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- A escuta do campo analítico: ressonâncias e manejos na análise de crianças [1]
Autoras: Camila Young Vieira [2] e Marina F. R. Ribeiro [3]. Este artigo foi publicado em 2023 na Revista Brasileira de Psicanálise , São Paulo, v. 57, n. 2, p. 123-138. Resumo: A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve o paciente e seu entorno. Nesse contexto, privilegiar a circularidade da escuta analítica significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais no campo em uma trama complexa que envolve a criança e, de acordo com a situação, os pais, os irmãos e os profissionais da escola e de saúde. O conceito de campo analítico, de Madeleine e Willy Baranger, ganha lugar na psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, fantasias e baluartes, que produzem impasses-transformações na análise. Para mostrar isso, as autoras apresentam um fragmento clínico de uma sessão familiar realizada numa análise de criança, na qual os elementos experienciados no campo conferem uma narrativa que contribui para a análise. Por fim, consideram que o conceito de campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza a clínica da infância. Palavras-chave campo analítico; análise de criança; manejo; fantasia compartilhada. Os ventos e as marés Vento que levanta a onda Que carrega o barco, que ondula o mar É o mesmo que vai dar na praia Que levanta a saia rodada de Oiá ... Às vezes o vento muda Sai batendo a porta, faz tudo voar O vento é o temperamento do ar Sopro, sopra, soprará. MARISA MONTE E JORGE DREXLER, “Vento sardo” A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve não só o paciente, mas também os pais, os irmãos e outros profissionais. Na caminhada desse ofício, vi colegas de profissão deixarem de atender crianças em razão do desconforto causado pelas tensões imanentes ao trabalho. Também presenciei jovens analistas e psicoterapeutas iniciarem com a clínica da infância, como se fosse uma intervenção indicada para o início da prática profissional. Contudo, o que se experimenta é que é uma área que convoca o analista a compreender as condições climáticas todas as manhãs antes de lançar o barco ao mar, adquirindo assim prudência (ou experiência clínica e teórica) para não naufragar. O pescador, com o tempo, reconhece a importância de considerar as forças da natureza, das marés e dos ventos para ora seguir e se embrenhar mar adentro, ora nem lançar o barco ao mar. Ele precisa viver a alegria de uma temporada abundante de peixes e a escassez em tempos de instabilidade. Ao longo da atividade na clínica da infância, compreendi que os ventos (as ressonâncias) devem ganhar lugar na escuta analítica e a partir de suas características – temperatura, pressão e movimento (o campo analítico) – guiar o manejo clínico – compreensões e formas de intervenção. Com isso entendido, há alguns anos, sempre que recebo um paciente-criança, realizo sessões com os pais, sessões com a criança, e sugiro uma sessão familiar, 4 exceto quando percebo contraindicação dessa estratégia, em função das defesas psíquicas do paciente ou dos pais. Essa exposição inicial aos ventos e marés viabiliza elaborar estratégias de rotas de navegação, que de certa maneira auxiliam no percurso do barco no curso do processo analítico. Em outras palavras, entende-se que o analista de criança precisa ter disponibilidade para trabalhar com os pais. Do processo que envolve o paciente, também podem fazer parte irmãos, babás, animais de estimação e outros profissionais, dependendo da singularidade de cada caso e/ou situação. García Reinoso ressalta que, por estarmos diante de um sujeito nas “vicissitudes da constituição subjetiva”, devemos “acompanhar o processo e criar as condições” para que a criança se desenvolva plenamente ( 2002, p. 15 ). Sabemos que a clínica infantil guarda uma especificidade: são pessoas que estão em plena constituição subjetiva e inseridas em uma instituição familiar permeada de crenças, ideologias e afetos. Desse modo, pensar na clínica como dispositivo de cuidado e atenção ao sujeito-criança exige plasticidade no fazer. Ao nosso ver, os pais participam do processo analítico de forma consentida pelo analista ou não. Afinal, são eles que levam e buscam os filhos, aguardam na sala de espera, enviam mensagens e áudios de WhatsApp, realizam os pagamentos, sustentam ou sabotam o processo de análise com toda a intempérie que o constitui. Entende-se a necessidade de reconhecer esse campo transferencial a serviço do processo analítico da criança, e marca-se que a tentativa de ignorar essas forças pode caminhar na contramão da continência e elaboração, gerando falta de sustentação de ambas as partes (pais e analista) e, por vezes, o rompimento do trabalho. Sigal (2001) propõe que os pais circulem no espaço analítico e aponta a importância de intervenções com eles quando houver aprisionamento da criança ao desejo dos pais, que a impeça de ir ao encontro do próprio desejo. Para a autora, na análise de crianças, há um campo transferencial múltiplo, e o pensamento do analista deve considerar essa complexidade. Ressalta que, como os pais constituem, em grande parte, o laço social que promove a mediação de valores, e dada a força do seu inconsciente na constituição psíquica do filho, “acabam sendo uma peça fundamental na condução de uma análise” (p. 153). Para García Reinoso (2002) , o processo analítico dos filhos traz mudanças que interrogam aspectos conscientes e inconscientes dos pais. Nesse sentido, a autora ressalta a necessidade de pensar processos, mitigar e manejar as angústias dos pais, para haver transformação: “O trabalho analítico deverá operar permitindo que a transferência se metonimize, se metaforize, ou seja, que se ‘transfira’ a transferência” (p. 18). A escuta e o trabalho com os elementos inconscientes que circulam o campo podem “permitir uma ressimbolização do lugar que esse filho e esse sintoma ocupam na história dos pais e da criança” ( Sigal, 2002, p. 31 ). Busca-se uma análise que viabilize processos e não funcione de forma fragmentada, na qual as representações e transformações vividas no contexto analítico encontrem acolhimento no contexto familiar. O contrário seria fonte de conflitos e entraves no processo, “a criança acaba se confrontando com novas aquisições, sem poder incorporá-las ou concretizá-las” ( Sigal, 2001, p. 160 ). Nessa proposta, entende-se a alteridade como horizonte, e as mudanças podem causar incômodos nas relações familiares. Com isso, a inserção dos pais no contexto da análise auxilia a sustentação da mudança e impede de verem a “cura como fracasso” (p. 158), visto que o filho se desarticula da ideia de satisfação do desejo dos pais. Na análise da criança, os pais (ou um deles) entram no exato momento em que, devido ao peso que o intersubjetivo tem na formação do sintoma ou na estruturação das neuroses, faz-se necessário que algo também se modifique no inconsciente de um ou de ambos os progenitores, ou algo em sua relação. ( Sigal, 2002, p. 33 ) Privilegiar a circularidade do olhar e da escuta analítica no trabalho com crianças significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais que estão no campo em uma trama complexa, que envolve a criança, os pais, os irmãos, as babás e os profissionais da escola e de saúde. Segundo Ferro e Basile (2013) , os elementos, eventos e linhas de força que emergem no campo sempre são relevantes. Assim, se fazem parte da complexidade do campo, estão na narrativa analítica. Sabemos que, invariavelmente na análise infantil, somos atravessados por elementos da relação com os pais, demandas da escola, a necessidade de um trabalho em rede com outros profissionais. A forma como esses elementos ressoam no campo deve encontrar um espaço continente na mente do analista. O analista de criança deve dispor de manejos clínicos complementares à sessão analista-paciente/criança, a fim de “propiciar ao indivíduo uma possibilidade de ‘fazer sentido’ de sua vida e das vicissitudes de sua experiência ao longo do tempo, do nascimento à morte” ( Figueiredo, 2007, p. 15 ). O conceito de campo analítico ganha lugar na perspectiva da psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, transferências e contratransferências, fantasias e baluartes, 5 que dão origem a impasses-transformações na análise e a uma escuta singular. Dessa maneira, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) propõem investigar a situação analítica que se forma no encontro analítico, na qual emergem novas estruturas, as fantasias compartilhadas; a percepção e a transformação dessas fantasias geram a dinâmica do campo. A fantasia é produzida pelo jogo entre processos projetivos e introjetivos, identificação e contraidentificação, experimentados na relação ( Bernardi, 2009 ). A partir disso, entende-se que o conceito de campo analítico instrumentaliza o analista a olhar (escutar) os diferentes vértices que surgem na clínica da infância, bem como sustenta teoricamente a dinâmica complexa desse ofício. A circularidade do campo analítico Consideramos que o conceito de campo analítico de Madeleine e Willy Baranger pode sustentar com êxito a clínica psicanalítica infantil, por imbricar em seus fundamentos uma proposta que focaliza o campo como dispositivo para compreender os elementos circulantes e para indicar os impasses da análise, que merecem a atenção do analista. Como o trabalho com criança requer um trânsito com outros atores a serviço da análise, a escuta do campo oferece um fio condutor que garante o compromisso do analista. Madeleine e Willy Baranger são franceses. Em 1946, mudam-se para a Argentina, onde fazem a formação em psicanálise em Buenos Aires. Pertencem à segunda geração de analistas da Associação Psicanalítica Argentina (apa). Em 1954, vão para Montevidéu (Uruguai), onde vivem até 1965, e contribuem com a constituição do grupo psicanalítico uruguaio. Em 1966, retornam à Argentina e compõem a equipe da apa, na qual atuam como professores, analistas e pensadores ( Bernardi, 2009 ). Apresentaremos a seguir o conceito de campo analítico e como ele se tornou parte da técnica analítica. De acordo com Churcher (2010) , o texto “La situación analítica como campo dinámico” foi publicado pela primeira vez em espanhol na Revista Uruguaya de Psicoanálisis , em 1961-1962. Em 2008, foi publicado em língua inglesa e, em 2010, traduzido para a língua portuguesa. Entendemos que há uma originalidade no pensamento dos autores, não de forma isolada, mas no efervescente diálogo com a clínica e a história da psicanálise. Podemos dizer que colaboram com uma mudança epistemológica e superam o subjetivismo ao considerar os eventos que acontecem no encontro analítico (sessão ou sequência de sessões) a partir da ideia de situação analítica como campo dinâmico. O casal Baranger, além de realizar um estudo aprofundado da obra de Freud e de Melanie Klein, também teve influência de autores como Paula Heimann, Wilfred Bion, Heinrich Racker, Kurt Lewin, Merleau-Ponty e Pichon-Rivière em seu pensamento. 6 No desenvolvimento e expansão dos processos transferenciais e contratransferenciais, Madeleine e Willy Baranger lançam luz sobre o interjogo da dupla e a comunicação inconsciente que ocorre no campo. Para Favalli (1999) , o conceito de identificação projetiva, introduzido em 1946 por Melanie Klein, amplia a percepção sobre processos mentais e a relação analítica. Contudo, o fenômeno era compreendido a partir da mente do paciente, enquanto os sentimentos despertados no analista podiam ser vistos como demandas para autoanálise. A ampliação do conceito vem com um trabalho de Paula Heimann denominado “Sobre a contratransferência”, publicado em 1950, no qual “a partir daí a mente do analista passa a compor, junto com a do paciente, os objetos da observação analítica” (p. 26). Tamburrino (2013) ressalta que Paula Heimann foi uma das primeiras a reconhecer os afetos despertados no analista como ferramenta técnica na análise. Paralelamente aos estudos de Heimann, Heinrich Racker unifica o binômio transferência-contratransferência e define a função ativa da mente do analista na relação analítica. Avança ao postular que o analista não está livre de seus conflitos inconscientes, e que estes interferem na relação analítica. Refere-se sempre ao movimento em dois sentidos, os conteúdos transferidos e contratransferidos inseridos em um contexto analítico. Com isso, pavimenta o que seria nomeado, mais tarde, de campo analítico ( Favalli, 1999 ). Tamburrino (2013) mostra que as contribuições de Bion também surgiram na década de 1950, enfatizando o funcionamento da mente do analista e frisando o caráter intersubjetivo do processo de análise. Nesse sentido, “a intersubjetividade não é encarada apenas como inevitável, mas impõe-se como única via possível de aproximação com a realidade psíquica” ( Favalli, 1999, p. 31 ). Willy Baranger (1979) destaca o aporte original de Racker ao compreender a transferência-contratransferência como unidade. Aponta que, a partir dessa concepção, Pichon-Rivière 7 expande e elabora o processo analítico em espiral. Para Willy Baranger, o processo em espiral marca e fecunda suas ideias sobre a complexidade da situação analítica, que explicitamos na sequência. Na teoria do campo intersubjetivo e dinâmico, a experiência da análise se concebe como processo em espiral, que se modifica a cada volta. Nesse sentido, a lógica dialética marca essa concepção em seus acontecimentos e nas dimensões temporais. Em diálogo com Pichon-Rivière, Willy Baranger (1979) propõe olhar a situação analítica a partir do aqui e agora comigo, que agrega o como lá e antes, e o como mais adiante e em outra parte. Assim, abarca as repetições experimentadas no presente da sessão, as perspectivas futuras que se abrem no encontro e as distintas voltas em espiral sem começo nem fim predeterminado. Isso permite pensar a variedade e complexidade de fenômenos regressivos e progressivos que se dão no processo analítico, superando qualquer concepção linear a respeito do desenvolvimento de uma análise. Churcher (2010) aponta a influência das obras de Kurt Lewin no trabalho de Pichon-Rivière, que por sua vez inspira as ideias do casal sobre o conceito de campo analítico, constituindo assim uma espiral de influências teóricas. O conceito de campo se origina na física do século 19, com o intuito de pensar a “ação-à-distância” (p. 178), ou seja, como dois corpos físicos separados podem influenciar um ao outro. Dessa maneira, um campo gravitacional, elétrico ou magnético é um continuum de forças distribuídas por todo o espaço. Com isso, o campo físico não é menos tangível que os corpos sólidos. Os efeitos que nele ocorrem são percebidos como realidades do campo. Kurt Lewin, 8 originário da escola gestáltica, ampliou o uso do conceito para a psicologia e a fisiologia ao descrever o campo ou “espaço vital” psicológico e social como um campo de forças, como um todo dinâmico que constitui uma rede de relações entre as partes ( Tellegen, 1984 ). Nessa ebulição criativa, a fenomenologia de Merleau-Ponty também influenciou a construção teórica do casal. Segundo Civitarese (2014) 9 , Merleau-Ponty entende que o sujeito nasce na intersubjetividade. Assim, pensar na constituição psíquica é pensar em intersubjetividade, no espaço intermediário. No avanço de suas ideias, o casal rejeita a noção de analista-espelho e aponta o caminho de viver as experiências arcaicas que ganham sentido na relação presente. Essa vivência analítica permite a integração de processos cindidos que são vividos na relação e possibilita um continente que articula os fenômenos ocorridos na experiência da análise. Civitarese diz também que, na proposta de Merleau-Ponty, nem tudo pode ser levado à consciência pela percepção, porque há um nível de sentido que “pode ser descrito como semiótico, mas ainda não é semântico” (p. 11). No diálogo com as ideias apresentadas, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) entendem que o campo é estruturado funcionalmente pelo contrato/regra fundamental, que resulta em uma configuração bipessoal, que se reorganiza em uma estrutura triangular e se torna pano de fundo para diversas estruturas multipessoais emergirem. O campo estabelecido ganha um sentido próprio, e os elementos que emergem são circulantes e não pertencem exclusivamente a um dos participantes. A situação analítica pode ser descrita como totalidade, na qual a estrutura e a dinâmica resultam da interação de ambos e da situação analítica sobre ambos, em movimento recíproco. Os autores denominam relação psicoterapêutica bipessoal o encontro dessas duas pessoas de carne e osso, que se parcializam em diferentes aspectos, se misturam, se sobrepõem, povoam diversos personagens e formam situações multidimensionais em constante movimento. Nas palavras dos Baranger, “essa estruturação terapêutica bipessoal continua como pano de fundo presente, ainda que não percebido, sobre o qual vão fazendo e se desfazendo as estruturas tri e multipessoais em mudança constante” ( 1961-1962/2010, p. 190 ). Ao entender “o par analítico como um trio” (p. 190), a complexidade, a contradição e o movimento se instauram, seja no sentido progressivo, com o surgimento de personagens que se desdobram num campo multipessoal, seja no sentido regressivo, no qual emergem objetos parciais. Complementarmente, no caminho de pensar o campo e seus processos subjacentes, também ganham destaque as distrações ou devaneios dos analistas, entendidos como elementos que emergem no espaço-tempo da situação analítica. O casal Baranger (1961-1962/2010) discorre sobre a dimensão do campo funcional, que se constitui nos pilares do compromisso básico e da regra fundamental. Há delimitação dos papéis dos integrantes do campo, ou seja, cabe ao analisando associar livremente suas ideias, comunicar, regredir, e ao analista, acolher, analisar, entender, regredir parcialmente e garantir o sigilo. Tais prerrogativas fundam a regra da análise e sustentam o compromisso básico. Em 2002, M. Baranger et al. explicitaram que a funcionalidade do campo requer a assimetria de base e que a estrutura do campo se localiza na regra fundamental – a escuta está sempre comprometida com a verdade do paciente. A perda do pacto analítico traz consequências ao processo. Os autores observam que a oposição entre enquadre e processo deve ser considerada para pensar o campo. A proposta teórico-técnica tem a análise como encontro de duas subjetividades comprometidas com a tarefa de promover a transformação psíquica do paciente. Com o soprar dos ventos da sessão com Jasmine, 10 suas irmãs e seus pais, o aqui e agora da sessão intersubjetiva apresenta a riqueza de elementos que circulam o campo e conferem a fantasia compartilhada da dupla. A partir do fragmento clínico, pretende-se lançar luz sobre os impasses de Jasmine e o porvir de sua análise, e não tecer conclusões que saturem 11 a escuta. Compreendemos a escuta clínica em um devir de acontecimentos e elaborações que abrem vértices de compreensão e de intervenção com a criança e com os pais. A proposta do “fragmento analítico intersubjetivo” refere-se ao impacto estético-afetivo produzido na relação, para assim “pescar algo que expandirá” ( Ribeiro et al., 2022, p. 35 ). Tanis contribui com o tema das narrativas clínicas e afirma que “nenhum texto dá plenamente conta da experiência – isto é da ordem da limitação da linguagem”; entretanto, “é potência viva”, permite associação com o autor e evocações no leitor ( 2015, p. 181 ). Avança-se, assim, para uma dialética entre experiência e teorização. No sopro com Jasmine Ela veio da recepção até a sala de atendimento imbuída de um andar ligeiro, entrou, sentou-se no tatame, olhou-me, abaixou a máscara por alguns instantes, colocou o dedinho em um dos dentes da parte inferior da boca e se pôs a balançá-lo: “Olha, está mole. O permanente está bem aqui atrás, está vendo?”. Foi assim que se abriu a possibilidade de vivermos juntas seus impasses e sua experiência de transição. Agendamos a sessão familiar, momento de vivenciar o campo analítico com todas as suas forças, turbulências e dimensão intersubjetiva. Chego à recepção do consultório, repleta de burburinhos. Estavam à minha espera Jasmine, as irmãs gêmeas (mais novas), o pai e a mãe. Durante a sessão, uma cena me saltou aos olhos, ao ouvido, ao corpo e à mente. Subitamente fui fisgada por uma agitação interna. Parecia que algo queria saltar do meu corpo para fora. Da poltrona em que estava sentada, avistei a mãe de Jasmine sentada no tatame, com uma das filhas acomodada em suas pernas entreabertas, num buraco côncavo, no qual ela se aconchegava. Elas faziam cobrinhas com massinha e se envolviam na tarefa de criação e adivinhação do que era moldado. Ao lado estava o pai, de frente para outra filha e para Jasmine. Entretanto, o olhar do pai estava na irmã, que no momento fazia uma boneca bem criativa de massinha. O pai elogiava sua produção: “Que bacana!”. Avistei Jasmine como uma panela de milho estourando. Mexia-se e remexia-se no tatame, trabalhava a massinha como se estivesse sovando uma massa de pão, e nada saía. Olhava para um lado, para o outro e para sua produção. Eis que surge algo. Os pais não notam sua produção. Então ela desmancha e, mais uma vez, faz outra e outra. Em uma das produções, noto que fez uma pizza, pôs dois olhos e uma boca triste, com uma meia-lua para baixo. Enquanto Jasmine se esforçava para fazer algo, dando forma à massinha, para em seguida transformá-la em massa de pão e sovar, desejei que os pais olhassem para ela. Angustiei-me com a distração dos pais e o envolvimento com as gêmeas. Como sua criação não era reconhecida, a massa amorfa voltava a aparecer em suas mãos. Por um instante, quase fiz uma interpretação no sentido de significar a ausência do olhar dos pais para Jasmine, mas as palavras não saíam de minha boca. Parecia inapropriado, com características de desnudez. Então, resolvi pactuar com o que Jasmine estava vivendo e sentindo. Por alguns segundos, trocamos olhares e eu sorri para ela, na tentativa de lhe dizer “estamos juntas”. No caminho de uma escuta estética e imaginativa ( Figueiredo, 2021 ), associei um útero gostoso e quentinho, que suscita desconforto em nascer para outros processos, para outros momentos, para outras relações. Algumas perguntas atravessaram meus pensamentos: como é fazer parte dessa família (como elemento diferente, que destoa da estética harmoniosa)? Como os pais estão significando as diferenças de lugar e momento de vida das filhas (com destaque à situação de Jasmine, que estava diferente das irmãs)? Outro aspecto que participou dos atravessamentos “deslizando em direção a”, e não “chegando a”, foi a impossibilidade de comunicar aquilo que estava sendo vivido. A imersão no caldo intersubjetivo da vivência da sessão – o campo analítico – permite experienciar alguns ventos e debruçar o olhar, enquanto escuta analítica, em um campo de forças com camadas objetivas e subjetivas, visíveis e invisíveis, dizíveis e indizíveis, reveladas e encobertas. No fio condutor da situação analítica como totalidade, de acordo com Willy Baranger (1979) , temos duas formas de olhar o campo: em primeiro e em segundo grau. O olhar em primeiro grau enfoca o material associativo e conteúdos manifestos; nessa tarefa, surgem sentimentos, devaneios, reações corporais, fantasias e a necessidade de focalizar o campo em seu conjunto. Já o olhar em segundo grau inclui a auto-observação e a situação transferencial; não se trata de um obstáculo ao trabalho do analista, mas um de seus instrumentos essenciais. No caso de Jasmine, as imagens e sensações que emergiram na sessão alcançaram um lugar na mente da analista, um sentido no curso da análise e um espaço de elaboração na análise da criança e nos atendimentos com os pais. O movimento e a paralisação do campo na sessão ganharam uma narrativa: o desejo de ser bebê, a dificuldade de transição, a dificuldade de crescer nessa família dado o aumento desproporcional de exigências, a rivalidade fraterna, e a raiva das irmãs, que resultava em ataques físicos. Para pensar o campo, os Baranger assinalam, então, três estruturas diferentes: a básica (contrato analítico expresso), a expressa verbalmente (conteúdos manifestos) e a inconsciente (conteúdos e fantasias inconscientes). A dinâmica desses processos resulta da história do sujeito e remonta a um ponto de convergência ligado à “essência verdadeira”. Segundo os autores, esse ponto que se destaca e ganha um significado no campo, e para o qual convergem as estruturas, é o ponto de urgência. Esse elemento que sobressai comunica algo significativo, que pode ser uma urgência interpretativa ou uma situação de vida, “o problema inconsciente que deseja ao mesmo tempo esconder e comunicar” ( Baranger & Baranger, 1961-1962/2010, p. 194 ). O alcance do ponto de urgência pela dupla produz expansão de entendimento e modificação inteligível do campo; entretanto, nesse percurso há pontos secundários e preliminares. O ponto de urgência foi designado por Pichon-Rivière como a emergência de algo que invade a cena presente, muitas vezes com raízes no passado. Melanie Klein também utilizou esse termo ao se referir ao ponto de angústia, que seria foco de interpretação e abertura da análise (W. Baranger, 1979 ). No caso clínico apresentado, havia um ponto de angústia: não ser vista, não ser reconhecida em sua produção. Também havia uma tentativa de simbolizar as sensações do corpo na massinha, que em um momento se delineia em um rosto triste, para em seguida ficar amorfa. Havia pais muito envolvidos no cuidado com as filhas e uma impossibilidade de comunicar, como se algo pudesse ser quebrado e a única saída fosse observar. Na circularidade do processo em espiral, pudemos entender que o útero quentinho era um reduto de harmonia, que borrava as diferentes necessidades e as diferenças individuais. Não existia espaço para conflito, para aspectos agressivos, para situações desarmoniosas. Nas sessões subsequentes com os pais, esses elementos ganharam forma, e buscou-se a construção de um espaço continente para o reconhecimento das diferenças, dos lugares, dos conflitos e das dificuldades. Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) mencionam o ponto de urgência como fantasia básica da sessão (ou de um grupo de sessões). Aqui se destaca um aspecto de cesura das compreensões anteriores sobre fantasia inconsciente, porque não se trata do “entendimento da fantasia do analisando pelo analista, mas algo que se constrói em uma relação do par” (p. 196), exige do analista um contato profundo com o outro. Podemos entender essa estrutura “como algo que se cria entre ambos, dentro da unidade que constituem no momento da sessão, algo radicalmente diverso do que cada um deles é separadamente” (p. 196), uma fantasia inconsciente compartilhada que os autores nomearam de fantasia bipessoal . Na situação analítica, a fantasia bipessoal se estrutura a partir da porosidade do campo e da cristalização de papéis atuados inconscientemente. Tais fatores podem impedir as manifestações necessárias e a analisabilidade do campo. Os fenômenos das identificações, identificações projetivas e contraidentificações têm peculiaridades. Assim, a análise deve permitir o livre jogo para que se estruture a fantasia no campo. Entretanto, a posição do analista deve ser centrífuga ao entrar e sair do jogo, a fim de garantir sua função analítica. Nesse percurso, o casal Baranger agrega o conceito de baluarte, que se refere às defesas, “é o refúgio inconsciente de fantasias poderosas de onipotência” (p. 203), geradoras de cargas afetivas intensas e, muitas vezes, impensáveis. Na análise, essas estruturas precisam ser transpostas no intuito de abrir novas formas em um processo em espiral. Assim, a mobilização e o estancamento do campo favorecem ou não a integração e/ou a cisão de aspectos do paciente. Tecnicamente, cabe ao analista criar caminhos de rompimento do processo defensivo, a fim de reintegrar aspectos cindidos do eu do paciente e, consequentemente, irrigar o campo. No contexto deste estudo, sabe-se que as fragilidades dos filhos ou suas potencialidades e mudanças podem representar ameaças aos aspectos narcísicos e/ou onipotentes dos pais. No decurso do processo analítico de Jasmine, abriu-se a possibilidade de pensar os impasses que sobressaíram nessa sessão e, com os pais, buscou-se cultivar formas para pensar o que acontece diante de situações conflitivas, não harmoniosas, a fim de contribuir para um processo continente às mudanças. Segundo M. Baranger et al., a “olhada em direção ao campo” do analista ( 2002, p. 124 ), enquanto segunda olhada, é acompanhada de momentos de bloqueio, momentos de mobilização afetiva, ampla vivência e emoções que sinalizam que o processo está em curso. Entendemos que a exposição do analista a esse campo de forças amplia a compreensão e contribui para uma narrativa cognoscível do processo analítico, cujo propósito é fomentar integração e invenção. Nesse sentido, consideramos que o cuidado com os pais na análise infantil é condição para a mobilização de novos arranjos na análise dos filhos. O vento que carrega o barco Nos ventos da psicanálise contemporânea, pretende-se pensar o sujeito-criança intersubjetivamente construído em uma prática clínica maleável, que tem o campo como fio condutor. Nas palavras de Coelho Júnior, seria pensar a clínica psicanalítica pelo vértice “da compreensão e o manejo do campo transferencial-contratransferencial a partir de uma metapsicologia em que o intersubjetivo possa encontrar seu lugar no intrapsíquico” ( 2012, p. 15 ). Nessa proposta, o intersubjetivo ganha lugar nos acontecimentos que emergem da dupla analista-paciente e nos acontecimentos que emergem no encontro com o entorno da criança. Nessa confluência de ventos que direcionam o barco, olha-se para a clínica psicanalítica da infância em sua complexidade de elementos, que não envolvem apenas a criança. A capacidade de “pensar juntos” nas trocas e devaneios da sessão e do entorno da criança confere narrativas para as fantasias compartilhadas, que indicam caminhos de calibragem da participação dos pais e outros membros da família, quando e como entram na análise da criança e os rumos para pensar, elaborar e manejar o diálogo com outros profissionais. Aposta-se no processo em espiral e na situação analítica enquanto totalidade como indicadores de mobilidade e estancamento do campo, ou seja, da fluência ou obstrução do processo analítico. Convergem na situação analítica o aqui e agora comigo (presente da sessão), o como lá e antes (repetições, história do paciente) e o como adiante e em outra parte (porvir, áreas em criação). Essa dialética temporal é atravessada pelo olhar em segundo grau do analista, que abarca a situação transferencial e a auto-observação, e lança luz na fantasia compartilhada da dupla, com seus baluartes e capacidade transformativa. Na clínica da infância, a configuração dessa fantasia pode incluir aspectos do entorno da criança, e a perspectiva teórica do campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza o analista a compreender as ressonâncias para manejar tecnicamente os impasses e recuperar o movimento analítico. O modelo de campo analítico permite uma concepção na qual os acontecimentos do campo, os personagens do discurso, as figuras despertadas configuram a dinâmica da análise. São múltiplos pontos de vista, justamente para compor os diferentes elementos da trama complexa que se forma no campo. Segundo Civitarese (2014) , são “interpretações” ao mesmo tempo conceituais e sensoriais, conscientes e inconscientes de si, do outro, de si-com-o-outro, e, inversamente, do eu visto pelo outro e pelo campo intersubjetivo. Dessa maneira, a externalização das fantasias confere uma narrativa e uma forma cognoscível de suportar, compreender, acomodar e/ou assimilar a realidade. Portanto, no atendimento de crianças, expandir os vértices faz parte do trabalho. No avanço das ideias de M. Baranger et al. (2002) , considera-se o processo analítico vivo e dinâmico, e o enfoque técnico na experiência concreta do campo vai na contramão de concepções passivas e desenvolvimentistas, que seguem uma certa estrutura em etapas progressivas. Na clínica psicanalítica da infância, a mobilidade do barco implica garantir que os ventos soprem, que os olhares se ampliem e que os manejos estejam a serviço do movimento e da expansão. Notas 1 Este texto deriva de tese de doutorado desenvolvida no Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic), sob a orientação de Marina F. R. Ribeiro. 2 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP). 3 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP). 4 Vale destacar que esse percurso inicial é acordado (contrato) de forma clara e consentida com os pais e com a criança. 5 Os baluartes são defesas que emergem na situação analítica e são vivenciadas na experiência da dupla. Trata-se de uma estrutura que entorpece ou paralisa o campo (M. Baranger et al., 2002 ). 6 Faremos uma breve menção a essas ideias, pois uma apresentação mais detalhada delas fugiria ao escopo deste artigo. 7 Pichon-Rivière era membro pioneiro da apa e por vários anos ministrou seminários, por meio dos quais o casal Baranger mantinha estreito contato com suas ideias. 8 “Kurt Lewin (1890-1947) nasceu na Alemanha e permaneceu em Berlim durante boa parte de sua vida acadêmica. No ano de 1932 Lewin foi para os Estados Unidos” ( Moraes, 2007, p. 315 ). 9 Cabe ressaltar que Antonino Ferro, em A técnica na psicanálise infantil (1995) , foi o psicanalista que divulgou internacionalmente o conceito de campo analítico dos Baranger, vinculando este ao pensamento de Bion. Nesse período, o texto dos Baranger ainda não tinha sido traduzido para o inglês. Civitarese e Ferro escrevem alguns textos em conjunto e partilham de ideias próximas, principalmente no que se refere à compreensão do campo analítico. 10 Foram garantidos os cuidados éticos na apresentação do fragmento clínico, visto que se trata de uma “ficção narrativa” que contém diversos elementos e personagens da experiência clínica das autoras ( Tanis, 2015 ). 11 No sentido de fixar uma compreensão preexistente e não abrir para os acontecimentos do campo, no aqui e agora da sessão. Referências Baranger, W. (1979). Proceso en espiral y campo dinámico. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 59 , 17-32. https://cutt.ly/fwwlTaAs Baranger, M. & Baranger, W. (2010). A situação analítica como campo dinâmico. Livro Anual de Psicanálise, 24 , 187-214. (Trabalho original publicado em 1961-1962) Baranger, M., Baranger, W. & Mom, J. (2002). Processo e não processo no trabalho analítico. Revista Fepal, 5 , 114-131. Bernardi, B. L. (2009). Introducción al trabajo de Madeleine y Willy Baranger: la situación analítica como campo dinámico. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 108 , 198-222. Churcher, J. (2010). Notas sobre a tradução para o inglês de “A situação analítica como um campo dinâmico”, de Willy e Madeleine Baranger. Livro Anual de Psicanálise, 24 , 177-186. Civitarese, G. (2014). Between “other” and “other”: Merleau-Ponty as a precursor of the analytic field. Fort Da, 20A (1), 9-29. Coelho Junior, N. (2012). Apresentação. In N. Coelho Junior, P. Salem & P. Klautau (Orgs.), Dimensões da intersubjetividade (pp. 7-17). Escuta; Fapesp. 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- Eros no encontro analítico: a sedução suficientemente boa [1]
