e denunciando o seu clímax sangrento. A violência é então gradualmente apresentada, iniciando nos olhares desejantes que se projetam sobre o objeto invejado. Ela cresce e toma forma (num sonho) de um homem com uma espada, depois se apresenta com uma alusão a um abuso sexual e ganha materialização em diversas formas: um espelho quebrado que fere Jesse, uma investida sexual intensa, até culminar no desfecho fatal. Essa crescente nos faz pensar em questões contemporâneas ligadas à inveja e à violência. A inveja primária, por seu caráter constitucional, não pode ser evitada, mas assim como a relação do bebê com sua mãe pode causar-lhe feridas narcísicas precoces, intensificando as angústias persecutórias e a inveja, acreditamos que a contemporaneidade, com sua ênfase na imagem e na felicidade de aparência, tem uma relação de retroalimentação com a experiência da inveja e diversas situações de violência. Além disso, o desfecho "grotesco" do filme, que transforma a introjeção numa experiência concreta canibalística, pode ser pensado como um alerta: quantos atos horrendos de violência não se iniciam com ações sutis e aparentemente inocentes? Olhos que se acendem como fagulhas, bocas que salivam e lábios que se mordem em desejo: é a inveja primária do bebê, representada nas personagens do filme. Essa inveja primária, porém, pode tomar diversas formas, o que nos leva a pensar que devemos ficar atentos aos pequenos atos de violência, de discriminação, de desrespeito às diferenças, pois sob a máscara de palavras e ações "ingênuas" pode estar contido o prenúncio de um horror impensável. NOTAS 1 Este trabalho é fruto das discussões e orientações no grupo de pesquisa e estudos sobre intersubjetividade e psicanálise contemporânea do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), constituído por alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, coordenado por Marina F. R. Ribeiro. 2 Segundo Ellisen, o título hebraico "[...] significa 'Pregador' ou 'alguém que se dirige a uma assembleia'[...]. Os tradutores gregos deram-lhe o nome de 'Eclesiastes', que significa 'função de pregador'. É um título bem apropriado, pois a obra contém muitas características de sermão, embora não principie por texto bíblico" (1983/1991, p. 190). 3 Sobre o uso de textos bíblicos, Ogden escreve: "Tratarei a escrita, nesse trecho, como texto literário, não texto religioso e, como tal, não tratarei as figuras e acontecimentos descritos na História como expressões de significado teológico, mas como expressões de verdades emocionais a que se chegou por meio de uma forma específica de pensar" (2016, p. 39). É também a partir dessa perspectiva que, neste artigo, tratamos os textos bíblicos. 4 Remetemos o leitor a um interessante livro de Chuster e Trachtenberg (2009), intitulado As sete invejas capitais , nele os autores realizam uma profunda reflexão a respeito da inveja, que parte da inveja do pênis, passando pela inveja do seio e no Édipo, chegando às implicações da inveja não apenas no plano social, mas nos próprios caminhos trilhados pela humanidade em suas ações autodestrutivas, como o constante ataque ao nosso próprio planeta. 5 Embora Klein não concordasse com a hipótese da existência de um narcisismo primário absoluto, referindo-se a estados narcísicos em vez de estágio narcísico (Klein, 1952/1991a), acreditamos que a posição esquizoparanoide pode ser definida como um estágio narcísico, no seguinte sentido: há uma cisão entre Ego ideal (e objetos idealizados) e outro (objetos ex no seguinte sentido: há uma cisão entre Ego ideal (e objetos idealizados) e outro (objetos extremamente maus/persecutórios). Há uma idealização de parte do ego e de parte dos objetos e o rechaçamento/ataque aos objetos considerados maus/persecutórios. Isso nos permite estabelecer um diálogo com a teoria freudiana do narcisismo primário, que diz que a relação primordial do sujeito com o mundo externo (na ótica kleiniana, objetos maus/persecutórios) é uma relação de ódio (Freud, 1915/1996c), e com a teoria lacaniana do estágio do espelho (Lacan, 1949/1998). Nesse sentido, Etchegoyen, no prefácio ao livro de Chuster e Trachtenberg, destaca o interessante posicionamento dos autores em relação a mesma questão: "a fúria narcisista que sente o bebê frente às fontes da vida pode ser interpretada como a inveja na teoria kleiniana" (2009, p. 13). 6 De acordo com Ellisen, o título hebraico "significa as analogias ou máximas de Salomão. O termo 'Mishle' quer dizer comparação ou provérbio, e é provável que derive do verbo "mashal" (governar). Designa, portanto, um controlador princípio de vida, expresso por analogia" (1984/1993, p. 181). I Psicólogo, mestre em psicologia clínica pelo IP-USP II Professora doutora do IP-USP e membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae III Iniciação científica no curso de psicologia do IP-USP REFERÊNCIAS Bíblia Sagrada. (1995). (J. F. de Almeida, trad.). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil. [ Links ] Britton, R. (2008). He thinks himself impaired: the pathologically envious personality. In Envy and gratitude revisited. Londres: Karnac. [ Links ] Chuster, A. & Trachtenberg, R. (2009). As sete invejas capitais: uma leitura psicanalítica contemporânea sobre a complexidade do mal. Porto Alegre: Artmed. [ Links ] Cintra, E. M. U. & Figueiredo, L. C. (2003). Melanie Klein: estilo e pensamento . São Paulo: Escuta. [ Links ] Ellisen, S. (1991). Conheça melhor o antigo testamento: um guia com esboços e gráficos explicativos dos primeiros 39 livros da Bíblia. 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- Reading Bion’s Transformation: Introdução à edição inglesa
Este texto é a tradução para o português da introdução à edição inglesa de Reading Bion’s Transformations , realizada por Marina Ribeiro e publicada em 2024. A obra original em português corresponde ao clássico Bion em Nove Lições: Lendo Transformações (2011), de autoria de Luís Cláudio Figueiredo, Gina Tamburrino e Marina Ribeiro. The analyst must focus his attention on O, the unknown and unknowable. The success of psychoanalysis depends on the maintenance of a psychoanalytic point of view; the point of view is the psychoanalytic vertex; the psychoanalytic vertex is O. With this the analyst cannot be identified: he must be it. (Bion,1970/2014, Vol. VI, p.243) Para início de conversa, o livro Transformações (1965) é considerado um dos mais enigmáticos e difíceis textos de Bion. Além disso, o próprio livro pode ser lido como o testemunho de um processo de transformação em O; uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion, esta introdução segue essa pressuposição, também abordada por outros autores. O livro ora apresentado para a publicação em inglês tem como intenção expor a importância do estudo desse texto de Bion para aqueles que desejam um aprofundamento na obra, e, especificamente, na mudança que ocorre nos últimos capítulos de Transformações , no qual Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. O subtítulo do livro aborda justamente essa mudança na obra: change from learning to growth. O livro Transformações (1965) representa uma guinada na direção que Bion vinha seguindo em seus trabalhos anteriores. Anteriormente a esse livro, Bion estava interessado no aprender com as experiências emocionais, ou seja, nas transformações em K (conhecimento), que pertencem ao campo das representações. A partir do final dessa publicação Bion se dedica às transformações em O, que ocorrem em um nível não representacional da experiência; no Ser e no tornar-se. Considero produtivo e criativo quando um conceito, no caso cesura, é usado para pensar a própria obra do seu criador . A cesura ocorre justamente no livro Transformações, especialmente nos seus três últimos capítulos. Podemos considerar que a leitura feita por Luis Cláudio Figueiredo é um tipo de microscopia dessa cesura, sob esse ângulo, um texto original, considerando a vasta publicação de livros e artigos sobre Bion até o momento, em inglês e português. O psicanalista interessado na obra de Bion precisa inevitavelmente se dedicar ao estudo das ideias desenvolvidas em Transformações (1965). Para aqueles que estão se iniciando na obra, o livro ora apresentado pode ser um bom acompanhante na leitura do texto original de Bion. E, para aqueles que já conhecem a obra em profundidade, o livro levanta questões importantes e atuais de natureza epistemológica, principalmente no que se refere aos diversos estatutos de O, apresentados por Bion no final do livro Transformações e destacados pela leitura minuciosa e desconstrutiva de Luis Cláudio. A partir do insight que Bion teve no final do livro Transformações , momento no qual postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na vida e na obra. Aos setenta e um anos Bion se muda para a Califórnia - Los Angeles (1968), para surpresa de seus pares ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a sua própria verdade emocional? Uma transformação em O? Figueiredo segue, na sua leitura, os vestígios deixados no texto pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica. É justamente nos anos californianos, um período criativo e produtivo da sua vida, que Bion fez quatro viagens ao Brasil (1973, 1974, 1975 e 1978), a convite de seu amigo e colega Frank Philips, ministrando seminários e supervisões; semeando um legado que tem gerado várias publicações em português. O livro Reading Bion´s Transformation é uma leitura em profundidade do texto Transformações (1965), uma análise conceitual não convencional, realizada originalmente nos anos 2.000 no contexto de aulas na pós-graduação. O texto de Bion é discutido passo a passo, as referências epistemológicas são destacadas e analisadas. O livro aborda os três primeiros e os três últimos capítulos do livro Transformações . A intenção é exercitar a capacidade de leitura psicanalítica desconstrutiva, reconhecendo que Bion elevou o pensamento e a prática psicanalítica a novos patamares. A leitura que Figueiredo (2000, 2011) faz desfocaliza e refocaliza constantemente os diversos estatutos de O que Bion discorre em 1965. Sumarizando, o principal objetivo do livro Reading Bion’s Transformation é investigar os estatutos epistemológicos de O no livro Transformações (1965); Figueiredo destacou e problematizou três, que serão apresentados brevemente nesta introdução. Figueiredo (1999), a partir das postulações de Jacques Derrida, expõe que uma leitura desconstrutiva parte de uma proximidade, lealdade e liberdade para com o texto em todas as suas dimensões. A leitura próxima e desconstrutiva privilegia o texto e a intertextualidade no lugar da obra e de seu autor. Mesmo sendo necessário que a primeira leitura de um texto seja sistemática e o texto tratado como obra, em um momento posterior, o