Autoras: Fatima Flórido Cesar de Alencastro Graça e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro. Este artigo foi publicado em 2023 no Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro , v. 45 n. 48, p. 111-131. Resumo: A partir do relato de um atendimento analítico online, o texto apresenta uma reflexão sobre a função vitalizadora do analista, destacando o que denominamos “sedução suficientemente boa” à semelhança da “mãe suficientemente boa” de Winnicott: a sedução fazendo parte do encontro analítico, devendo manter-se operando a partir de uma posição ética. Propomos que a sedução se equipare à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando; desenvolvendo tais ideias a partir de Luís Claudio Figueiredo e Dianne Elise. Pensamos a sedução como estratégia terapêutica de vitalização – estando esta ligada a Eros em seu sentido amplo. Fizemos uso das contribuições de Dianne Elise quando esta associa a díade mãe-bebê à dupla analítica, propondo a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. Destacamos ainda que, na modalidade de um atendimento remoto, o caso apresentado teve salvaguardado o vigor do encontro. Palavras-chave: Atendimento online. Sedução suficientemente boa. Erotização. Função vitalizadora do analista. Pérolas Aos Poucos [2] eu jogo pérolas aos poucos ao mar Eu quero ver as ondas se quebrar Eu jogo pérolas pro céu Pra quem pra você pra ninguém Que vão cair na lama de onde vêm (...) José Miguel Wisnik A pesca: o relato de uma experiência clínica online Nomeio-o Ahab, este senhor que me procurou. De onde vem esse nome quando emerge de minha reverie [3]? Será ele um caçador implacável, obstinado em alcançar com seu arpão raivoso sua Moby Dick? Ou serei eu a pescadora? Eu, na insistência de alcançá-lo, enquanto ele se debate – cachalote ardente – nós ardentes? Quero que fique e me empenho nesta árdua pescaria em que a cada dia embarco, assim que o sol ilumina o mar das emoções turvas ou negadas. Este senhor me procura para falar de seu filho de mais de 40 anos (Ahab tem 80), que está “bebendo demais e, possivelmente, usando drogas”. Convido-o a um encontro (virtual) comigo e assim começamos nossa pescaria. Não sei bem quem é o pescador ou quem é o poderoso mamífero. O não saber me protege e prossigo. Ahab, senhor ativo, me conta histórias desse filho-menino que chega embriagado na casa paterna, onde ainda mora. Pula de trabalho em trabalho, mal se estabeleceu na vida adulta. Ahab quer ajudar o filho, mas não sabe como e me pergunta: como? Eu também não sei, mas pressinto que uma indagação profunda emerge desses mares ocultos: como é ser pai? Jogo pérolas aos poucos, pesco pérolas aos poucos quando intuo que seu filho-menino pode ser enigma e espelho. Ahab também gosta de bares e já fora alcoolista, também usara drogas e se perdera na vida profissional. A esposa morrera devido a um aneurisma quando os filhos eram adolescentes. Tinham uma relação estéril. Ficara só desde então e me oferta pérola ferida quando percebo sua solidão, seu distanciamento dos filhos, seu modo desastrado: não é somente ser pai que Ahab não sabe, também não sabe viver ou o que fazer com as emoções. Desde nosso primeiro encontro, vislumbro uma sensibilidade que se oculta e não se endereça a ninguém, estrangulada sob a aparência de secura e aridez. Sugiro que continuemos a conversar: “talvez a partir de nossas palavras você consiga se aproximar de seu filho”. Homem de poucas palavras, sente um incômodo ao ter que falar comigo. Reconheço a dificuldade, mas uma ligação se estabelecera: é certo que ele se debate, mas eu pressinto um longínquo e antigo pedido de ajuda. Eros comparece, embora sob a forma de frouxos nós que preciso/precisamos tecer novamente a cada encontro. E assim começou nossa dança-coreografia: não terá sido também uma louca coreografia a que envolvera Ahab e Moby Dick? A violência amorosa também vivencio com meu Ahab. Mas vamos aos poucos: aqui tudo é delicado. O nosso enlace – o contrato possível – a cada novo encontro se apresenta através de meu convite entre tímido e vigoroso: “vamos continuar a conversar semana que vem?” Poderia também nomeá-lo Shahriar, o sultão de Mil e uma noites, enquanto eu sigo como Sheherazade, pois, tal qual a filha do grão-vizir, renovo a cada encontro nosso enlace-contrato. Conto nova história para que permaneça o vínculo, para que eu não morra enquanto analista, para que seu interesse por seu próprio mundo de emoções, aparentemente nunca dantes compartilhado, permaneça vivo. Na verdade, como diz Gerber: “analista e analisando, somos ambos êmulos de Sheherazade, contando infindáveis histórias um ao outro” (2013, p. 13). Ele também me conta histórias, e não apenas com palavras, mas na forma como se expressa. Seu rosto fala: seu olhar evita o meu, subitamente interrompe o cenário interno ao levantar o olhar na direção do teto, e ri uma risada vitalizada. Nesses momentos, uma vivacidade cativante faz sua aparição – também fui pescada desde o início. Com um flash de alegria autêntica, me convida a entrar em sua vida, nos lugares em que algo saudável se preserva. Eu o convido a se espreitar para fora dos recônditos cantos de sua alma conturbada e a pertencer à comunidade humana. Para isso é preciso, se necessário, atravessar desertos, e assim a vitalidade terá chance de emergir na dupla analítica. Apresenta-se como homem de devaneios e, embora sem saber falar de sentimentos, diz a mim deles. Fala de um amor antigo que o visita em recordações. Lamenta que não tem assunto, apenas “escuta sem maior interesse e não sabe dizer não”. Digo que tanto sim, despossuído de seu próprio desejo, é perigoso: me lembra um vulcão amarrado pelo bico – antiga imagem que me ocorre: novamente a reverie vem ao meu auxílio. Diz então que vai mesmo a outros extremos. Saindo de uma festa alcoolizado fora perseguido pela polícia, mas, não parando, atiraram dez vezes no seu carro. Vai para a delegacia e, ao sair, põe fogo num dos carros da polícia. Logo absolvido, o promotor acha graça, ele ri ao contar sua história incendiária e eu nesse momento encontro Ahab ou Moby Dick: não apenas terna sensibilidade, eis a violência – a turbulência mascarada. Posso também ser alvo de balas perdidas ou de ímpetos incendiários. Na sessão seguinte é o cachalote furioso que comparece à sessão. Não quer continuar as sessões, não vê progresso na relação com o filho. Como já ocorrera antes, eu o convenço a continuar. É sempre assim, enfatiza: faz o que os outros querem. Um embate tenaz se estabelece: falo que sinto que ele gosta. Ele diz do mal-estar que atravessa durante a semana até nosso encontro. Mostra-se irritado, mostra arpões: viera pelo filho, não por ele. Ficamos um tempo nesta coreografia de desencontros. Penso que não há mais atalhos para alcançá-lo e tenho vontade de desistir, mas persisto, ligada por algo que intuíra nele desde o início. Falo de sua sensibilidade. Ele diz que sabe dela, mas não gosta. Digo que a fragilidade é vizinha da sensibilidade. Será esse o temor? Conto uma história: quando jovem, quase adolescente, era muito tímida, temerosa de contato. Tinha uma creche na casa do meu avô, que era ligada à casa de minha mãe. Todo ano fazíamos um forró e, da casa materna, já ouvia os barulhos da música, hesitante entre o desejo e a contenção. Mas quando chegava na festa, já gostava e dançava sem medo, entusiasmada ao som da sanfona. Meu cachalote amansa ou Ahab, ou Shahriar. Retorna Sheherazade: me conta histórias de escritos e de pinturas. Quero ver o que cria. Lá pelas tantas, recordando os tempos da faculdade, fala do horror que fora a ditadura. Militou? Pergunto. Mas tem amigos que foram presos e torturados. Sua compaixão aparece: como podem negar que houve ditadura? Vou sentindo seu retorno à sala de análise (online), e agora vem com seu próprio nome. Vai continuar, vamos marcar um próximo encontro. Estou cansada, lutamos tanto, me dera trabalho, eu a ele também. O que é vivo dá trabalho! A apresentação dos encontros com meu paciente, com suas idas e vindas, tem como objetivo destacar meu movimento primordial em sua direção e relacioná-lo à vitalização necessária a alguém que, tendo a experiência de uma vida secreta, precisava ser convocado para o partilhar dos sentimentos e para o mundo humano. A imagem que surge da reverie não foi aleatória. Em As mil e uma noites, Sheherazade “seduzia” o sultão com suas histórias, mantendo-o ligado à vida e a ela. A sedução, aqui, tem sentido de ligação: Eros se sobrepõe aos impulsos assassinos que ocultavam a dor pela traição da primeira esposa. Também meu paciente tinha sua dor e precisava de mim, enquanto objeto externo, para que Eros circulasse no vínculo. Como objeto “sedutor”, meu primeiro movimento fora desviar Ahab de sua demanda inicial – ajudar o filho – para que pudesse caminhar em sua própria direção e olhar a si mesmo. Por meio de meu investimento, me ofereço na esperança de que seus próprios recursos de vida e sua capacidade de se ligar possam emergir em nossa relação. Quando falo que ele gosta do encontro, ele nega, mas insisto, acreditando que o prazer circula, contribui para o fortalecimento da ligação e enfraquece o temor despertado pela proximidade afetiva. Como podemos pensar a sedução e a função vitalizadora da analista que acontece nesse atendimento online? Reflexões sobre sedução e a função vitalizadora do analista A palavra sedução provém do latim seductio, que significa “afastar (uma pessoa da lealdade)”. O prefixo se – denota afastamento, e ducere, “guiar, portar, levar” [4] . Os riscos da sedução já estão revelados na etimologia do termo: ação que pode afastar ou levar ao encontro, e é nesse estreito e acidentado caminho que vamos discorrer. Comecemos com a conhecida passagem de Freud sobre a sedução materna, tirada do Esboço de psicanálise (1938), e cujos desdobramentos acompanhamos até hoje, em diversos autores: ...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores − para ambos os sexos (FREUD, 1938/1980, p. 217). A mãe é a primeira sedutora: é quem libidiniza o bebê e marca no corpo do filho ou da filha uma geografia de prazer/desprazer (RIBEIRO, 2011), convidando o seu bebê à vida. Propomos que a sedução se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando. Iremos desenvolver essa ideia a partir de autores da psicanálise contemporânea, principalmente Luis Cláudio Figueiredo e Dianne Elise. É preciso ressaltar que a sedução, tema polêmico para a psicanálise, vem sendo resgatada. É fundamental considerar seus riscos e fazer com que ela opere a partir de uma posição ética, ou seja, não atrelada ao narcisismo do analista, mas sim às necessidades do paciente. Optamos por nomeá-la “sedução suficientemente boa [5]” à semelhança da ”mãe suficientemente boa” de Winnicott (1951, p. 28). Por fazer parte do encontro analítico, a sedução precisa ser suficientemente boa, isto é, apresentar-se numa “temperatura” ótima: nem distante ou fria, de modo a impossibilitar o contato, nem excessiva, determinando uma sobre-excitação quente demais. É esta medida ótima que a expressão “suficientemente boa” denota. Os extremos conduzem a vazios ou abismos tórridos; precisamos buscar um equilíbrio entre ser distante ou débil demais no contato, e ser intenso demais, portanto, intrusivos. Dean-Gomes faz uso da expressão “sedução ética” (2019, p. 436) para indicar a sedução que é um chamado para a vida. Ele destaca que, se a pulsão de morte não possui objeto e a pulsão de vida precisa de um objeto interessado e disponível, o objeto é sedutor e desvia o infante das forças mortíferas, conduzindo de modo primordial o psiquismo para que este opere a partir de Eros e do princípio do prazer. Sim, há riscos, e precisamos estar atentos para o uso da sedução de modo ético, como sugere Dean-Gomes, especialmente naqueles casos em que a vitalidade se faz fundamental e deve ser conferida ou restituída ao paciente. Ante os temores e inibições do paciente, a analista o encoraja, empresta sua vitalidade, usando sua voz, ora mansa, ora com vigor, os gestos que atravessam a virtualidade, com os quais a analista pretende despertá-lo para sua própria vitalidade. Contribuições de Luís Claudio Figueiredo É necessário levar adiante uma reflexão metapsicológica sobre a sedução, vinculando-a à vitalização. Para isso, iniciamos apresentando o artigo de Luís Claudio Figueiredo, Figuras da sedução em análise: a vitalização necessária (2019), cujo objetivo é a reavaliação da sedução em seus vários aspectos, com base em diferentes pensadores da psicanálise. A sedução é abordada por Figueiredo (2019) em sua particular importância na constituição do psiquismo e, também, na etiologia dos adoecimentos e no atendimento a pacientes apassivados – ou seja, os pacientes da matriz ferencziana (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018). Não podemos, alerta Figueiredo, desconsiderar os efeitos antianalíticos e antissimbolizantes da sedução e da excitação. Sendo assim, no decorrer deste artigo, nosso objetivo é tanto o reconhecimento das estratégias vitalizantes, quanto a atenção ao seu contraponto: o da vitalização e sedução arriscadas, portanto, antianalíticas. Figueiredo (2019) diz que até hoje a sedução é um tema polêmico, entretanto, embora os riscos e possíveis violações do setting não devam ser ignorados, passou-se a destacar a dimensão erótica e sedutora do encontro analítico como um aspecto fundamental dos tratamentos. Tal dimensão é o eixo fundamental deste artigo e, para ressaltá-la, começamos com o caso de Ahab, no qual estão presentes os aspectos da vitalização, de Eros e da sedução. Com o texto de Figueiredo, abordaremos uma prática analítica que reconhece a sedução em sua feição benigna (2019, p. 54), ao mesmo tempo em que se mantém atenta quanto aos riscos e desvios de uma imprescindível posição ética. A teoria da sedução generalizada, de Laplanche, resgata a importância constitutiva da sedução. Seguindo o pensamento deste autor, Figueiredo destaca que a constituição psíquica depende invariavelmente da sedução de um psiquismo infantil pela ação sedutora inconsciente do adulto, a qual se dá, por sua vez, nos cuidados proporcionados ao infante. Trata-se de um trauma constitutivo fundamental: “assim como o bebê precisa de cuidados, precisa também, para iniciar sua marcha psíquica, de uma sedução adulta” (FIGUEIREDO, 2019, p. 52). Eis o resgate da sedução e o reconhecimento de uma dimensão traumática constituinte, e não desestruturadora. De qualquer modo, a reabilitação da sedução por alguns poucos analistas não alterou o caráter majoritariamente negativo que a maioria lhe atribui. Figueiredo propõe a reconstituição dessa questão e, para tanto, inicia com Ferenczi. Ferenczi pressupõe uma condição de passividade original do infante que convoca o adulto a um investimento narcísico e erótico (erótico, aqui, entendido em seu sentido amplo que remete às forças de ligação). Somos conduzidos a pensar em “sedução” distante da conotação negativa do conceito, embora o próprio Ferenczi não use esse termo. Importante ressaltar a concepção de Ferenczi de que, no início da vida, a pulsão de morte é muito mais operante que a de vida. Daí decorre a necessidade de impulsões de vida, como a atenção dedicada do adulto que convida o infante à vida de modo genuíno e autêntico. Diferentemente de Laplanche, que supunha que “a pulsionalidade fosse inoculada no bebê pela sexualidade adulta recalcada, inconsciente” (FIGUEIREDO, 2019, p. 53), ressaltamos a função fundamental do objeto para resgatar o infante da regressão à passividade absoluta, da morte ou de estados de cisão. Por outro lado, a condição de passividade primordial é necessária à sobrevivência do bebê: uma condição de receptividade aos cuidados vitalizadores do adulto, o outro-adulto como fonte de vida. Antes de abordar a sedução e a estratégia vitalizante a ela relacionada, Figueiredo discorre sobre os adoecimentos por passivação a partir do pensamento ferencziano. Estes pacientes necessitam ainda mais dessa estratégia terapêutica de vitalização. É importante acompanhar o pensamento do autor para que resguardemos uma posição ética contundente, já que apresentamos como proposição que tal estratégia terapêutica de vitalização se estenda a pacientes menos adoecidos. É o caso de Ahab, que apresenta um retraimento não severo, mas, por outro lado, se encontra aprisionado por uma dificuldade de estabelecer contato: onde, quando, com quem aconteceu um encontro? A analista se disponibiliza como um outro que o convida para andanças vivas e compartilhadas, para além de suas solitárias perambulações. Voltando a Figueiredo (2019), assim como ocorre a vitalização através do ambiente que investe narcisicamente o infante, o contrário também pode acontecer, a passivação, pela ausência radical de cuidados ou por excessos e abusos: “Em ambas as vertentes, a passivação é mortífera: mata ou deixa partes mortas ou cindidas por onde passa. Em especial, mata o potencial de atividade espontânea preservado na condição passiva associada às pulsões de vida” (FIGUEIREDO, 2019, p. 54) Figueiredo destaca que Balint, Winnicott e Kohut seguiram o caminho aberto por Ferenczi no que diz respeito tanto aos adoecimentos por passivação, quanto à passividade original. Mesmo que já se comporte um potencial para alguma atividade desde o nascimento, é condição de vida, como já vimos falando, um “ambiente facilitador” (que sustenta e cuida), como expressa Winnicott (apud FIGUEIREDO, 2019, p. 38) Aqui, retomamos o ponto fundamental deste artigo: um ambiente de cuidado é também um ambiente com qualidades de uma sedução na medida certa, que convida à vida e ao vínculo. Nestes autores encontram-se traços em comum da estratégia terapêutica junto aos pacientes adoecidos por passivação: a estratégia vitalizante, que Figueiredo chama de sedução “benigna”, e será tão relevante ao tratamento destes sujeitos: Reconquistar a confiança de indivíduos profundamente desconfiados com o ambiente e desalentados com a vida, reacender a esperança de pacientes profundamente desesperançados, convidar a brincar, a jogar e a fantasiar, reconhecer necessidades rudimentares de se sentir vivo e com valor, tudo isso, de uma forma ou de outra, pertence ao campo da clínica pós-ferencziana (2019, p. 54). A estratégia vitalizante: a erotização Figueiredo destaca que, apesar de fazerem uso terapêutico da sedução – “sedução para a vida” (2019, p. 55) –, estes autores não falam dela. Daí advêm consequências problemáticas: primeiro, a sedução fica reduzida à sua conotação negativa; mas, adverte o autor, como já vimos em Laplanche, sem sedução não há constituição do psiquismo, nem vida. Em segundo lugar, algo que nos é particularmente relevante: o não reconhecimento da dimensão da sexualidade em sua acepção ampla. Sedução se liga à libido, sexualidade e principalmente a Eros, este referido “não apenas a excitação, descarga e prazer, mas também aos processos de ligação intrapsíquica e intersubjetiva sem as quais a vida não se instala e expande” (FIGUEIREDO, 2019, p. 55, grifo do autor). Não se trata apenas de uma estratégia terapêutica na direção da “ex-citação”, um “chamar para fora”, como explica Figueiredo (2019, p. 55), mas também no sentido de facilitar ligações. Estamos nos referindo a um trabalho de vitalização que não é a tentativa de animar pacientes deprimidos: o prazer compartilhado deve estar a serviço da simbolização e da transformação das experiências emocionais. Por fim, um terceiro problema: na ocultação da dimensão erótica e no não reconhecimento da sexualidade em sua dimensão ampla, corremos o risco de não atentarmos para os perigos da erotização, mesmo quando esta é necessária. A erotização tanto pode produzir ligações, como, também, adoecimentos: O excesso de erotização ou sua inadequação às capacidades egoicas e de simbolização do sujeito é certamente algo prematuro, invasivo e traumatizante no velho sentido do termo. (...) ou seja, a vitalização inclui o risco de um excesso que contraria e obstrui a marcha do psiquismo no rumo de sua expansão e integração (FIGUEIREDO, 2019, p. 55). Segundo o autor, a dimensão da sexualidade na sedução – em outras palavras, –a erotização e vitalização, podem conduzir a um excesso patogênico e contrário à expansão do psiquismo, nosso objetivo terapêutico principal. Todas essas advertências direcionam a pensar nos riscos no atendimento de Ahab: como construir um campo de erotização que não perca seu caráter terapêutico ao “derrapar” em excessos e desvios? Quando a excitação ultrapassa a ligação? Qual a medida? Mesmo considerando seus riscos, Figueiredo (2019) trata das estratégias de “sedução para a vida” como necessárias em todos os casos de adoecimento por passivação. No presente artigo, em particular no caso de Ahab, propomos a ampliação do uso da vitalização, em menor ou maior grau, presente em todo processo analítico, assim pensamos. Uma proposta que precisa ser conduzida com o máximo rigor ético, pois pressupõe o uso da sedução e da erotização no resgate de áreas mortas e desvitalizadas, invariavelmente presentes, mesmo em casos não tão graves. Aqui o cuidado com extravios se faz ainda mais necessário, pois os riscos podem ser maiores, e o compromisso ético do analista é imprescindível. Figueiredo (2019) refere-se à clínica de Anne Alvarez, que atende crianças gravemente adoecidas e faz uso do que denominou de reclaiming em seu primeiro livro, Companhia viva (1992). Alvarez sugere tal estratégia terapêutica como correspondente a uma modalidade de sedução. Referindo-se a seu paciente Robbie, o qual apresentava um retraimento severo, ela diz: Pareceu-me que, em seu estado mais doente, mais retraído, ele emergiu e veio para onde eu consegui chegar, quando fiz um movimento fundamental para alcançá-lo onde quer que ele estivesse em seu estado perdido de estupor. À época, escolhi a palavra ”reclamação” para descrever a situação. Uma terra improdutiva não pede para ser recuperada, mas sua potencialidade oculta para germinar pode florescer quando é reclamada (1992, p. 101). Em seu segundo livro, The thinking heart (2012), Alvarez dá sequência à noção de reclaiming, a partir da “vitalização intensificada” (FIGUEIREDO, 2019, p. 58), estratégia terapêutica descrita de forma teórica e com exemplos clínicos. Alvarez (2012), entretanto, não faz apenas o elogio da sedução, mas também, aborda outras manifestações que surgem da excitação provocada: jogos perversos e brincadeiras viciadas e frenéticas, ou seja, manifestações de crueldade, envolvendo a analista (Alvarez) em cenas de violência sexual ou abusiva, que surgem a partir do que Figueiredo denomina “sobre-excitação” (2019, p. 58). Da instalação de vida (a vitalização intensificada), o que surgia eram soluções mortíferas, ou seja, a proximidade entre sexualidade e pulsão de morte. Alvarez, atenta ao que acontecia, afirma: “Desencorajar as excitações perversas precisa ser acompanhado da afirmativa confiável de que há outras maneiras de se sentir vivo. Caso contrário, o paciente pensa que só há duas alternativas: o excesso de excitação ou o abismo” (2012, p. 158). Figueiredo (2019) ressalta a não recusa da sedução por Alvarez, ou seja, isso seria uma forma de reclaiming, mesmo considerando os riscos de extravios capazes de obstruir os processos de simbolização. Sumarizando, a vitalização intensificada comporta sempre uma dimensão erótica e seus inevitáveis riscos. É uma clínica arriscada, que apenas conseguirá encaminhar o tratamento na direção de modos saudáveis de vitalizar a partir de uma posição analítica que salvaguarde o que denominamos, a partir de Dean-Gomes, uma “sedução ética”. Estamos propondo também a denominação de uma “sedução suficientemente boa”, ou seja, que não se extravie, nem por falta nem por excessos de investimentos vitalizantes. Indo além da sedução como estratégia terapêutica, acreditamos, como sugere Roussillon (2019), que a sedução está presente no encontro analítico, na medida em que, ao não se escapar da questão da transferência, tampouco se escapa dos seus efeitos, especialmente da “sedução”. Acompanhemos suas palavras: Os efeitos da “sedução” dependem, de fato, apenas em parte daquilo que o clínico faz ou diz, pois são inerentes ao próprio processo transferencial, isto é, à posição na qual o sujeito o situa no encontro analítico, e isso só depende muito parcialmente dele. Queira ou não o clínico, a questão da sedução está presente no encontro clínico, em todos os encontros clínicos, pois ela é também um efeito induzido pelo processo transferencial que lhe é consubstancial. O que o clínico diz, faz, deixa de fazer ou dizer é “interpretado” pelo sujeito em função da posição transferencial na qual ele situou o clínico. Como não se escapa da transferência, tampouco se escapa dos efeitos de sedução, de sugestão ou de influência que ela implica. O problema, portanto, não é a sedução – ela é inevitável – e muito frequentemente, ao querer escapar da sedução “libidinal”, produz-se uma “sedução superegoica” – e querer escapar a todo custo desta faz, com frequência, com que se caia na “sedução narcísica” etc. Vai-se de mal a pior, desenvolvendo modos de sedução cada vez mais nocivos – posto que cada vez mais difíceis de desmascarar; logo, de ultrapassar. O problema não é a sedução em si, é a sua forma e a sua utilização (ROUSSILLON, 2019, p. 57). É verdade que as colocações do autor se referem à sedução de modo diverso do que vimos até então tratando. Estamos apresentando a sedução como estratégia terapêutica, o que diverge da proposta de Roussillon de pensá-la como efeito da transferência. Partindo da inevitável presença da sedução no campo analítico, propomos, a despeito das diferenças entre elas, que as reflexões do autor se entrelacem às nossas. A questão principal é o que fazer com a sedução, incontornável, que ocorre no processo analítico? Como encaminhar as poderosas forças de Eros para os processos de vitalização? Se o objetivo inicial deste artigo, a partir da história com Ahab, era o entendimento das várias dimensões da sedução, optamos por focar a sedução em sua perspectiva de estratégia terapêutica de vitalização. Entretanto, não podemos deixar de pontuar que a sedução, como convite à vida, inicia-se nos cuidados da mãe com seu bebê, a “mãe suficientemente sedutora”, e é nesse mesmo começo que a erogeneização se faz imprescindível. Retomando, propomos que a sedução, desse modo considerada, se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando, como dito acima. Tendo refletido até aqui sobre a sedução, temos como propósito, em seguida, entender a erotização, a partir de um texto da psicanalista Dianne Elise (2017), autora destacada por Figueiredo (2019) em seu texto sobre as figuras da sedução. A coreografia do erotismo analítico: algumas ideias de Dianne Elise Trabalharemos agora o artigo Moving from within the maternal: the choreography of analytic eroticism, de Dianne Elise (2017). O título do artigo comunica a associação, proposta pela autora, entre a díade mãe-bebê e o par analista- -paciente, e expressa a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. De modo específico, o movimento de uma sessão é entendido a partir de um erotismo analítico, algo que expande o conceito de transferência e contratransferência eróticas e que procuraremos entender a partir das palavras da própria autora. Clinicamente, quando a criação de uma narrativa simbólica passa para o verbal, enquanto retém este componente afetivo corporificado, a transformação da dor psíquica torna-se possível. A capacidade estética para manter essa vitalidade incorporada viva na relação analítica é a qualidade a que me refiro como erotismo analítico (ELISE, 2017, p. 33) [6]. Elise parte das ideias de Kristeva (2014) sobre a importância do erotismo materno: o encontro da mãe como ser erótico traz à existência o eu erótico da criança, não apenas no aspecto especificamente sexual, mas no sentido mais amplo de vitalidade e curiosidade em relação ao viver: “Eros, em vez de adaptação funcional” (ELISE, 2017, p. 34). É a partir deste sentido de Eros que complementamos o que estamos discorrendo neste artigo: Eros como força vital, força de ligação. Resgatando Eros para pensar a relação mãe-bebê e adiante, o par analítico, a autora continua a definir o erotismo materno como vitalidade corporificada deste espaço da díade: uma atmosfera afetiva que poderia ser pensada em termos winnicottianos como “mãe ambiente”, mas por ela conceituado como “viva com o erótico” (Id., 2017, p. 36). A metáfora da dança nos ajuda a entender o impulso materno derivado de seu erotismo que, ritmicamente, de modo libidinal, energiza o dueto mãe-bebê, liberando energias libidinais e imaginação criativa: Sublinho que essa dança, com seus primórdios, tanto pré quanto pós-natal, é a forma de arte mais plenamente corporificada, dando forma à vida afetiva através do movimento. Cada ser humano começa pré-natalmente, com a mãe como parceiro de dança. Preso no abraço do corpo oscilante da mãe, o bebê pré-natal é valsado ao redor do útero, colocado em movimento, sempre acompanhado pela batida rítmica do coração da mãe, a música de sua voz, mesmo quando ela não está realmente cantando. O feto eventualmente responde com um solo – um primeiro chute, tão emocionante para a mãe (e para o feto?). Certamente deve haver, neste dueto mãe-bebê, continuidade do útero ao abraço de balanço dos braços e colo da mãe, com a amamentação devolvendo o bebê a proximidade com a batida musical do coração da mãe emanando das profundezas de seu corpo. (ELISE, 2017, p. 37). As palavras da autora são aqui acompanhadas, pois nos possibilitam a articulação entre Eros, vitalização, libidinização e sedução, seja na vitalização do par mãe-bebê, seja no encontro analítico. A partir da conceituação de Julia Kristeva sobre o erotismo materno, Elise enfatiza o erótico como parte/ingrediente importante da situação analítica: “uma espontaneidade viva que faz parte do self criativo tanto do analista como do paciente” (Id., 2017, p. 40). Também no trabalho analítico, é sugerido um processo coreográfico: uma dança que não constitui o produto criativo apenas da mente do analista, também a “música” do paciente está incorporada nas comunicações verbais e não-verbais. Se o erotimo maternal falhou – e, portanto, também a dança mãe-bebê –, será nosso desafio trabalhar com um paciente sem música (podemos aqui pensar nos casos difíceis e nos pacientes desvitalizados, engessados em sua paralisia e ausência de movimento). Nesses casos, Elise destaca o erotismo analítico como essencial para a criação de uma narrativa que faça sentido. É especialmente com pacientes amortecidos que o erotismo analítico se torna um elemento tão vital. Elise associa a vitalização da situação clínica a um campo de força libidinal, considerando que tanto o paciente quanto o analista envolvem suas energias eróticas e ressaltando que tal envolvimento não é específico do desejo erótico, embora possa incluí-lo. No caso de Ahab, usamos a metáfora da pesca, mas bem poderíamos ter imaginado uma dança-coreografia em que a analista o convida para formar um par analítico. Fica a questão se, como Elise afirmou, o desejo analítico o manteve, pelas tantas sessões em que eu o convocava a retornar, mas se também não foi o impulso para que, então, após um curto período, largasse o palco e fugisse de minhas narrativas para se resguardar em seu mundo monótono e deslibidinizado. Foi embora afirmando veemente que talvez gostasse mas, acostumado a aceitar o desejo do outro, queria agora experimentar dizer “não”. Não queria mais; se sentisse saudade, me procuraria. Uma afirmação a partir do negativo? A enunciação de sua potência? Um fio erótico permanecendo na dança interrompida? As coisas esfriando na pista de dança, mas uma chama tênue se manteve na comunicação final? Ou a excitação, como afirma Figueiredo, colocando a perder a possibilidade de encontro? As tantas metáforas de movimento que usamos neste artigo – pesca, caça e agora dança – parecem comunicar as tentativas de aproximação e as idas e vindas de um par analítico; remetem também à arriscada sedução, que anuncia os perigos dos mares em turbulência, e dos avanços ora da caça, ora do caçador. Na dança erótica entre analista e analisando, a ameaça de tangos tórridos ou salsas ardentes terá conduzido o paciente de volta ao seu claustro e aos seus temores de viver? Viver é perigoso: o recolhimento trazia cifrado seu susto tal qual vulcão amarrado pelo bico. Ao acompanharmos Elise, a teoria iluminou a presença de Eros no encontro analítico, quando, não raro, desprezamos a dimensão libidinal e libidinizadora do trabalho terapêutico. Lançou luz ao que se dançava em inocência: os riscos de o bico do vulcão desamarrar e inundar de lava o setting analítico. Eis o perigo a que se refere Figueiredo: uma clínica com tamanha implicação demanda reserva (2000, p. 31) [7] . Implicação e reserva diante da dimensão sexual da sedução enquanto estratégia de vitalização. Por outro lado, como não arriscar? Era necessária a busca do vivo para resgatar Ahab do mundo silencioso e amortecido. Nessa direção, Elise (2017, p. 48) destaca que a ausência da vitalidade como núcleo da atividade analítica minaria a possibilidade de criação conjunta de uma narrativa simbólica e emocional. A autora escreve que seria importante deixar esse componente erótico mais bem explicitado e apresentado na teoria psicanalítica, em vez de tratá-lo como tabu circunscrito na estreita conceituação da contratransferência erótica (ELISE, 2017, p. 48). Tal questionamento me remete à “novela” com Ahab: como podemos pensar o erotismo como constitutivo de um tratamento? Pode o erotismo analítico realmente “sustentar” a dupla? Reafirma-se aqui a inter-relação da sedução e da erogeneização como ingredientes necessários para a vitalização do par analítico, em sua medida justa, ou seja, sem faltas nem excessos, nos moldes adequados a cada paciente, um analista suficientemente bom sedutor, como viemos propondo. Na direção de respostas para tantas questões, a Elise nos auxilia ao sugerir que uma análise não pode se basear apenas nas energias libidinais do paciente. É necessária uma energia erótica circulando,“uma matriz libidinalmente viva” (ELISE, 2017, p. 49). Trata-se de entender a dimensão erótica como vitalidade analítica: a energia erótica do analista sendo vista em seu potencial de cura e como ingrediente necessário para o tratamento. Elise interroga, ou será uma afirmação? Pode nosso recipiente analítico ser um útero de concepção, uma dança de gestação e entrega, onde o Eros incorporado de um analista emparelha com, e facilita, a capacidade de um paciente de sentir e expressar seu próprio ritmo pessoal? No lugar do analista como tela em branco, movimentar sua figura para uma vivacidade, imagem colorida, em vez de “re-presentação de uma mãe amortecida” (Id., 2017, p. 50). Destacamos aqui a necessidade de nossas narrações verbais baseadas em experiências corporificadas para além de cada frase. Como vimos em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020), a linguagem só tem utilidade se vier junto com as energias corporificadas, tanto as do analista, quanto as do paciente. Dança, também, necessária com as palavras: o uso da linguagem de modo artístico, “indo além, abaixo e antes da palavra” (ELISE, 2017, p. 51). Estamos falando aqui da linguagem viva, em consonância com nosso artigo mencionado (2020): a responsividade afetiva não apenas do paciente, mas, também, do analista. De qualquer forma, como trabalhar com nosso erotismo de forma ética? Podemos articular o erótico com a imaginação criativa do analista. Energia libidinal, em conjunto com os recursos imaginativos, fornecem, segundo Elise, a base essencial para o trabalho com pacientes cujo trauma precoce congelou ou impossibilitou a capacidade simbólica. Ressaltamos o pensamento da autora de que as energias criativas não devem ser vistas como substitutas dos próprios recursos vitais do paciente, mas sim como contribuição vivificante para a dupla, mesmo que paradoxalmente, e aqui incluímos necessariamente uma travessia em territórios de desvitalização e amortecimento [8]. Também partilhamos da conclusão de Elise de que a função vitalizadora do analista deve estar presente em cada encontro analítico, de sua concepção de um analista vivo, ativo e de posse de suas capacidades criativas de modo a auxiliar na construção de uma matriz libidinal e vitalizadora no campo analítico (CESAR; RIBEIRO, 2020). O encarnado, o vital, precisam estar primariamente presentes. Em lugar de um ambiente recipiente passivo e desencarnado, Elise propõe a atividade do analista derivada de seu eu erótico: “um estado vibrante de alerta equilibrado, assim como uma dançarina parada no palco é equilibrada, não passiva, pronta, cheia de movimento potencial, de impulso” (ELISE, 2017, p. 53). A