leitor precisará se desprender e se lançar em uma segunda leitura próxima e desconstrutiva, que considere o texto e os diálogos intertextuais implicados. Esse método de leitura considera que há sempre uma intertextualidade em cada trabalho. O texto de um autor nos remete a outros textos do mesmo autor ou de outros autores, anteriores ou posteriores a este, ou ainda aqueles textos que estão por vir. Bion (1965) propõe no início de Transformações que esse seria um livro que dispensaria outros livros, o que evidentemente, não se sustentou. O livro Atenção e interpretação (1970) é uma expansão dos insights presentes no livro Transformações , principalmente no que se refere às transformações em O. A partir da postulação das transformações em O, o vértice psicanalítico para Bion passa a ser O, e não mais K; como citado na epígrafe desta introdução: o analista não pode estar identificado com O, ele precisa sê-lo (Bion, 1970/2014). Isso promoveu uma mudança na compreensão dos conceitos postulados por Bion antes de 1965, e, principalmente, uma retomada, em outros patamares, do que Freud propôs como método psicanalítico da atenção livremente flutuante. O analista precisa ter a disciplina de, ao receber seu analisando, estar em um estado de sem memória (passado), sem desejo (futuro) e sem compreensão prévia, como proposto por Bion (1965, 1967). O analista precisa estar aberto para a experiência nova que irá evoluir do encontro entre duas personalidades, a do analista e a do paciente, ou seja, estar à deriva, deixando-se flutuar por experiências ainda não vividas pela díade. Essa proposta metodológica de Bion é, segundo Gerber e Figueiredo (2018, p.81) uma "...verdadeira renovação da escuta em atenção livremente flutuante em sua dimensão ética: ouvir o outro sem preconceitos, sem filtros, sem lembranças, sem expectativas ou desejos específicos, …”. A obra de Bion considera enfaticamente a complexidade do funcionamento mental, além disso, remete constantemente o leitor ao desconhecido, mantendo o texto insaturado, aberto a outros possíveis significados, sempre momentâneos. No instante em que temos a impressão de compreender algo na leitura, já perdemos essa sensação efêmera de apreensão do conteúdo. Dessa forma, sugerimos uma leitura a partir do estado de mente que Bion (1965, 1967) propôs: sem memória, sem desejo, sem compreensão prévia, o que sabemos ser um desafio considerável para o analista, e, talvez, ainda mais, para alguns leitores de textos psicanalíticos que podem estar em busca de compreensões saturadas e conclusivas. Grotstein (2019, p. 239) propõe uma técnica para ler Bion: He later made the statement that the analyst, while listening to the patient, should really listen to himself listening to the patient. This novel ‘technique’ can also be applied to reading his published work, and I have every reason to believe that that was how Bion desired for readers to approach his works: to listen to their own spontaneous thoughts while reading him, i.e., their own transformations of their own personal experiences upon reading him. A leitura do texto pode vir a ser uma experiência de transformação para o leitor, exigindo o que Bion (1970) chamou de paciência: a tolerância ao não saber, a estar à deriva. E, também, ter fé, denominada como uma atitude científica por Bion, de que algum sentido emergirá do caos do estado esquizopanóide de mente, para se entrar em um estado de segurança, o estado depressivo de mente, assim se chega a um K (conhecimento), sempre provisório e momentâneo. Lembrando que Bion ofereceu aos conceitos kleinianos uma tridimensionalidade, complexidade e plasticidade significativas; principalmente aos conceitos das posições esquizoparanóide e depressiva, ao de identificação projetiva e ao de inveja (Cintra, E. e Ribeiro, M. 2018). Há uma especificidade na leitura feita por Luis Cláudio Figueiredo (1999) do livro Transformações : trata-se de uma leitura próxima e desconstrutiva, como já dito, atenta às impurezas, às irregularidades, às fraturas, às alteridades do e no texto, sem idealizações ou partidarismos, considerando a complexidade do texto bioniano. Sob esse ângulo, o livro também é o testemunho do uso criativo do método de leitura psicanalítica desconstrutiva, além de ser um estudo feito no âmbito da pós-graduação universitária, ou seja, um método usado atualmente em pesquisas psicanalíticas; um método sofisticado de investigação e estudo de um texto psicanalítico. Bion ainda é um autor pouco presente nas universidades; dessa forma, penso ser fundamental apresentar algumas ideias de Bion, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Compreendo que a experiência de abertura e interesse de uma nova geração para um autor tão instigante como Bion pode acontecer na graduação, o que pode vir a favorecer a expansão do seu pensamento ao longo das futuras gerações. A teoria das transformações é uma teoria da observação clínica no aqui e agora da sessão analítica. Uma observação de como evoluem os fenômenos clínicos entre analista e analisando, a sequência de transformações que acontecem em uma sessão, na dupla analítica em complexa interação. E, também, a interpretação, a construção do analista ou sua formulação verbal, que é compreendida como um produto dessas inúmeras transformações que ocorrem durante uma sessão de análise, sendo que, a própria interpretação gera novas transformações. O livro Transformações aborda a eficácia psicanalítica e não apenas as verdades do conhecimento psicanalítico. Bion retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise: “If I am right in suggesting that phenomena are known but reality is ‘become’, the interpretation must do more than increase knowledge” (Bion 1965/2014, p.259). Em outras palavras, a interpretação deve favorecer uma transformação em O, deve favorecer o tornar-se si mesmo, não apenas um conhecimento de si. Em toda transformação há uma invariância, algo que permanece inalterado. Zimerman (2014) esclarece o conceito com o exemplo da água: líquida, gasosa ou como um cubo de gelo, o elemento invariante é a molécula de H2O. Outra analogia que podemos fazer para compreender essa díade transformação/ invariância é com a fotografia de uma mesma pessoa aos cinco e aos cinquenta anos, qual é a invariância que permite que ocorra um reconhecimento de que é a mesma pessoa? E no material clínico, como é possível reconhecer uma invariância? Compreendemos que a invariância pode favorecer o surgimento do fato selecionado, ou seja, aquilo que será objeto da interpretação por parte do analista, ou como um fato que é fundamental na compreensão do funcionamento psíquico do analisando, por exemplo: o sofrimento psíquico do paciente pode estar condensado em uma imagem que emerge na sessão por meio da capacidade de reverie do analista , como veremos na vinheta clínica apresentada no final desta introdução. Partindo do modelo apresentado por Bion (1965/2014) de que o analista observa o reflexo das árvores no lago, nunca as árvores diretamente, ou seja, há graus diferentes de distorções daquilo que é percebido segundo a turbulência da água e as condições atmosféricas. As árvores na beira do lago são uma manifestação de O, pois O é incognoscível. A turbulência da água e as condições atmosféricas são as emoções que circulam na sessão, no campo analítico, os vínculos L, H e K. Bion chamará essas distorções de hipérboles, com diferentes graus de transformação da experiência emocional original, no sentido de um distanciamento, como as ondas que reverberam ao lançarmos uma pedra no lago. A teoria das transformações abrange e contém a teoria freudiana da transferência (transformações em movimento rígido) e a teoria kleiniana da identificação projetiva (transformações projetivas). A transformação em moção rígida aproxima-se da transferência como postulada por Freud, algo do passado do paciente é transferido ao analista, e, geralmente, isso é identificado como uma invariância, algo que permanece e é reapresentado continuamente na transferência. Nas transformações em movimento rígido a invariância é reconhecível com uma certa facilidade. Temos as transformações projetivas, postuladas a partir da expansão do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein. Bion, na teoria sobre o pensar (1962), propôs os conceitos de continente e contido e considerou que as mentes se comunicam via identificação projetiva, alocando o conceito kleiniano em outro patamar de complexidade e no campo da intersubjetividade. As transformações projetivas comportam graus diferentes de distorção, sendo que as transformações em alucinose distorcem ao limite extremo, ou seja, o ápice da distorção hiperbólica, o limite entre o mental e o não-mental, no qual, torna-se difícil reconhecer uma invariância, pois a distorção é brutal. Temos as transformações em K (conhecimento), e, ao final do livro Transformações , Bion aborda as transformações em O, o tornar-se si mesmo. As várias formas de transformação são vértices oscilantes e podem ocorrer em diferentes momentos de uma mesma sessão, sendo que a análise deveria favorecer as transformações em K e em O, o aprender com a experiência (K) e o tornar-se (O). A partir de Transformações, Bion (1965) compreende que o contato com a realidade psíquica ocorre de forma a-sensorial, ou seja, uma apreensão que acontece por meio da intuição e não pela captação sensorial. O estar em O do analista, como Bion (1970) escreve, é o estado de mente que favorece a intuição psicanalítica, no que se refere ao contato com a realidade psíquica do paciente, um conhecimento sem a mediação de elementos sensoriais. Bion (1965, 1967) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade, e intensificados por esta, e não favorecem a intuição, motivo pelo qual faz essa sugestão técnica de difícil compreensão ainda hoje: o analista precisa receber seu paciente em um estado mental sem desejo, sem memória e sem compreensão prévia, como se fosse sempre a primeira vez. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo em 1965 (publicado como texto em 1967) nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: Nevertheless, as analysts we do know – and I think it is borne in on us more and more as experience builds up – that we really do deal with something ; that the psychoanalytic experience, however sceptical we may be, is really an emotional experience and it really exists, even if we shall never know or be in a position to give even an approximately correct description of what takes place. For this reason, I think – and find it most useful to do so – of any clinical description as being by nature of a pictorial representation, or, shall we say, a sensuous representation (because I am thinking of what takes place in an analytic situation).I transform that situation into visual images and then a further transformation into verbal formulations, such as those with which we are familiar here (Bion, 1965/2014, p.10). O analista está diante do desafio de lidar com o aquém da sensorialidade, o não sensorial, captado pela intuição psicanalítica, o terceiro olho da mente, a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente. E, também, o psicanalista precisa lidar com o sensorial, aquilo que pôde ser transformado em uma representação pictórica pela sua capacidade de reverie. E, além disso, o psicanalista precisa se defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens que emergem do encontro analítico; as formulações verbais. Há, também, a geração de imagens a partir das interpretações ou construções feitas pelo analista, em uma circularidade que se retroalimenta, e que favorece a intimidade psíquica e a expansão do campo analítico. É dessa forma que compreendo quando Bion (1965) escreve sobre o diâmetro gerado pela interpretação, que não pode ser nem limitado e nem amplo demais, mas precisa ser um diâmetro que favoreça o contato íntimo entre as duas mentes, a do analista e do analisando, em constantes transformações de um O comum a díade. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica, ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion,1992/2014). As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967). Precisamos de um facho de intensa escuridão para intuir no aqui e agora da sessão, tornar visível o invisível da experiência. Freud, in a letter to Lou Andreas-Salomé, suggested his method of achieving a state of mind which would give advantages that would compensate for obscurity when the object investigated was peculiarly obscure. He speaks of blinding himself artificially. As a method of achieving this artificial blinding I have indicated the importance of eschewing memory and desire. (Bion, 1970/2014, vol. VI, p. 257). A função do analista na sessão, a partir da postulação das transformações em O, passa a ser uma oscilação contínua entre conhecer (K) e ser (O). Em outros termos, uma transformação contínua de O para K, e de K para O, a partir do atravessamento das turbulências hiperbólicas, das distorções da realidade psíquica sempre presentes, Figueiredo (2014) escreve: …Bion nos fala da experiência de O - a experiência emocional em sua condição de Origem de toda a nossa vida somatopsíquica: aqui não se trata de ‘conhecer’, mas de ‘tornar-se’, reconciliar-se em profundidade com a própria experiência emocional inconsciente, sem defesas e subterfúgios, inclusive sem a redução desta experiência ao campo dos sentidos instituídos e reconhecíveis pela consciência. Neste contexto, que ultrapassa a epistemologia clássica, pois o que está em jogo é a correspondência entre a representação e o seu objeto, dá-se ‘uma outra verdade’, a verdade em O, da maior importância para a clínica psicanalítica, cujas metas não se reduzem a conhecer ou reconhecer-se - embora passem por isto - mas se projetam no rumo de uma efetiva transformação subjetiva, o que só acontece a partir do contato profundo e sem disfarces do sujeito consigo mesmo, com o inconsciente infinito que o habita e move. ( p.127) . Ainda que possamos compreender as transformações em K e em O como vértices oscilantes, a transformação princeps é o tornar-se: “Their value therapeutically is greater if they are conducive to transformations in O; less if conducive to transformations in K” (Bion, 1970/2014, p. 242). Bion, inspirado em Nietsche, diz que em uma análise o paciente se torna quem ele é, o melhor que se pode com o que se é a cada momento, pois o inconsciente é infinito; é o que nos move, uma constante iman ência. Retomando as transformações em O, Figueiredo (2000, 2011) faz uma discriminação de três concepções de O que surgem em Transformações , ou seja, qual é a concepção, ou o estatuto de O no plano da teoria das transformações? Como esta concepção oscila ao longo do livro de Bion? Primeiramente, temos O evocado através das formas platônicas; O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza, mas conteria as matrizes dos possíveis fenômenos, ou seja, comporta uma ordem: as formas transcendentais. Essa concepção de O como formas platônicas colaboram na compreensão das preconcepções inatas, o arcabouço da mente, as tendências herdadas para organizar o mundo segundo certos padrões, como relata Figueiredo (2000, 2011). Na segunda concepção, O não comporta as formas platônicas, mas uma potencialidade para as distinções ainda não desenvolvidas. No entanto, segundo Figueiredo (2000, 2011), nessa concepção, a razão da resistência ser deflagrada não é compreensível. O que geraria a resistência? Quando há um movimento em direção a O, em direção à experiência da verdade emocional do analisando, o que geraria a resistência? Bion escreve que a verdade emocional é o alimento da mente, mas que tememos o contato com essa verdade, ou seja, resistimos a ela, resistimos ao desconhecido em nós. Na terceira, última e plena acepção de O como o infinito vazio e sem forma do qual o mundo emerge em estado ainda caótico, as razões da emergência da resistência se tornam compreensíveis. A resistência é gerada diante da angústia ao infinito vazio e sem forma, ao desconhecido. Bion (1965/2014, p. 261) usa essa formulação poética de John Milton em Paradise Lost para representar O: The rising world of waters dark and deep. Won from the void and formless infinite. Figueiredo (2000, 2011) considera que apenas nesta terceira compreensão que O corresponde à coisa-em-si kantiana, que não pode ser conhecida, no entanto, suas qualidades primárias e secundárias podem ser apreendidas, citando Bion: I am not interpreting what Milton says but using it to represent O. The process of binding is a part of the procedure by which something is “won from the void and formless infinite”; it is K and must be distinguished from the process by which O is ‘become’. The sense of inside and outside, internal and external objects, introjection and projection, container and contained, all are associated with K. (Bion, 1965/2014, p. 262) Dessa forma, como compreende Figueiredo (2000, 2011), Bion acentua o hiato entre a lógica do mundo dos conceitos (K) - o senso de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e contido - e o plano do infinito vazio e sem forma no qual a experiência emerge. Esse hiato tem uma reverberação significativa no universo teórico da psicanálise: o intervalo entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre o saber de si e o tornar-se si mesmo. Continuando nessa direção de destacar algumas articulações específicas presentes neste livro, no intuito de conduzir e instigar o futuro leitor, enfatizamos, que é a partir do livro Transformações (1965) que passa a ser fundamental a qualidade das transformações que se realizam na sala de análise e na dupla analítica, dentro do campo analítico. Transformar é trans + formar, formar para além, que implica tanto em movimentos formativos, quanto nos desintegradores, transformar tanto forma como destrói formas. Na experiência do inconsciente implicada na psicanálise, é preciso que se reconheça tanto a dimensão do tornar-se como do desfazer-se, movimento, este último, pouco realçado em outros textos. O movimento de desformar, desfazer-se em O, é uma ênfase da leitura de Figueiredo (2000, 2011): Being become by O seems to imply a “constructive” movement in which O imposes itself with its “development” potential. Becoming O, understood now as a void and formless infinite, is, on the contrary, a deconstructive movement back to baseless, to the dark nights of the soul. In the first case it is letting oneself be done by O , in the other is letting oneself be undone in O . Na mesma direção do desformar, é abordado neste livro uma discussão sobre os conceitos de função α e transformação α (Tα), estabelecendo relações entre ambos. É considerado que Tα inclui a função α, mas não se reduz a ela, uma vez que o resultado de certas transformações – em função da destrutividade e desintegração – não são pensamentos propriamente ditos, mas sim evacuações e projeções. A transformação implica em formar, mas, também, em desformar, ou seja, não só os pensamentos podem se apresentar destruídos; a própria capacidade de pensar pode estar destruída. Outra compreensão a ser destacada no texto ora apresentado é referente à dimensão beta do material clínico, sempre presente. Bion usa o termo elemento β , e T β (transformação β ), gerando uma certa confusão no leitor, pois T β é produto de uma transformação, e o elemento β é uma experiência em estado bruto. O termo transformação é desdobrado em três: as Transformações (T) englobam transformações em termos de processo (T α) e transformações em termos de produtos (T β). Quando estamos diante T paciente β , estamos diante de um produto de uma transformação; esse é o material clínico que será apresentado ao analista, no entanto, esse material continua contendo uma dimensão beta. Estamos sempre diante de uma sequência infinita de transformações, nas quais a origem (O) é incognoscível, e o que se apresenta como forma ou representação permanece continuamente com uma dimensão beta, enigmática. Bion nos fala dos limites da representação, do constante formar e desformar, sempre parcial, ou seja, a dimensão beta da experiência está sempre presente. Mawson escreve: “A careful reading of Bion, however, allows us to see that it is an epistemological idea relating to the limits of representation.” (2014, vol.VI , p.215) Figueiredo (2000, 2011) dia que o material clínico – ainda que já contenha algumas formas e padrões dos quais se possam extrair invariantes – está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada, e a interpretação a ser formulada. O material clínico contém uma dimensão beta, enigmática, intrusiva, perturbadora, que convoca o analista a uma experiência que é sempre de turbulência emocional, um mau negócio, como escreve Bion em seu último artigo (1979/2014). Será que o analista pode propiciar uma transformação em O a partir da interpretação e do conhecimento psicanalítico? O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza. Contudo, ele já conteria em si as matrizes dos possíveis fenômenos. A experiência que Bion denomina mística será um modelo para esta modalidade de transformação, que já não é uma transformação DE O, mas uma transformação EM O, já não é um conhecimento de O, mas um tornar-se O, ou seja, o intervalo, ou hiato como escreve Bion (1970), entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre ter um conhecimento de si e o tornar-se si mesmo, como dito acima. Embora Bion não esteja se apresentando como místico, não deixa de nos sensibilizar a lembrança de que para ele a procura das formas adequadas