ampliação, em nossos pacientes, de sua capacidade de estarem vivos não será possível sem nossa própria presença viva: “somos receptividade equilibrada, não um receptáculo: nós agimos, nós respondemos, e não apenas de uma teoria intelectualizada, mas de nossas próprias energias ardentes corporificadas – algo do momento vivo” (Id., ibid., p. 53). Sobre o atendimento remoto: o enquadre interior Figueiredo, em texto recente (2020), propõe que, ao invés de falarmos em “atendimento virtual”, falemos em “atendimento remoto”, pois a virtualidade seria algo intrínseco ao dispositivo analítico. De qualquer modo, é preciso que examinemos, mesmo que sucintamente, as questões que advêm dos atendimentos à distância, os quais nos remetem à elasticidade da técnica, assim nomeada por Ferenczi (1928), que propunha uma flexibilização da técnica para o atendimento daqueles pacientes precocemente traumatizados que não se adaptavam à técnica padrão. Nesta tradição ferencziana, Winnicott (1962) usa a expressão “psicanálise modificada” quando se vê fazendo algo que não a análise padrão – embora, ainda assim, paradoxalmente, trabalhando como um analista. No dizer de Winnicott: Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? (1962, p. 155). Nesses casos, eram os pacientes que necessitavam de modificações na técnica, algo diferente do que estamos vivendo nessa pandemia: assistimos à ampliação do trabalho do psicanalista. Figueiredo (2020) ressalta o que se ganhou conceitualmente com essa elasticidade. Destacamos aqui a ênfase dada pelo autor ao “enquadre interior”, que independe da presença física do analista e indica uma disposição de mente: (...) trata-se da disposição de mente do analista em sua dimensão ética e “técnica” e em sua capacidade de escuta: em outras palavras, é a sua presença implicada e reservada (FIGUEIREDO, 2008), sua “mente própria” (CAPER, 1999), sua atenção flutuante operando em seu mais amplo espectro e englobando todas as modalidades de escuta em análise (FIGUEIREDO, 2014). (FIGUEIREDO, 2020, p. 65). É a presença do “enquadre interior” que comparece no atendimento de Ahab, uma vez que, como vêm acontecendo com frequência na pandemia, não ocorreram encontros presenciais e as sessões foram remotas. Tal “enquadre interior” é um estado de mente que só é possível a partir da transferência com a própria psicanálise, e que floresce das experiências de análise pessoal e de prática clínica do analista. O “enquadre interior” pode ser entendido por duas vias: primeiro a transferência com a própria psicanálise, o enquadre se instalando a partir da internalização daquela como bom objeto. No dizer de Figueiredo, uma “psicanálise amada” como condição de fundamento de nossa ética, que se constitui não na regulação ou interdição, mas no “vínculo transferencial (amoroso) com o próprio método analítico” (FIGUEIREDO, 2020, p. 68). Indo ao encontro da dimensão sedutora da experiência analítica relatada, vale ressaltar a ênfase dada por Figueiredo (2020), lado a lado ao enquadre interior, às transferências evocadas no paciente, quando, a partir da escuta, este é convidado “a ser, a falar, a brincar, a alojar-se no espaço de hospitalidade instaurado pela posição do analista: a situação analisante com sua dinâmica sedutora e criativa” (Id., ibid., p. 65). Assim, acompanhando o autor, a virtualidade está sempre presente no atendimento analítico, seja no atendimento remoto, à distância, na psicanálise padrão ou na psicanálise modificada; isto porque depende da disposição de mente de cada um da dupla analítica. Figueiredo associa muito apropriadamente tal virtualidade à instalação do espaço potencial (WINNICOTT, 1971): encontros em que comparecem realidades reais e fictícias, verdadeiras e ilusórias; campo fundamental a partir do qual o trabalho da psicanálise pode acontecer. Destacamos, brevemente, do texto de Figueiredo, algumas ideias que poderiam iluminar a compreensão do encontro que se deu com Ahab. Mesmo o atendimento sendo remoto, a dimensão de virtualidade, a manutenção do enquadre interior do analista e a instalação do espaço potencial aconteceram. Paradoxalmente, pensamos que a condição de atendimento remoto possibilitou que, protegido do corpo a corpo, Ahab conseguiu se aproximar de uma experiência analítica de intimidade. À guisa de conclusão As ideias de Figueiredo e Elise confirmam a necessidade da vitalização presente em todo encontro analítico. No presente texto procuramos articular a sedução com a erotização, e corroborar a importância de uma presença encarnada, em vez de uma presença intelectualizada: corpos ardentes e não abstrações desencarnadas. Dessa forma, encarnada, surgiu a imagem da dança, da caça com Ahab, em torno de tórrido vulcão: de que modo poderíamos ter prosseguido sem nem nos queimarmos nem congelarmos? Sim! Os encontros analíticos nessa dimensão vitalização-desvitalização têm temperatura, a cada sessão, de um momento a outro, de tempos em tempos. Essas reflexões nos conduzem à seguinte questão: como trabalhar com nosso erotismo de forma ética? O par constituído com Ahab trabalhou de forma ética? A analista se manteve em estado vibrante, o corpo envolvido no encontro, mas o quanto se equilibrou no palco dos encontros? O quanto titubeou na dança ou, por outro lado, Ahab recolheu temeroso suas energias vibrantes que cintilavam sutilmente? Ou, o quanto a analista intuía a música que emergia através das narrativas corporificadas, suas histórias endereçadas à analista? Não sei se temos respostas, mas podemos entender a sedução suficientemente boa, o erotismo presente de forma ética, acompanhando a proposição de Elise do entrelaçamento de criatividade e sexualidade a partir dos pensamentos de Winnicott e Freud. Winnicott (1971, p. 65) escreveu que é “a apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que faz o indivíduo sentir que vale a pena viver a vida”. Freud (1915, p. 169) postulou o amor sexual como “sem dúvida uma das principais coisas na vida, um de seus picos culminantes”. Algo que, para Elise, faria com que a psicanálise valesse a pena para analista e paciente. Estar de um modo criativo junto ao paciente é elemento de força vital. O que aqui pensamos como presença erótica (que começa nas trocas mãe-infante) estende-se para além destas e do puramente sexual para uma “joie de vivre”, uma paixão pela vida em seus altos e baixos, o sexual aqui resgatado numa concepção ampla, a mente enraizada na dimensão erótica do corpo: o nascedouro do vivo entre ternuras e ardências. Tudo isso é arriscado e vitalizante. A analista convidou seu paciente à dança, convocou-o à caça, relatou e ouviu suas histórias, buscou “ex-citá-lo”. Deixamos ao leitor, como um filme com final impreciso, como os de Bergman, que suas próprias reveries, sua capacidade imaginativa e criativa, surjam no encalço de respostas im-possíveis. Notas 1 O artigo apresentado faz parte da pesquisa de Pós-doutoramento de Fátima Flórido Cesar, tendo Marina F. R. Ribeiro como supervisora. Quanto a questões éticas, o artigo é um fragmento clínico no qual a identidade do paciente está preservada; se enquadrando, dessa maneira, na RESOLUÇÃO Nº 510, DE 7 DE ABRIL DE 2016: “Parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: VII - pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”. 2 Letra de música do CD Pérolas aos poucos, lançado em 2003 pela gravadora Circus Produções Culturais & Fonográficas. 3 Reverie é um conceito de Bion (1962); refere-se à capacidade imaginativa da mente, no caso, a capacidade imaginativa do analista na sessão, de captar o sofrimento psíquico do paciente. 4 Disponível em: origemdapalavra.com.br Acesso em: 25 jan. 2021. 5 Em trabalho anterior (ELISE, 2011, p. 30) usamos o termo “mãe suficientemente sedutora”: “Como, neste trabalho, estamos no âmbito da sexualidade feminina, a qualidade da mãe – de ser uma ‘sedutora suficientemente boa’ – está em cena. Isso significa a capacidade (como qualidade psíquica) de a mãe erotizar o corpo de seu bebê, nem a mais, nem a menos, na tensão única e específica a cada dupla mãe e filha (ou filho)”. 6 O artigo original de Dianne Elise é em inglês. Esta e todas as citações que seguem nos próximos parágrafos foram livremente traduzidas por nós. 7 Figueiredo se refere à necessidade de uma “presença reservada”, constituinte de uma “clínica de implicação e reserva” – um espaço em que se instaura um paradoxo de presença e ausência, de proximidade e distância (2000, p. 31). 8 Em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020) apresentamos pensamento semelhante. A partir das ideias de Winnicott, propusemos que a vitalização ou o vir a ser do infante provêm do encontro da centelha vital deste com o encontro do cuidador/mãe/analista com suas energias vivificadoras. Referências ALVAREZ, A. (1992). Companhia viva. Psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, desamparadas e que sofreram abuso. 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- Palavras aladas guiando o encontro analítico [1]
Este artigo, de autoria de Fátima Flórido Cesar [2], Marina Ribeiro [3] e Cláudia Perrotta [4], foi publicado em 2022 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 29, número 2, na edição intitulada Psicanálise Brasileira . O texto pode ser acessado em: https://revista.sppa.org.br/RPdaSPPA/article/view/1049 . RESUMO: Neste artigo, propomos uma interlocução com psicanalistas que discutem a psicanálise epistemológica e a psicanálise ontológica, destacando as contribuições de Thomas Ogden, para quem a primeira busca o conhecimento e a compreensão, tendo Freud e Klein como principais autores, enquanto a segunda é descentrada dos aspectos simbólicos da experiência, tendo Bion e Winnicott como referências ao enfatizar a importância de a comunicação na sala de análise abrir campo para a imaginação e o onírico. Entendemos que a psicanálise ontológica busca o que aqui nomeamos de substância-forração intersubjetiva, a qual vai sendo criada entre analista e analisando, de modo a facilitar a confiança no vínculo e favorecer um campo de criação entre a dupla, sendo que, para isso, as palavras isentas de fixidez, ou palavras aladas, possibilitam o contato real e humano. São apresentadas vinhetas clínicas que ilustram formas de a psicanálise ontológica fazer-se presente nos processos psicanalíticos. Palavras-chaves : Psicanálise epistemológica; Psicanálise ontológica; Thomas Ogden; Comunicação na análise “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar” (Lupicínio Rodrigues, 1947). “A natureza da gente não cabe em certeza nenhuma” (Guimarães Rosa, 2006). Introdução “Eu desço dessa solidão Espalho coisas sobre Um Chão de Giz Há meros devaneios tolos A me torturar Fotogra as recortadas Em jornais de folhas Amiúde! Eu vou te jogar Num pano de guardar confetes ...” (Zé Ramalho, 1978) Alice no país das maravilhas, Alice no país dos terrores. Alice me diverte colocando purpurina em seus sofrimentos, ou serão melodramas em que “finge sentir que é dor, a dor que deveras sente?” (Pessoa, 1987, p. 98-99). O prazer nos une, assim como os sonhos, os assombros e os objetos culturais (principalmente músicas e a adoração por ídolos da mesma geração). Em um de nossos encontros, me oferta: “Há tantos devaneios tolos a me torturar, amiúde”. Não canta, apenas recita a seu modo, brincando com a letra da canção. Fico encantada – e surpresa – com a adaptação pertinente que Alice fez para contextualizar seu drama, enquanto circulávamos em torno de outros assuntos. Saboreei o eloquente verso recriado, que virou nossa senha de comunicação. Os devaneios tolos poderiam bem ser suas renitentes desconfianças em relação à fidelidade do marido; entretanto, nada foi falado a respeito, nada foi dito. Celebrei Alice e o verso, e nossos nós de ligação se estreitaram. A partir desta breve narrativa de encontro analítico, seguimos o presente artigo propondo uma interlocução com alguns psicanalistas, Thomas Ogden em especial, que vêm discutindo as diferenças entre psicanálise epistemológica e psicanálise ontológica, destacando a importância de a comunicação na sala de análise também abrir campo para a imaginação e o onírico. Os versos, os sonhos e tantos outros assuntos, tolos ou não, compartilhados por Alice com sua analista, continuam aqui a reverberar, em companhia de Mel e Estela, ganhando corpo em nossas palavras por vezes aladas – essas mesmas que, pensamos, devem impregnar os encontros analíticos, amiúde. 1. Narrativas imaginativas e a dimensão criativa do inconsciente Como vimos no episódio que abre este artigo, Alice e sua analista andaram juntas em planícies onde o encontro ocorre em meio à poiesis . Nomeamos esse lugar de encontro de inconscientes, não sistemático, nem reprimido e que funciona em outra lógica. Podemos pensar que, quando tem essa qualidade onírica e de poiesis , a narrativa da dupla analítica possibilita pensar os pensamentos ainda não pensados, os elementos psíquicos em estado bruto, que ainda não encontraram uma mente para serem contidos; ou, em outras palavras, uma outra mente para ‘habitar’. (Ribeiro, 2019, p. 179) A autora segue citando Mia Couto (2012): “O segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades” (p. 101). Conclui destacando a importância de “construirmos uma narrativa inédita e transformadora, sonhando os sonhos ainda não sonhados na sala de análise” (Ribeiro, 2019, p. 179). No lugar da interpretação, que pode nos direcionar a uma prática de decodificação, podemos usar narrativas imaginativas, termo desenvolvido por Grostein (2010), construídas a partir das mentes do analista e do analisando, ou contação de histórias ou ainda o conceito de construções em análise de Freud (1937). Se as narrativas de Grostein (2010) são preponderantemente visuais, podemos pensar nas palavras trocadas entre paciente e analista em sua materialidade e sonoridade – assim como se saboreiam palavras e versos em um poema. No dizer de Chuster, Trachtenberg e Soares (2014), trata-se de “valorizar o potencial da ‘experiência emocional e seus significados’ para o desenvolvimento do pensamento em si” (p. 74), usando, para isso, não apenas interpretações, mas também construções e descrições. Ou seja, independentemente da nomeação que escolhermos, a imaginação5 deverá estar no centro da comunicação, abrindo campo para a complexidade dos processos mentais. Estamos em uma direção ético-técnica que aponta para o interesse genuíno do analista no psiquismo do analisando, de modo a nos apresentarmos como uma presença maleável, o que nos convoca a acionar ou desenvolver certas qualidades. Podemos falar de uma substância-forração intersubjetiva que vai sendo criada entre a dupla, facilitando que, com o passar do tempo, isso propicie confiança no vínculo e advenha um campo de criação entre dois ou o surgimento de palavras aladas – estas isentas de fixidez, humildes, com um tanto de imprecisão e de deslizes, possibilitadoras do contato real e humano na sala de análise. Para Bollas (2013), esse campo de criação é engendrado no que ele denomina inconsciente receptivo ou, em algumas passagens, inconsciente recebido. O autor aponta uma falha na teoria freudiana do inconsciente: “A repressão, uma parte importante do inconsciente, não é de modo algum a parte mais substancial (...). A organização inconsciente é capaz de receber ou reprimir ideias. Eu presto atenção especial, contudo, a sua função receptiva, pois esta não foi conceituada adequadamente” (p. 26-27). Ainda assim, Bollas (2013) localiza nos escritos freudianos referências à condição de o inconsciente do analista receber o inconsciente do analisando, sinalizando a existência de “diferentes formas de pensamento inconsciente”, e acrescenta: “A criatividade inconsciente, de qualquer profundidade, é extremamente complexa” (p. 29). Será da dimensão criativa desse inconsciente receptivo que emergem as trocas entre analista e analisando? Afinal, é quando as palavras guardam certa imprecisão que podem ser geradoras de potência e criatividade, as reticências, o dito e o não-dito. Em torno da imaginação, que, segundo Ogden (2010), é sagrada na sala de análise, histórias vão se tecendo, em um diálogo recíproco analisando-analista, sendo este último o responsável pelo processo. 2. Psicanálise ontológica na perspectiva de Ogden Na verdade, as reflexões acima se inspiram nas proposições de Ogden (2020) no artigo Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?” , em que diferencia psicanálise epistemológica – relacionada ao conhecimento e compreensão, tendo Freud e Klein como principais autores – de psicanálise ontológica, tendo Bion e Winnicott como referências relativas ao ser e tornar-se. Logo no início, destaca que, enquanto para Winnicott a psicanálise deixa de ser centrada no sentido simbólico do brincar e passa para a experiência de brincar, em Bion, a experiência de sonhar, considerada em todas suas formas, sobrepõe-se ao sentido simbólico dos sonhos. A essa altura, deve ter cado claro que temos nos debruçado no campo da psicanálise ontológica. De fato, na psicanálise contemporânea, observamos uma mudança de ênfase em relação à psicanálise epistemológica, a qual busca chegar ao entendimento do mundo interno inconsciente do paciente e de seu relacionamento com o mundo externo de modo a alcançar mudanças psíquicas. Aqui, a interpretação tem importância central a partir do reconhecimento da questão provocadora de angústia. Por sua vez, a psicanálise ontológica propõe que o paciente descubra sentidos de maneira criativa a m de se tornar mais plenamente humano. Ogden (2020) destaca que o texto descreve o que aconteceu em seu próprio pensamento: “o enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais vivas e reais” (p. 24). No entanto, embora nosso artigo enfatize a psicanálise ontológica, é fundamental a advertência de Ogden no sentido da existência de um enriquecimento mútuo entre ambas, que, na verdade, não existem de forma pura na sala de análise. Psicanálise epistemológica e ontológica são vértices oscilantes da experiência clínica – ou seja, não são excludentes e sim suplementares. Assim, a cada momento da sessão, observamos o fenômeno clínico de modo a identificar qual vértice predomina. Na psicanálise ontológica, o horizonte do analista é o campo do tornar-se si mesmo – campo da ontologia. Na psicanálise epistemológica, o vértice do conhecimento de si predomina. Dizendo de outra forma, podemos pensar em uma contínua oscilação entre o conhecer e o ser, no qual o analista, atento ao movimento intersubjetivo do campo analítico, pode tornar figura um dos vértices, com o outro permanecendo como fundo, e vice-versa. Trata-se, portanto, de estados de predominância entre o ontológico e o epistemológico, uma oscilação entre figura e fundo, mas sempre conectados e coexistentes. Bion, autor estudado com profundidade por Ogden, propõe no livro Transformações (1965/2014) uma reflexão sobre a eficácia psicanalítica e não apenas acerca das verdades do conhecimento psicanalítico. Bion (1965/2014) retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise, sustentando que o fenômeno é conhecido, mas a realidade é tornada; sendo assim, a interpretação deve ir além da ampliação do conhecimento que o paciente tem de si mesmo. Em outras palavras, a interpretação precisa favorecer uma transformação no sentido do tornar-se si mesmo, e não apenas no sentido de um conhecimento de si. Nosso artigo segue essa reflexão na qual predomina o vértice ontológico da psicanálise, ou seja, do ser e do tornar-se. Voltando a Ogden, a respeito do título de seu artigo, o autor destaca que a pergunta “O que você quer ser quando crescer?”, dirigida por Winnicott a todos os adolescentes que atendia, era, na verdade, “a pergunta que todos podemos fazer ao longo da vida, desde muito cedo até o momento antes de morrer”, a qual possibilita a abertura de tantas outras: Quem gostaríamos de nos tornar? Que tipo de pessoa gostaríamos de ser? De que maneiras não somos quem somos? O que nos impede de sermos mais como a pessoa que gostaríamos de ser? O que poderíamos fazer para nos tornarmos mais como as pessoas que sentimos ter o potencial e a responsabilidade de ser? São essas as perguntas que trazem os pacientes à análise, mesmo que pensem que seja para alívio dos sintomas. Às vezes, o objetivo do tratamento é conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de fazer essas perguntas para outro no qual seja capaz de fazê-lo. (Ogden, 2020, p. 23-24) Assim, o horizonte da psicanálise ontológica é favorecer o movimento do paciente na direção do tornar-se si mesmo, o que se desenha com Alice – a poesia embalando o encontro analítico e oferecendo à dupla uma comunicação que não se restringia a uma intervenção epistemológica interpretativa, e sim abria espaço para o campo do sensível, proporcionando trocas pré-verbais e processos de transformação psíquica. A comunicação deu-se no entre, na área intermediária, de uma terceiridade emergente no campo do encontro, em que as áreas do brincar se sobrepõem. Como bem diz Winnicott (1971/1975), “a psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas” e, sendo assim, “o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é” (p. 59). Na psicanálise ontológica, ocupamos um lugar de espera; assim, o primeiro movimento explícito (não desconsiderando que, nas entrelinhas do encontro, eram tecidas compreensões em suspensão) viera de Alice. Novamente fazemos uso das palavras de Winnicott (1969/1975): “Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria; hoje posso fruir mais prazer nessa alegria do que costumava com o sentimento de ter sido arguto” (p. 121-122). Foi mesmo com júbilo que o verso-canção de Alice foi acolhido pela analista – dali brincaram, mas não a partir da experiência de buscar autoentendimento e sim do processo de tornar-se mais plenamente humana. Além da alegria experimentada pelas duas, Alice pôde receber reflexivamente o encantamento da analista, como o encantar-se da mãe com as proezas de sua criança. Assim, a experiência foi predominantemente ontológica, envolvendo modos diferentes de ação terapêutica. Acerca desse aspecto, Ogden destaca oferecer um contexto interpessoal que, na relação analítica, leva a ganharem vida formas de experimentar estados de ser antes impensáveis para o paciente. Quando comentávamos a letra da canção Chão de Giz, Alice falou-me de suas fantasias de que seria uma música dedicada a uma “mulher da vida”. Em vez de buscar uma compreensão do conteúdo da comunicação, camos juntas tentando entender o sentido da letra, mais como uma atividade lúdica do que decodi cadora. Até pesquisas no Google zemos e, desse modo, distanciávamo-nos cada vez mais de suas terapias anteriores, nas quais se enredava em ruminações ressentidas sobre o passado com a mãe ou sobre o pai desconhecido – uma clínica do passado com seus riscos de aprisionamentos circulares e claustrofóbicos. Entrávamos no campo do brincar: Alice precisava se apropriar da leveza que eu percebia nela e da alegria de se sentir vista e celebrada; estávamos, portanto, numa dimensão ontológica. Ainda de acordo com Ogden, talvez a maior contribuição para a psicanálise ontológica de Winnicott sejam os conceitos de objetos e fenômenos transicionais: uma área de experimentação, para a qual contribuem tanto a relação interna quanto a externa, que não é para ser disputada; um lugar de repouso para a perpétua tarefa humana de manter ambas separadas, mesmo que interrelacionadas. Para que o bebê ou o analisando adquiram um estado de ser, é necessário um estado de ser correspondente na mãe ou no analista. O lactante cria o que está ao seu redor esperando para ser encontrado – o objeto é criado e encontrado, o que precisa ser aceito como um paradoxo, e não resolvido por um refraseado que, por seu brilhantismo, pareça eliminá-lo (Winnicott, 1963/1982). Esse estado de ser subjaz à experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo. Também podemos pensar que o encontro analítico constitui-se em um lugar de repouso, de aceitação do paradoxo, de experimentação, e que, com essas qualidades, possibilita que tanto paciente quanto analista adquiram um estado de ser . Em diálogo com Winnicott e Bion, Ogden (2020) destaca que: (...) a necessidade humana mais fundamental é ser e tornar-se mais plenamente si mesmo, o que, a meu ver, envolve tornar-se mais presente e vivo para os pensamentos, sentimentos e estados corporais; tornar-se mais capaz de sentir os potenciais criativos e encontrar formas de desenvolvê-los; sentir que se está a propiciar ideias próprias e a exercer sua própria voz; tornar-se uma pessoa maior (talvez mais generosa, compassiva, amorosa ou aberta) ao relacionar-se com os outros; desenvolver mais plenamente um sistema de valores e um conjunto de padrões éticos humanos e justos; e assim por diante. (p. 34) 3. Estilo analítico sob o vértice da psicanálise ontológica: os deslimites da palavra Ogden (2020) fala da necessidade do desenvolvimento de um estilo analítico próprio, de modo a não adotarmos uma técnica herdada de gerações anteriores. Assim, inventamos a psicanálise, para cada um de um jeito, respondendo espontaneamente, ora usando palavras, ora formas não verbais, com a resposta espontânea chegando sob a forma de ação. A palavra ganha asas e simplicidade, sem perder a complexidade, a qual é tecida na sombra, nos veios subterrâneos do entrecruzamento das mentes do analista e do analisando, com o objetivo de auxiliar este último a se tornar o mais plenamente humano e o mais plenamente si mesmo. A partir do texto do autor intitulado How I talk with my patients 6 (2018), que procura lançar luz no uso das palavras, assim como na necessidade de nos calarmos, de modo tal que alcancemos o paciente, lembramos da importância de evitar o “uso da linguagem que convida o paciente a se envolver predominantemente no pensamento do processo secundário consciente, quando dimensões inconscientes do pensamento são o que são solicitadas” (Ogden, 2018, p. 399). Para tanto, ele propõe que utilizemos mais a descrição em oposição à explicação, a m de facilitar o processo analítico. Da mesma forma, a certeza por parte do analista impossibilita tanto o processo analítico quanto o potencial do paciente para o crescimento psíquico. O propósito de nosso artigo consiste, então, em destacar o predomínio, na comunicação analista-analisando, do processo primário e não o aprisionamento no processo secundário: o encontro vai acontecer no campo da experiência, e não no das intelectualizações. Quando nos referimos a um predomínio do processo primário, pensamos na ressonância entre inconscientes: são as palavras aladas, que precisam incluir mal-entendidos, convidando ao surgimento de conjecturas, à humildade frente ao desconhecido da condição humana, como no episódio clínico seguinte, vivido com Mel. Oscilando entre um retraimento opositor e um exibicionismo em que navegávamos por águas rasas, ou ainda, embora raramente, trocando compreensões mais próximas de um incipiente contato verdadeiro, naquele dia em particular, Mel dissera que não queria falar e que estava com sono. Então eu lhe disse: “tudo bem, você pode dormir que eu te acordo quando terminar a sessão”. Ela se deitou e, como estava frio, perguntei à menina desamparada7 se queria que a cobrisse com uma manta que tenho disponível. Ela assentiu com um leve som. Cobri-a e, depois de um tempo, falei algo do tipo “estou aqui... blá- blá-blá”, palavras plasti cadas e inócuas, impessoais e passíveis de serem assim facilmente percebidas por Mel. Com a cabeça coberta, ela emitiu um sonoro: “Psiu!”. Eu disse: “Ok! Desculpe, rompi nosso trato”. Depois de um tempo, ela tirou o rosto para fora da manta e indagou: “Por que nada me motiva?”. A partir dali começamos uma conversa, na qual ela pôde ser mais próxima e verdadeira como poucas vezes tínhamos experimentado. A dimensão ontológica do encontro analítico predominou nesse momento. A forma com que falamos com o paciente ganha prevalência em relação ao que queremos dizer , ressalta Ogden (2018). Assim como o processo primário é inseparável do processo secundário, igualmente estão ligados o que dizer com o como dizer ; entretanto, a ênfase será dada neste último, que o autor nomeia de fora de si do analista, seus mal-entendidos. Ele também enfatiza que, no encontro analítico, descrever a experiência em oposição a explicá-la facilita a aproximação do que ocorre no inconsciente. O pensamento paradoxal de Ogden (2018) continua quando a rma que a “minha própria experiência é incomunicável; a experiência do paciente, inacessível: eu nunca poderei conhecer a experiência do paciente” (p. 400), pois entende que tanto palavras como expressões físicas não dão conta de comunicá-las. Ainda assim, “podemos ser capazes de comunicar alguma coisa parecida com nossas experiências vividas pela re-apresentação da experiência” (Ogden, 2018, p. 400). Isso pode envolver o uso de uma linguagem que é particular para cada um de nós e para o evento emocional que está ocorrendo, por exemplo, por meio de metáfora, ironia, hipérbole, ritmo, rima, sagacidade, gíria, sintaxe e assim por diante, bem como de expressões corporais como mudanças no tom de fala, volume, andamento e qualidade do contato visual. (Ogden, 2018, p. 400) De fato, nesta perspectiva, reconhecemos de imediato algo muito distante de palavras e atos plasti cados, uma multiplicidade de formas e possibilidades de comunicação-palavras e atos com asas, no sentido de trocas na direção da liberdade inconsciente e da ampliação do tornar-se humano. A brecha entre as mentes , como o autor nomeia, ou a divisão entre a subjetividade do paciente e do analista não é para ser superada, pois “é um espaço no qual uma dialética de separação e intimidade pode dar origem à expressão criativa. A oportunidade de imaginar criativamente as experiências do outro não aconteceria se a comunicação individual fosse possível” (Ogden, 2018, p. 400). Outro paradoxo é assinalado: as partes deixadas de fora das comunicações abrem um espaço em que podemos ser capazes de preencher a lacuna entre nós mesmos e os outros. Ogden alerta-nos que, não sendo possível conhecer a experiência de nossos pacientes, tudo vai depender do que está acontecendo naquele momento entre a dupla analítica. Por isso, sugere evitarmos nomear o que eles estão sentindo, limitando-nos a dizer o que estamos pensando: Quando falo com um paciente sobre o que sinto que está acontecendo emocionalmente na sessão, posso dizer algo como: ‘Enquanto você estava falando [ou durante o silêncio], esta sala parecia um lugar muito vazio [ou lugar tranquilo, ou lugar confuso, e assim por diante]’. Em expressando assim, deixo em aberto a questão de quem está sentindo o vazio (ou outros sentimentos). Foi o paciente, ou eu, ou algo que nós dois temos inconscientemente criados juntos? (o ‘campo analítico’ [Civitarese 2008, 2016; Ferro 2005, 2011] ou o ‘terceiro analítico’ [Ogden 1994]). Quase sempre, são todos os três – o paciente e eu como indivíduos separados, e nossas co-criações inconscientes. (Ogden, 2018, p. 401) Fazer perguntas como “Por que você faltou ontem?”, por exemplo, direciona o paciente a conversar de modo super cial, consciente, em termos de causa e efeito, ou seja, de acordo com o processo secundário. Quando se percebe fazendo esse tipo de pergunta, Ogden interroga-se sobre o que pode estar acontecendo em termos inconscientes que pode estar o assustando. A certeza também vai interferir negativamente no processo analítico quando os pais são responsabilizados – tanto pelo paciente quanto pelo analista – pela situação emocional atual do paciente. Embora este possa ter sido gravemente negligenciado, Ogden ressalta a importância de não focarmos o seu adoecimento ligando-o à culpa dos pais. Se assim procedermos, corremos o risco de roubar dele a possibilidade de experimentar a sua vida de modo mais complexo e humano, podendo inclusive incluir uma compreensão do senso de responsabilidade pelo sofrimento vivido na infância. Então, ao invés de pensar em uma técnica derivada de ideias ligadas a escolas particulares do pensamento analítico, ancorada em um sentimento de certeza, Ogden pensa em estilo clínico como uma criação própria, um processo vivo que se origina a partir da experiência e da personalidade do analista. Vamos assim delineando a função vitalizadora do analista baseada em sua pessoalidade, aberta à imprecisão e à incerteza como fonte de criatividade. Em vez de usarmos o termo técnica , pensemos no desenvolvimento de um estilo clínico , como sugere Ogden (2018). Mais uma vez, ressaltamos aqui a simplicidade necessária na comunicação, enraizada em veios ricos de complexidade. Estamos nos referindo a descrições sucintas de estados de sentimentos. No entanto, lançamos um paradoxo: o simples é igualmente prenhe de riqueza e requer trabalho psíquico da dupla, para que, a partir da fala, surjam aberturas para a expansão psíquica, não apenas do paciente, mas também do analista. O erudito pode vir a ertar com a arrogância, que leva à destruição e à ruptura do vínculo. A arrogância impossibilita o encontro. Eis um exemplo de descrição dado por Ogden (2018): se um paciente chega na sessão apavorado, antigamente ele poderia perguntar: “O que te apavora?”. Em uma experiência recente na qual a paciente compartilhou o seu receio de vir vê-lo, ele disse: “Claro que você está” – uma descrição exatamente como ela é, uma forma de acolher suas fantasias em vez de apresentar tranquilização ou razões lógicas próprias do processo secundário. Acolher a densidade da experiência emocional requer que estejamos abertos aos nossos próprios recursos anímicos, uma densidade que vem sob a forma de leveza, palavras com asas. No exemplo acima, os bastidores (o pensamento mais esticado de Ogden, nem por isso dissociado de um anar pela comunicação mútua inconsciente entre paciente e analista), ou seja, o que vem em parênteses (“o que você está sentindo agora parece apenas natural”), ganhou breves palavras de alcance: “Claro que você está”. Entre o desejo de ser compreendido e o desejo de não ser compreendido As palavras dizem e não dizem, os silêncios são espaços vazios ou comunicam eloquência. Assim, habitamos o imponderável – a rmação que talvez melhor explicite o objetivo deste artigo: a comunicação como possibilidade de não-comunicação. Parafraseando o umbigo do sonho, também podemos falar do umbigo da conversa analítica – assim como “a vida é etecétera” (Rosa, 2006, p. 110 ) , da mesma forma são as palavras quando precisamos abdicar do desejo de tudo entender e de conquistar um ilusório controle. Precisamos manter palavras cambiantes, assim como na brincadeira de bambolê: então está lá, rodando com maestria em torno do quadril e, como os bem-vindos mal-entendidos de Ogden (2018), quando cai a grande argola, vamos de novo – esse é o jogo. Foi assim com Estela: entre tristezas, emergem palavras, intrigantes e belas. Ela me relata que, numa aula do curso de psicanálise, a professora falara que o paciente estava esgarçando. Seus olhos brilham enquanto ela faz gestos com as mãos retratando o esgarçar. Estávamos no jogo do bambolê e, surpresa, digo: “ele estava colapsando”. Foi quando meu bambolê caiu. Percebi o escorregão quando realizei que colocava, no jogo, palavras minhas, xas, descoladas da conversa e do que era esgarçar para Estela. Levanto meu bambolê, retorno ao balanceio, dou lugar à fala de minha paciente. Seu esgarçar remetia a quando os tecidos se gastam e, como uma dança com as mãos, ela fala de seu encantamento frente às bras se afastando. Estela transformou o que eu sonhara como catástrofe em algo belo, e eu disse para ela dessa capacidade, lembrando do verso da canção de Caetano e Jorge Mautner: “Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento, Belezas são coisas acesas por dentro”. Esgarçar passou a ser uma palavra da dupla analítica. Gosto de convidar alguns pacientes a saborearem palavras, mas nem todos entram na brincadeira. Estela entra e me ensina, a partir de seu dialeto (é de região distante), como, por exemplo, “vamos falar potocas”. Potocas, aprendo, é jogar conversa fora, jogar palavras ao léu, saborear a leveza. A palavra potoca só entra quando as belezas estão acesas, dia de tristeza não é dia de potoca. Não entendi de todo o seu encantamento pelo esgarçar: ela é arquiteta de formação, e só pude entender o belo na efemeridade – algo entre o velho e o antigo. A paciente me diz que o texto que mais gosta de Freud (1916/2010) é Transitoriedade . Digo apenas que é muito bonito mesmo, e ca um resto de não entendimento. Esse episódio vivido com Estela remete à afirmativa de Ogden de que “nós falamos com um desejo simultâneo de ser compreendido e de ser mal-entendido, e que ouvimos os outros tanto com o desejo de compreender e de não compreender” (2018, p. 412). O desejo de não ser compreendido vai ao encontro da necessidade de manter uma faceta do eu que permanece isolada, como diz Winnicott (1963/1979). É interessante quando Ogden diz que o desejo de ser compreendido carrega um desejo para o fechamento. Por outro lado, o desejo de ser mal compreendido carrega o desejo de sonhar consigo mesmo e não ser visto pelo analista. Não saber muito faz-se necessário na medida em que pretendemos respeitar o desejo de autodescoberta do paciente. Aqui também nos encantamos com o dizer de Ogden (2018): O trabalho de compreensão acarreta o perigo de ‘matar’ uma experiência que estava viva em uma sessão analítica. Uma vez que uma experiência tenha sido ‘compreendida’, ela é morta. Uma vez que uma pessoa é ‘entendida’, não é mais uma pessoa viva, reveladora e misteriosa. (p. 412) Estela e eu camos encantadas com a palavra esgarçamento; entretanto, e paradoxalmente, mal a entendi e, suspensa em meu não compreender tudo, ela se manteve viva e interessante para mim. Contra a interpretação? As vadias palavras “(...) Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, en m, através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites”. (Manoel de Barros, 1985) Iniciamos este artigo buscando outras possibilidades para libertar a interpretação de seu sentido de decodi cação e trazê-la para o campo da vitalização do par analítico. Fomos, assim, passeando por textos e histórias clínicas que alertavam para o risco da proeminência do conteúdo e do processo secundário. A imprecisão e a incerteza instaladas no que várias vezes nomeamos de palavras aladas possibilitam que seja mantido o vivo do fenômeno, com rasgos e deslizes, ou seja, a experiência do encontro analítico. Palavras e silêncios vivi cadores ao liberar as amarras do anseio de tudo saber. Seguimos na direção do que Ogden (2020) denomina psicanálise ontológica, diversa da psicanálise epistemológica, em que a ação terapêutica principal é a interpretação. Já vimos que as duas psicanálises se enriquecem mutuamente – a primeira relativa ao ser e ao tornar-se, a segunda ao entender e ao conhecer. A interpretação não está banida, mas o seu alcance ocorrerá em função de como falar e não do que falar . Já vínhamos com essas questões quando encontramos o capítulo Contra a interpretação (2020) em livro homônimo da ensaísta, crítica de arte, lósofa e ativista Susan Sontag. Embora ela discorra sobre a interpretação da obra de arte, suas re exões vão ao encontro do que aqui pensamos sobre como nos aproximar e pensar a experiência do encontro analítico. Na maior parte do texto, a autora critica a interpretação, mas veremos que também diz que a questão não é que as obras de arte não podem ser interpretadas, mas sim como interpretar . Na direção do que pensamos em psicanálise, critica a ênfase excessiva no conteúdo que provoca a arrogância, ressaltando ser necessário “um vocabulário descritivo e não prescritivo para as formas [de arte]” (2020, p. 21). De modo similar, enfatizamos um enfoque menor no conteúdo e uma atitude humilde. Assim como Sontag defende uma reverência/respeito à obra de arte, igualmente precisamos (fazendo uso de suas palavras) de uma “descrição cuidadosa, aguda, carinhosa” (2020, p. 22 ) do encontro analítico. Se a interpretação é tradução, ela mata a obra de arte, assim como mata o encontro analítico. A autora considera que, em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera, uma forma de rever, de fugir do passado morto, enquanto em outros é reacionária, covarde, asfixiante. Perguntamos: não podemos transpor tais modos diversos de interpretação – um que liberta, outro que aprisiona e as xia – para determinadas intervenções psicanalíticas? De qualquer forma, Sontag (2020) considera que o nosso tempo é predominantemente de uma interpretação reacionária: (...) numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertro a do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo para erguer, edi car um mundo fantasmagórico de ‘signi cados’(...). O mundo, nosso mundo, já está su cientemente exaurido, empobrecido. (...) Chega de imitações, até que voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte. A interpretação torna a obra de arte maleável, dócil. (Sontag, 2020, p. 16). Se associarmos essas ideias à interpretação em psicanálise, podemos reconhecer as intervenções equivocadas que se baseiam em buscas de entendimento via causa e efeito e processo secundário – o predomínio do intelecto como projeto –, assim como, frente à obra de arte, domar, buscar o domínio do encontro, matando a experiência que liga a dupla analítica. No lugar do intelecto, Sontag (2020) convoca o sensorial: “o que importa é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (p. 23). Podemos associar aqui a proposição da autora à psicanálise do sensível: “nossa tarefa é reduzir o conteúdo para ver a coisa em si (...). A função da crítica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que signi ca” (p. 23). Continuamos propensos a alinhar as ideias de Sontag (2020) à dança/enlace da dupla analítica, não através do cognitivo, mas por meio do sensível, movimentos de tentar pegar com as mãos algo cujas partes escapam, os restos, o que não se compreende: “o silêncio nos poemas reafirma a mágica da palavra, escapou da garra brutal da interpretação” (2020, p. 19). Finalizamos com as belas palavras de Clarice Lispector que traduzem o verbo que voa e escapa, as palavras aladas, aquelas que sustentam a experiência viva. A linguagem é o modo de respeito ao indizível, a humildade de se voltar do encontro com as mãos vazias e livres do anseio pela compreensão: A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguia. (Lispector, 1979, p. 172). NOTAS 1 A expressão palavras aladas é encontrada em várias passagens da Odisseia de Homero, livro escrito entre os séculos III e II AC, tendo inúmeras versões publicadas (Homero, 1996). Estamos usando essa expressão no sentido de palavras que anam , delicadas, palavras com asas e que, assim, contêm e revelam a verdade emocional dentro de uma situação analítica intersubjetiva. 2 Pós-doutoranda Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). 3 Prof. Doutora Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). 4 Doutora em Psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2014), docente do Instituto Sedes Sapientiae. 5 A imaginação a que Chuster, Trachtenberg e Soares (2014) se referem é a captação do pensamento onírico da vigília na sessão, por meio de uma reverie ou uma conjectura imaginativa, por exemplo. Importante considerar que, para Bion, sonhar é pensar. 6 Como eu falo com meus pacientes – além do título, todas as citações referentes a esse artigo de Ogden são traduções nossas. 7 Neste momento em que escrevo menina desamparada , veio-me à mente, inesperadamente, o conto de Andersen (2010) intitulado A pequena vendedora de fósforos , que comovia as crianças por seu tom e nal tristes – no apagar do último fósforo, também se apaga a menina. REFERÊNCIAS Andersen, H.C. (2010). A pequena vendedora de fósforos . São Paulo: Zahar. Barros, M. (1985). Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record. Bion, R.W. (2014). Transformations. The complete woks of W.R. Bion . London: Karnac Books. (Original publicado em 1965) Bollas, C. (1992). A celebração do analisando pelo analista. In Forças do destino. psicanálise e idioma humano, (pp. 93-109). Rio de Janeiro: Imago. Bollas, C. (2013). O Momento freudiano. São Paulo: Roca. Chuster, A., Trachtenberg, R. & Soares, G. (2014). W.R. 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- A (in)capacidade de sonhar: a precariedade da rêverie materna na clínica da psicose
Esta é uma resenha do livro Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações de Victor de Jesus Santos Costa, publicado pela Editora Dialética em 2022. A resenha foi publicada em 2023 na Revista USP, na seção Estilos da Clínica , 28(3), 453-456. Autoras: Ana Fátima Aguiar e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro. A leitura de"Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações"avivou em mim o desejo de comunicar e fazer circular as ressonâncias, reflexões e os pensamentos evocados. Como analista e pesquisadora, posso dizer, inicialmente, do meu interesse particular pelo tema do livro, a rêverie, um fenômeno humano complexo, um movimento comunicativo intersubjetivo, que se manifesta a partir de um estado de mente aberto e receptivo. No que se refere às produções psicanalíticas em geral, temos aqui, neste livro, um precioso material, construído a partir de uma pesquisa bibliográfica minuciosa, muito bem fundamentada, de uma densidade teórica impressionante. Neste livro, Victor de Jesus Costa nos presenteia com uma investigação robusta sobre o papel da rêverie materna, apresentando com muita profundidade e competência o conceito em sua origem, ou seja, na perspectiva bioniana, e além disso, nos apresenta as diferentes concepções sobre a capacidade de rêverie do analista e seus aspectos clínicos a partir das formulações de importantes autores, em especial Thomas Ogden, mas também Antonino Ferro, James Grotstein, André Green, Luís Cláudio Figueiredo, Elias da Rocha Barros, entre outros. Embasado nesses autores, Costa desenvolve, com rigor científico e qualidade, as aproximações entre rêverie materna e reverie do analista, sem o intuito de igualar, ou mesmo criar fronteiras rígidas, mas sim, de promover uma maior compreensão sobre cada qual, para que possamos pensar com mais clareza as possíveis conexões entre tais experiências. Além da teoria, encontramos também a experiência clínica do autor com pacientes psicóticos, em um modelo de atendimento institucional que promove uma visão global do paciente, e que torna o material aqui apresentado ainda mais rico e relevante para se pensar a clínica da psicose de uma forma ampla. O que vemos é um trabalho sensível, ético, implicado, inovador por seu caráter multiprofissional que consegue entender o funcionamento psicótico em seus aspectos tanto individuais como sociais (incluindo a família e as instituições). Costa vai nos mostrando como o trabalho clínico com tais pacientes foi gerando nele importantes inquietações... Ele se pergunta por que o desenvolvimento psíquico de um paciente psicótico despertava angústias intensas em algumas mães? Victor se questionava se haveria algo na dinâmica mãe-filho(a) que contribuiria para o surgimento dessas angústias. Suas reflexões partem, portanto, da experiência clínica e se encaminharam para que, aos poucos se transformassem em um objeto de estudo, do qual nasce esta obra, fruto de uma pesquisa na qual observamos uma vasta e cuidadosa investigação teórica e que nos brinda com uma rica articulação com sua clínica. O ponto principal do livro é a relação intersubjetiva entre mãe-filha, as quais Victor nomeou Adelina-Daniela, evidenciando um anagrama que condensa uma de suas hipóteses clínicas. É uma conjunção que diz muito sobre os elementos dessa dinâmica intersubjetiva e que está muito bem explicitada ao longo do texto. Com base na experiência clínica vivenciada com Adelina-Daniela, Vitor procura compreender o papel da rêverie materna (ou a precariedade dela) na relação entre mãe e filho(a) na qual ambos possuem histórico de crises psicóticas. O diálogo entre a teoria e o caso clínico Adelina-Daniela é desenvolvido a cada capítulo, o que favorece ao leitor construir novos pensamentos em relação à clínica da psicose e sobre a relação mãe-filho(a) neste contexto. A leitura do livro “Mulheres que não sonharam” nos envolve e nos mostra os conceitos como o esteio que dá corpo à clínica, enquanto a experiência clínica dá vida ao campo teórico. O caso clínico de Adelina-Daniela aponta para a hipótese central do autor de que os conteúdos não sonhados pelas gerações anteriores podem contribuir para o sofrimento (bem como exigir trabalho psíquico) para a geração atual. É a partir dessa ideia que se seguem as demais reflexões e questionamentos desenvolvidos neste trabalho. O livro se mostra, desse modo, uma importante ferramenta para quem se interessa pelo tema da rêverie, bem como pela clínica da psicose. Mas é indicado também aos psicanalistas em geral que se valem de uma leitura consistente teoricamente, permeada pela sensibilidade clínica, e que aponta novos horizontes para pensarmos a psicanálise na atualidade. [...] Diversos afetos tais como tristeza, solidão, abandono eram quase que inaudíveis em meio ao impressionante e surpreendente “barulho” oriundo da violência presente em suas histórias. Por meio dessa escuta, fruto da suspensão do julgamento de realidade, tornei-me capaz de ouvir uma mulher profundamente entristecida, também uma mulher que carregava muito ódio do mundo e de todos por ter vivido uma vida tão turbulenta e solitária [...] O vínculo que se estabeleceu entre nós, durante boa parte da análise, era caracterizado por me fazer experienciar intensos afetos que, aparentemente, mostravam-se impossíveis de serem vividos por ela. (Costa, 2022, p.98) A partir de sua experiência com mãe e filhos na clínica da psicose, e com base no aprofundamento teórico do qual resultou esse livro, Victor se questiona sobre quais seriam as consequências psíquicas na mente do filho quando a mãe, ao invés de metabolizar os pensamentos perturbadores da criança, projeta nela seus próprios pensamentos. Como toda boa pesquisa, esse trabalho permite que formulações sejam feitas e abre caminhos para pensarmos a importância da criação de novas ferramentas técnicas para o manejo na clínica da psicose. Entendo que um psicanalista é sempre um pesquisador do funcionamento psíquico e suas manifestações. Cito aqui Thomas Ogden (2013), um dos autores privilegiados no livro de Victor Costa, que diz que a psicanálise que deve ser viva e criativa, e nos convida a estarmos abertos ao movimento cambiante da vida para que a análise possa se tornar, tanto para o analisando quanto para o próprio analista, um acontecimento humano. Por meio de uma psicanálise viva e fluida, Ogden nos coloca diante de uma clínica implicada, que se dá a partir de uma presença e de uma escuta receptiva na experiência analítica. É exatamente o que acompanhamos com a leitura do livro de Victor de Jesus Costa. Vemos um trabalho clínico sensível e disponível, que possibilita a abertura para uma escuta atenta e continente de processos psíquicos complexos. Pensar sobre a rêverie na clínica da psicose, tanto no que se refere à relação mãe-bebê, como também na dinâmica analista e analisando, amplia e reforça a compreensão, bem como a relevância das experiências emocionais vividas intersubjetivamente. As reflexões e problematizações teórico-clínicas levantadas por Victor culminaram em uma produção relevante, consistente, que tem muito a contribuir para o avanço do pensamento psicanalítico e para os estudos sobre a intersubjetividade na clínica psicanalítica contemporânea. Separei um pequeno trecho do livro de Costa que gostaria de apresentar aos futuros leitores de “Mulheres que não sonharam”. Nele, Victor discorre sobre os sentimentos vividos na análise de Adelina, relato que nos permite, como leitores, compreender a necessidade de que haja um estado de abertura de mente do analista para ser habitado pela desordem do analisando, disponibilizando-se a receber seus conteúdos hostis e caóticos. Neste pequeno fragmento podemos entrar em contato com as turbulências e percalços que o analista vive com a analisanda, e o quanto a capacidade de rêverie do analista, estado de mente capaz de receber tais conteúdos não representados de seu analisando, tem uma função de extrema importância para que a dupla possa, então, sonhar sonhos que não puderam ser sonhados: [...] me senti puxado para seu mundo interno, um mundo permeado de personagens difusas e hostis. Acredito que essa minha sensação pode apontar um caminho a ser pensado. Esse mundo difuso e hostil sugere a mim que a diferenciação entre o mundo externo e o interno era precária na mente da paciente e associo-o às peripécias trágicas vividas e sofridas por ela. Ao intuir que a história de vida relatada por Adelina era composta por histórias que, de tão absurdas, beiravam à incredulidade, e que contudo, eram ainda, em certa medida, críveis, comecei a deixar em suspenso se tratar-se-iam de dados de realidade, fantasia ou delírio. (Costa, 2022, p.99). Considero o recorte acima citado uma forma de ilustrar a implicação de Costa como analista e a sensibilidade com a qual ele acolhe e dá continência a conteúdos psíquicos tão desprovidos de metabolização e representação. O trabalho teórico-clínico desenvolvido pelo autor aponta para a necessidade de nos abrirmos para uma compreensão da clínica da psicose a partir de uma psicanálise ampliada, que se atenta às questões psíquicas, sociais e institucionais desses pacientes. Desse modo, o livro promove um olhar para o papel das dinâmicas intersubjetivas nos processos de constituição do psiquismo, bem como, para a relevância da intersubjetividade como um elemento central na relação analista-analisando, fundamental para as transformações (de ambos) em análise. Desse lugar implicado, podemos construir, como descrito por Ogden, um pensamento psicanalítico vivo e humano. Referências Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação. São Paulo: Escuta. Ribeiro, M. (2020). The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed. The International Journal of Psychoanalysis, 103 (6), 929-947. Doi: 10.1080/00207578.2022.2084402.
- O gênero do analista: Reflexão necessária?! Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica [1]
Este artigo, de Marina Ribeiro, foi publicado em 2012 no Boletim Formação em Psicanálise , Ano XX, Volume 20, nº 1 (jan/dez 2012). Resumo: O presente artigo faz uma breve reflexão sobre as possíveis ressonâncias psíquicas na situação analítica quanto às identificações masculinas e femininas que constituem o gênero do analista. Para criar “filhos” artísticos ou intelectuais, a pessoa deve assumir seu direito de ser tanto o ventre fértil quanto o pênis fertilizador. J. McDougall, 1997 Gustave Flaubert, ao ser interrogado sobre sua inspiração quanto à famosa personagem — Madame de Bovary — respondeu: Madame de Bovary c´est moi !.[2] Podemos pensar que essa é uma ilustrativa referência à capacidade de identificação de um homem com os desejos femininos, inclusive no que diz respeito aos mais secretos: os sonhos de realização erótica. Será que a capacidade psíquica de Flaubert, de um livre trânsito quanto às suas identificações bissexuais, promoveu o desabrochar da sua realização criativa[3]? Qual o significado disso? Talvez vocês já conheçam a seguinte anedota: Caso um ser de outro planeta desembarcasse na Terra, estranharia o fato de que o ser humano se caracteriza pela existência de dois sexos. Se formos contaminados por essa estranheza, poderíamos pensar que talvez um recém-nascido, encontra-se diante desses angustiantes enigmas: de onde eu vim?, quem sou?, quem são esses – mãe e pai?, qual o relacionamento entre eles?, o que eu tenho, ou não, a ver com isso?. “Questões pré-edípicas e edípicas”, dirão alguns psicanalistas; outros dirão, simplesmente, questões edípicas, já que estamos humanamente mergulhados nesta trama, ou lama, desde o início — somos feitos desse barro. É, relativamente, cotidiano aos analistas algumas destas falas: - É estranho falar sobre esse assunto (sexualidade) com uma analista, talvez com um homem seja mais fácil. - Eu queria uma mulher como analista; acho que elas são mais compreensivas. - Quero a indicação de um homem analista, pois ele precisa de uma referência masculina. - Jamais faria uma análise com uma mulher, as mulheres não são confiáveis por princípio. - Já fiz alguns anos de análise com um homem, agora quero uma analista mulher. - Para mim, tanto faz, pode ser homem ou mulher. - Não quero uma mulher analista, tenho medo de me apaixonar. Outras tantas poderiam ser acrescidas a essas; e cada comentário revela a especificidade da situação. Contudo, para além do que é próprio a cada dupla analítica, podemos pensar com Jacques André (1996, p. 11): A dimensão psicossexual da sexualidade humana, a bissexualidade psíquica, a plurivocidade das identificações, tudo isso constitui, ao mesmo tempo, as descobertas da psicanálise e as condições de possibilidade de seu exercício. É isso que permite a um homem ser psicanalista de uma mulher (e vice-versa)”. Ou seja, “... o jogo das identificações libera da atribuição anatômica, mas não torna assexuado.” Considerando que o analista não é um ser assexuado, nem tão pouco um ser aprisionado a um sexo biológico; coloco a questão a ser pensada aqui, da seguinte forma: como o analista compõe em si mesmo suas identificações femininas e masculinas – sua bissexualidade psíquica; e de que forma essa composição está presente de maneira criativa (lembrar aqui a referência a Flaubert) no campo analítico? O objeto de reflexão é a dupla analista-analisando e sua trama identificatória da feminilidade e da masculinidade, multiplamente vetorizada dentro do espaço analítico. Explico. Parto da revolução que Bion provocou no establishment psicanalítico: de que o funcionamento mental do analista na sessão tem a mesma importância e peso que o funcionamento mental do paciente. Sendo assim, a trama identificatória, no sentido de como o analista compõe sua identidade sexual em seus aspectos femininos e masculinos, está presente no espaço analítico. A situação analítica — confessemos! — é de extrema intimidade psíquica. O setting proporciona essa estranha, interessante e bela conversa, como escreve Meltzer (1995) e, também, protege tanto o analista, quanto o analisando, assim como viabiliza e favorece contornos para que a análise aconteça. Thomaz Ogden (2010) escreve que a grande invenção de Freud foi a de conceber uma maneira inédita de relacionamento entre duas pessoas. No entanto, nossas teorias, muitas vezes, podem ter a função da roupa magnífica e invisível do Rei, que diante do olhar do infantil revela toda a sua verdade: o Rei está nu! Despidos de teorias, podemos, assim penso, ter uma experiência emocional transformadora: a verdade é o alimento da mente, nos diz Bion. E fora do setting, parcialmente apartados das intensidades pulsionais da dupla analista-analisando, podemos teorizar com os fios invisíveis dos conceitos. O necessário trabalho de elaboração teórica do analista acontece fora da sala de análise. Guignard (2001 apud Antonino Ferro, 2005, p. 15) escreve sobre essa intimidade analítica: De fato, nenhum psicanalista, mesmo que se esforce para diferenciar o que pertence a ele e o que pertence ao paciente, poderá impedir aos objetos psíquicos da dupla corrente trânsfero-contratransferencial de circular de forma pouco reconhecível no campo ‘quântico’ do espaço analítico, segundo as múltiplas valências das pulsões do Eu dos dois protagonistas. Tendo em vista essa extrema implicação do trabalho analítico, nada do que diz respeito à constituição psíquica do analista está fora do campo de reflexão. Posto isso, vou tecer conceitualmente o que se propõe aqui, dentro da brevidade deste artigo. Tenho como convidado especial o conceito de bissexualidade psíquica. O termo bissexualidade foi sugerido a Freud por Wilhelm Fliess; há vários comentários esparsos ao longo da obra. Em 1923, em O ego e o id, ao discutir as identificações com os pais e o complexo de Édipo, Freud escreve: A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo (...) Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. (FREUD, 1923/1980, p. 46). Apenas em 1938, Esboço de Psicanálise, Freud usa o termo bissexualidade psicológica e não mais bissexualidade constitucional. A bissexualidade, compreendida como identificação – primária e secundária – com os aspectos masculinos e femininos dos pais, é indissociável da constelação edípica e de suas múltiplas vetorizações homo e heterossexuais. No que diz respeito à temática — masculinidade e feminilidade — Freud (1925/1980, p. 320) escreve: ... todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. Estamos sempre diante de uma composição única e intrincada entre masculinidade e feminilidade, obra da singularidade da história individual e suas articulações inéditas e contínuas. Masculinidade e feminilidade são construídas ao longo do desenvolvimento a partir de uma rede complexa de influências identificatórias, na qual os pais têm uma influência significativa, como descreve McDougall (1999, p.15): Acrescento que podemos seguramente propor que a realização destas duas identidades fundamentais – por exemplo, nossa identidade de gênero, assim como nosso senso de identidade sexual – não são de forma alguma transmitidas por herança hereditária, mas pelas representações psíquicas transmitidas, em primeiro lugar, pelo discurso de nossos pais, juntamente com a importante transmissão proveniente do inconsciente biparental – ao qual, mais tarde, é adicionado o input do discurso sociocultural do qual os pais são uma emanação. A trama identificatória – masculinidade e feminilidade – constituída na vida adulta é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, que demanda muitos anos. Há um longo percurso para se tornar um ser capaz de realização sexual genital. Caminho próprio a cada um e extremamente plástico. Compreendo que realização sexual genital é, também, uma boa metáfora para toda e qualquer realização criativa e transformadora. Desejamos ter tanto a potência feminina da mãe, como a potência masculina do pai, sendo que essa composição não reconhece, até certo ponto, limites anatômicos, ou seja, anatomia não é destino, mas, convenhamos, faz história. Explico: a conformação corporal e a especificamente dos órgãos sexuais induzem fantasias. Green (1991, p. 103) escreve sobre essa questão: Contesta-se muito, atualmente, a paráfrase de Napoleão utilizada por Freud: ‘a anatomia é o destino’, insistindo-se com toda razão sobre o papel das fantasias que têm o poder de se libertar das formas anatômicas para atingir o gozo. Mas não podemos esquecer, também, que a forma e a configuração do corpo, assim como a conformação dos órgãos sexuais, induzem fantasias. Viu-se raramente a metáfora do pênis evocar o vaso ou o recipiente e a da vagina encontrar na espada ou na faca uma comparação que se bastasse a si mesma. É nesse sentido – anatomia faz história e induz fantasias – que parece ser significativo considerar as díades analíticas possíveis, com suas múltiplas identificações homossexuais e heterossexuais, vetorizadas no espaço analítico. O inconsciente biparental – pai e mãe – é uma complexa rede de identificações bissexuais, femininas e masculinas. Contudo, é preciso destacar que a feminilidade tem um estatuto primário. Homens e mulheres , nascemos de mulheres: somos, antes de tudo, filhos de nossa mãe, escreve Chasseguet-Smirgel (1988). A sedução materna é constitutiva do humano psicossexual. Essas idéias já estão presentes nos textos freudianos: a mãe é a primeira sedutora (FREUD, 1938/1980); é o primeiro objeto sexual para os dois sexos (FREUD, 1905/1980); é quem libidiniza o bebê e marca no corpo (do bebê) uma geografia de prazer e desprazer: zonas erógenas, corpo erógeno. Freud (1938/1980) em Esboço de Psicanálise sustenta que: ...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores — para ambos os sexos. (FREUD, 1938/1980, p. 217) O prazer da mãe com o corpo de seu bebê é uma cena partilhada familiarmente e, também, publicamente[4]. Porém, há um recalque quanto ao caráter sensual dessa intensa paixão entre a mãe e seu bebê. A dupla alteridade — da mãe e do inconsciente da mãe - parece dar o peso do traumático na inserção do bebê no mundo adulto sensualizado. McDougall (1999) diz que a sexualidade humana é inerentemente traumática. Descreve três traumas universais, que são verdadeiras feridas narcísicas da humanidade: a alteridade, contraponto da onipotência; a monossexualidade, contraponto da bissexualidade; a inevitabilidade da morte, contraponto da imortalidade. McDougall (1999, p. 16) escreve: Alguns indivíduos nunca resolvem nenhum desses traumas universais e, em alguma medida, todos nós os negamos nos mais profundos recessos de nossas mentes, lá onde temos a liberdade de sermos onipotentes, bissexuais e imortais. Expressando de outra maneira, estamos em uma constante, e muitas vezes dolorosa, negociação com as diferenças: a diferença em relação ao outro, a diferença dos sexos e a diferença das gerações. A constelação identificatória bissexual de um adulto é decorrente do infindo trabalho de elaboração dessas diferenças, ou seja, do complexo de Édipo — desse barro de que somos feitos e de que sempre seremos constituídos. Nesse sentido, a bissexualidade psíquica é tributária das diferenças. Exemplifico: há no encontro criativo e transformador entre analista e analisando um trânsito com suficiente fluidez entre identificações femininas e masculinas, que sempre tem como norte o luto pelas diferenças e o reconhecimento da monossexualidade. Nascemos precocemente em uma “situação edípica”, como escreveu Klein (1928), e nunca deixamos de estar implicados nesse território tão característico do humano. A capacidade psíquica de reconhecimento da diferença dos sexos e das gerações é fruto da sofisticada elaboração depressiva do complexo de Édipo[5]. Mãe e pai serão sempre os dois grandes carvalhos do nosso jardim[6]; referência identificatória primordial quer nos tornemos herdeiro ou não, nessa inescapável partilha. Godfrind (1997), psicanalista belga, tem um artigo com o sugestivo título: A bissexualidade psíquica: Guerra e paz dos sexos. Comenta a importância de o analista ter um trânsito psíquico suficientemente lúcido com sua própria bissexualidade. Isso contribui para que o analista possa acompanhar seus pacientes na descoberta e integração de suas próprias contradições internas, em proveito de uma afirmação identitária sexual, dentro do pleno reconhecimento do outro sexo, não pelo combate ou pelo denegrimento, mas por viver com o outro sexo uma relação sexual construtiva e harmoniosa. No entanto, mesmo em uma situação de paz, resta o risco da guerra – o nosso desejo infantil e narcísico de ser homem e mulher; pai e mãe. Eis o que diz Ogden (1992, p. 115)[7] sobre as identificações bissexuais: Quando se tem que fazer uma eleição entre a mãe e o pai (entre masculinidade e feminilidade) não se chega a ser nem masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925, 1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos. Resta-nos somente nascer psicossexualmente, embalados por um movimento que tenda ao favorável – à paz, à confiança, à criatividade – quanto às identificações bissexuais do inconsciente parental – berço psíquico que nos recepciona. E claro, ser criativo, na medida do que é alcançável psiquicamente a cada um, ao se tornar herdeiro dessas identificações. Estamos sempre em uma negociação que implica constantes e contínuos lutos com o infantil em nós. Negociação, essa, partilhada pelo analista e pelo analisando, de maneira assimétrica – ao menos assim desejamos e pretendemos que seja. A transformação emocional na sala de análise é de ambos. A criatividade é da díade. Caso não aconteça dessa maneira, não podemos considerar como uma transformação verdadeira para a especificidade da dupla em questão. Provavelmente, ao escrever Madame de Bovary, Flaubert mergulhou em suas identificações femininas e emergiu dessa criativa imersão livre e integrado o suficiente na sua bissexualidade psíquica para responder: Madame de Bovary, sou eu. Um analista passa ao largo dessa questão? Pouco provável NOTAS 1 Esse texto é uma versão modificada de uma apresentação oral feita no Instituto Sedes Sapientiae em 2008. O conteúdo aqui expresso também faz parte da minha tese de doutorado, publicada em 2011: De mãe em filhas. A transmissão da feminilidade. Ed. Escuta, 2011 2 A história de Bovary foi sendo publicada em capítulos até ser lançada em livro em 1857. O escândalo levou Gustave Flaubert (1821-1880) às barras do tribunal, acusado de ofensa à moral e à religião. Um dos juízes lhe perguntou quem era, afinal, essa tal de Madame de Bovary, e Flaubert deveria agradecer a pergunta pois lhe deu a deixa para uma das respostas mais famosas da história das ideias – “Madame de Bovary c´est moi”, disse. Assumindo que era, ele próprio, o responsável pela persona de uma das mais famosas adúlteras da literatura, Flaubert defendia a autonomia e universalidade da criação artística. Madame de Bovary era ele, era o leitor, éramos todos nós, e o magistrado inclusive (O Estado de S. Paulo, domingo 08 de junho de 2008, D3). 3 McDougall (1998, p. 247) diz: ...a necessidade de o escritor ser capaz de se identificar profundamente com personagens de ambos os sexos, foi imortalizado por Flaubert, que, perguntado sobre a origem de sua inspiração, ao escrever Madame Bovary, respondeu: ‘Madame Bovary, c´est moi!’. A recusa inconsciente de perceber e explorar a capacidade que todos temos para identificações ambissexuais pode desenvolver o risco de produzir bloqueio no escritor. 4 A publicidade utiliza-se das intensas sensações evocadas por esta cena. 5 SEGAL (1992, p. 8) escreve: ...algumas idéias centrais vislumbradas por Klein, tais como a ligação entre a posição depressiva e o complexo de Édipo, e, naquele contexto, a importância central da aceitação final de um casal parental genital criador e a diferenciação entre as duas gerações e os dois sexos. 6 Faço uma analogia com o título do livro, As duas árvores do jardim, de CHASSEGUET-SMIRGEL (1986). 7 Tradução livre. 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- Browsing Infinity: Devitalized States and the Use of Digital Technologies