de expressão é tão necessária, quanto fracassada, pois é sempre uma aproximação que comporta distorções, como escreve Figueiredo (2000, 2011). Tal como o místico, o psicanalista tem uma experiência de O que não pode ser nem desqualificada nem transformada em representação adequada, já que toda transformação de O é de alguma forma hiperbólica. Poderíamos dizer que L, H, e K são sempre inadequados a O, embora sejam apropriados a transformações DE O. Em cada um destes vínculos há uma espécie de exagero e distanciamento, o que está na raiz do que Bion chama de hipérbole. Para Bion, ser O ou tornar-se O, nem é uma possibilidade teórica, nem pode ser um imperativo categórico, ou seja, superegoico, como diz Figueiredo (2000, 2011). É abordado neste livro que a passagem a O, muito mais que o conhecimento de O, é o que está presente nas situações de resistência, ou seja, no ato de se desfazer no desconhecido, nas águas turvas e profundas. É a iminência de O, como sentimento de que aceitar e acolher O, que pode ser a melhor solução – ainda que penosa – que deflagra a resistência a O. O conhecimento (K), inclusive, pode ser um dos modos de não ocorrer a transformação EM O, de impedir sua iminência. O que está em jogo não é o conhecimento e suas vicissitudes, ou seja, as capacidades cognitivas do homem e seus limites, mas a possibilidade assustadora de passar a O, de transformar-se em O, em sua iminência e imanência: o infinito vazio e sem forma. Segundo Figueiredo (2000, 2011), uma situação patológica se instala quando o encontro com O deve ser evitado e adiado infinitamente. Neste desviar-se, ficamos às voltas apenas com as transformações de O. Isso quer dizer que não só prevalece o vínculo H, mas, também, quando prevalece L e K – situações em que O está apenas hiperbolicamente presente, nessa situação, há sempre uma resistência a O operando, uma resistência ao desconhecido. O que gera a resistência é a angústia diante do infinito vazio e sem forma – nada de entes – e, provavelmente, o pavor do mundo emergente de águas turvas e profundas, pois o mundo aqui não é conquistado, a partir do nada, na forma de algo simples e bem discriminado. Nesta versão, o estatuto de O como incognoscível, encontra a sua plena formulação. A ideia de O como infinito vazio e sem forma – um nada de entes, em termos heideggerianos, ou seja, momento no qual o mundo emerge em estado ainda caótico. Neste caso, fica muito mais fácil identificar as razões da resistência, da evitação ao desconhecido. Assim, podemos supor que O seja um campo de possibilidades de ‘evolução’, em si mesmo inacessível, mas cujos ‘produtos’ podem ser conhecidos, ou que O é o infinito vazio e sem forma de onde são conquistadas as qualidades secundárias e primárias de que se compõem os entes. Após essa explanação teórica da teoria das transformações, vou apresentar uma vinheta clínica que servirá de referência para refletirmos sobre os conceitos. Considerando, que é sempre um desafio articular o material clínico com as abstrações teóricas, mas vamos confiar no estímulo e curiosidade provocados pela experiência: Ao encontrar Antônio pela primeira vez, sem nenhuma informação a seu respeito, fixo-me incomodamente em seus sapatos e penso: são sapatos de um morto, como alguém pode usar sapatos de um morto? Percebo-me quase em uma experiência alucinatória, os sapatos produzem o efeito de um campo magnético do qual não consigo desviar os olhos e o pensamento: vejo a morte e estou paralisada. Ele começa a falar, fico dividida, observando o que é dito e a intensa sensação de morte na qual estou imersa, sem compreender absolutamente nada do que está ocorrendo, sendo arrastada pela experiência perturbadora. Aguardo em um silêncio receptivo. Ao final do nosso encontro, Antônio relata de forma distanciada e breve os fatos de sua vida que precisavam ser sonhados, fatos estes que estavam contidos e condensados na imagem dos sapatos de um morto, representação pictórica pela qual fui subitamente abduzida ao encontrá-lo. Sua única filha nascera com várias malformações, passou por intervenções cirúrgicas e viveu poucos anos. Antônio havia me procurado após um ano da morte da menina ou da sua quase morte psíquica; ele andava com os sapatos de um morto, desvitalizado, um morto ainda vivo. Sua demanda manifesta de análise era expressa, porém, por outras questões: não conseguia encontrar um lugar de reconhecimento profissional e financeiro. A profissão - vida - se mostrou de uma brutalidade ímpar, e ali estava ele, um homem andando com a morte acorrentada aos seus pés. E, na mesma sala, a analista, tentando sonhar a brutalidade dos fatos de sua vida. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “ I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analystand analysand equally. ” (Bion 1965/2014, p. 169). A turbulência gerada pelo encontro com Antônio - o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979) -, rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma reverie na mente da analista: a imagem dos sapatos de um morto, que também passa a ser um fato selecionado da sessão. A imagem pictórica já é o produto (T analista β) de um processo de transformação (T analista α). A analista em estado de capacidade negativa (sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia), estado de mente receptivo a O, e, também, favorecedor da intuição psicanalítica, é arrastada pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido, ficando à deriva. É preciso ter paciência (estado de mente esquizopananoide) e fé, o ato de fé (Bion, 1970) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo), que propicie uma evolução em K, um conhecimento do sofrimento psíquico do paciente. A experiência de ‘ver’ os sapatos de um morto é algo do âmbito do que (Bion, 1970/2014, vol. VI, p. 250) chamou de transformação em alucinose: …to appreciate hallucination the analyst must participate in the state of hallucinosis. From what I have said it will be clear that this is so, for I have postulated that a K link can operate only on a background of the senses, is capable of yielding only knowledge ‘about’ something, and must be differentiated from the O link essential to transformations in O. Before interpretations of hallucination can be given, which are themselves transformations O ˃ K, it is necessary that the analyst undergoes in his own personality the transformation O ˃ K. By eschewing memories, desires, and the operations of memory he can approach the domain of hallucinosis and of the ‘acts of faith’ by which alone he can become at one with his patients’ hallucinations and so effect transformations O ˃ K. A representação pictórica dos sapatos de um morto é uma transformação de O em K, uma experiência que se fenomenaliza em uma imagem, um ideograma afetivo (1992/2014); imagem que está no âmbito da alucinose, pois não há nenhum apoio sensório na captação dessa realidade psíquica, isso acontece pela capacidade de intuição do analista, que evolui para uma reverie, ou seja, entra no campo das representações. Podemos refletir que ocorreu na mente da analista, diante da turbulência emocional do encontro, uma transformação de O para K, ou seja, algo sem forma (O), evolui para uma forma (K), a imagem pictográfica. Isso ocorre pela capacidade de reverie da analista, sua função α; lembrando que a reverie é um fator da função α, uma função transformadora da brutalidade dos fatos. K é uma forma, algo que se fenomenizou, passível de representação por uma imagem com características estéticas, e que, posteriormente, pode ser transformada pelo analista em uma narrativa, uma formulação verbal como escreve Bion (1965). Resumidamente, O se manifesta em K (Bion,1970/2014), se fenomenaliza em K. A experiência estética na sessão analítica é outro vértice que surge a partir do livro Transformações . Bion inicia o livro descrevendo a mutação que o artista faz ao pintar um campo de papoulas, e as invariâncias que fazem com que seja possível o reconhecimento do campo de papoulas, no entanto, essa analogia se tornará cada vez mais complexa ao longo do livro. Seria a transformação em O uma experiência estética? Ou a transformação em K? Ou mesmo as distorções hiperbólicas das transformações projetivas e a transformação em alucinose poderiam ser compreendidas como experiências estéticas? Como geralmente estamos diante de construções imagéticas da mente, os ideogramas afetivos (Bion, 1992/2014), uma experiência estética parece estar sempre presente nos diversos vértices de transformação que poderiam até ser pensados como vértices estéticos da experiência emocional. A linguagem poética que Bion passa a usar com mais frequência após o livro Transformações , e indubitavelmente, na publicação da trilogia Memória do Futuro e dos textos autobiográficos, é uma linguagem da imaginação estética, uma linguagem de êxito, como ele escreveu em Atenção e Interpretação (1970) . Somente a linguagem poética pode ser uma evolução das transformações EM O e DE O. A mente se organiza como poiesis, a diuturna capacidade de sonhar as experiências emocionais, uma criação estética, imaginativa, constante e infinita. Agradecimentos e a história do livro Reading Bion’s Transformation O atual é aquilo que não envelhece com a passagem do tempo, talvez até se torne melhor compreendido, o que penso ser o caso da leitura que Luís Cláudio Figueiredo fez do livro Transformações em março de 2000, tendo como interlocutores os alunos da pós-graduação da PUCSP. A época em que essas aulas foram ministradas é um dado a ser destacado, pois escassos textos nos anos 2000 se referiam a essa mudança na obra de Bion, e, especificamente, os estatutos de O, do Ser e do tornar-se, justamente o que é examinado nessa leitura do livro Transformações , e que vem sendo discutido atualmente entre estudiosos da obra: o estatuto clínico das transformações em K e em O. No ano de 2008, Gina Tamburrino e eu fazíamos doutorado, tendo como orientador o Luis Cláudio. Na ocasião, ele disponibilizou suas anotações das aulas ministradas em 2000 para organizarmos um seminário sobre Transformações . Ficamos impactadas com a originalidade e complexidade daquelas anotações de aula e sem hesitação comentamos que seria interessante a publicação daquele material. Luis Cláudio nos convidou para organizar e editar aquelas preciosas anotações, o livro foi publicado em português em 2011. Na direção de orientar o leitor de língua inglesa, o livro Reading Bion de Rudi Vermote (2019) é um bom interlocutor para o livro Reading Bion’s Transformation , que consiste em uma leitura pormenorizada e detalhada de um dos livros teóricos de Bion, considerado extremamente complexo, mas fundamental para compreender de forma consistente o pensamento bioniano. A semelhança dos títulos dos dois livros foi uma