Authors: Marina José Abud da Silva ; Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Translation done by Eduardo Jefferson de Oliveira, cmo.edu@gmail.com Abstract: The advent of the Internet, the digitization of reality, and the incorporation of digital devices into our daily lives have proven to be extremely relevant phenomena for understanding contemporary forms of subjectivation. Psychoanalysis, by privileging a gaze on unconscious manifestations and on the constitution of the psyche, has much to contribute to this debate. In this paper, we will use André Green's psychoanalytic theoretical contributions on the clinic of emptiness as our theoretical basis, reflecting on the concepts of negative work and double-bind. Through this author, we aim to relate devitalized states to digital hyperconnectivity, using clinical vignettes to illustrate this connection. Finally, we aim to contribute to the debate on the psychic effects arising from the unrestrained use of digital devices, in order to highlight the complexity of the issue, acknowledging that we are simultaneously creators and creatures of virtuality. Keywords: virtuality, contemporaneity, clinic of emptiness, negative work, double-limit, devitalization. Introduction It is well-known that communication has been a human necessity since the dawn of our species. Interestingly, the first mention of this term in Freud's work occurred in “Project for a Scientific Psychology” (1895[1950]/1996), in which Sigmund Freud discusses the communication of the initial helplessness experienced by the infant. On this occasion, he addresses the importance of the infant being able to communicate states of longing and distress to those who perform the function of caregiving, thus favoring a process of identification between mother and baby. Therefore, for Freud, communication lies at the origin of human psychic constitution. However, the advent of the Internet and social networks has represented an accelerated modification in communicative processes - a paradigm shift in the contact between the subject and the world. The emergence of the Internet as we know it today was conceived in the 1960s in the United States, under the name ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network). It was designed with the aim of establishing secret military communication for security and defense purposes during the Cold War, in which a technological race between the two conglomerates of countries was drawn, driving global scientific development. Gradually, ARPANET left the state sphere and entered more deeply into the academic sphere, with the first official email communication taking place in 1969 between two researchers from different American universities. However, for almost two decades, only scientific means had access to the network, and it was only in 1987 that commercial use was permitted. In 1991, the World Wide Web (WWW) emerged, expanding the boundaries previously imposed by simple message or file exchanges. With the WWW, a standard language for data circulation and traffic on the network was established, inaugurating the creation of a true virtual world. Since then, the internet has entered the daily lives of our society, with the promise of a free, connected, and egalitarian world - at least in the virtual realm. The author and sociologist Manuel Castells, in his book “The Internet Galaxy: Reflections on the Internet, Business, and Society” from 2003, points out that in the 1990s the Internet emerged as a flexible and decentralized communication system, initially based on values of freedom, solidarity, and cooperation. However, these ideals changed with the entry of hackers and programmers. And the internet culture has only become increasingly complex. Castells [1] (2003) recognizes the revolutionary nature of the Internet: he compares it to the social impact caused by the invention of electricity. He refers to what we currently experience as the “Network Society”, describing this space of synchronous and real-time interactions at a distance. The author reflects on virtual relationships, pointing to the possibility of creating different online identities based on individual fantasies. However, he considers that experiences in the virtual field are not so different from real life: “It is an extension of life as it is, in all its dimensions and under all its modalities” (p.100). Thus, it is clear how the Internet is a phenomenon of our time. It affects culture, art, sciences, business, among many fields that must be studied by their respective areas of knowledge. Here, we propose to contribute to psychoanalysis by reflecting on the psychic effects in the different uses of digital technologies. It is interesting to note how the conception regarding the impact of technology has been evolving over the decades in the scientific realm. In the early 2000s, the connection between different people facilitated by digital means was seen as a sign of progress and hope - we perceived an infinite field of new possibilities to be with others. And it is undeniable that virtual connections have enabled the crossing of previously unimaginable boundaries. Just to give an example, today, as analysts, we attend to people who are thousands of miles away from us, and this distance does not prevent the construction of truly deep analytical work. Nevertheless, it is noticeable that different contemporary thinkers have been complicating their understandings of these digital conveniences, integrating various dimensions of the impact of virtual media on the human psyche. To illustrate, we can follow the work of psychologist and researcher at the Massachusetts Institute of Technology (MIT), Sherry Turkle, one of the prominent figures in the study of human-technology relationships today. In the 1990s, she wrote with optimism and enthusiasm: Computer screens are the new location for our fantasies, both erotic and intellectual. We are using life on computer screens to become comfortable with new ways of thinking about evolution, relationships, sexuality, politics, and identity (Turkle, 1995, p. 26). However, over the course of 20 years, new understandings became possible, and in 2011, Sherry Turkle already addressed the subject with much more caution and concern: “We are confused about intimacy and loneliness” [2] . In her new work “Alone Together – Why We Expect More From Technology and Less From Each Other”, the author interviewed 450 participants and concluded that the use of technology affects our contact with others, diminishing the quality of interactions and the depth of human bonds. On one hand, physical boundaries have been practically overcome with digital technologies. On the other hand, the culture of hyperconnectivity seems to produce more individualized, lonely subjects with difficulties in the intersubjective field. The term "hyperconnectivity" first appears in Castells' trilogy, specifically in the first volume titled "The Network Society" (1999). In this work, Castells explores the transformation of contemporary society due to the rise of information and communication technologies, emphasizing the role of hyperconnectivity as one of the main aspects of this transformation. He defines hyperconnectivity as the intensive interconnection between individuals, organizations, and technological devices, exploring the profound transformations it produces in different social and cultural structures. Specifically, when addressing hyperconnectivity between individuals and technology, it refers to a psychological availability in which the individual's mind remains in a state of constant openness to digital communications. Additionally, the Brazilian journal of psychoanalysis released the volume "Hyperconnectivity and Exhaustion" [3] compiling psychoanalytic articles that relate the phenomenon of hyperconnectivity to contemporary forms of subjectivity. In the invitation letter signed by the editors of this journal, the following question is posed, which is considered highly relevant to current psychoanalysts: On the side of hyperconnectivity, we have a whole range of phenomena: the infiltration of the virtual, the blurring of public-private boundaries, new forms of romantic relationships and work, which hinder movements of enjoyment, withdrawal, and contemplation. On the other hand, the psychic and social effects of exhaustion and the impossibility of finding a state of rest. In what ways are relationships, formations, and psyche altered by this new reality? What intrapsychic and intersubjective impacts can be considered in the subjective production of our time? (p. 20). [4] As is traditional in psychoanalytic research, what instigates theoretical investigation is clinical practice. And with studies on virtuality and human relations, it could not be different. Increasingly, patients bring to the consulting room their virtual conversations and all the codes specific to this medium: they talk about the use of apps for every task, complain about the psychological suffering arising from excessive exposure to digital devices, and arrive at insights from content on social networks. In this sense, we cannot ignore the particularities of the virtual phenomenon in the psychic life of the subject, according to Castells (2003): If you don't care about networks, networks will still care about you. For as long as you want to live in society, in this time and this place, you'll have to deal with the networked society. Because we live in the Internet Galaxy (p. 230). However, what prevails socially is a tendency to underestimate the effects of digital technologies on our psyche. Over the past 20 years, we have entered a new grammar in terms of symbols and representations. Leite (2022) asserts that we have shifted from a traditional-analog to a contemporary-digital register, which directly affects the analytic field. In this sense, it is crucial to reflect on these new effects without denying or naturalizing them. What is undeniable is that this is an object of study in which we, analysts, are also deeply immersed. It is not something we observe only in our analysands during sessions, from a certain comfortable distance. On the contrary, we also live and suffer the effects of this new grammar in our daily lives - which can make it even more difficult to identify the main issues. The therapy room itself has been taken over by digital technologies, and those who did not allow them in were out of step with external reality. Today, most of us schedule psychoanalysis sessions via digital apps. With the COVID-19 pandemic, those who did not adapt to online therapy struggled to maintain their analytic processes. Kowacs (2018), in her article “Electronically Mediated Projective Identification: The Analyst and the Virtual Dialect”, discusses the presence of electronic devices in the post-digital setting and their impact on the analytic field, exploring the communicative quality in the use of these devices, treating them as a digital dialect to be decoded and incorporated by contemporary psychoanalysts. In this work, she revisits the idea that man creates the tool, and in turn, it recreates him - something already observed philosophically but which has been corroborated by neuroscience in studies correlating brain plasticity and the impacts of technology on brain functioning (McLuhan; Hallet & Small et al., cited in Kowacs, 2018). In turn, Pitliuk (2020), in the article " Sustaining an online psychoanalytic work?" [5] , discusses her experiences and reflections on the practice of remote analysis, emphasizing the importance of symbolic connection in the online therapeutic relationship. The author highlights the complexity of remote analyses, offering a counterpoint to simplistic views that suggest an exclusion of emotions and the body in this context. Regarding the setting, the author discusses how the elements of the environment provided by the analyst are used by the patient according to their possibilities of subjective accommodation, which in turn depend on their unique processes of subjectivation and the unfolding of the ongoing analytic process. In this sense, both concrete elements such as the waiting room, the couch, and the internet signal can serve as subjective accommodations, as well as subjective elements such as the analyst's gaze, face, and gestures. Therefore, the elements of remote analysis may or may not be sufficient for this sustenance, depending on how the patient can utilize this environment. Thus, it is evident that technologies permeate our daily lives, and it does not seem that they will go away anytime soon, especially considering the undeniable benefits and conveniences they produce. Our reflection here aims to identify the complexity and psychic resonances of digital technologies in the psychic constitution of the contemporary subject, specifically within the analytic field. However, it is essential to bear in mind that today the digital medium has become a vast and billionaire business in the capitalist world. Psychoanalyst and psychiatrist Pedro Leite made an important contribution in this regard in his work “Discontent in the Digital Civilization” [6] (2022), in which he articulates the billionaire business of big tech companies (the largest global technology companies) with the effects on the psychic life of the contemporary subject. To give an idea, in 2020, during the COVID-19 pandemic, the so-called big tech companies quartet - the four leading global technology companies: Amazon, Apple, Google, and Microsoft - had record revenues. At the time, it was estimated that these companies were worth about $7.14 trillion, approximately one-third of the entire GDP of the United States. In other words, we are talking about a gigantic economic business. Leite (2020) states: I intend to discuss further the promotion of psychic death by certain types of technology and capital that seek to engage their users for hours on end in online life, no matter the cost. For now, I believe it is sufficient to indicate that there is an economic logic and another of application design that seems to encourage 'TikTok depression.' From the standpoint of such cultural pressures on the subject, it really does not matter where their soul is, as long as we continue to open the smartphone, scroll through the content feed, produce all kinds of information that feed their algorithms, and consume the proposed products... (p. 74). [7 ] Indeed, one cannot forget that different digital interfaces have been designed with a significant economic-capitalist interest in mind. The construction of the entire digital apparatus behind what we see on screens is meticulously orchestrated by leading professionals in the fields of engineering, marketing, IT, and even psychology, to produce increasingly intelligent and precise algorithms with one goal: to keep us in front of screens for as long as possible. One of the prominent figures in Silicon Valley, data scientist and technology ethics expert Tristan Harris, resigned from Google due to objections regarding the practices he observed in his work. In 2020, he created the documentary “The Social Dilemma”, in which he exposes his profound understanding of the mechanisms employed by big tech companies to keep users connected virtually, influence their opinions and consumption decisions, and even manipulate election results. The documentary presents emblematic statements that provoke reflection: "We are the most valuable product of social networks", "Technology is dividing us into bubbles of reality", and also "The goal is to keep you engaged as much as possible" (The Social Dilemma, 2020) [8] . In a lecture from 2017, Harris makes the following statement: Because it (technology) is not evolving randomly. There's a hidden goal driving the direction of all of the technology we make, and that goal is the race for our attention. Because every news site, TED, elections, politicians, games, even meditation apps have to compete for one thing, which is our attention. [9] And the more attention we allocate to navigating digital platforms, the more we feed algorithms with information about who we are. The strategy is to keep the user active in front of screens for as long as possible, in order to obtain the most data about that individual. With a wide range of information, it's possible to present increasingly specific content tailored to the user's interests – which can lead to numerous consequences, from inducing the purchase of a product to influencing an opinion. If exposure to digital content has had such a profound impact on the thought processes of contemporary subjects, it becomes crucial to consider the psychological effects of interacting with these technologies in an analytical process. In this regard, Kellermann (2023) in "Between Like and Burnout – Psychoanalytic Reflections" [10] asserts: it's possible to consider that no contemporary subject with internet access, especially digital natives, can exclude themselves from this hyperconnected matrix. It would be difficult to understand a 14-year-old patient who spends twelve hours on TikTok without considering that this individual is acting according to a particular logic that encompasses them. An economic logic that thrives on screen time and deploys significant financial resources to achieve this goal, and configured in this way, it will create psychological distress inherent to its fabric, altering the economy of attention. (p. 117). [11] Thus, the present study aims to embrace the complexity of digital technology use in the contemporary world, as there are multiple facets to this phenomenon, and adopting an idealized or demonized perspective would overly simplify the issue. On one hand, it is essential to acknowledge the communicative expansion that digital technologies afford us. When used appropriately, they enable people to connect across long distances, facilitate social and political movements, provide much faster and more equitable access to information, and as far as we, psychoanalysts, are concerned, they enable the sustenance of analytic processes that would not be feasible otherwise. On the other hand, virtual hyperconnectivity can also lead to harmful consequences for our modes of bonding and the functioning of our psychic apparatus. These specificities in the use of digital technologies are not random; they are closely related to paradigmatic cases in contemporary clinical practice. In other words, our relationship with the digital illustrates the psychic processes characteristic of the subject of our time. As a social tool created by us, the internet reflects who we are but also participates in the construction of our subjectivities. Therefore, the aim of this article is to investigate the complexity of the virtuality phenomenon, seeking to understand the psychic effects of digital technologies on the contemporary subject. To do so, we will provide clinical vignettes that illustrate how virtual hyperconnectivity relates to experiences of emptiness, apathy, boredom, and hopelessness, correlating them with the contributions of author André Green regarding paradigmatic cases in contemporary clinical practice. Endless Browsing: Empty Connections It is essential to establish as a starting point that human psychic constitution and, therefore, our specific ways of suffering are not merely solutions of individual unconscious life. Indeed, they are deeply contaminated by the cultural broth of each society. Psychoanalysis, in its early days, arose from Freud's discomfort and curiosity in the face of hysterical symptoms. The psychic suffering he observed was closely linked to the social characteristics of the early 20th century. At that historical moment, rigid moral conduct prevailed, leading to a strong repression of sexuality (Freud, 1905/1969). Since then, psychoanalysis has sought to understand the different psychic manifestations that emerge (and urge) in clinical practice. An attentive and active analyst in contemporary times notices that feelings of guilt, self-recriminations, and anxiety attacks—typical of classical neuroses—are giving way to the increasing emergence of new modalities of psychic suffering. What we observe is a growing number of cases characterized by significant emotional disconnection and devitalization: patients who experience a profound sense of existential emptiness, deep boredom, and constant apathy. To illustrate what I intend to address here, I bring the account of my clinical experience with the analysand Venâncio. He arrives for the initial sessions always apathetic, saddened, depressed. I know he addresses his words to me, but I feel his distant gaze, as if he were facing the anguish of emptiness head-on. And emptiness is also present in the content of the sessions: it seems difficult for him to speak—and impossible to associate freely. What predominates is a sequence of complaints about his constant, unjustified pain, as he claims he “had no reason to suffer.” Gradually, I realize how lonely his life is. We met in 2020, during the COVID-19 pandemic, which spread worldwide, causing fear and isolation. The sessions take place online, and even virtually, I feel I am the most significant presence in his life at that moment. Through projective identification, I am placed to face with him the anguish of emptiness. He tells me about another presence that dominates his days: the use of digital applications. He talks about the times he orders food on iFood [12] , shopping on Rappi [13] , flirting on Instagram. But none of this seems to evoke a real feeling; they are used frantically in search of something that is never found. And the emptiness returns once again. The image of a hypermarket comes to my mind. The light is white, cold, and the environment is sterilized—clean and sterile. I notice Venâncio looking at a gigantic shelf, with infinite products in every direction; he acts as if he were choosing a new fabric softener, but the surprise is that, in fact, all the packages are the same: there is no choice to be made. This image triggers thoughts about Venâncio's experience with various applications—each for a different dimension of his being. For eating: iFood; for shopping: Amazon; for dating: Tinder; for making friends: Facebook... but in the end, all the thousands of options on each of these sites offered nothing truly new. The experience of hyperconnectivity today presents itself as a unique response to any demand: it is no longer necessary to search the world for something that corresponds to our desires; the smartphone promises that you will find everything you need in the palm of your hand. For Venâncio, there was nothing there to capture him: it was like choosing between millions of identical fabric softeners. It is also interesting to note the specificity of the fabric softener object in my mental image, namely, a cleaning product whose purpose is to soften fabrics, eliminating any sensation of roughness or coarseness. This function seems similar to that promoted by the experience of virtuality: therein, we do not need to come into contact with the strangeness provoked by otherness. Every app design is created so that we can have a pleasantly smooth experience: the colors, the shapes, the language... everything is designed to generate the maximum predictability, constancy, and permanence for the user. Moreover, the algorithm ensures that we come into contact only with what engages us, that is, with what resembles our inner world, eliminating any roughness that a different other may provoke. In the field of digital applications, it is as if everything has been given a great fabric softener wash. The sudden appearance of the hypermarket image in my mind can be designated as a reverie . Reverie is a concept developed by Wilfred Bion that stems from an attempt by the author to expand Freud's theory of dreams. In his work “Learning from Experience” (1962), Bion presents it as a receptive state of mind of the mother, capable of containing elements not psychically represented by the baby, enabling the dreaming of experience and, consequently, the construction of meanings. This same process can occur in the analytic relationship when an image erupts into the analyst's mind during the session, indicating unconscious communication between the pair. Thus, the reverie in a session with Venâncio signifies the opening of a field and of hope amidst so much emptiness experienced during the sessions. If dreaming is still possible, perhaps we are not lost. The sense of emptiness that predominates in Venâncio's analytic process harks back to Green's contributions regarding devitalized states, the negative, and the death drive and its deobjectifying function. Here, we aim to weave these concepts into the clinical case at hand. The initial description of the vignette brings to mind what Green termed the clinic of emptiness, or the clinic of the negative. In it, the analyst and the analysand are enveloped in a terrifying atmosphere, in which both are confronted with the profound sense of meaninglessness in being alive. In these cases, a feeling of powerlessness prevails, as there is a sense that nothing will be able to revitalize that psyche again: it is as if the pair were shipwrecked at sea, with nowhere to place their feet, without sight of any solid ground, without boundaries, and thus, in complete abandonment. The analyst relying on free association may feel without resources to analyze, as the scant verbal contents are disjointed and interspersed with extensive silent pauses, which bear within them the representation of the psychic hole experienced by the analysand. In this regard, Green (1980/2001) asserts: One may guess that the narrative style is relatively unassociative. When associations are produced, they coincide with a movement of discrete withdrawal, which makes one feel that everything is said as though it concerned the analysis of someone else not present at the session. The subject disconnects, becomes detached, so as not to be overcome by revivifying emotion, rather than reminiscence. When he gives way to it, naked despair shows itself. (p.190) Complementary to the study of devitalized states and the clinic of the negative, Adriana Gradin, in her work “Withered Hearts - Boredom and Apathy in Psychoanalytic Clinic” [14] , offers us a rich and useful account of these new modes of suffering based on boredom and apathy - feelings often referred to by Venâncio. According to the author (2020): Boredom and apathy appear in current psychoanalytic clinic in a considerable manner and in the most diverse forms, such as boredom, absence of pleasure in living, indifference, lack of energy and desire, laziness to accomplish plans, and a sensation of anesthesia. These symptoms are experienced by an increasing number of young people, adults, and also children (...) [15] . (p. 23) Gradin (2020) labels this symptomatology as the “symbolic desert”, precisely pointing to the arid characteristic of the clinic with these patients. Green (1988/2001) calls these conditions “anorexia of living” (p. 21), providing us with a clear image of a scenario in which life itself appears in a state of starvation. In addition, Minerbo (2017) also provides us with an important contribution regarding the symptomatology of boredom. According to the author, it may be mistaken for a depressive condition, but in reality, it represents distinct affective experiences. In depression, the feeling is one of loss - the depressed individual is filled with sadness and dreams of recovering the lost object. However, the typical patient in the clinic of emptiness lives with absence, with the hole that nothing can fill or satisfy. In these cases, there is no dream at all: the bored individual lives a semblance of life (Minerbo, 2017). In the article “The Analyst, Symbolization, and Absence in the Analytic Context” (Green, 1974/1986), the author refers to these clinical conditions marked by emptiness, pointing out the need for changes in classical psychoanalytic technique, especially regarding issues of the frame and management of countertransference. He addresses the “borderline states of analysability” (Green, 1974/1986), characterized by a lack of structuring and organization compared to neuroses or even psychoses. delving deeper into the theme of countertransference, the author uses the intriguing term “mummified object” to refer to the way the analyst feels when caught in the web of investments of these patients. The term “mummified” seemed to me to describe very well the prevailing sensation in sessions with Venâncio: the emptiness was so deep and profound that it felt like we were paralyzed, with no possibility of movement or transformation. In this regard, Green (1974/1986) states that there is a demand not only for the emotional and empathetic capacities of the analyst but also for their mental functions, since those of the patient are out of action. Thus, reverie represented a beacon in the dark night in which we sailed because through the mental capacities of the analyst, it became possible to dream, and from that, to construct a psychic elaboration of the unconscious contents projected by Venâncio, a psychic capacity that perhaps he could not put into action at that moment. In this way, it is possible to promote some vitalization in the face of a predominantly devitalized state. Aiming for an involved and vitalizing position of the analyst, Green (1974/1986) proposes a change in the technique of analysis: instead of deductive technique, used with neurotic patients, in borderline states, an inductive technique is appropriate. The term “induce” comes from the Latin inducĕre , which means to lead or bring into. It is formed by the combination of the prefix in (which indicates movement inward) and the verb ducere (which means to lead or conduct). Therefore, inducĕre is generally translated as introduce, initiate, or lead into. Considering the etymology of the word, Green's choice of this term for designating the technique used with borderline patients seems highly precise. The inductive technique would, therefore, imply bringing something into the patient that the psychic capacity of the analyst could transform. This was the path and horizon aimed for in Venâncio's analytic process. This inductive technique also implies the use of an intervention already proposed by Freud, towards the end of his work: the construction in analysis. In the work “Constructions in Analysis” (Freud, 1937/1975), the author addresses a possibility of the analyst's action that diverges from the classical interpretation, in which the analyst communicates elements absent from the history but that can be induced. This proposition by Freud is of great value for borderline cases, such as Venâncio's, in which silence and emptiness predominate in the sessions. Faced with so few contents verbally expressed, it is necessary for the analyst to be able to think and infer how the psychic constitution of this subject occurred. According to Green (1974/1986): From this point of view the analyst does not only unveil a hidden meaning. He constructs a meaning which has never been created before the analytic relationship began (Viderman, 1970). I would say that the analyst forms an absent meaning (cf. chapter 15 below). Hope in analysis is founded on the notion of a potential meaning (Khan, 1978) which will allow the present meaning and the absent meaning to meet in the analytic object. (p.48) In this sense, Green's work “Life Narcissism, Death Narcissism” (1983/2001) can be used as an induction of what may have occurred in Venâncio's psychic constitution. In it, Green addresses the complex of the dead mother, stating that the striking trait that characterizes current psychoanalytic processes is the issue of mourning. But not mourning for the real death of the mother, but rather mourning for the death of a mother who remains alive but is psychologically dead in the eyes of the child. This maternal imago would represent the transformation of a living object and a source of vitality into a distant, atonic, almost inanimate object (Green, 1980/2001). Although we know very little about Venâncio's past history, it is possible to infer a scenario in which his primary object was seen by him as dead, lifeless, causing a radical disconnection that resulted in an intense withdrawal of his libidinal investments from early childhood. This hypothesis can be used because we have access to what is experienced in the current session. Green differentiates mourning into two types: black and white. Black mourning would be linked to depressions and therefore to manifestations of hatred and destructiveness. However, it would only be a consequence of white mourning, which in turn would be linked to states of emptiness, typical of the clinic of the negative, in which there was a loss at the narcissistic level (Green, 1980/2001). According to the author, the origin of this white mourning would be in a massive, radical, and temporary disinvestment, which left marks on the subject's unconscious in the form of “psychical holes” (Green, 1980/2001, p. 174). Blank mourning is part of the series of blank states described by Green and Jean-Luc Donnet (1973), which includes negative hallucination, blank psychosis, blank mourning, and blank anxiety. The concept of "blank" originated from a session with a patient who, to describe his states of emptiness, used the English term "blank" (Green, 1979/2001). This term also refers to something that is expressionless, meaningless, and toneless. From this point, the author delves deeper into this terminology, using the expressions "blank dream" or "blank dream screen" (Green, 1979/2001). Blank anxiety, stemming from blank mourning, manifests in analysis as feelings of emptiness, libidinal disinvestment, the inability to associate, represent, or elaborate — similar to what is experienced in Venâncio's psychoanalytic process. According to Green (1979/2001): The word blanc represents, then, the invisible (footnote: Or, more generally, the imperceptible, the insensible, and, ultimately, the unthinkable and the inconceivable) whereas its semantic opposite is the light of dawn, dissipating nocturnal anxieties but announcing the arrival of depressive feelings: 'Yet another day.'” (p.112) Green (1980/2001) states that in the clinic of the negative, there was a sudden mourning for the mother who brutally and suddenly disinvested her son, causing a feeling of catastrophe: love was suddenly lost. The consequence is a trauma in the individual's narcissism, constituting an anticipated disillusionment that causes, in addition to the loss of love, a loss of meaning, since the baby cannot produce any thought to explain the loss that occurred. This analytical construction cannot be deduced from neurotic memories because it is something that the subject does not access due to the early nature of these events. However, inducing this history of psychic constitution in Venâncio's case allows us to lend our mental functions so that some meaning can be constructed in the face of such emptiness. In this sense, the perspective adopted in this work is not that virtual hyperconnectivity is a founding element of void pathologies, since deeper roots are understood in the psychic constitution of negative narcissism. However, the unrestrained use of electronic devices incites devitalizing psychic processes, which in borderline cases, like Venâncio's, intensify an already ongoing process of psychic death. Returning to Venâncio's clinical case, about two years after the first clinical vignette presented, the patient was gradually able to elaborate and say more about his suffering. There were extremely significant sessions in which he could talk more about his family relationships and past life history, share thoughts, and construct narratives. A meticulous work, which happened gradually, with highs and lows. But even with the difficulties, something was being sewn. Simultaneously, he started to relate to more people, began dating, and living with a woman. By identification, the girlfriend seemed to present symptoms of apathy and boredom like him. In one session, we had the following dialogue: – She's not doing well. – Venâncio says (I hear that he himself is not doing well). – What are you feeling? – No no, I said she's not doing well, my girlfriend. – Venâncio “corrects” me. – Curious, I had understood that you were not doing well. Perhaps both of you are more connected than it seems. – Yeah, yeah. But then, she's been having trouble at work... And Venâncio goes on to a long explanation about his girlfriend's work issues. It is a common feeling in sessions that often what I say does not have any impact, it is frequent that I feel as if I am not there. But we continue. – What is complicated is that she spends the whole day from bed to couch, on her phone, playing video games. And I stay with her, right? This weekend I had a friend's birthday party, but she didn't want to go, so I didn't go either. I know what it's like to feel like this, I also feel like this sometimes, and it sucks. You spend the whole day on screens. It's like browsing endlessly. – Is it inertia? – Exactly, inertia. You keep scrolling, scrolling, and nothing makes sense. I wish we did more things, whatever it was, met people, went to the park or the cinema. It didn't have to be anything special... – It gives me the feeling that nothing fills. – Nothing fills, nothing, nothing. It's emptiness all the time. – Did you want to go to your friend's birthday party? – No. And that's the point. It's not that I wanted to, but I had a little energy that if I took advantage of it, I could go there. And then I would meet people, connect with them, and maybe come home feeling better. – It seems like a spark, a flash of life that you need to take advantage of. – Yeah, I trigger and need to take advantage of that. But she's not even