coincidência, o livro em português se chama Bion em nove lições. Lendo transformações , publicado em 2011. A origem do texto são aulas ministradas na pós-graduação por Luis Cláudio Figueiredo, por esse motivo, mantivemos os capítulos nomeados como lições. Como o título em português comporta um certo humor paradoxal, pois não se trata de apresentar Bion em nove lições, mas de expor uma leitura complexa do livro Transformações (1965), preferimos retirar a primeira parte do título para a versão em inglês, o que acentuou a proximidade entre os dois títulos. Coincidências à parte, ou melhor dizendo a partir do próprio Bion: os pensamentos psicanalíticos buscam autores em diferentes continentes geográficos e psíquicos; os livros são escritos em línguas e tempos diversos, no entanto, podem se interconectar na sua textualidade, mesmo que em parte. Além disso, o título em inglês permite uma outra compreensão: que Figueiredo segue atentamente os vestígios deixados no texto pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica, como já exposto. Ao final, gostaríamos de agradecer ao Luís Cláudio Figueiredo que foi generoso em concordar com a publicação das suas ideias para o leitor de língua inglesa; e à colega Gina Tamburrino que também endossou a proposta. A Elias da Rocha Barros pelo prefácio feito para a versão em inglês, mas não apenas isso, seu incentivo para traduzir e publicar o livro foi simplesmente decisivo. A Howard Levine pelo interesse nas ideias presentes no livro e pela prestimosa orientação para que uma introdução fosse escrita orientando o leitor de língua inglesa aos desafios na leitura do texto, tanto do texto original de Bion, Transformações, como a leitura apresentada neste livro. Traduzir é em parte trair o texto original, sendo que, o português e o inglês são línguas com estruturas diversas, tornando a aventura da tradução um risco e um trabalho árduo . Um agradecimento a Davi Flores, o tradutor, e a Taís Nicoletti, a revisora, que aceitaram o desafio de traduzir para o inglês um livro difícil e complexo em português. Ambos são psicanalistas e pesquisadores interessados na obra de Bion, e que fazem parte do meu grupo de pesquisa na Universidade de São Paulo e do LipSic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea IPUSP - PUCSP). Agradeço a resenha do livro em português, escrita por Júlio Fochtengarten (2012), que foi usada como uma das referências para este texto. Sou grata a leitura cuidadosa e atenta ao manuscrito desta introdução e as sugestões feitas por Evelise Marra, Ignácio Gerber, Júlio Fochtengarten, e Gina Tamburrino. Agradeço a Evelise de Souza Marra, co-organizadora das Jornadas sobre a obra de Bion em São Paulo iniciadas em 2008, e realizadas com a colaboração de outros colegas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), até o momento foram doze jornadas, e pelos textos e livros que foram gerados a partir desses profícuos encontros, até o momento são cinco livros, tornando o legado de Bion no Brasil algo em constante expansão. E, agora, parte dessa consistente produção brasileira é apresentada ao leitor de língua inglesa tendo Howard Levine como editor. NOTAS 1 Luis Cláudio Figueiredo inicia muitos de seus textos e aulas com essa expressão - para início de conversa -, dessa forma, fazemos aqui um tributo a esse psicanalista e pesquisador tão profícuo. 2 Vermote (2019) no livro Reading Bion refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana; dividindo seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros. 3 Luis Cláudio Figueiredo tem uma publicação considerável em português, são vinte e quatro livros publicados até o momento; considerado um dos psicanalistas brasileiros mais lidos, citados e referidos por seus pares. O leitor de língua inglesa pode encontrar alguns artigos desse autor em revistas científicas. 4 A história detalhada deste livro está no final da introdução. 5 Os termos transformações e invariâncias tem origem na matemática. 6 Retomo o conceito de transformação em alucinose na discussão da vinheta clínica no final da introdução. 7 Vermote (2019, p.166) considera que no livro Atenção e interpretação (1970) Bion “...succeeded in integrating T (K) and T (O) as a dual track of psychic functioning and change. ” 8 Se permanecermos estritamente dentro de uma conceptualização bioniana, a resistência se refere ao desconhecido, ou seja, ao espectro conhecido-desconhecido e ao aprender e não aprender com a experiência emocional. Lembrando, também, que referente a díade consciente-inconsciente, Bion propõe a díade finito-infinito. 9 Atualmente, Luis Cláudio Figueiredo é um dos professores orientadores do LipSic. REFERÊNCIAS Bléandanu, G. Wilfred R. Bion. A vida e a obra. (1993). Rio de Janeiro: Imago. (Trad. Hoory e Mortara). Bion, R. Wilfred (1965). Transformations. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1965). Memory and desire, 1965. The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1967). Notes on memory and desire. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1970). Attention and interpretation. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1992). Cogitations. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Cintra, E.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP: Escuta. Figueiredo, L. C. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo, SP: Escuta. Figueiredo, L. C. (2000). Anotações de aulas ministras na pós-graduação da PUCSP. Figueiredo, L. C; Tamburrino, G., Ribeiro, M. (2011) Bion em nove lições. Lendo Transformações. São Paulo. Editora Escuta. Frochtengarten, J. (2012). Bion em nove lições: lendo Transformações. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3), 229-232. Recuperado em 30 de janeiro de 2021, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo . Gerber, I. & Figueiredo, L.C. (2018). Por que Bion? São Paulo: Ed. Zagodoni. Grotstein, J. (2007). A beam of intense darkness. Wilfred Bion’s Legacy to Psychoanalysis. London: Karnac Books. Grotstein, J. (2019). Listening to and reading Bion. In: Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge, pp. 238-243. Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge. Zimerman, D. Bion da Teoria à Prática. Uma leitura didática . (2004). Porto Alegre: Artmed. Livros publicados decorrentes das 12 Jornadas sobre a obra de Bion em São Paulo ocorridas na SBPSP desde 2008: Psicanálise: Bion - Transformações e Desdobramentos . Organização: Cecil José Rezze Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani-. Primeira edição: Casa do Psicólogo. São Paulo, 2009 . Segunda edição: Ed. Blücher: São Paulo, 2020. Bion: A décima face-novos desdobramentos . Org: Cecil José Rezze, Celso Antonio Vieira de Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Blücher: São Paulo, 2018. Bion: Transferência, Transformações, Encontro Estético . Org: Cecil José Rezze, Celso Antonio Vieira de Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Primavera: São Paulo, 2016. Psicanálise: Bion. Afinal o que é experiência emocional em Psicanálise? Org: Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani. Ed. Primavera: São Paulo, 2012. Psicanálise: Bion- Clinica ↔ Teoria . Org: Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani. Ed. Vetor: São Paulo, 2011.
- Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2020 na revista Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (Rio de Janeiro) e está disponível no link: https://doi.org/10.1590/1809-44142020001007 . Sua relevância é evidenciada pelo fato de ser leitura obrigatória para a prova de ingresso na Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo. Resumo: Considerando que Thomas Ogden é um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea transmatricial (FIGUEIREDO; COELHO JÚN IOR, 2018), o artigo apresenta a passagem e transformação do conceito de identificação projetiva (KLEIN, 1946) para o de terceiro analítico (OGDEN, 1994) por meio da análise e discussão de publicações do autor, em que faz articulações tanto com conceitos de Winnicott, quanto de Bion. Para Ogden, os conceitos são metáforas que nomeiam diferentes aspectos do funcionamento mental, e as transformações conceituais estariam, então, nos pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso diverso das expressões. Por ora, estou interessado nos pensamentos selvagens que surgem e sobre os quais é impossível rastrear, de imediato, a quem pertencem ou qual sua genealogia particular. (Bion, 1977). Acredito que, em psicanálise, fazemos bem ao permitir certa inexatidão nas ideias e nas palavras. (Ogden, 2013). Nos últimos anos, venho pesquisando as transformações que ocorrem nos conceitos psicanalíticos, especialmente no que se refere à identificação projetiva 1 e seu desdobramento na ideia de terceiro analítico. Assim como o processo de análise é uma sonda que expande o próprio campo investigado (BION, 1970/2007), a teoria psicanalítica também está em constante expansão, trazendo novos desdobramentos conceituais, frutos de uma psicanálise viva, compreendida como uma obra aberta. Podemos pensar que, enquanto a invariante da psicanálise reside no reconhecimento da existência do inconsciente, há hoje inúmeras variantes, cabendo ao psicanalista a tarefa de identificar o próprio acervo teórico para construir um fio condutor dentro do vasto universo da psicanálise contemporânea. A intenção deste texto é justamente essa: expor um fio de Ariadne 2 , de modo a tecer uma trama teórica própria, dentro de inúmeros recortes possíveis, buscando aprofundar o conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden. Para tanto, utilizo a compreensão das matrizes psicanalíticas de Figueiredo e Coelho Júnior (2018), no livro Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: matrizes e modelos em psicanálise. Faço essa escolha, pois considero o recorte do universo teórico psicanalítico proposto pelo autores um organizador para a leitura e compreensão das múltiplas intersecções teóricas e clínicas que encontramos hoje. O pensamento transmatricial de Thomas Ogden Figueiredo e Coelho Júnior (2018) postulam duas grandes matrizes para a psicanálise: a freudo-kleiniana e a ferencziana. As matrizes são formas de adoecimento 3 , e a cada uma corresponderá uma estratégia de cura. A primeira matriz, freudo-kleiniana, tem como característica seu centramento nas angústias e nas inúmeras defesas erigidas para dar conta destas, sendo que os adoecimentos ocorrem quando as defesas não são efetivas. A segunda matriz, ferencziana, considera que há dores e sofrimento psíquico que ultrapassam as capacidades ativas do psiquismo, deixando este em um estado de morte ou quase morte a morte dentro. A partir da matriz freudo-kleiniana, temos os adoecimentos por ativação e, da matriz ferencziana, os adoecimentos por passivação. Os autores