managing to be interested in anything, so I start to sink too. The only thing she wants to do is play. Wakes up, turns on the video game, plays all day until dawn. Then feels bad as if she hadn't done anything all day. – But is the video game another world? With a different story, where you can be other people, actually, characters? – Actually, it's quite mechanical. Mechanical, mechanical, mechanical. You just keep thinking you need to do this and that, aim, shoot, run. It distracts your mind, you know, I get it. It's 10-minute match at most where you don't need to think about anything. You play until dawn, then feel like you've done nothing, and lie in bed feeling bad. Then you get anxious and can't sleep. – It seems like there's no possibility of dreaming. It's remarkable how Venâncio can now associate much more about what he lives and feels, even though he's partially projected onto his girlfriend's figure. His reports at this moment are not just about the mechanical actions he performs, as they were a few years ago; now he can recognize this mechanization - and be bothered by it. But some points of this clinical vignette deserve further detail, as they illustrate the entanglements of his suffering with digital technologies. The first one concerns the intersections in the analytic contact experience between me and Venâncio. First, it is noticed that he talks about his girlfriend to say something about himself - it is perceptible that, when he speaks of her suffering, he is talking about the anguish he feels, finding in this mechanism a way to express himself. Another point has to do with my frequent sensation that what I say is not received by him, as if any intervention I make is not capable of reaching him and causing reverberations. The classic analytic proposal that Venâncio, as the analysand, speaks of himself, while I, as the analyst, listen and return interpretations, seems to me an extremely complex scenario - and rarely achieved in this analytic process. Sometimes he can talk about himself, talking about another. At other times, he acts as if I were not present, needing to deny, ignore, or attack everything that comes from outside: an analytical “alone together.” I perceive the problematic nature that arises in contact with another subject, in general terms, dealing with otherness becomes a great challenge. Regarding this countertransferential phenomenon, Green (1974/1986) states: The analyst is in a situation of ‘object exclusion’. His attempts at interpretation are treated by the patient as his madness, which soon leads the analyst to decathect his patient and to a state of inertia characterized by an echo response. (p. 38) When he uses another to speak of himself, I embark on his narrative. When he rebuffs my words with aggression, I survive the attacks and allow him to make this use of our relationship. Or when I feel my presence denied, I delicately seek to show that I am still there, as another subject who listens to him. A listening that breaks with the mechanical and endless repetition to which he is subjected, which creates space for, perhaps, a thought to emerge. Venâncio invites me to sail on his boat, and gradually, I find a possible seat for the otherness that I represent. In the dialogue mentioned above, surprisingly, at a certain point, he feels understood by me: “Exactly, inertia.” At that moment, I feel that I could truly understand him, and he felt understood in return. What a relief, we are now navigating in familiar waters: the analytic field has made itself present on the high seas. The second point that deserves to be dissected here concerns the devitalized state in which Venâncio and his girlfriend find themselves. The routine of “bed to couch,” constantly using cell phones, TV, or video games, creates a scenario of deep boredom and anguish. The feeling that “nothing fills” is constant and intriguing because it constitutes a paradox. While technological means advance daily, with new features, updates, increasingly sharp images, extremely immersive games, numerous social media posts, mass releases of movies and series, in other words, an absurd amount of content available to be consumed, none of this, in fact, becomes significant, none of this seems to substantially populate the psychic space. Indeed, this filling to which Venâncio refers cannot be supplied with digital products, which only serve to entertain him. In fact, this lack of fulfillment refers to the psychic holes designated by Green in the clinic of the negative. For Green, the work of the negative is a constituent part of normal psychic functioning. The image that the baby creates when the mother is not present, that is, their negative hallucination, remains in the background of the infant's psychic experience, operating as a founding cornerstone that, while always present, also makes space for the child to build new object investments. The exchange of instinctual investments between the baby and its primary object creates the framing structure of primary narcissism, which supports the possibility of internal space for the subject to create relationships with new objects. (Green, 1966-1967/2001). However, the negative can take on a destabilizing face, bordering on the limits of the pathological, when there is a significant disinvestment, and consequently, a withdrawal of the Ego. According to Candi (2012): The work of the negative both constitutes and threatens the psyche... when the threat prevails, we will have to confront the negative of the negative, which are the destructive aspects of the work of the negative, manifesting due to the absence or excessive presence of primary objects. [16] (p. 255) Therefore, we can hypothesize that Venâncio is speaking of this negative of the negative, or the negativism of the work of the negative, which always brings the subject back to ground zero. For Green (1997), there is a process of erasure related to the internal representation of the negative, that is, it is possible to realize a representation of the absence of representation, which in terms of thought corresponds to negative hallucination, and in affective terms corresponds to emptiness, void, absence of meaning. When this empty space of absence of representation reaches proportions larger than tolerable for the subject, the sensation of “nothing fills” described by Venâncio prevails – and virtual stimuli serve only to occupy a temporary space in the individual's mind, but without any possibility of significant vitalization. Indeed, none of these digital contents fills the void experienced by Venâncio, and by many others. Nevertheless, reports from people who increasingly feel dependent on the use of electronic devices are frequent. Many people today claim that, upon waking up, their first action of the day is to check their cellphone. In other words, in the first minutes of the day, in that moment of psychic twilight, between sleep and wakefulness, one is already in contact with an avalanche of digital content. It is impossible to disregard that this must have a significant effect on our psychic life. And when we revisit Venâncio's clinical case, we can perceive in his speech the description of a mind frenetically populated with stimuli, constantly being fed by the content provided through digital devices. Venâncio and his girlfriend seem to be in a state of emptiness and devitalization, and as a way to alleviate anguish, they turn to video games to spend hours on end, a way of not thinking and not feeling. The anguish only reappears at bedtime when they realize that the day has passed and nothing significant has happened. In this sense, I reflect on how disruptive an analysis session can be. Remaining for about an hour in contact with another subject. Without stimuli, without ads, without colorful lights, without moving to the next video. Just being there, speaking and listening, person to person. And this can happen in both virtual and in-person sessions: analysis becomes an exercise in humanity. Moreover, it is not about frenetic attention, pushing to the limit, trying to absorb as much as possible of the many stimuli present. An analytic process demands attention that is associative, free, that opens space and takes time. What seems to matter is simply being present. Having your attention truly focused on the experience of the session, with the continuous presence of another, constitutes something fundamental – and is increasingly rare in the contemporary scenario. Returning to Venâncio's clinical case, some terms used by him in his speech catch attention (marked in italics in the dialogue). They relate to words employed to describe his psychic state: connecting or disconnecting with people, having energy to perform a task, triggering to become interested in the world, aiming and shooting in the experience of playing video games, endlessly browsing in search of something on social networks. All of them point to a description of himself as a machine, a human device. A passivated human device that merely receives pleasure stimuli, without the need to tolerate frustration that produces thoughts, and therefore, promotes subjectivation. It is like being a machine, which can be charged and functioning like a cellphone, or completely drained and lifeless. That connects like a plug that turns electricity on and off. That triggers, aims, and shoots like a weapon that destroys without noticing. That endlessly seeks for something it never finds. Instead of the human, we are faced with the human device. I don't believe these expressions are merely linguistic matters, or even an effect of foreign influence on Brazilian culture – since many of these terms are imported from the English language. In fact, I believe they reflect the imagery construction that Venâncio unconsciously makes of himself. Like a machine, he is meant to perform actions without thinking and without feeling because when there is a possibility of that, anguish invades overwhelmingly. Spending the day from bed to couch, alternating between cellphone, video games, and TV, allows him to be constantly stimulated, but not in a creative way, rather, in a mechanical way. As he himself says, “you don't need to think about anything.” By nullifying thought, the intent is to nullify suffering, but it (re)produces it in many other ways. Until the early hours arrive and the encounter with emptiness becomes inevitable. At this point, we can draw a relation with Clarice Lispector's chronicle “Fear of Eternity” [17] (1970/1994). In it, the writer recounts her “disturbing and dramatic encounter with eternity” when her sister gives her a gum for the first time, describing it as a “never-ending candy, lasts a lifetime.” The idea of never-ending immediately startled Clarice, who nonetheless decided to try the treat. Initially, she delighted in the sweet taste, but when that pleasure ended, her sister's response was “now chew it forever.” Clarice describes how she was frightened by this experience, by the discomfort of having in her mouth a “gray stretchy rubber that tasted like nothing.” She narrates her experience as follows: “I chewed, I chewed. But I felt artificial. In truth, I wasn't enjoying the taste. And the advantage of being an eternal candy filled me with a kind of fear, as one has when faced with the idea of eternity or infinity.” At the end of the chronicle, anguish completely overwhelms the narrator, who, unable to bear the experience any longer, lets the gum fall to the ground, pretending to her sister that it was accidental. The experience Venâncio describes reminds us of this “gray and endless stretch” of the chewing gum. Video games are there, always available, for playing as many rounds as desired: they are infinite. But what may seem magnificent in the experience of eternity quickly reveals itself as an experience of extreme anguish and displeasure – the pleasurable taste of discovery fades away, and the inexhaustible characteristic of that stimulus only puts us in contact with the bottomless pit of emptiness. It's like falling in freefall and never reaching the ground, or it's like being in the sea without being able to touch the sand. The suppression of any limit, of any end to an experience, throws us directly into the anguish of emptiness and death. In this sense, the excerpt from the clinical vignette and Clarice Lispector's chronicle lead us to Green's contributions regarding the death drive. The author suggests that while the life drive would have as its psychic representative the sexual function, the death drive would have as its psychic representative the self-destructive function (Green, 1984/1986). In this regard, the life drive would have the objectifying function, that is, it would be the psychic energy of investment and creation of objects, transforming external objects into internal psychic representatives. In contrast, the death drive would have the de-objectifying function, that is, it would be responsible for detachment, for disinvestment – which although necessary for the psychic constitution of the subject, its predominance can also provoke intense suffering. In these cases, disinvestment would be such that it would create true empty, negative spaces, which affectively provoke in the subject a sense of lack of meaning in being alive (Green, 1984/1986). The death drive seems, thus, to operate both in Venâncio's experience of playing video games and in Clarice's experience of chewing gum. The sensation of an action that never exhausts itself, that is repeatedly the same, that stimulates but without affecting, leads these two subjects to confront a complete absence of meaning. The dialectical movement of investing and disinvesting objects is the dynamic balance of our mind: but this is not what happens in these experiences, which seem to fix subjects in infinite repetitions. These repetitions also remind us of Freud's descriptions in “Beyond the Pleasure Principle” (1920/2006), where the author proposes the concept of the death drive to explain the compulsion to repetition, illustrated by the nightmares of war neurotics and the spinning reel game. Thus, articulating with Green's propositions, we can hypothesize that disinvestment, inherent in the de-objectifying function of the death drive, when touching upon the deadly compulsion to repetition, becomes radicalized, and not only disinvests the object but also provokes disinvestment in the self. According to Cano (2015): In this way, the deadly repetition compulsion, rather than repeating the unconscious desire—and therefore being related to the timelessness of the unconscious and the logic of hope—is, in fact, an anti-time. In this sense, present, past, and future are reduced to the moment of complete discharge of all tension, making any project impossible. [18] (p.17) And this is exactly the consequence we perceive in Venâncio's clinical case: time is reduced to the present discharge provided by the use of digital technologies, while his Self suffers massive disinvestments. Continuing the detailing of the vignette, my reaction was then to ask Venâncio, “But is the video game another world? With a different story, where you can be other people, actually characters?” When I posed these questions, I was seeking something we could grasp onto in hope. I imagined that perhaps there was a story in which he embodied a character and lived adventures in a fantasy world. Like when we read a book, and it airs our thoughts, by transporting us to a universe very different from our own – or perhaps more similar than we imagined. Was there something like that in Venâncio's experience of playing video games? However, his response precisely leads me to recognize the concreteness of his experience: “mechanical, mechanical, mechanical.” Based on this understanding, I can formulate the following final consideration: “It seems that there is no possibility of dreaming.” Therefore, what is actually configured is a hijacking of the capacity to think and feel. Ogden (2009) states that the aim of an analysis is for the analytic dyad to, together, dream the dreams that the patient, alone, could not dream – and that had therefore been transformed into symptoms. Dreaming, through two minds, the dreams that could not be dreamt individually, promotes the resumption of the patient's psychic capacities, including the ability to continue transforming symptoms into dreams. In this way, I understand my analytical path and direction with Venâncio. Besides promoting a space where another type of attention can predominate, it can also be the space to dream together what has been buried in his hyperdigital connection. We then arrive at the expression used by Venâncio, and the title of this article, browsing endless. The verb he coined, “browsing” [19] , refers to the term “browser”. This is very similar to Venâncio's experience, who navigates for hours and hours on end through digital media in search of something that is never found, purposeless and endless, adrift in the ocean of networks. Thus, we perceive a paradox: the completely devitalized creative-exploratory desire has given way to endless browsing, from which nothing is found. It is interesting to note that the content page of each digital media (called a feed) is designed to display an unlimited amount of content in each browsing session. However, the idea behind the design is to keep users engaged and offer a continuous experience, constantly updating the feed with new posts as the user “scrolls down.” That is, with a minimal swipe of the index finger, you can access a gigantic amount of digital content, always fresh and updated, causing the sensation that there will always be something new to consume. In this way, a kind of digital hypnosis is created that generates a state of alienation from oneself, from others, and from the world. Recently, apps have adopted the autoplay system, where one video automatically follows the next, even if the user doesn't actively select it. This was programmed precisely to capture the user's attention even more without them needing to take any action. Therefore, this system encourages individuals to spend more time on the platform, keeping them in passive contact with the content. We have, therefore, a process of subject passivation. Everything is designed to create a highly stimulating, pleasurable, fast-paced, and simultaneously endless experience. In this regard, Leite (2022) states: I believe that [social media] were designed precisely for this purpose—to engage our attention for as long as possible, resorting to the most primitive mechanisms of mental functioning to deliver their results. Scrolling from post to post can be a narcotic experience, precisely because it hijacks the psychic apparatus around the pleasure principle and its narcissistic projections. And it is here that we observe the reality principle yielding. [20] (p.97) And this narcotic experience, referred to by Leite, resembles that experienced by Venâncio. A desire to spend the whole day in front of electronic devices, finding pleasure in every victorious round of a video game, in every like on an Instagram photo, or in every joke in TikTok videos. An ephemeral pleasure, based solely on satisfaction via the pleasure principle – which in digital media, has little to do with the reality principle. If frustration persists, just start a new game round, swipe the screen to see a new image, hit play on a new video. If thinking requires tolerance of frustration, social media favors non-thinking, the passivated satisfaction of the pleasure principle. Thus, it's possible to avoid contact with reality and with others, in a narcotization of life. It's no wonder that the feeling of anguish only reappears in the darkness of the early hours – when there's no more blue light to hijack one's psychic apparatus. 3. Conclusion Our interactions with digital technologies are so intrinsic to our contemporary lives that we often no longer perceive the impact of this usage on our subjectivity. However, as tools created by us, digital technologies reflect our human constitution, being developed to try to address precisely what we lack as individuals, aiming to minimize our sufferings and limitations as much as possible. If we demand food, a specialized app for fast and uncomplicated deliveries is created. If we demand relationships, an app is created to facilitate romantic encounters. If we demand pleasure, a specialized app is created to disseminate short videos that entertain us endlessly. However, these promises of facilitating everyday life can be a double-edged sword when it comes to experiences of hyperconnectivity, illustrated by the clinical vignettes presented in this chapter. In these experiences, we perceive a narcotizing and passivating effect, aimed at avoiding the formation of thoughts and emotional contact. As a consequence, clinical reports of emptiness, hopelessness, and a lack of meaning in being alive arise, as in the face of any anguish, the hypnotizing experience of digital (dis)connection is chosen over a connection with oneself and with others. References Bion, W. (1962). Learning from experience. London: Karnac Books. Candi, T. (2012). O trabalho do negativo. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(1), 192-195. Recuperado em 03 de setembro de 2023, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2012000100016&lng=pt&tlng=pt . Cano, T. M. (2015). A teoria pulsional freudiana à luz da leitura de Green: uma alternativa ao biologismo mítico. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. doi:10.11606/T.47.2015.tde-06082015-155127. Recuperado em 2024-01-14, de www.teses.usp.br Castells, M. (2003) A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 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[8] T.N.: All the quotations from the documentary have been rendered by the translator. [9] T.N.: transcription from: www.ted.com/talks/tristan_harris_how_a_handful_of_tech_companies_control_billions_of_minds_every_day/transcript [10] T.N.: Original title in Portuguese: Entre o like e o burnout – reflexões psicanalíticas. [11] T.N.: translator’s rendition. [12] T.N.: iFood is a Brazilian online food ordering and food delivery platform. [13] T.N.: Rappi is a Latin American on-demand delivery app. [14] T.N.: translator’s rendition. [15] T.N.: translator’s rendition. [16] T.N.: translator’s rendition. [17] T.N.: The title of the book, as well as the quotations, have been rendered by the translator. [18] T.N.: translator’s rendition. [19] T.N.: In Portuguese, the software used to navigate the internet is called a "navegador" (browser), and thus the verb is "navegar" (to browse). Venâncio resorted to a neologism derived from the English verb "to browse." [20] T.N.: translator’s rendition.
- Browseando infinito: os estados desvitalizados e o uso das tecnologias digitais
Autores: Marina José Abud da Silva; Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Resumo: O advento da Internet, a digitalização da realidade e a incorporação de dispositivos digitais em nosso cotidiano têm se mostrado fenômenos extremamente relevantes para a compreensão das formas de subjetivação contemporâneas, sendo que a psicanálise, ao privilegiar um olhar para as manifestações inconscientes e para a constituição do psiquismo, tem muito a contribuir nesse debate. Neste trabalho, utilizaremos como base teórica psicanalítica as contribuições de André Green sobre a clínica do vazio, refletindo acerca dos conceitos de trabalho do negativo e duplo-limite. Através desse autor, pretendemos relacionar os estados desvitalizados com a hiperconectividade digital, utilizando para isso vinhetas clínicas que ilustram essa ligação. Por fim, pretendemos contribuir para o debate sobre os efeitos psíquicos advindos da utilização desenfreada dos dispositivos digitais, de forma a evidenciar a complexidade da questão, admitindo que somos simultaneamente criadores e criaturas da virtualidade. Palavras-chave : virtualidade, contemporaneidade, clínica do vazio, trabalho do negativo, duplo-limite, desvitalização. Introdução É sabido que a comunicação é uma necessidade humana desde os primórdios da nossa espécie. Interessante notar que a primeira menção a esse termo na obra freudiana se deu em “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895), na qual Sigmund Freud fala sobre a comunicação do desamparo inicial vivenciado pelo bebê. Nessa ocasião, ele aborda a importância de que o infante possa comunicar os estados de anseio e aflição para quem exerce a função de seu cuidado, favorecendo, portanto, um processo de identificação entre mãe e bebê. Assim sendo, a comunicação para Freud está na origem da constituição psíquica humana. No entanto, o advento da Internet e das redes sociais têm representado uma modificação acelerada nos processos comunicativos – uma mudança de paradigma no contato entre o sujeito e o mundo. O embrião da Internet que conhecemos hoje foi concebido nos anos 1960, nos Estados Unidos, com o nome de ARPANET ( Advanced Research Projects Agency Network ). Ela foi projetada com o objetivo de estabelecer comunicação militar sigilosa para fins de segurança e defesa durante a Guerra Fria, na qual traçava-se uma corrida tecnológica entre os dois conglomerados de países, o que impulsionou o desenvolvimento científico global. Paulatinamente, a ARPANET deixou o âmbito estatal e adentrou com maior profundidade o âmbito acadêmico, sendo que, oficialmente, a primeira comunicação via e-mail se deu em 1969, entre dois pesquisadores de diferentes universidades norte-americanas. Nos primeiros anos, o uso da ARPANET era restrito aos Estados Unidos, mas gradualmente se expandiu para outros países, como Holanda, Dinamarca e Suécia, e a partir de então passou a ser denominada como Internet. No entanto, por quase duas décadas, somente os meios científicos possuíam acesso à rede, sendo que, apenas em 1987 a utilização comercial foi permitida. Em 1991, surgiu o WWW ( World Wide Web ), em tradução livre, a Rede Mundial de Computadores, que expandiu os limites antes impostos por uma simples troca de mensagens ou arquivos: com ela, criou-se uma verdadeira teia de informações compartilhadas em que vários servidores poderiam ter acesso livre e simultâneo. A partir do WWW, estabeleceu-se uma linguagem padrão para circulação de dados e tráfegos pela rede, inaugurando a criação de um verdadeiro mundo virtual. Em 1993, essa nova tecnologia foi expandida para todo e qualquer usuário, de forma gratuita. A primeira rede social da história surgiu em 1995, a ClassMates.com , que tinha um objetivo bastante claro: possibilitar o reencontro de amigos que estudaram juntos no passado. Porém, a primeira rede social a apresentar perfis pessoais, envios de mensagens e publicações virtuais foi a Six Degrees, criada em 1997. E logo em seguida vieram as principais páginas de comunicação utilizadas até os dias de hoje: o Google, em 1998; o Linkedin em 2002; o Skype em 2003; o Orkut e o Facebook em 2004. Nesse meio tempo, a internet adentrou o cotidiano de nossa sociedade, com a promessa de um mundo livre, conectado e igualitário - ao menos no que se refere ao plano virtual. O autor e sociólogo Manuel Castells, em seu livro “A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade” de 2003, aponta que na década de 1990 a Internet surgiu como um sistema de comunicação flexível e descentralizado, inicialmente tendo como valores liberdade, solidariedade e cooperação. Porém, esses ideais modificaram-se com a entrada de hackers e programadores. E a cultura da Internet só vem se complexificando cada vez mais. Castells (2003) reconhece o caráter revolucionário da Internet: a compara com o impacto social causado pela invenção da energia elétrica. Ele denomina o que vivemos atualmente como “Sociedade em Rede”, descrevendo esse espaço de interações à distância síncronas e em tempo real. O autor reflete sobre os relacionamentos virtuais, apontando para a possibilidade de criar de diferentes identidades on-line a partir das fantasias individuais. Porém, ele considera que as experiências no campo virtual não são tão diferentes da chamada vida real: “É uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades” (p.100). É interessante notar o quanto a concepção acerca do impacto das tecnologias vem se transformando ao longo das décadas no âmbito científico. No início dos anos 2000, a conexão entre diferentes pessoas proporcionada pelos meios digitais era tomada como sinal de evolução e esperança – percebíamos um campo infinito de novas possibilidades de estar com o outro. E é inegável que as conexões virtuais possibilitaram o atravessamento de fronteiras até então inimagináveis. Apenas para dar um exemplo, hoje, como analistas, atendemos pessoas que estão a milhares de quilômetros de nós, e essa distância não impede que se construam verdadeiros e profundos trabalhos analíticos. Apesar disso, nota-se que diferentes pensadores atuais têm complexificado suas compreensões acerca dessas facilidades digitais, integrando diversas dimensões do impacto dos meios virtuais no psiquismo humano. Para ilustrar, podemos acompanhar o trabalho da psicóloga e pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Sherry Turkle, um dos grandes nomes atuais no estudo das relações entre seres humanos e tecnologia. Nos anos 90, ela escrevia com otimismo e entusiasmo: "Os ecrãs dos computadores são os novos cenários para as novas fantasias, tanto eróticas quanto intelectuais. Usamos a vida nos ecrãs de computador para nos habituarmos a novas maneiras de pensar acerca da evolução, das relações entre as pessoas, da sexualidade, da política e da identidade" (Turkle, 1997). Porém, ao longo de 20 anos, novas compreensões foram possíveis, e em 2011, Sherry Turkle já abordou o assunto com muito mais cautela e preocupação: "Estamos confusos sobre intimidade e solidão". Em seu novo trabalho Alone Together – Why We Expect More From Technology and Less From Each Other , a autora entrevistou 450 participantes e concluiu que o uso das tecnologias afeta nosso contato com o outro, diminuindo a qualidade das interações e a profundidade dos vínculos humanos. Por um lado, as fronteiras físicas foram praticamente superadas com as tecnologias digitais. Por outro, a cultura da hiperconectividade parece produzir sujeitos mais individualizados, solitários e com dificuldades no campo intersubjetivo. Dessa maneira, é claro o quanto a Internet é um fenômeno do nosso tempo. Ela afeta a cultura, a arte, as ciências, os negócios, entre muitos campos que devem ser estudados pelas suas respectivas áreas de conhecimento. Aqui, propomos contribuir com a psicanálise, refletindo acerca dos efeitos psíquicos nos diferentes usos das tecnologias digitais. Como é tradicional na pesquisa psicanalítica, o que instiga a investigação teórica é a prática clínica. E com os estudos sobre virtualidade e relações humanas não poderia ser diferente. De forma cada vez mais frequente, os pacientes trazem ao consultório suas conversas virtuais e todos os códigos próprios desse meio: falam sobre o uso dos aplicativos para toda e qualquer tarefa, se queixam do sofrimento psíquico advindo da exposição excessiva aos dispositivos digitais, chegam a insights a partir de conteúdos em redes sociais. Nesse sentido, não podemos ignorar as particularidades do fenômeno virtual na vida psíquica do sujeito, de acordo com Castells (2003): Se você não se importa com as redes, as redes se importarão com você, de todo modo. Pois, enquanto quiser viver em sociedade, neste tempo e neste lugar, você terá de estar às voltas com a sociedade de rede. Porque vivemos na Galáxia da internet (p. 230). No entanto, o que prevalece socialmente é um movimento de subestimar os efeitos das tecnologias digitais em nosso psiquismo. Ao longo dos últimos 20 anos adentramos uma nova gramática em termos de símbolos e representações. Leite (2022) afirma que mudamos de um registro tradicional-analógico para outro contemporâneo-digital, o que afeta diretamente o campo analítico. Nesse sentido, é fundamental refletir acerca desses novos efeitos, sem negá-los ou naturalizá-los. É comum que muitos em nosso campo teórico tendem a afirmar que as tecnologias digitais em nada alteram aquilo que já estava posto anteriormente em nosso pensamento psicanalítico. Outros podem tender a nem cogitar esses efeitos: já faz tanto parte de nossa vivência atual que se tornou até banal. O que é inegável é que se trata de um objeto de estudo no qual nós, analistas, também estamos profundamente imersos. Não se trata de algo que observamos apenas em nosso analisando em sessão, com uma certa distância confortável. Pelo contrário, nós também vivemos e sofremos os efeitos dessa nova gramática em nosso cotidiano – o que pode tornar ainda mais difícil identificar as principais problemáticas. O próprio consultório foi tomado pelas tecnologias digitais, e quem não permitiu que elas entrassem, ficou em descompasso com a realidade externa. Hoje agendamos a grande maioria das sessões via aplicativos digitais. Com a pandemia de COVID-19, quem não se adaptou ao atendimento on-line estava impossibilitado de manter seus processos analíticos. Kowacs (2018) em seu artigo Identificação projetiva eletronicamente mediada: o analista e o dialeto virtual trata da presença de aparelhos eletrônicos no setting pós-digital e seu impacto no campo analítico, explorando a qualidade comunicativa no uso desses dispositivos, tratando-os como um dialeto digital a ser decodificado e incorporado pelos psicanalistas contemporâneos. Nesse trabalho, ela retoma a ideia de que o homem cria a ferramenta, e esta, por sua vez, o recria – algo já observado filosoficamente, porém que tem sido corroborado pela neurociência em estudos que correlacionam a plasticidade cerebral e impactos da tecnologia no funcionamento do cérebro (McLuhan; Hallet & Small et al., apud Kowacs, 2018). Assim sendo, é evidente que as tecnologias permeiam o nosso cotidiano, e não parece que irão embora tão cedo, até porque, são inegáveis os benefícios e facilidades que elas produzem. A nossa reflexão aqui trata de identificar a complexidade e as ressonâncias psíquicas das tecnologias digitais na constituição psíquica do sujeito contemporâneo, e especificamente, no campo analítico. No entanto, é fundamental ter em vista que hoje o meio digital tornou-se um grande e bilionário negócio no mundo capitalista. O psicanalista e psiquiatra Pedro Colli fez uma importante contribuição a esse respeito em seu trabalho O Mal-Estar na Civilização Digital (2022), no qual ele articula o bilionário negócio das big techs (maiores empresas de tecnologias mundiais) com os efeitos da vida psíquica do sujeito contemporâneo. Para se ter uma ideia, em 2020, durante a pandemia de COVID-19, o chamado quarteto das big techs – as quatro principais empresas de tecnologia mundiais: Amazon, Apple, Google e Microsoft – tiveram recordes de faturamento. Na época, estimava-se que essas empresas valiam cerca de 7,14 trilhões de dólares, aproximadamente um terço de todo o PIB dos Estados Unidos. Ou seja, estamos falando de um gigantesco negócio econômico. Colli (2020) afirma: Pretendo discutir mais adiante o favorecimento da morte psíquica por alguns tipos de tecnologia e de capital que buscam engajar seus usuários por horas e horas a fio na vida online, custe o que custar. Por ora acho suficiente deixar indicado que há uma lógica econômica e outra de design de aplicativos que parecem incitar a “depressão TikTok”. Do ponto de vista de tais pressões culturais sobre o sujeito, realmente não importa onde está a sua alma, desde que continuemos a abrir o smartphone, deslizar pelo feed de conteúdos, produzir todo tipo de informações que alimentam seus algoritmos e consumir os produtos propostos. (...) (p. 74). De fato, não se pode esquecer que as diferentes interfaces digitais foram projetadas tendo em vista um grande interesse econômico-capitalista. A construção de todo o aparato digital por trás do que vemos pelas telas é meticulosamente pensada por grandes profissionais dos setores de engenharia, marketing, TI e até psicologia, para