consideram que Bion é um representante da matriz freudo-kleiniana e Winnicott, da ferencziana, sendo que ambos estão presentes nas elaborações nomeadas como transmatriciais . Muito presentes na psicanálise contemporânea, tratam-se de “atravessamentos de paradigmas” 4 , resultando em articulações criativas. O pensamento de Thomas Ogden encontra-se, justamente, na intersecção entre Bion e Winnicott, tornando então esse autor um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea transmatricial, entre outros, como André Green, Antonino Ferro, René Roussillon, Christopher Bollas e Anne Alvarez (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018). Saliento que as matrizes são organizadores teóricos e clínicos, cabendo dentro dessas delimitações, sempre parciais, intersecção, tais como o fato de Melanie Klein ter sido paciente de Ferenczi. Penso que é inescapável nos interessarmos pelas teorias que habitam a mente de nossos analistas, conscientemente e, o mais importante, inconscientemente. Nesse sentido, há uma construção teórica na psicanálise marcada pelas intensidades das transferências e contratransferências, passível apenas de conjecturas. Destaco um comentário de Freud a Ferenczi (1908-1911) em uma das várias cartas trocadas entre eles, na qual Freud considera que não se deve fazer teorias, mas elas devem cair de improviso em sua casa, como hóspedes que não foram convidados, enquanto você está ocupado examinando detalhes. Penso ser este um excelente estado de mente sugerido por Freud: andarmos um pouco distraídos, em estado de atenção flutuante, e encontrarmos o que não estávamos procurando um pensamento psicanalítico em busca de um autor 5 ? Talvez a coesão conceitual extrema não se encaixe nesse pesquisador em estado de atenção flutuante, que está, também, imerso nas questões e demandas do cotidiano da clínica. A teoria, assim concebo, é apenas uma aproximação possível da experiência clínica, não abarca a totalidade da experiência, é sempre parcial, provisória e histórica. Em vários momentos da sua obra, Bion (1962, 1965, 1970) adverte que a experiência em si é incognoscível temos contato apenas com as transformações dela. Cada teórico da psicanálise ilumina e narra uma faceta da experiência clínica, dentro de um determinado paradigma teórico; nesse sentido, o diálogo e as ressonâncias entre autores são fundamentais no vasto universo da psicanálise contemporânea. Tendo o diálogo e as ressonâncias como norte, Coelho Júnior (2019) escreve um artigo com o significativo título: De Ogen a Ferenczi: a constituição de um pensamento clínico contemporâneo/From Ogden to Ferenczi - the constitution of a contemporary clinical thought . O autor inverte a temporalidade a que estamos acostumados, sugerindo que, no a posteriori das construções teóricas psicanalíticas, podemos encontrar conexões e ressignificações, tanto no sentido da progressão temporal, como no sentido inverso, dentro das inúmeras intertextualidades (PAZ, 1984) possíveis. Faz então uma espécie de revitalização das possíveis conexões com o legado da obra de Ferenczi, do qual Ogden parece ter usufruído na construção do seu pensamento, provavelmente por meio dos textos de Balint e Winnicott. Podemos dizer que Ferenczi ficou por décadas na latência da história da psicanálise, mas produzindo efeitos em seus sucessores, sendo os mais evidentes, Balint e Winnicott. Mas há também os efeitos silenciosos e não explicitados na obra de Melanie Klein 6 . Penso ser relevante dimensionarmos a presença do pensamento ferencziano na psicanálise contemporânea o enfant terrible da psicanálise, cujas ideias começam a ser compreendidas e retomadas nos últimos anos, era, de fato, um clínico genial e ousado, que teve a coragem de escrever sobre a afetação recíproca e inconsciente entre analista e paciente. Nas vizinhanças do pensamento expresso acima, encontramos o texto de Rocha Barros e Rocha Barros: É importante levar em conta que mesmo os textos considerados clássicos adquirem novas conotações à medida que forem lidos ao longo dos anos. É frequente que um texto recente lance uma nova luz sobre artigos clássicos. Os textos sofrem transformações, através daquilo que Octavio Paz chamou intertextualidade. Os textos de diversas épocas interagem entre si produzindo novos sentidos ou, concomitantemente, apagando sentidos que se tornaram anacrônicos. (ROCHA BARROS; ROCHA BARROS, 2018, p. 15). Corroborando o mesmo pensamento, Ogden (2010) escreve que não somente as contribuições anteriores afetam as posteriores, seguindo uma ordem cronológica, mas que a leitura de autores contemporâneos altera a nossa leitura de textos clássicos da psicanálise. Ao revisitarmos Ferenczi, podemos encontrar o que estava lá, mas não estava ideias que ainda não podiam ser pensadas, mas, ainda assim, faziam-se presentes no texto para um leitor no futuro, no tempo do a posteriori , encontrando novos sentidos e ressignificando textos clássicos 7 . Se compreendemos o inconsciente, nosso campo de observação, como imanência e não como oráculo (OGDEN, 2010), podemos pensar que as teorias são formas de capturar um sentido, uma metáfora conceitual, como expressa Ogden (2016). Na condução de um processo de análise, os sentidos que captamos são sempre momentâneos e parciais, devendo ser abandonados para que novos possam emergir a cada sessão. Afinal, por que as teorias psicanalíticas seriam diferentes do seu objeto de estudo, o inconsciente? Feita essa breve contextualização da matriz transmatricial do pensamento de Ogden, apresento a seguir o conceito de identificação projetiva a partir dos textos do autor. Importante lembrar que o conceito de identificação projetiva pertence à matriz freudo-kleiniana, e tem interessantes desdobramentos na obra de Ogden, dos quais destaco alguns neste texto. Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden Em entrevista a Luca Di Donna, em 2013 (publicada em 2016), Ogden fala acerca de uma possível linha de desenvolvimento ao longo da sua obra 8 uma questão difícil para um autor que escreveu acerca de tantos temas diferentes. Ogden já havia se perguntado sobre essa linha de desenvolvimento nos seus textos; a resposta dada ao entrevistador pauta a investigação deste artigo. Ogden (2013/2016) relata que aquilo que primeiramente o intrigou foi como duas pessoas pensam, questão que já aparece nos seus artigos iniciais: On projective identification (1979), sendo republicado em 2012 no livro Projective identification: the fate of a concept. No seu primeiro livro, intitulado Projective identification and psychotherapeutic technique , de 1982, desenvolve mais amplamente as ideias que estão condensadas no artigo, trazendo várias vinhetas clínicas. Tem sido marcante em sua obra a habilidade de narrar os detalhes da experiência emocional vivida na sessão analítica, e de forma imagética, em especial, como duas mentes pensam juntas. Ogden conduz o leitor à intimidade da sala de análise, fazendo com que a leitura seja, em si, uma experiência transformadora 9 . Na entrevista de 2013, Ogden diz que raramente usa o termo identificação projetiva , pois cada um tem uma definição e uma compreensão do conceito. Prefere, então, descrever o fenômeno: trata-se da mãe e seu bebê criando uma terceira mente, sendo que a experiência emocional é transformada na vivência do terceiro. Aqui, temos a passagem do conceito de identificação projetiva para o conceito de terceiro; ou seja, como duas pessoas pensam a partir de uma terceira mente que se constitui no encontro. Ogden afirma “[…] o conceito kleiniano de identificação projetiva é um passo monumental na ampliação do entendimento analítico da natureza e das formas da tensão dialética subjacente à criação do sujeito” (OGDEN, 1996, p. 7). Ogden inicia o artigo de 1979 destacando que a identificação projetiva é um fenômeno que ocorre tanto na esfera intrapsíquica, quanto na esfera das relações interpessoais; ou seja, já na primeira frase do texto, deixa clara sua compreensão intersubjetiva do conceito. Trata-se, na perspectiva do autor, de um tipo de defesa, um modo de comunicação, uma forma primitiva de relação de objeto e o caminho para uma mudança psicológica. Nos textos clássicos de Klein, a identificação projetiva é compreendida como defesa e como forma primitiva de relação de objeto; já Bion a concebe como modo de comunicação e um caminho para uma mudança psicológica podemos dizer que, a partir dessa expressão, começa a aparecer a marca autoral de Ogden 10 . As transformações conceituais estão nesses pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso das expressões. Destaco que esse texto foi escrito há quarenta anos (OGDEN, 1979), momento no qual a compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando era um tema pouco abordado, talvez de difícil aproximação, como ainda é atualmente. A liberdade de pensamento do autor permite que ele faça seus “atravessamentos de paradigmas” em uma época na qual isso pouco acontecia. Movido por suas experiências clínicas com esquizofrênicos, Ogden busca uma interlocução com textos e autores 11 nos quais encontra um sentido 12 para o que experenciava com esses pacientes. Seus dois primeiros livros dão testemunho dessa trajetória de apropriação e apresentação de autores ingleses poucos conhecidos nos Estados Unidos: Klein, Winnicott, Bion, Balint, entre outros 13 . Retomando, destaco algumas ideias presentes no artigo de 1979, no qual há várias conexões interessantes, apresentadas de forma condensada. Ogden faz articulações da identificação projetiva tanto com conceitos de Winnicott, quanto com conceitos de Bion. A partir de Winnicott, mesmo que esse autor pouco se refira ao conceito de identificação projetiva, Ogden escreve que se trata de uma forma transicional de relacionamento, constituindo um tipo primitivo de relação objetal, um modo básico de ser com o objeto ainda não separado. Em outras palavras, aloca de forma surpreendente o conceito kleiniano na teoria de Winnicott. Já no que se refere a Bion, Ogden (1979/2012) destaca que o autor compreende o conceito como uma interação interpessoal, aproximando a experiência da identificação projetiva da ideia de um pensamento sem pensador, um pensamento em busca de um pensador: ser um continente é, pois, pensar um pensamento ainda não pensado. Afirma ainda que, na perspectiva bioniana, quando não há uma mente continente para a identificação projetiva, isso provoca um impacto desorganizador, tanto na relação mãe-bebê, como entre analista-paciente. Além de Klein, Winnicott e Bion, no artigo de 1979, cita Rosenfeld, Balint, Searles, Grotstein, Robert Langs, entre outros reflexo da sua atitude investigativa e compromissada com os fenômenos clínicos que estava investigando. Ogden aloca o conceito de identificação projetiva fora dos limites dos autores kleinianos, e vai além, ao falar das implicações técnicas do conceito. Ogden (1979/2012) aborda um tema ainda hoje delicado: o analista é um ser humano, com passado, repressões, conflitos, medos e dificuldades psicológicas próprias 14 . Em sua concepção, a principal ferramenta do analista é sua habilidade em entender seus próprios sentimentos e, também, o que está acontecendo entre ele e o paciente. Para tanto, necessita ter competência de formular de maneira clara e precisa sua compreensão, usando palavras que tenham um efeito terapêutico, afinadas com o tempo do paciente, o timing da interpretação. Futuros textos de Ogden se debruçam sobre a questão da interpretação 15 , ou, como ele nomeia, do diálogo analítico 16 . Ainda no texto de 1979, Ogden destaca que falhas técnicas frequentemente são dificuldades de processar as identificações projetivas do paciente. No seu livro sobre o tema, Projective identification and psychotherapeutic technique (1982/1992), três anos após a publicação do artigo, ao descrever uma das maneiras pelas quais a identificação projetiva pode se apresentar, usa em vários momentos a palavra inglesa enactment. Trata-se de um fenômeno clínico que, na década de 1980, transformou-se em um novo conceito . Em artigo anterior, faço uma reflexão de como a descrição do enactment está presente na compreensão que Ogden tem da identificação projetiva, embora, nesse momento, ele tenha usado a palavra e não o conceito, pois este ainda não havia sido nomeado 17 : Se nós imaginarmos por um momento que o paciente é ambos, o diretor e um dos atores principais em uma atuação ( enactment ) interpessoal de uma relação objetal interna; e que o terapeuta é um ator não intencional e não consciente no mesmo drama, então a identificação projetiva é o processo no qual o analista dirige uma peça para um papel particular. Nessa analogia é bom manter em mente que o terapeuta não se voluntariou para encenar e, somente retrospectivamente, entende que ele está desempenhando um papel na atuação ( enactment ) de um aspecto do mundo interno do paciente. (OGDEN, 1982/1992, p. 4). Ogden (1982/1992) faz crer, então, que o posterior conceito de enactment pode estar amalgamado à identificação projetiva são fenômenos psíquicos interpessoais na situação analítica que se mesclam, sendo difícil delimitar uma fronteira nítida entre ambos. Mas, até onde pude averiguar, ele não faz uso de enactment como conceito em suas publicações posteriores. O que intenciono destacar nesta discussão é a dificuldade e a complexidade ao definirmos fronteiras conceituais; talvez seja um esforço contínuo, necessário, parcial e sempre inacabado. Prosseguindo, o intuito é explicitar algumas formulações presentes no artigo de 1979, no primeiro livro publicado em 1982 e no texto no qual formula o conceito de terceiro analítico, de 1996, tendo como fio condutor a transformação conceitual ocorrida. Ou seja, como os textos iniciais apresentam, embrionariamente, ideias que vão sendo transformadas e nomeadas como conceitos em artigos posteriores 18 . Destaco a compreensão de Ogden de que a identificação projetiva é um evento interpessoal, pavimentando o caminho para a construção do conceito de terceiro analítico. Essa maneira, evidentemente intersubjetiva, de entender a identificação projetiva já está presente em outros autores, principalmente Bion. No livro Os sujeitos da psicanálise (1994/1996) , do qual faz parte o artigo O terceiro analítico, Ogden inicia assim o capítulo seis: Neste capítulo, apresentarei algumas reflexões sobre o processo da identificação projetiva como uma forma de terceiridade intersubjetiva. Descreverei, em particular, a inter-relação de subjugação mútua e reconhecimento mútuo, que considero fundamental para esse evento psicológico-interpessoal (OGDEN, 1996, p. 93). Quase vinte anos se passaram, e, como autor psicanalítico e clínico, com muito mais experiência e desenvoltura em relação à originalidade do seu pensamento, Ogden postula o que aparecia nos textos iniciais como potencialidade, descrevendo também o fenômeno sob uma nova perspectiva: a do terceiro subjugador, apontando para a transformação da dupla analítica o processo que vai da subjugação ao reconhecimento. Ogden compreende que as duas pessoas envolvidas tanto a que projeta, como a que recebe a projeção sofrem distorção e negação das suas subjetividades. O terceiro analítico subjugador, portanto, altera as subjetividades envolvidas se o processo analítico for bem sucedido, haverá uma transformação de ambas, levando à criação de algo que é maior que a soma dos dois participantes. Escreve Ogden: “Na identificação projetiva, analista e analisando são limitados e enriquecidos; cada um é sufocado e vitalizado” (OGDEN, 1996, p. 97). É por meio do reconhecimento do outro que nos tornamos auto reflexivamente humanos. Quando a vitalização e o reconhecimento não são possíveis, há um aprisionamento ao terceiro subjugador, e o processo analítico paralisa. O artigo (Ogden, 1994/1996) em que postula o conceito de terceiro analítico foi escrito em comemoração ao septuagésimo-quinto aniversário do The International Journal of Psychoanalysis. Talvez devido a esse marco histórico, Ogden tenha iniciado o texto afirmando que já não é mais possível pensar analista e analisando como sujeitos separados, sendo então o movimento dialético entre as duas subjetividades um fato clínico importante. A partir da postulação de Winnicott de que não existe um bebê sem a mãe, considera que analista-analisando também formam uma unidade que coexiste em tensão dialética. O autor compreende a dialética da seguinte forma: “A dialética é um processo no qual elementos opostos se criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo” (OGDEN, 1996, p. 12). A gravura de Escher (1946/2006), Bond of union 19 , parece ser uma imagem exitosa da unidade dialética analista-analisando: A gravura evidencia a permeabilidade entre as mentes podemos pensar que o terceiro é a gravura na sua totalidade, a cena do encontro analítico. As bolas que circulam a dupla parecem ser uma boa representação dos objetos analíticos, que são descritos por Ogden, no texto de 1994, por meio da apresentação detalhada de uma situação clínica: a carta roubada 20 . O objeto analítico 21 é justamente a carta que representa a realidade psíquica do terceiro analítico; ou seja, o objeto analítico está no espaço potencial entre analista e analisando, apreendido e criado pela rêverie do analista 22 . O conceito de rêverie , originalmente de Bion (1962), passa a ser a maneira como o analista apreende os objetos analíticos, uma criação, uma manifestação do sonho da vigília 23 do terceiro analítico. Ogden (1994/1996) escreve que a experiência intersubjetiva do terceiro é apreendida por meio das rêveries. Se nos inspirarmos na expressão paradoxal de Winnicott, de que a mãe é descoberta e encontrada pelo bebê, podemos pensar que a rêverie é criada e encontrada pelo terceiro analítico. Explicando mais detidamente o conceito de rêverie , retomo algumas ideias expressas em artigo anteriormente escrito: a rêverie como o próprio sentido da palavra revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a rêverie ; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional à comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de rêverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e íntimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a rêverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerado pelo encontro de duas mentes, do analista e do analisando (OGDEN, 2013). Dizendo de outra maneira, a rêverie é a maneira como é criado e encontrado o objeto analítico durante a sessão, uma criação do terceiro analítico. Mas, afinal, como podemos compreender o conceito de identificação projetiva hoje? Ogden considera “a identificação projetiva uma dimensão de toda a intersubjetividade, às vezes como qualidade predominante da experiência, outras somente como um sutil pano de fundo” (OGDEN, 1996, p. 94). Após a postulação do terceiro analítico, encontramos poucas referências à identificação projetiva nos textos de Ogden posteriores a 1994. O terceiro e o campo analítico, alguns apontamentos Voltando à entrevista com Luca Di Donna (2013/2016), encontramos outra resposta de Ogden, além da citada no início, esclarecedora de uma questão significativa no que se refere a dois conceitos intersubjetivos contemporâneos relacionados: o terceiro analítico e o conceito de campo analítico. Afinal, no que diferem ou se assemelham? Cabe lembrar que o conceito de campo analítico foi postulado pelo casal Baranger (1961-1962/2010) 24 na década de sessenta, e internacionalizado na psicanálise por Antonino Ferro na década de noventa e nos anos dois mil. Trata-se de considerar o encontro das duas subjetividades, analista e analisando, em constante interação, sendo então gerados tanto novos pensamentos como, também, erguidas defesas inconscientes, os denominados baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em complexa interação. Estudiosos da obra de Melanie Klein, os Baranger estavam imersos no conceito de identificação projetiva, o que nos leva a pensar que a compreensão da situação analítica como um campo bipessoal também seja um desdobramento do extenso conhecimento que esses autores tinham da obra de Klein, sendo difícil dimensionar essas intersecções teóricas. Katz (2017) apresenta o desenvolvimento do conceito de campo em três ondas: a primeira baseada no trabalho do casal Baranger, denominada “modelo mitopoético”; a segunda, a partir dos trabalhos de Antonino Ferro, o “modelo onírico”; e a terceira, baseada no trabalho de psicanalistas americanos, o “modelo plasmático” 25 . A autora salienta que a ideia de campo surgiu em diferentes continentes em épocas próximas e de forma relativamente independente, o que faz lembrar a ideia de um pensamento psicanalítico em busca de autores 26 . Antonino Ferro, na década de noventa, faz a junção do modelo mitopoético de campo psicanalítico do casal Baranger com o modelo do funcionamento mental de Bion, dando início à segunda onda conceitual: o modelo onírico. Acrescentam-se a essa segunda onda os trabalhos de Civitarese, que, além de compreender a sessão analítica como tendo qualidades oníricas, considera a sessão como um campo do brincar (KATZ, 2017). Voltando à resposta de Ogden quanto às diferenças entre o terceiro analítico e o campo analítico (OGDEN, 2016, p. 176), observamos que ele usa os dois conceitos, dependendo de qual aspecto da situação analítica está se referindo. Considera que os conceitos são metáforas que nomeiam e destacam diferentes aspectos do funcionamento mental. A metáfora do terceiro analítico, enfatiza a criação de uma terceira mente, irredutível à soma de duas mentes. O