produzir algoritmos cada vez mais inteligentes e precisos que têm um só objetivo: nos manter o maior tempo possível na frente das telas. Um dos grandes nomes do Vale do Silício, o cientista de dados e especialista em ética da tecnologia, Tristan Harris, demitiu-se da Google após objeções a respeito das práticas observadas por ele em seu trabalho. Em 2020, ele criou o documentário “O Dilema das Redes” no qual expõe seu profundo conhecimento sobre os mecanismos utilizados pela big techs para manter os usuários conectados virtualmente, influenciar suas opiniões e decisões de consumo e até manipular resultados eleitorais. O documentário traz afirmações emblemáticas que nos provocam reflexão: "Somos o produto mais valioso das redes sociais”, "As redes sociais se tornaram máquinas de propaganda personalizada", "A tecnologia está nos dividindo em bolhas de realidade" e até "O objetivo é manter você engajado o máximo possível" (Dilema das Redes, 2020). Em uma palestra de 2017, intitulada “Como um grupo de empresas de tecnologia controla bilhões de mentes todos os dias”, Harris faz a seguinte declaração: A tecnologia não está evoluindo ao acaso. Há um objetivo secreto guiando o caminho de toda tecnologia que criamos. Esse objetivo é a disputa pela nossa atenção. Todo novo site, TED, eleições, política, jogos, até mesmo os aplicativos de meditação, tem que competir por uma coisa: nossa atenção. Dessa forma, o presente estudo pretende assumir a complexidade do uso das tecnologias digitais no mundo contemporâneo, visto que existem múltiplos vértices desse fenômeno, e adotar uma perspectiva idealizada ou demonizada seria simplificar demasiadamente a questão. De um lado, é indispensável assumir a ampliação comunicacional que as tecnologias digitais nos proporcionam. Quando bem utilizadas, permitem que pessoas se conectem através de longas distâncias, possibilitam articulações de movimentos sociais e políticos, fornecem acesso muito mais rápido e igualitário de informações. De outro lado, a hiperconectividade virtual também podem provocar consequências prejudiciais às nossas formas de vinculação e ao funcionamento de nosso aparelho psíquico. Essas especificidades no uso das tecnologias digitais não são aleatórias: estão intimamente relacionadas aos casos paradigmáticos da clínica contemporânea. Ou seja, nossa forma de se relacionar com o digital é ilustrativa dos processos psíquicos característicos do sujeito do nosso tempo. Como ferramenta social criada por nós, a internet reflete quem somos, mas também participa da construção de nossas subjetividades. Portanto, o objetivo deste artigo é investigar a complexidade do fenômeno da virtualidade, visando compreender os efeitos psíquicos de tecnologias digitais no sujeito contemporâneo. Para isso, forneceremos vinhetas clínicas que ilustram o modo como a hiperconectividade virtual se relaciona com experiências de vazio, apatia, tédio e desesperança, relacionando-as com as contribuições do autor André Green acerca dos casos paradigmáticos da clínica contemporânea. Browseando infinito: conexões vazias É fundamental estabelecer como ponto de partida que a constituição psíquica humana e, portanto, nossos modos específicos de sofrer, não são apenas soluções da vida inconsciente individual. Na verdade, eles são profundamente contaminados pelo caldo cultural de cada sociedade. A psicanálise, nos seus primórdios, partiu do incômodo e da curiosidade de Freud diante dos quadros histéricos. E o sofrimento psíquico observado por ele estava intimamente ligado às características sociais do início do século XX. Naquele momento histórico, o que prevalecia como cenário social eram condutas morais bastante rígidas, e consequentemente, uma forte repressão da sexualidade (Freud, 1905). Desde então, a psicanálise tem buscado compreender as diferentes manifestações psíquicas que surgem (e urgem) na prática clínica. Um analista atento e ativo na contemporaneidade nota que os sentimentos de culpa, autorrecriminações e ataques de angústia – próprias das neuroses clássicas - têm cedido lugar para o crescente surgimento de novas modalidades de sofrimento psíquico. O que observamos é um crescente número de casos cuja sintomatologia se caracteriza por uma expressiva desconexão emocional e desvitalização: são pacientes que apresentam uma forte sensação de vazio existencial, de tédio profundo e apatia constante. A fim de ilustrar o que pretendo abordar aqui, trago o relato de minha experiência clínica com o analisando Venâncio. Ele vem para as primeiras sessões sempre apático, entristecido, deprimido. Sei que ele dirige as palavras a mim, mas sinto seu olhar distante, como se encarasse de frente toda a angústia do vazio. E o vazio também se faz presente no conteúdo das sessões: parece-lhe difícil falar – e impossível associar livremente. O que predomina é uma sequência de queixas a respeito de sua dor constante, segundo ele, injustificada, já que ele “não tinha motivos para sofrer”. Aos poucos, me dou conta do quanto sua vida é solitária. Nos encontramos em 2020, durante a pandemia de COVID-19, que se alastrou mundo afora provocando medo e isolamento. As sessões acontecem de forma on-line, e mesmo virtualmente, sinto que sou a mais significativa presença em sua vida naquele momento. Via identificação projetiva, sou posta a encarar com ele a angústia do vazio. Ele me conta sobre outra presença que predomina em seus dias: o uso dos aplicativos digitais. Fala sobre as vezes em que pede comida no iFood, as compras pelo Rappi, as paqueras pelo Instagram. Mas nada disso parece provocar um sentimento real, eles são usados freneticamente na busca de algo que nunca é encontrado. E o vazio retorna novamente. Surge em minha mente a imagem de um hipermercado. A luz é branca, fria e o ambiente está esterilizado – limpo e estéril. Percebo Venâncio olhando para uma prateleira gigantesca, com infinitos produtos para todos os lados, ele age como se fosse escolher um novo amaciante, mas a surpresa é que, na verdade, todas as embalagens são iguais: não há escolha a ser feita. Essa imagem produz em mim pensamentos a respeito da experiência de Venâncio com os vários aplicativos – cada qual para cada dimensão do seu ser. Para comer: Ifood; para comprar: Amazon; para namorar: Tinder; para ter amigos: Facebook.... mas no fim, todas as milhares de opções de cada um desses sites não ofereciam nada de verdadeiramente novo. A experiência da hiperconectividade hoje se apresenta como uma resposta única para toda e qualquer demanda: não é mais necessário procurar no mundo algo que corresponda aos nossos desejos, o smartphone promete que você encontrará tudo o que precisa na palma de sua mão. Talvez hoje fosse possível reescrever a letra da música apenas com os nomes dos aplicativos digitais que usamos para cada ação do nosso dia a dia. De fato, é uma solução muito prática e facilitada para nossos dilemas cotidianos, mas o que isso provoca em termos das nossas capacidades de pensar e nos afetar? Para Venâncio, não havia nada ali que o capturasse: era como escolher entre milhões de amaciantes iguais. Interessante também notar a especificidade do objeto amaciante em minha imagem mental, ou seja, um produto de limpeza cujo objetivo é suavizar os tecidos das roupas, eliminando qualquer sensação de rugosidade ou aspereza. Essa função me parece similar àquela promovida pela vivência da virtualidade: nela não precisamos entrar em contato com a estranheza provocada pela alteridade. Todo o design de aplicativo é criado para que possamos ter uma experiência brandamente prazerosa: as cores, os formatos, a linguagem... tudo é pensado para gerar no usuário o máximo de previsibilidade, constância e permanência. Além disso, o algoritmo garante que entremos em contato apenas com aquilo que nos engaja, ou seja, com aquilo que se parece com nosso mundo interno, eliminando qualquer rugosidade que um outro diferente provocar. No campo dos aplicativos digitais é como se tudo tivesse recebido uma grande lavagem de amaciante. A experiência de aparecimento súbito em minha mente da imagem do hipermercado pode ser designada como uma reverie. A reverie é um conceito desenvolvido por Wilfred Bion que provém de uma tentativa do autor de ampliar a teoria freudiana dos sonhos. Na obra Teoria do Pensar (1962), Bion apresenta-o como um estado de mente receptivo da mãe, capaz de conter elementos não representados psiquicamente pelo bebê, possibilitando o sonhar da experiência e, consequentemente, a construção de sentidos. Esse mesmo processo pode se dar na relação analítica, quando uma imagem irrompe a mente do analista durante a sessão, indicando uma comunicação inconsciente entre a dupla. Desse modo, a reverie em uma sessão com Venâncio significa a abertura de campo e de esperança em meio a tanto vazio que vivemos na experiência das sessões. Se ainda é possível sonhar, talvez não estejamos perdidos. Essa sensação de vazio que predomina o processo analítico de Venâncio nos remonta as contribuições de Green acerca dos estados desvitalizados, do negativo e da pulsão de morte e sua função desobjetalizante. Pretendemos aqui costurar esses conceitos ao caso clínico em questão. A descrição inicial da vinheta nos remete ao que Green denominou de clínica do vazio, ou clínica do negativo. Nela, analista e analisando são envoltos por uma atmosfera terrorífica, na qual os dois são postos a lidar com a profunda falta de sentido de estar vivo. Nesses casos, o sentimento de impotência prevalece, pois existe a sensação de que nada será capaz de vitalizar novamente aquele psiquismo: é como se a dupla estivesse naufragando em alto mar, sem ter onde colocar os pés no chão, sem avistar qualquer terra firme, sem limites e, portanto, em completo desamparo. O analista que conta com a associação livre pode se sentir sem recursos para analisar, pois os escassos conteúdos verbais são entroncados, e se alternam com extensas pausas silenciosas, que trazem em si a representação do buraco psíquico experimentado pelo analisando. A esse respeito, Green (1980) afirma: Adivinha-se que o estilo narrativo é pouco associativo. Quando as associações se dão, são contemporâneas deste movimento de discreto retraimento que faz com que pareça que se trata da análise de um outro que não está presente na sessão. O sujeito desconecta, se desliga para não ser invadido pelo afeto da revivescência mais do que pela reminiscência. Quando cede, é o desespero que se mostra em toda sua nudez. (p.261) De forma complementar ao estudo dos estados desvitalizados e da clínica do negativo, Adriana Gradin, em sua obra Corações Murchos – o Tédio e a Apatia na Clínica Psicanalítica, nos oferece um rico e útil relato sobre esses novos modos de sofrimento pautados no tédio e na apatia – sentimentos esses frequentemente referidos por Venâncio. Segundo a autora (2020): O tédio e a apatia aparecem na clínica psicanalítica atual de modo considerável e sob as mais diversas formas, como aborrecimento, ausência de prazer em viver, indiferença, falta de energia e de desejo, preguiça para concretizar planos e sensação de anestesia. Esses sintomas são experimentados por um número crescente de jovens, adultos e também por crianças (...). (p. 23) Gradin (2020) denomina essa sintomatologia de “deserto simbólico”, apontando justamente para a característica árida da clínica com esses pacientes. Já Green (1988) denomina esses quadros de “anorexia de vida”, fornecendo-nos uma imagem nítida de um quadro em que a própria vida aparece em estado de inanição. De forma complementar, Minerbo (2017) também nos fornece uma contribuição importante a respeito da sintomatologia do tédio. Segundo a autora, ele pode ser confundido com um quadro depressivo, mas na realidade, trata-se de experiências afetivas distintas. Na depressão, o sentimento é de perda - o deprimido está cheio de tristeza e sonha em recuperar o objeto perdido. Já o paciente característico da clínica do vazio vive com a ausência, com o buraco em que nada pode preencher ou satisfazer. Nesses casos, não há sonho algum: o entediado vive um simulacro de vida (Minerbo, 2017). No artigo “O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico” (Green, 1974) o autor se refere a esses quadros clínicos marcados pelo vazio, apontando a necessidade de que sejam realizadas alterações na técnica psicanalítica clássica, em especial no que se refere as questões do enquadre e do manejo da contratransferência. Ele aborda os "estados fronteiriços de analisabilidade” (Green, 1974), caracterizados por uma falta de estruturação e organização, se comparados as neuroses ou até mesmo as psicoses. Abordando com mais profundidade o tema da contratransferência, o autor utiliza o interessante termo “objeto mumificado” para se referir a forma com que o analista se sente ao ser capturado pela rede de investimentos desses pacientes. O termo “mumificado” me pareceu descrever muito bem a sensação que predominava nas sessões com Vênancio: o vazio era tanto e tão profundo que parecia que estávamos paralisados, sem possibilidade de movimento e transformação. Diante disso, Green (1974) afirma que há uma exigência não somente das capacidades emocionais e empáticas do analista, mas também de suas funções mentais, já que as do paciente estão fora de ação. Assim sendo, a reverie representou um farol em meio a noite escura em que navegávamos, pois através das capacidades mentais da analista, tornou-se possível sonhar, e partir disso, construir uma elaboração psíquica dos conteúdos inconscientes projetados por Vênancio, uma capacidade psíquica que talvez ele não conseguiria colocar em ação naquele momento. Dessa forma, é possível promover alguma vitalização diante de um estado predominantemente desvitalizado. Visando uma posição implicada e vitalizadora do analista, Green (1974) propõe uma mudança na técnica da análise: ao invés da técnica dedutiva, utilizada com os pacientes neuróticos, nos estados fronteiriços cabe uma técnica indutiva. O termo induzir advém do latim inducĕre , que significa levar para dentro ou trazer para dentro. Ela é formada pela combinação do prefixo in (que indica movimento para dentro) e do verbo ducere (que significa conduzir ou levar). Portanto, inducĕre é geralmente traduzida como introduzir, iniciar ou conduzir para dentro. Tendo em vista a etimologia da palavra, a escolha de Green por esse termo para designar a técnica utilizada com os pacientes fronteiriços nos parece altamente precisa. A técnica indutiva implicaria, portanto, levar para dentro do paciente algo que a capacidade psíquica do analista pôde transformar. Esse foi o caminho e horizonte almejado no processo analítico de Venâncio. Essa técnica indutiva também implica na utilização de uma intervenção já proposta por Freud, no final de sua obra: a construção em análise. Na obra “Construções em Análise” (Freud, 1937) o autor aborda uma possibilidade de atuação do analista que diverge da clássica interpretação, na qual o analista comunica elementos ausentes da história, mas que podem ser induzidos. Essa proposição de Freud é de grande valia para os casos-limite, tal como o de Venâncio, no qual há o predomínio do silêncio e do vazio nas sessões. Diante de tão poucos conteúdos expressos verbalmente, é necessário que o analista possa pensar e inferir como se deu a constituição psíquica desse sujeito. Segundo Green (1974): Deste ponto de vista o analista não só revela um significado oculto. Ele constrói um significado que jamais foi criado antes de o relacionamento analítico ter começado (Viderman, 1970). Eu diria que o analista forma um significado ausente. A esperança na análise encontra-se na noção de um significado potencial (Khan, 1978) que permitirá que o significado presente e o significado ausente se reúnam no objeto analítico. Nesse sentido, a obra de Green “Narcisismo de Vida e Narcisismo de Morte” de (1983) pode ser utilizada como uma indução daquilo que pode ter ocorrido na constituição psíquica de Venâncio. Nela, Green aborda o complexo da mãe morta, afirmando que o traço marcante que singulariza os processos psicanalíticos atuais é a questão do luto. Mas não um luto de uma morte real da mãe, e sim, o luto pela morte de uma mãe que permanece viva, mas que está morta psiquicamente aos olhos da criança. Essa imago materna representaria a transformação de um objeto vivo e fonte de vitalidade em um objeto distante, átono, quase inanimado (Green, 1980). Apesar de sabermos muito pouco da história pregressa de Venâncio, é possível inferir um cenário no qual seu objeto primário foi visto por ele como morto, sem vida, provocando um desencontro radical que acarretou um intenso retraimento de seus investimentos libidinais desde a primeira infância. Essa hipótese pode ser utilizada, pois temos acesso ao que é vivido na atualidade da sessão. Green diferencia o luto em dois tipos: preto e branco. O luto preto estaria ligado às depressões e, portanto, as manifestações de ódio e destrutividade. Porém, ele seria apenas consequência do luto branco, que por sua vez, estaria ligado aos estados de vazio, próprios da clínica do negativo, nos quais houve uma perda no nível narcísico (Green, 1983). Segundo o autor, a origem desse luto branco estaria em um desinvestimento massivo, radical e temporário, que deixou marcas no inconsciente do sujeito sob a forma de “buracos psíquicos” (Green, 1980). O luto branco faz parte da descrição formulada por Green (1983) de série branca, que inclui a alucinação negativa, a psicose branca, o luto branco e a angústia branca. A ideia de branco surgiu a partir de uma sessão com um paciente que, para descrever seus estados de vazio, utilizou o termo em inglês “blank”, que posteriormente foi traduzido como “branco” (Green, 1983). Porém, o termo em inglês também se refere a algo que é inexpressivo, sem sentido, sem tom. A partir de então, o autor se aprofunda nessa denominação da série branca e cria uma relação entre a cor branca e a ideia de vazio, utilizando a expressão “sonho em branco” ou “tela em branco do sonho” (Green, 1983). A angústia branca, advinda do luto branco, é o que aparece na análise como sentimentos de vazio, o desinvestimento libidinal, a impossibilidade de associar, de representar ou de elaborar - tal como experienciado no processo psicanalítico de Venâncio. Segundo Green (1983): O desinvestimento das representações que o deixam se confrontar com seu vazio constitutivo. O Ego se faz desaparecer diante da instrusão do excessivamente pleno de um barulho que é preciso reduzir ao silêncio (...). uma impossibilidade de pensar, acompanhada de um sentimento de separação total, de solidão intolerável e de impulsão corporal (p. 156-157) Green (1980) afirma que na clínica do negativo houve um luto súbito da mãe que desinvestiu brutal e repentinamente seu filho, provocando sensação de catástrofe: o amor foi subitamente perdido. A consequência é um trauma no narcisismo do indivíduo, constituindo uma desilusão antecipada e que causa, além da perda do amor, uma perda de sentido, já que o bebê não consegue produzir qualquer pensamento que dê conta de explicar a perda ocorrida. Essa construção analítica não pode ser deduzida a partir de rememorações neuróticas, pois é algo que o sujeito não acessa devido ao caráter precoce desses acontecimentos. No entanto, induzir essa história de constituição psíquica no caso de Venâncio nos possibilita emprestar nossas funções mentais para que algum sentido possa ser construído diante de tamanho vazio. Nesse sentido, a perspectiva adotada neste trabalho não é de que hiperconectividade virtual seja elemento fundante das patologias do vazio, visto que se compreende raízes muito mais profundas na constituição psíquica do narcisismo negativo. No entanto, a utilização desenfreada dos dispositivos eletrônicos incita processos psíquicos desvitalizadores, que em casos-limite, como de Venâncio, intensificam um processo já corrente de morte psíquica. Retomando o caso clínico de Venâncio, cerca de dois anos após a primeira vinheta clínica já apresentada, o paciente foi gradualmente podendo elaborar e dizer mais de seu sofrimento. Houve sessões extremamente significativas nas quais ele pôde falar mais de suas relações familiares e história de vida pregressa, compartilhar pensamentos e construir narrativas. Um trabalho meticuloso, que aconteceu gradativamente, entre altos e baixos. Mas mesmo com as dificuldades, algo foi se costurando. Simultaneamente, ele passou a se relacionar com mais pessoas, começou a namorar e a viver com uma moça. Por identificação, a namorada parecia apresentar sintomas de apatia e tédio como ele. Em uma dada sessão, tivemos o seguinte diálogo: – Ela não está bem. – diz Venâncio (Eu escuto que ele próprio não está bem). – O que você está sentindo? – Não não, eu disse que ela não está bem, minha namorada. – Me “corrige” Venâncio. – Curioso, eu havia entendido que você não estava bem. Talvez vocês estejam mais conectados do que parece. – É, é. Mas então, ela tem tido dificuldades no trabalho... E Vênancio passa a uma longa explicação sobre as problemáticas do trabalho da namorada. É uma sensação comum nas sessões de que muitas vezes o que eu digo não provoca impacto algum, é frequente que eu sinta como se eu não estivesse ali. Mas prosseguimos. – O que está complicado é que ela fica o dia todo da cama para o sofá, mexendo no celular, jogando videogame. E eu fico com ela, né? Esse fim de semana eu tinha um aniversário de um amigo, mas ela não quis ir, então eu também não fui. Eu sei como é se sentir assim, eu também fico assim às vezes e é uma merda. Você fica mexendo o dia inteiro nas telas. É como ficar browseando infinito. – É uma inércia? – Exatamente, uma inércia. Você fica navegando, navegando e nada faz sentido. Queria que a gente fizesse mais coisas, o que fosse, encontrasse pessoas, fôssemos no parque ou no cinema. Não precisava ser nada demais... – Me dá a sensação de que nada preenche. – Nada preenche, nada, nada. É um vazio o tempo todo. – Você queria ter ido no aniversário do seu amigo? – Não. E é esse o ponto. Não é que eu queria, mas eu tinha um pouco de energia que se eu aproveitasse eu poderia ir até lá. E então eu encontraria com as pessoas, me conectaria com elas, e talvez voltasse para casa me sentindo melhor. – Parece como uma faísca, um lampejo de vida que você precisa aproveitar. – É, eu engatilho e preciso aproveitar isso. Mas ela nem está conseguindo se interessar por nada, então eu também começo a afundar junto. A única coisa que ela quer fazer é jogar. Acorda, liga o videogame, joga o dia inteiro até de madrugada. Depois se sente mal como se não tivesse feito nada o dia todo. – Mas o videogame é um outro mundo? Com outra história, em que vocês podem ser outras pessoas, na verdade, personagens? – Não é sobre isso. Na verdade, é bem mecânico. Mecânico, mecânico, mecânico. Você fica só pensando que precisa fazer isso e aquilo, mirar, atirar, correr. Distrai a cabeça sabe, eu entendo. São partidas de 10 minutos no máximo em que você não precisa pensar em nada. Joga até de madrugada, depois sente que não fez nada, e se deita na cama se sentindo mal. Daí fica ansioso e não consegue dormir. - Parece que não há possibilidade de sonhar. É notável como Venâncio consegue agora associar muito mais a respeito do que vive e sente, ainda que esteja parcialmente projetado na figura da namorada. Seus relatos nesse momento não são apenas das ações mecânicas que executa, como era há alguns anos antes, agora ele pode reconhecer essa mecanicidade – e se incomodar com ela. Mas alguns pontos dessa vinheta clínica merecem maior detalhamento, visto que ilustram as imbricações de seu sofrimento com as tecnologias digitais. O primeiro deles diz respeito aos atravessamentos na experiência de contato analítico entre mim e Venâncio. Primeiro, nota-se que ele fala da namorada para dizer de algo de si próprio – é perceptível que, quando ele diz do sofrimento dela, ele está falando da angústia que ele sente, encontrando nesse mecanismo uma forma de expressar-se. Outro ponto tem a ver com a minha sensação frequente de que o que eu digo não é recebido por ele, como se qualquer intervenção que eu fizesse não fosse capaz atingi-lo e provocar reverberações. A proposta analítica clássica de que Venâncio, enquanto analisando, fale de si, enquanto eu, enquanto analista, escute e devolva interpretações, me parece um cenário extremamente complexo – e raramente atingido nesse processo analítico. Às vezes ele consegue dizer de si, falando de outro. Por outras, ele age como se eu não estivesse presente, tem a necessidade de negar, ignorar ou atacar tudo o que vem de fora: um “alone together” analítico. Percebo a problemática que se instaura no contato com um outro sujeito, em termos gerais, lidar com a alteridade se torna um grande desafio. A respeito desse fenômeno contratransferencial, Green (1974) afirma: O analista está em uma situação de “exclusão objetal”. Suas tentativas de interpretação são tratadas pelo paciente como sua loucura, logo levando o analista a descatexizar seu paciente e a um estado de inércia caracterizada por uma resposta em eco. (p. 44) Quando ele usa um outro para falar de si, embarco em sua narrativa. Quando ele rebate com agressividade as minhas falas, sobrevivo aos ataques e permito que ele faça esse uso de nossa relação. Ou quando sinto minha presença negada, com delicadeza busco mostrar que ainda estou ali, como um outro sujeito que o escuta. Uma escuta que rompe com a repetição mecânica e infinita a qual ele está submetido, que promove espaço para que, talvez, possa emergir um pensamento. Venâncio me convida para navegar em seu barco, e aos poucos, vou encontrando um assento possível para a alteridade que eu represento. Nesse diálogo que mencionei acima, surpreendentemente, em certo ponto, ele se sente entendido por mim: “Exatamente, uma inércia”. Nesse momento, sinto que pude compreendê-lo verdadeiramente e ele se sentiu compreendido de volta. Que alívio, estamos navegando em águas conhecidas agora: o campo analítico se fez presente em alto mar. O segundo ponto que merece ser destrinchado aqui diz respeito ao estado desvitalizado no qual Venâncio e a namorada se encontram. A rotina da “cama para o sofá”, fazendo uso constante de celular, TV ou videogame, gera um cenário de tédio e angústia profundos. A sensação de que “nada preenche” é constante e intrigante, pois constitui um paradoxo. Ao mesmo tempo que os meios tecnológicos avançam diariamente, com novas funcionalidades, atualizações, imagens cada vez mais nítidas, jogos extremamente imersivos, inúmeras postagens nas redes sociais, lançamentos em massa de filmes e séries, ou seja, uma quantidade absurda de conteúdos disponíveis para serem consumidos, nada disso, de fato, torna-se significativo, nada disso parece povoar substancialmente o espaço psíquico. De fato, esse preenchimento a qual Venâncio se refere não pode ser suprido com os produtos digitais, que apenas têm a função de entretê-lo Na verdade, essa falta de preenchimento refere-se aos buracos psíquicos designados por Green na clínica do negativo. Para Green, o trabalho do negativo é parte constituinte do funcionamento psíquico normal. A imagem que o bebê cria quando a mãe não está presente, ou seja, sua alucinação negativa fica de fundo na experiência psíquica do infante, operando como um alicerce fundante que, ao mesmo tempo que está sempre presente, também abre espaço para que a criança possa construir novos investimentos objetais. A troca de investimentos pulsionais entre o bebê e seu objeto primário cria a estrutura enquadrante do narcisismo primário, que sustenta a possibilidade de espaço interno para que o sujeito crie relações com novos objetos. (Green, 1966-1967). No entanto, conforme vimos no capítulo desta dissertação destinado ao aprofundamento teórico das ideias de Green, o negativo pode assumir uma face desestruturante, beirando os limites do patológico, quando há um desinvestimento significativo, e consequentemente, um retraimento do Eu. Segundo Candi (2012): O trabalho do negativo tanto constitui o psiquismo como o ameaça...quando prevalece a ameaça, teremos que nos defrontar com o negativo do negativo, que são os aspectos destrutivos do trabalho do negativo, que se manifestam por causa da ausência ou presença excessiva dos objetos primários. (p. 255) Assim sendo, podemos hipotetizar que Venâncio está falando desse negativo do negativo, ou do negativismo do trabalho do negativo, que leva o sujeito sempre ao nível zero. Para Green (1997) existe um processo de apagamento relacionado a representação interna do negativo, ou seja, é possível que se realize uma representação da ausência de representação, que em ternos do pensamento corresponde a alucinação negativa, e em ternos afetivos corresponde ao vácuo, vazio, ausência de sentido. Quando esse espaço vazio da ausência de representação atinge proporções maiores do que o tolerável para sujeito, a sensação do “nada preenche” descrita por Venâncio predomina – e os estímulos virtuais servem apenas para ocupar um espaço temporário na mente do indivíduo, mas sem qualquer possibilidade de vitalização significativa. De fato, nenhum desses conteúdos digitais preenche o vazio experimentado por Venâncio, e por muitos outros. Mesmo assim, são frequentes os relatos de pessoas que cada vez se sentem mais dependentes do uso dos aparelhos eletrônicos. Muitas pessoas hoje afirmam que, ao acordar, sua primeira ação do dia é checar seu celular. Ou seja, nos primeiros minutos do dia, naquele momento de penumbra psíquica, entre o sono e a vigília, já se está em contato com uma avalanche de conteúdos digitais. É impossível desconsiderar que isso deve ter um efeito significativo em nossa vida psíquica. E quando retomamos o caso clínico de Venâncio, podemos perceber em sua fala a descrição de uma mente freneticamente povoada de estímulos, que está sendo alimentada constantemente pelos conteúdos fornecidos através dos dispositivos digitais. Venâncio e a namorada parecem se encontrar em um estado de vazio e desvitalização, e como forma de aplacar a angústia, recorrem ao videogame para passar horas a fio, uma maneira de não pensar e não sentir. A angústia reaparece apenas na hora de dormir, quando se dão conta de que o dia passou e nada de expressivo aconteceu. Nesse sentido, reflito sobre o quão disruptiva pode ser uma sessão de análise. Permanecer por cerca de uma hora no contato com um outro sujeito. Sem estímulos, sem anúncios, sem luzes coloridas, sem passar para o próximo vídeo. Apenas estar ali, falando e escutando, corpo a corpo, sujeito a sujeito. E isso pode se dar tanto na sessão virtual quanto na presencial: a análise se torna um exercício de humanidade. Além disso, não se trata de uma atenção frenética, que vai ao limite, tentando absorver o que pode dos muitos estímulos presentes. Um processo analítico pede uma atenção que é associativa, livre, que abre espaço e toma tempo. O que parece importar é o estar presente, por si só. Ter sua atenção verdadeiramente voltada para a experiência da sessão, com a presença contínua de um outro, se constitui como primordial – e é algo cada vez mais raro no cenário contemporâneo. Retomando o caso clínico de Venâncio, chamam atenção alguns termos utilizados por ele em sua fala (que estão assinalados em itálico no diálogo). Dizem respeito a palavras empregadas para descrever seu estado psíquico: conectar-se ou desconectar-se com as pessoas, ter energia para fazer uma tarefa, engatilhar para conseguir se interessar pelo mundo, mirar e atirar na experiência de jogar videogame, browsear infinito na busca de algo pelas redes sociais. Todas elas apontam para uma descrição de si próprio como uma máquina, um dispositivo humano. Um dispositivo humano apassivado, que apenas recebe os estímulos de prazer, sem a necessidade de tolerar uma frustração de produza pensamentos, e portanto, que promova subjetivação. É como ser uma máquina, que pode estar carregada e funcionando como um celular, ou completamente descarregada e sem vida. Que se conecta como uma tomada que liga e desliga a eletricidade. Que engatilha, mira e atira como uma arma que destrói sem perceber. Que procura infinitamente por algo que nunca encontra. No lugar do humano, estamos diante do dispositivo humano. Não acredito que essas expressões sejam apenas questões meramente linguísticas, ou até um efeito do estrangeirismo na cultura brasileira – já que muitos desses termos são importados da língua inglesa. Na verdade, acredito que eles traduzem a construção imagética que Venâncio faz de si próprio, inconscientemente. Como uma máquina, ele serve para executar ações, sem pensar e sem sentir, pois quando há possibilidade disso, a angústia invade de forma avassaladora. Passar o dia da cama para o sofá, alternando entre celular, videogame e TV, permite que ele esteja constantemente estimulado, mas não de forma criativa, e sim, de forma mecânica. Como ele próprio diz “você não precisa pensar em nada”. Anulando-se o pensamento, intenta-se anular o sofrimento, mas o (re)produz de muitas outras formas. Até que a madrugada chega e o reencontro com o vazio torna-se inevitável. Nesse ponto podemos tecer uma relação com a crônica de Clarice Lispector “Medo da eternidade” (1970). Nela, a escritora relata o seu “aflitivo e dramático contato com a eternidade”, quando sua irmã lhe dá pela primeira vez um chiclete, descrevendo-o como uma “bala que nunca acaba, dura a vida inteira”. A ideia de nunca acabar de pronto espantou Clarice, que mesmo assim, resolveu experimentar a guloseima. No início, se deliciou com o gosto doce, mas quando ele esse prazer findou, a resposta de sua irmã foi “agora mastigue para sempre”. Clarice conta como se assustou com essa experiência, com o desconforto de ter na boca um “puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada.”