campo analítico enfatiza as forças criadas pela experiência consciente e inconsciente da dupla; podemos dizer que tem um caráter espacial. Ambos se sobrepõem, não existindo uma clara distinção entre eles; ou seja, devemos facultar certa imprecisão aos conceitos, segundo o nosso autor. Ogden (2013/2016) tende a usar o conceito de campo analítico vinculado a questões que envolvem o setting ; e o de terceiro analítico vinculado a rêverie ; ou seja, o modo como esse fenômeno expressa uma produção do terceiro, e não uma criação exclusiva do analista ou do paciente, como já dito. Afirma, porém, que, em pouco tempo, ambas as metáforas, terceiro analítico e campo analítico, tendem a se tornar obsoletas, e outras terão de ser inventadas. À guisa de conclusão Retomando o início deste artigo, a teoria psicanalítica, assim como a análise, é uma sonda que expande o próprio campo que investiga (BION, 1970/2007), uma obra aberta. Seguindo essa ideia, as teorias psicanalíticas tendem a se expandir, cabendo ao analista a tarefa, cada vez mais complexa, de construir uma trama conceitual própria, e que faça sentido e sustente a sua experiência clínica a cada momento. Ponderando sempre a circularidade que existe entre teoria e clínica, em outras palavras, os conceitos surgem da experiência clínica e retornam para a clínica, em um processo transformacional e dialético. Considerando a ideia de que os pensamentos não têm proprietário, mas surgem justamente pela contínua interação entre as pessoas, e são referidos a partir de seus autores, podemos conjecturar que os conceitos são criados, descobertos e nomeados por diferentes autores, em diferentes épocas, e no a posteriori de diversos textos, em complexa intertextualidade (PAZ, 1984). Um autor, no campo da psicanálise, talvez seja aquele que tem a habilidade de captar, conceitualizar e narrar fenômenos clínicos e, além disso, articulá-los com os paradigmas teóricos existentes, criando novas tramas conceituais, novos atravessamentos de paradigmas. Neste artigo, me detive a analisar em alguns textos de Thomas Ogden a transformação do conceito de identificação projetiva em terceiro analítico. Como já dito, é nas sutilezas do texto que podemos encontrar esses deslizamentos de sentidos que favorecem a construção de novos conceitos com pregnância clínica 27 . Ogden (2010, 2013, 2016) escreve em vários momentos que a psicanálise precisa ser inventada a cada paciente, ou seja, como analistas, estamos reconstruindo a cada sessão, de forma viva, nossa trama teórica, nosso fio de Ariadne. Como estudiosos e pesquisadores da psicanálise, cabe a nós historicizar e articular os conceitos, atravessando paradigmas com rigor e ética, nesse universo transmatricial criativo da psicanálise contemporânea. NOTAS 1 Segundo Rocha Barros e Rocha Barros (2018), os conceitos de identificação projetiva e de continência estão entre os cinco considerados mais importantes para a clínica psicanalítica contemporânea. 2 “O conhecido mito do Fio de Ariadne ou mais conhecido como Labirinto do Minotauro narra a trajetória de Teseu, um herói que salvou a cidade de Creta do terrível minotauro, criatura nascida da união de Zeus com a mulher do rei da cidade, Minos. Assim, o rei constrói um labirinto para aprisionar a criatura, mas só conseguia através do sacrifício de sete moças e sete rapazes a cada sete anos. Ariadne, filha do rei Minos, se apaixonou por Teseu, filho de Egeu rei de Atenas, resolvendo ajudá-lo a matar o monstro. Assim, em sua jornada ao interior do labirinto, entrega uma bola de linha dourada para Teseu, bola que ajudaria a entrar no labirinto sem se perder. Assim foi feito: Teseu encontra e enfrenta a criatura derrotando-a com uma espada mágica entregue por Ariadne e retornando ao início do labirinto. Ao fugir da perdição do labirinto, Teseu vê a verdade quando descobre que, através do cordão, o ponto de partida era a chegada!” (Disponível em: https://vidapsiquicablog.wordpress.com. Acesso em: 30 out. 2018). 3 “[...] adoecimentos psíquicos podem ser universalmente pensados como interrupções nos ‘processos de saúde’[...]” (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018, p. 9). 4 Expressão utilizada por Figueiredo (2009). 5 Chuster escreve sobre serendipidade: “O termo Serendipidade (Serendipity, em inglês) foi criado em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, no livro Travels and adventures of three princes of Serendip, para significar algo encontrado de forma agradavelmente inesperada, e que acrescenta substância à nossa sabedoria. Trata-se para o autor de uma experiência transformadora. Somos outros, depois do achado” (CHUSTER, 2018, no prelo). 6 A influência do pensamento de Ferenczi na obra de Melanie Klein é um campo de pesquisa que vem se abrindo recentemente. Klein foi sua paciente, no entanto, devido aos problemas políticos institucionais da época, não era recomendado citá-lo. Diferentemente de Karl Abraham, seu segundo analista, que pode ser referido livremente. 7 Ogden publicou um livro com vários artigos que são leituras criativas de textos clássicos, Leituras Criativas. Ensaios sobre obras analíticas seminais (2014). 8 A obra de Thomas Ogden abarca artigos publicados de 1974 a 2018. 9 A ideia do terceiro sujeito criado na experiência de ler está presente no primeiro capítulo do livro Os sujeitos da psicanálise (OGDEN, 1994). 10 Uma característica dos textos de Ogden é que ele usa o termo psicológico com certa frequência, especificamente no trecho referido: mudança psicológica. 11 Podemos conjecturar que o fato de predominar, na psicanálise americana, a psicologia do ego de Hartman, fez com que Ogden buscasse os horizontes ingleses da psicanálise, continuando seus estudos na clínica Tavistock, em Londres. 12 Podemos pensar no sentido como uma verdade; verdade compreendida a partir de Bion (a verdade emocional como o alimento primordial da mente), ou seja, também buscamos, nos textos que escolhemos para ler, um sentido para a experiência clínica. 13 Ogden faz essa apropriação e apresentação desses autores para os americanos, principalmente nos seus primeiros livros: Projective identification and psychotherapeutic technique (1982) e The matrix of the mind: object relations and psychoanalytic dialogue (1986). 14 Sendo que a análise e a supervisão do analista o habilitam, mas não o isentam, da sua humanidade; muito pelo contrário, é a humanidade do analista que o torna analista. 15 “The transference is a topic of conversation, which at times is very helpful in understanding something of what it is that is preventing the patient from ‘speaking his mind’. I don’t find that the term interpretation well describes how I speak to patients. I think the phrase ‘talking with the patient’ better captures the feeling of the conversations I have with patients than does the phrase ‘making an interpretation’” (OGDEN, 2016, p. 171). 16 O autor cria formulações técnicas sofisticadas, como a expressão “falar-como-se-estivesse-sonhando” (Talking-as-dreaming, 2007). 17 O enactment foi postulado na década de 1980, sendo que o artigo de Theodore Jacobs é considerado um marco na aparição do conceito: On counter-transference enactments (1986). 18 O primeiro artigo de Ogden foi publicado em 1974, aos 28 anos. Como escritor psicanalítico, ele tem uma carreira de 44 anos e inúmeros artigos publicados. Os livros são compostos dos artigos publicados, com alguns poucos acréscimos e diferenças. 19 Laço de uni ã o , em inglês. 20 Devido à extensão da situação clínica descrita por Ogden, remeto o leitor interessado ao texto. 21 Objeto analítico é um conceito que aparece na obra de Bion (1962, 1963) e na obra de Green (1975). Neste texto, apresento apenas a compreensão de Ogden (1994/1996, p. 71): “[...] mas como um evento que reflete o fato de que um novo sujeito (o terceiro-analítico) estava sendo produzido pelo (entre) Sr. L e mim, o que resultou na criação do envelope como um ‘objeto analítico’ (Bion, 1962, Green, 1975).” E, também: “Essa terceira subjetividade, o terceiro-analítico intersubjetivo (o ‘objeto analítico’ de Green [1975]), é produto de uma dialética única produzida por entre as subjetividades separadas do analista e do analisando dentro do setting analítico” (Ogden, 1994/1996, p. 60). 22 A rêverie também pode ser verbalizada pelo paciente, a rêverie é criada e descoberta pelo terceiro analítico. 23 Bion (1962) considera que há o sonho da noite e o sonho da vigília, que é o pensamento onírico da vigília. 24 A influência de Kurt Lewin (1951) e Merleau-Ponty (1945) foi fundamental para o casal Baranger (CHURCHER, 2010). Em um trabalho posterior, Madeleine Baranger (2005) se refere à influência que teve os trabalhos de Bion sobre o funcionamento dos supostos básicos de grupo, contemporâneo ao artigo seminal de 1961-1962. 25 A terceira onda é estruturada a partir da American Ego Psychology. Remeto o leitor interessado ao texto de S. Montana Katz (2017) para maiores esclarecimentos sobre a terceira onda. 26 Ideia também presente no texto de Tamburrino (2016, p. 41). 27 Conceitos que têm grande utilidade clínica. REFERÊNCIAS BARANGER, M. La teoría del campo. In: LEWKOWICZ, S.; FLECHNER, S. (orgs.). Verdad, realidad y el psicoanalista : contribuciones latinoamericanas al psicoanálisis. Asociación Psicoanalítica Internacional. Londres: IPA, 2005, p. 49-71. BARANGER, M.; BARANGER, W. A situação analítica como um campo dinâmico (1961-1962). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV São Paulo, SP: Escuta, 2010. BION, R. W. Learning from experience (1962). London: Karnac, 1991. 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- As problemáticas na diferenciação entre mães e filhas: um estudo de caso
Marina J. Abud da Silva; Marina F. R. Ribeiro; Daina Bittar Resumo: O presente trabalho visa investigar as dinâmicas psicológicas das relações entre mães e filhas, utilizando como base a perspectiva psicanalítica. Mais especificamente, buscou-se compreender as problemáticas existentes quando há um grau elevado de indiferenciação entre a menina e sua mãe. Para isso, realizou-se uma articulação entre um estudo de caso e conceitos da psicanálise que fundamentam as cenas clínicas apresentadas. O estudo de caso concretizou-se a partir de um atendimento psicológico de uma criança que apresentava importantes sofrimentos oriundos de uma dificuldade de separação da figura materna. Assim, pretende-se fornecer uma melhor compreensão a respeito das vicissitudes de uma relação simbiótica com a mãe e as consequências de tal para a constituição da vida psíquica da mulher. Palavras chave: psicanálise; mãe; filha; mulher; feminilidade Link de acesso ao texto: https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/158126/158895







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