. Ela descreve sua experiência da seguinte forma: “Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito”. Ao final da crônica, a aflição toma por completo a narradora, que sem suportar mais a experiência, deixa o chiclete cair no chão, fingindo para a irmã que havia sido sem querer. A experiência que Venâncio relata nos remete a esse “puxa-puxa cinzento e infinito” do chiclete. Os jogos de videogame estão ali, sempre à disposição, para que se jogue quantas partidas desejar: eles são infinitos. Mas o que pode parecer magnífico na experiência da eternidade, rapidamente se revela uma experiência de extrema angústia e desprazer – o gosto prazeroso da descoberta se esvai e a característica inesgotável daquele estímulo apenas nos coloca em contato com o buraco sem fundo do vazio. É como cair em queda livre e nunca chegar ao chão, ou então, é como estar no mar sem poder tocar os pés na areia. A supressão de qualquer limite, de qualquer fim para uma experiência nos arremessa diretamente para a angústia do vazio e da morte. Nesse sentido, o trecho da vinheta clínica e a crônica de Clarice Lispector nos remetem às contribuições greenianas a respeito da pulsão de morte. O autor aponta que, enquanto a pulsão de vida teria como representante psíquico a função sexual, a pulsão de morte teria como representante psíquico a função autodestrutiva (Green, 1984). Nesse sentido, a pulsão de vida teria a função objetalizante, ou seja, seria a energia psíquica de investimento e criação de objetos, transformando os objetos externos em representantes psíquicos internos. Em contrapartida, a pulsão de morte teria a função desobjetalizante, ou seja, seria a responsável pelo desligamento, pelo desinvestimento – que ao mesmo tempo que é necessária para a constituição psíquica do sujeito, sua predominância pode também provocar intensos sofrimentos. Nesses casos, o desinvestimento seria tal que haveria a criação de verdadeiros espaços vazios, negativos, que afetivamente provocam no sujeito sentimento de falta de sentido em estar vivo (Green, 1984). A pulsão de morte parece, dessa forma, operar tanto na experiência de jogar videogame de Venâncio, quanto na de mascar chiclete de Clarice. A sensação de uma ação que nunca se esgota, que é repetidamente igual, que estimula, mas sem provocar afetação, leva esses dois sujeitos a depararem-se com uma ausência completa de sentido. O movimento dialético de investir e desinvestir os objetos é equilíbrio dinâmico de nossa mente: mas não é isso que ocorre nessas experiências, que parecem fixar os sujeitos em repetições infinitas. Essas repetições nos remetem também às descrições de Freud em “Além do Princípio do Prazer” (1920), ocasião na qual o autor propõe o conceito de pulsão de morte para explicar a compulsão à repetição, ilustrada pelos casos de pesadelos dos neuróticos de guerra e do jogo do carretel. Assim, articulando com as proposições de Green, podemos hipotetizar que o desinvestimento, próprio da função desobjetalizante da pulsão de morte, quando toca a compulsão de repetição mortífera, se radicaliza, e não somente desinveste o objeto, mas provoca o desinvestimento no próprio Eu. Segundo Cano (2015): De tal modo, a compulsão à repetição mortífera, ao contrário de repetir o desejo inconsciente – e, portanto, estar referida à intemporalidade do inconsciente e à lógica da esperança – é, na verdade, um anti-tempo. Nesse sentido, presente, passado e futuro ficam reduzidos ao instante da descarga completa de toda tensão, impossibilitando qualquer projeto. (p.17) E é exatamente essa a consequência que percebemos no caso clínico de Venâncio: o tempo está reduzido a descarga presente proporcionada pelo uso das tecnologias digitais, quanto seu Eu sofre desinvestimentos massivos. Continuando o detalhamento da vinheta, minha reação a seguir foi de perguntar à Venâncio: “Mas o videogame é um outro mundo? Com outra história, em que vocês podem ser outras pessoas, na verdade, personagens?” Quando fiz essas perguntas, eu estava procurando algo no qual pudéssemos nos agarrar em esperança. Fiquei imaginando que talvez houvesse uma história, em que ele encarnava um personagem e vivia aventuras num mundo de fantasia. Como quando lemos um livro, e ele faz arejar nossos pensamentos, ao nos transpor para um universo muito diferente do nosso – ou talvez mais parecido do que imaginávamos. Será que nessa experiência de Venâncio em jogar videogame havia algo do tipo? No entanto, sua resposta me leva justamente a reconhecer a concretude de sua vivência: “mecânico, mecânico, mecânico”. A partir dessa compreensão, consigo elaborar a seguinte consideração final: “Parece que não há possibilidade de sonhar”. Portanto, o que se configura, de fato, é um sequestro da capacidade de pensar e sentir. Ogden (2009) afirma que o objetivo de uma análise é que a dupla analítica possa, em conjunto, sonhar os sonhos que o paciente, sozinho, não pôde sonhar – e que havia, portanto, transformado em sintoma. Sonhar, através de duas mentes, os sonhos que não podiam ser sonhados de forma isolada, promove a retomada das capacidades psíquicas do paciente, inclusive a de continuar transformando sintomas em sonhos. Dessa forma, compreendo meu caminho e direção analítica com Venâncio. Além de promover um espaço em que pode predominar um outro tipo de atenção, também pode ser o espaço de sonhar juntos àquilo que tem sido soterrado em sua hiperconexão digital. Chegamos então à expressão usada por Venâncio, e título desse capítulo, browseando infinito. O verbo criado por ele “browsear” refere-se ao termo “browser”, em português, “navegador” – o programa que nos permite navegar pela internet, encontrar páginas e exibir imagens, textos e vídeos nos dispositivos digitais. A origem da palavra inglesa vem de "to browse", que significa "explorar". Inicialmente, o termo "browser" era utilizado para descrever o ato de percorrer livros, revistas ou outros materiais de leitura de forma casual, sem um objetivo específico. O que se assemelha muito à experiência de Venâncio, que navega por horas e horas a fio os meios digitais em busca de algo que nunca se encontra, sem propósito e sem fim, à deriva no oceano das redes. Percebemos, portanto, um paradoxo: o desejo criativo-exploratório completamente desvitalizado cedeu espaço a um navegar infinito, do qual nada se encontra. Interessante notar que a página de conteúdo de cada mídia digital (chamada de feed) é projetada para exibir uma quantidade ilimitada de conteúdo em cada sessão de navegação. No entanto, a ideia por trás do design é manter os usuários engajados e oferecer uma experiência contínua, atualizando constantemente o feed com novas postagens à medida que o usuário “arrasta para baixo”. Ou seja, com um mínimo movimento de deslizar do dedo indicador você pode ter acesso a uma quantidade gigantesca de conteúdos digitais, sempre novos e atualizados, de forma a causar a sensação de que sempre haverá algo novo para ser consumido. Dessa forma, cria-se uma espécie de hipnose digital que gera um estado de alheamento de si, do outro e do mundo. Recentemente, os aplicativos têm adotado o sistema de reprodução automática, no qual um vídeo já se segue ao próximo, mesmo que o usuário não o selecione ativamente. Isso foi programado justamente para capturar ainda mais a atenção do usuário sem que ele sequer precise tomar qualquer ação. Assim sendo, esse sistema incentiva o indivíduo a passar mais tempo na rede, retendo-o em contato inativo com o conteúdo. Temos, portanto, um processo de apassivação do sujeito. Tudo é desenhado para criar uma experiência altamente estimulante, prazerosa, acelerada e simultaneamente infinita. A esse respeito, Leite (2022) afirma: Acredito que [as mídias sociais] foram desenhadas exatamente para isto – engajar nossa atenção pelo máximo de tempo possível, recorrendo aos mecanismos mais primitivos do funcionamento mental para entregar seus resultados. Passar de postagem em postagem pode ser uma experiência narcótica, justamente porque sequestra o aparelho psíquico em torno do princípio do prazer e de suas projeções narcísicas. E é aqui em que observamos o princípio da realidade ceder. E essa experiência narcótica, à qual se refere Leite, se assemelha àquela experienciada por Venâncio. Um desejo de manter-se o dia todo diante dos aparelhos eletrônicos, obtendo prazer em cada partida vitoriosa no videogame, em cada curtida em uma foto do Instagram, ou em cada piada em vídeos do TikTok. Um prazer efêmero, pautado exclusivamente na satisfação via princípio do prazer – que nos meios digitais, pouco têm de lidar com o princípio da realidade. Se a frustração teimar em aparecer, basta começar uma nova partida do jogo, deslizar a tela para ver uma nova imagem, dar play em um novo vídeo. Se pensar exige tolerância à frustração, as redes favorecem ao não pensamento, a satisfação apassivada do princípio do prazer. Assim, é possível evitar o contato com a realidade e com a alteridade, em uma narcotização da vida. Não é à toa que o sentimento de angústia só reaparece no escuro da madrugada – quando não há mais luz azul que possa raptar seu aparelho psíquico. Considerações finais Nossas interações com as tecnologias digitais estão de tal modo intrínsecas ao nosso viver contemporâneo, que frequentemente não percebemos mais o impacto dessa utilização em nossa subjetividade. No entanto, como ferramentas criadas por nós, as tecnologias digitais refletem nossa constituição humana, sendo desenvolvidas para tentar suprir justamente o que nos falta enquanto sujeitos, visando minimizar ao máximo nossos sofrimentos e limitações. Se demandamos por comida, cria-se um aplicativo especializado em entregas rápidas e descomplicadas. Se demandamos por relacionamentos, cria-se um aplicativo para facilitar os encontros românticos. Se demandamos por prazer, cria-se um aplicativo especializado em divulgar vídeos curtos que nos entretenham infinitamente. Porém, essas promessas de facilitação da vida cotidiana podem ser uma faca de dois gumes quando falamos de experiências de hiperconectividade, ilustradas pelas vinhetas clínicas apresentadas nesse capítulo. Nessas experiências, percebemos um efeito narcotizante e apassivador, que visa evitar a formação de pensamentos e o contato emocional. Como consequência, surgem relatos clínicos de vazio, desesperança e falta de sentido em estar vivo, já que, diante do surgimento de qualquer angústia, opta-se pela experiência hipnotizante da (des)conexão digital, em detrimento de uma conexão com si próprio e com o outro. Referências Bibliográficas Candi, T. (2012). O trabalho do negativo. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(1), 192-195. Recuperado em 03 de setembro de 2023, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2012000100016&lng=pt&tlng=pt . Cano, T. M. (2015). A teoria pulsional freudiana à luz da leitura de Green: uma alternativa ao biologismo mítico. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. doi:10.11606/T.47.2015.tde-06082015-155127. Recuperado em 2024-01-14, de www.teses.usp.br Castells, M. 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- Reflexões sobre conjugabilidade e parentalidade. Um caleidoscópio de constituições familiares
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2016 no Jornal de Psicanálise , volume 49, número 91, páginas 97–109. O artigo pode ser encontrado no link http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v49n91/v49n91a10.pdf Resumo: O artigo faz uma reflexão sobre as novas formas de constituição familiar na contemporaneidade, com base na compreensão da complexidade dos vínculos intersubjetivos e de suas características polissêmicas e potencialmente transformáveis. Compreende-se que os aspectos intersubjetivos e intrassubjetivos são indissociáveis. O artigo apresenta algumas características da família contemporânea: horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. É discutida a questão da patologização do desconhecido, fruto das angústias diante do novo que se apresenta. Os conceitos de bissexualidade psíquica de Freud e a denominação neossexualidades de McDougall são usados na compreensão das novas formas de conjugabilidade e parentalidade. Palavras-chave: conjugabilidade, parentalidade, vínculos intersubjetivos, constituições familiares A imaginação humana não tem limites. O psiquismo é de uma plasticidade ímpar, assim como as múltiplas e infinitas formas de conjugabilidade 1 e parentalidade. 2 Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a complexidade vincular característica do humano. Bion (1962) foi um dos psicanalistas que estudaram e aprofundaram as questões vinculares, compreendendo os vínculos como elos que unem duas pessoas ou mais, no campo intersubjetivo. E, também, os elos intrassubjetivos que unem partes de uma mesma pessoa. Bion dedicou-se à análise do vínculo entre analista e analisando e entre os membros de um grupo. Os vínculos são polissêmicos e potencialmente transformáveis. As reflexões aqui expostas privilegiam o aspecto intersubjetivo, considerando que todas as dimensões presentes nos vínculos estão inextrincavelmente ligadas e são indissociáveis umas das outras. A ênfase é na polissemia e plasticidade dos vínculos, características que parecem inviabilizar normatizações. Levando em conta a potencialidade transformadora dos vínculos intersubjetivos, parto para uma reflexão panorâmica do que observamos nas complexas composições conjugais e parentais das famílias contemporâneas. 3 Um caleidoscópio estonteante O que era inimaginável há alguns anos hoje está nas ruas, na Internet, nas revistas. A ideia de família despedaçou-se em um caleidoscópio estonteante. Uma mãe menopausada gestando, uma avó que gera o neto, uma irmã que gera o sobrinho, as doações e adoções de gametas... a lista de novidades é grande, e tende a se estender ainda mais. A tecnologia de reprodução humana deu asas à imaginação, causando surpresas, discussões, preocupações. Como podemos pensar as relações familiares diante dessa explosão do conhecido que considerávamos estável? Como não tornar patológico o desconhecido? A patologização pode ser compreendida como uma tentativa de organizar a angústia diante da vastidão de constituições familiares que encontramos hoje. O desconhecido acirra as angústias. Se a capacidade da mente de enfrentamento diante do novo for frágil, o apego ao conhecido e a patologização do desconhecido tornam-se modos defensivos de lidarmos com a experiência. O apego ao que já conhecemos muitas vezes é mais forte do que imaginamos ou do que gostaríamos. O desconhecido, o estranho causa medo e desamparo, levantando todo o arsenal de defesas do eu, tanto no campo intersubjetivo, quanto no intrassubjetivo, que são indissociáveis. Temos a tendência de considerar o conhecido, aquilo que não estranhamos, como bom e profícuo. Os historiadores, entre outros estudiosos, podem favorecer o desprendimento de nosso relativo conhecimento histórico, além do desapego narcísico daquilo que nostalgicamente consideramos bom apenas por ser conhecido. Em outras palavras, conseguimos ter um olhar panorâmico sobre aproximadamente três gerações que nos antecedem e três que nos sucedem, apenas. Na história da humanidade somos um grão de areia na cadeia de gerações, mas para nós isso é simplesmente tudo. Precisamos, pois, dos historiadores para compreender que as relações humanas já foram muito diferentes dessa referência que ainda temos: a sagrada família. 4 Philipe Ariès (1978) realizou um estudo iconográfico sobre a história social da criança e da família, atualmente uma obra de referência no assunto. O autor considera que, a partir do século XVI, com os quadros que representavam a sagrada família, teve início a família conjugal que conhecemos hoje, os pais e seus filhos. Como nascemos dentro desse contexto, a sensação subjetiva de que o mundo sempre foi assim é inevitável. Nessa perspectiva, a sagrada família ainda parece ser uma forte referência de um passado nostálgico e idealizado, quando havia uma organização familiar boa e saudável. A sagrada família gerou e gera vínculos patológicos e pessoas psiquicamente doentes, assim como pessoas suficientemente razoáveis em seu funcionamento psíquico. Mesmo com todos os manuais para pais das décadas de 1950, 1960, 1970 e assim por diante, os quais tendem a perpetuar-se nas prateleiras, criar um filho e constituir a vida familiar continua a ser um grande desafio, sem receita, sem causalidades simplificadoras e, portanto, reducionistas da complexidade dos vínculos humanos. O ambiente psíquico da família é, pois, o nascedouro de todas as patologias e também do humano suficientemente saudável. Segundo Weissmann (2009, p. 142), a família constitui-se com base em uma "rede de relacionamentos entre sujeitos atravessados pelo parentesco, na qual subjaz uma matriz vincular inconsciente que os abarca". A família contemporânea caracteriza-se por ser horizontal e fraterna, recomposta e em redes, geralmente com dois ou três casamentos sucessivos e respectivos filhos. Há uma conjugalidade afetiva, com ou sem filhos (Roudinesco, 2003). Hetero, homo, monoparental, pluriparental, e o que mais vier! De toda forma, a família continua a ser desejada como lugar de pertencimento. Penso que a pluralidade de constituições familiares existente hoje é fruto da plasticidade do psiquismo humano e da maior liberdade de manifestação das diferenças. Hoje aquilo que ficava escondido está nas ruas. Além disso, a tecnologia de reprodução humana tem viabilizado essa expansão de possibilidades, já que a procriação biológica sem a intervenção de técnicas não seria possível para pares do mesmo sexo biológico. Diante de tamanha diversificação, e do risco de elegermos critérios nos quais predomina mais o medo do desconhecido do que algo que colabore com a compreensão da complexidade, trago a seguir o conceito freudiano de bissexualidade psíquica 5 e a ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall. 6 O conceito de bissexualidade psíquica O termo "bissexualidade" foi sugerido a Freud por Wilhelm Fliess; há sobre isso vários comentários esparsos ao longo da obra freudiana, e aqui faço uma brevíssima apresentação do conceito, pois este já foi objeto de uma análise aprofundada em minha tese de doutorado citada acima. Em 1923, em O ego e o id, ao discutir as identificações com os pais e o complexo de Édipo, Freud (1923/1980a) escreve: A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo ... um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. (pp. 46-47) Apenas em 1938, em Esboço de psicanálise, Freud usa a expressão "bissexualidade psicológica", e não mais bissexualidade constitucional. A bissexualidade, compreendida como identificação - primária e secundária - com os aspectos masculinos e femininos dos pais, é indissociável da constelação edípica e de suas múltiplas vetorizações homo e heterossexuais. No que diz respeito à temática da masculinidade e feminilidade, Freud (1925/1980b), escreve: todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. (p. 320) Estamos sempre diante de uma composição única e intrincada entre masculinidade e feminilidade, obra da singularidade da história individual e suas articulações inéditas e contínuas. A bissexualidade psíquica está na base das identificações edípicas. Ogden (1992) escreve sobre as identificações bissexuais: Quando se tem de fazer uma eleição entre a mãe e o pai (entre feminilidade e masculinidade) não se chega a ser nem masculino nem feminino, posto que na masculinidade sã e na feminilidade sã cada uma depende da outra e também é criada pela outra. Isto é parte do resultado da insistência de Freud (1905, 1925, 1931) na bissexualidade fundamental dos seres humanos. (p. 155) Essa breve apresentação do conceito de bissexualidade psíquica dá a dimensão da complexidade da questão abordada aqui. As constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade que compõem uma identidade sexual assemelham-se a um caleidoscópio - são infinitas as composições possívei s. Logo, qualquer normatização pode levar a uma estagnação do que é próprio do humano suficientemente saudável: a constante expansão, transforma ção e criatividade. As neossexualidades McDougall (1999, 1991), psicanalista estudiosa da psicossexualidade humana, denomina neossexualidades as inúmeras possibilidades de vínculos entre duas pessoas. A autora não considera esse termo um conceito, mas sim uma forma de escutar os analisandos no que se refere à experiência da sexualidade, destacando que esta só pode ser considerada sintomática quando gera sofrimento no paciente ou em seus parceiros. Se o respeito às diferenças e à alteridade do outro estão presentes, não há motivos ou razões para considerarmos uma manifestação estranha a nós como patológica. Uma vez mais precisamos reconhecer que quando nossos analisandos recontam estas condições complicadas ou incomuns de fazer amor com parceiros que consentem nisto, embora seus relatos possam nos levar a procurar pelo sentido oculto de tais cenários, se estas neossexualidades não causam nenhum sofrimento a nenhum dos parceiros e não são sentidas como indevidamente compulsivas, não temos nenhuma razão para levar estes analisandos a encarar outros objetivos sexuais por causa de nossos próprios julgamentos de valor. Se tal é nossa ambição, o problema é nosso, e não deles! (McDougall, 1999, p. 24) Inicialmente, McDougall (1999) apresenta essa forma de denominar arranjos sexuais inusitados como uma maneira de autocura por parte dos pacientes. Considera que a erotização é um caminho para lidar como os traumas psíquicos, fazendo com que Eros prevaleça sobre Thanatos: "O que eu chamo de uma neossexualidade representa a melhor solução que a criança pôde encontrar para adquirir não somente uma vida e uma identidade sexuais, mas, algumas vezes, simplesmente uma identidade" (McDougall, 1991, p. 64). Em seu livro As múltiplas faces de Eros considera que "a sexualidade humana é inerentemente traumática e força o ser humano a um eterno questionamento" (McDougall, 1999, p. 12). Partindo dessa compreensão, a sexualidade humana, em suas diversas manifestações, pode ser considerada como uma conciliação sintomática; sendo assim, a totalidade da sexualidade consistiria em neossexualidades. Esta é a articulação provocadora e interessante que McDougall faz: a experiência da psicossexualidade humana é constituída de neossexualidades. Penso que essa maneira de denominar as manifestações sexuais considera a complexidade da questão para refletirmos sobre o novo que se apresenta, e o novo sempre se apresenta ao longo da história - a criatividade humana não tem limites. Neossexualidades parece nos livrar de preconceitos frutos de nossas angústias diante do que não conhecemos. Trata-se de uma denominação que, em vez de favorecer um vértice patológico, enfatiza aquilo que ainda não é conhecido e compreendido. 7 Como bem descreve McDougall (1999), masculinidade e feminilidade são construídas ao longo do desenvolvimento com base em uma rede complexa de influências identificatórias, na qual os pais têm uma influência significativa: Acrescento que podemos seguramente propor que a realização destas duas identidades fundamentais - por exemplo, nossa identidade de gênero, assim como nos-so senso de identidade sexual -, não é de forma alguma transmitida por herança hereditária, mas pelas representações psíquicas transmitidas, em primeiro lugar, pelo discurso de nossos pais, juntamente com a importante transmissão proveniente do inconsciente biparental - ao qual, mais tarde, é adicionado o input do discurso sócio-cultural do qual os pais são uma emanação. (McDougall, 1999, p. 15) A trama identificatória constituída na vida adulta é uma construção psíquica trabalhosa e sofisticada, que demanda muitos anos. Há, de fato, um longo percurso até nos tornarmos capazes de realização sexual genital. Caminho próprio a cada um, e extremamente plástico. A constituição da identidade sexual é, portanto, algo muitissimamente complexo, fruto de uma constelação identificatória de masculinidade e feminilidade própria a cada um. Ser é ser do próprio sexo, e existem inúmeras, únicas e infindáveis formas de ser. Cada um compõe identificações masculinas e femininas de maneira única para ser do próprio sexo. O reconhecimento das diferenças e da alteridade do outro está presente nos vínculos suficientemente saudáveis, independentemente da exterioridade na qual se apresentem. Esclareço: a composição manifesta de um casal, dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher, não acompanha nem revela a intrincada rede identificatória, predominantemente inconsciente, que está em jogo no funcionamento psíquico de uma dupla. As aparências não revelam essas complexas composições psíquicas de cada casal, constituídas por uma rede intrincada de constelações identificatórias. 8 No âmbito da plasticidade do psiquismo e das constelações identificatórias de masculinidade e feminilidade, a capacidade psíquica de reconhecimento da diferença entre os sexos e da diferença entre as gerações pode estar presente em uma relação entre duas pessoas biologicamente pertencentes ao mesmo sexo. A sexualidade humana é uma psicossexualidade, sem formas fixas ou predeterminadas. Nesse sentido, podemos pensar que a sexualidade humana é imaginativa, decorrente das sensações corporais em concomitância com as múltiplas identificações provenientes do inconsciente do casal parental. As sensações corporais são o solo da imaginação da psicossexualidade humana. A identidade sexual de cada um de nós é única, como uma digital. 9 As novas constituições familiares Tendo em mente o conceito de bissexualidade psíquica e o termo "neossexualidades", volto ao tema específico do artigo, as novas constituições familiares. A tecnologia de reprodução humana pode ser convocada a fazer parte tanto em vínculos manifestamente homo ou hétero, gerando uma série de desafios para os profissionais, além dos debates sociais e éticos sobre o tema. Há também aqueles casais que optam por adotar uma criança, e, nesse contexto, a participação de um terceiro - clínica de reprodução assistida ou judiciário - tem levantado acaloradas e difíceis discussões (Vieira, 2011; Toledo, 2008). Os vínculos veiculam tanto aspectos criativos quanto outros que geram sofrimento. É característica dos vínculos humanos a concomitância e alternância tanto do amor, como do ódio, podendo predominar a amorosidade ou não, independentemente da forma pela qual se constituem. Existem vínculos nos quais predominam variáveis que geram sofrimento: o desrespeito à alteridade que pode levar a situações de violência. Perante o vértice no qual predominam vínculos que geram sofrimento, médicos e equipe são convocados a situações extremamente delicadas. Ante o vértice dos vínculos nos quais predominam o respeito às diferenças, aqueles que não geram níveis elevados de sofrimento em seus participantes, também há grandes surpresas, mas, geralmente, mais fáceis de serem recepcionadas, pois a capacidade psíquica de consideração à alteridade está presente. Esses são, então, os vínculos nos quais predominam os aspectos criativos e construtivos, independentemente da forma manifesta com a qual se apresentam, homo ou hétero. O que acontece hoje não é inédito: já acontecia na cultura greco-romana. Na Roma antiga, os grandes generais tinham em casa a esposa e os filhos, e no exercício do poder, o fiel escudeiro, além de, muitas vezes, amante. Segundo Veyne (1985, p. 43), na Roma antiga as condutas sexuais não eram classificadas como homo ou hétero, mas como passivas e ativas. A passividade era a questão importante para essa sociedade, enquanto a bissexualidade era manifesta e aceita. Com o advento do cristianismo, a sagrada família tornou-se o modelo abençoado, e as relações homo foram consideradas pecaminosas, migrando das saunas públicas para lugares escondidos e culposos. Os vínculos homoafetivos talvez sejam os mais polêmicos e alvos de uma patologização defensiva, também, infelizmente, por parte dos profissionais envolvidos. A psiquiatria, por muitos anos, considerou como uma manifestação patológica a homossexualidade, que só deixou de pertencer há bem pouco tempo às classificações psiquiátricas (Roudinesco, 2003), e a homossexualidade masculina parece ter sofrido uma maior repressão social. Por causa disso, o escritor Oscar Wilde, por exemplo, na Inglaterra vitoriana, foi preso e condenado por atentado ao pudor - flagrante indecência. Em seu conhecido livro O retrato de Dorian Gray, insinua uma relação amorosa homossexual. A prisão e o afastamento dos filhos foram experiências tão devastadoras psiquicamente para Wilde, que esse gênio da literatura morreu precocemente, incapaz de voltar a criar. Cabe um breve comentário acerca do imbróglio, também por parte dos psicanalistas nas últimas décadas, quanto à questão da homossexualidade. Bulamah e Kupermann (2013), no artigo intitulado "Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico", por meio da análise de arquivos e artigos, apresentam a discriminação sofrida por candidatos homossexuais à formação. Tanto Roudinesco (2003) como Bulamah e Kupermann (2013) citam uma carta de Freud escrita em 1935 a uma mãe americana preocupada com a homossexualidade do seu filho. Faço aqui uso da mesma citação, pois expressa de forma clara o que Freud (1951) pensava sobre a questão: A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas nada existe nela de que se deva ter vergonha, não é nem vício nem um aviltamento, e seríamos incapazes de qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos altamente respeitáveis, dos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e entre eles encontramos alguns dos homens mais grandiosos (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, e também uma crueldade. (p. 787) Como um grande e criativo pensador, Freud manteve-se aberto e ético quanto à questão da homossexualidade, mesmo considerando o momento histórico no qual viveu, imerso em uma forte normatividade heterossexual. Interessante pensar que, até onde sabemos, não há registros de discussões ou manifestações preconceituosas quanto à homossexualidade feminina. No caso clínico A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher, Freud (1920) relata que a característica da escolha do objeto de amor revela uma composição sempre dúplice de aspectos femininos e masculinos entrelaçados, satisfazendo tanto as tendências homossexuais como as heterossexuais, ou seja, a bissexualidade de base que estrutura o complexo de Édipo. Nesse relato clínico, analisa o caso de maneira isenta de qualquer julgamento normativo, como era sua característica. A relação amorosa entre mulheres (Martinez, 2011; Corrêa, 2012) escapou parcialmente dessa mão de ferro moralista; parece ter usufruído de um maior benefício social, talvez por não provocar tantas reações fóbicas, pelas próprias características da feminilidade. Até há pouco tempo, as relações entre pares do mesmo sexo biológico estavam no armário, não podiam aparecer ao sol. A pluralidade dos vínculos conjugais homo expandiu-se e ganhou visibilidade. Se há pouco tempo as relações homo eram vividas a sete chaves, com culpa e embaraço, hoje são públicas - que nossos olhos e mentes se acostumem às novas cenas amorosas, que não mais se restringem àquelas do mocinho beijando apaixonadamente a mocinha. As cenas que vejo hoje na rua não fazem parte de minha infância, como farão parte da das novas gerações. Encontramos boa amostragem fazendo um passeio na Avenida Paulista, ícone paulistano. O estranhamento inicial talvez possa ser sucedido por uma familiarização com a diversidade de manifestações amorosas a que assistimos. Uma jovem universitária comentou recentemente que quase todos os seus colegas mostravam-se disponíveis a experiências sexuais consideradas inusitadas pela geração anterior, ou, também, podemos refletir que essas experimentações sexuais não eram declaradas nas gerações passadas, permanecendo veladas. Precisamos também considerar que há hoje uma supervalorização narcísica do prazer sexual, talvez em detrimento do compromisso afetivo entre os pares, o qual implica enfrentamento das inevitáveis frustrações da convivência cotidiana. Em determinado episódio do programa de televisão (GNT) Novas famílias, dirigido por João Jardim e que aborda essas novas constituições familiares, um casal constituído por dois homens e dois filhos frutos de um processo de fertilização assistida e barriga solidária, adverte: "nossos filhos vão crescer sem estranhar o nosso amor". De fato, se os filhos são considerados uma bênção da união do casal, dentro das referências sociais ainda predominantes, a sagrada família, os pares do mesmo sexo biológico também desejam essa inclusão. Muito além disso, desejam a experiência da parentalidade, ser pai e mãe. As funções materna e paterna não estão encarceradas em um sexo biológico, são funções psíquicas e, portanto, também plásticas em sua realização. O desejo de ter um filho é carregado de fantasias inconscientes, desejo primordial, de nos vermos e nos sucedermos em nossos filhos, como escreveu a poetisa Lya Luft (1997, p. 37): "naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo, amado meu, como eles se verão futuramente quando nós formos sombra na memória". Ter filhos é uma maneira de realizar o desejo narcísico de imortalidade do eu: algo que é próprio a cada um pode ter continuidade em um filho. 10 A tecnologia de reprodução humana apresentou uma oferta que viabiliza a procriação onde isso biologicamente não era possível, gerando inéditos arranjos familiares. Pesquisas sobre as novas constituições familiares surgidas com auxílio das técnicas de reprodução assistida estão sendo feitas (Souza, 2014), e muitas outras surgirão. O exercício da parentalidade entre pares do mesmo sexo biológico não parece ser estritamente atual, provavelmente já ocorria de maneira informal e não explicitada. Lembro-me do relato de uma paciente, nascida na década de 1940, pertencente a uma família de cinco filhos: o pai tinha sempre ao seu lado um grande amigo, e os dois trabalhavam e viajavam juntos. Na memória dos seus olhos de criança, que enxergam afeto e ternura, era um tio querido e amado por todos; já adulta, percebeu que não era apenas o melhor amigo do pai, mas também seu amante. O que é significativo, marcante, é o afeto - a forma pela qual ele se manifesta não segue regras, nem formatações; ao contrário, os vínculos são polissêmicos e plásticos. A novidade parece ser a intervenção de um terceiro, o médico ou o sistema judiciário (no caso das adoções), deslocando a situação vivida informalmente na intimidade dos lares para o lugar público, demandando novos formatos legais e inúmeras discussões. A medicina tornou possível que duplas homossexuais gerem filhos com o uso da tecnologia de reprodução humana, além dos casos de adoção, abrindo uma grande e polêmica discussão ética na sociedade (Almeida, 2012; Rodriguez, 2012). No entanto, o exercício da parentalidade fora do modelo da sagrada família parece anterior ao advento das novas tecnologias de reprodução humana. A diferença é que hoje se trata de um assunto público e publicável. Diante desse caleidoscópio de constituições familiares a céu aberto, talvez o mais importante e desafiador seja não tornar patológico o desconhecido, e ter sempre em mente a plasticidade das constituições dos vínculos humanos, nos mantermos abertos à compreensão da alteridade do outro e das neossexualidades. Finalizo com um belíssimo conto de Mia Couto (2013) chamado O embondeiro que sonhava pássaros. A história é uma descrição fantástica sobre um vendedor de pássaros que encantava as crianças na rua. Os pais paulatinamente se sentiram ameaçados por aquele desconhecido que maravilhava crianças e pássaros. "Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?" Perseguido pelos moradores João Passarinheiro é inquirido pela polícia: Inquirido sobre a sua raça, respondeu: - A minha raça sou eu, João Passarinheiro. Convidado a explicar-se, acrescentou: - Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia. (p. 65) Todos nós somos únicos, e os vínculos que estabelecemos também são únicos. A compreensão das contemporâneas formas de conjugabilidade e parentalidade passa pela capacidade e disponibilidade de compreender e conhecer o novo. Por fim, quando uma humanidade inteira, um eu, é capaz de compreender outro eu, algo de extraordinário e sublime acontece, e o extraordinário torna-se comumente humano. Agradecimentos Agradeço a Claudia Perrotta, Gina Tamburrino, Lisette Weissmann e Raquele Ferrari pelas sugestões para o desenvolvimento deste artigo. NOTAS 1 O termo "conjugabilidade" surgiu como um neologismo derivado da palavra "conjugar" (Diehl, 2002). 2 Concepção contemporânea do processo mental de se tornar mãe ou pai, também um neologismo (Solis-Ponton, 2004). 3 Este artigo se abre como possibilidade de reflexão com base em duas pesquisas desenvolvidas anteriormente: Psicanálise e infertilidade: desafios contemporâneos (dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, 2003), publicada como livro em 2004 com o título de Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea. E, também, a tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (PUC-SP, 2009), publicada como livro em 2011. Além de dois artigos que tangenciam questões próximas: "A bissexualidade psíquica: livre trânsito" (2008) e "O gênero do analista: reflexão necessária? Um elogio ao conceito de bissexualidade psíquica" (2012). Utilizo-me também nesta reflexão do conceito de bissexualidade psíquica (Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d) e da ideia de neossexualidades, termo utilizado por McDougall (1999, 1997 e 1991). 4 Uso essa denominação "sagrada família" como referência compartilhada por muitos e por várias gerações. 5 Freud, 1905/1980, 1923/1980a, 1925/1980b, 1931/1980c e 1938/1980d. 6 McDougall, 1999, 1997 e 1991. 7 S. Muszkat (2014), em recente artigo, também utiliza o conceito de neossexualidades para pensar sobre a ampla gama de expressão das sexualidades, muito além dos padrões binários normativos da heterossexualidade. 8 Termo desenvolvido na tese de doutorado De mãe em filha. A transmissão da sexualidade, 2009. 9 Tema desenvolvido em minha tese de doutorado: De mãe em filha: a transmissão da feminilidade (2009). 10 Para um aprofundamento remeto o leitor ao meu livro Infertilidade e reprodução assistida. Desejando filhos na família contemporânea, 2004. REFERÊNCIAS Almeida, M. R. (2012). Os processos subjetivos no acolhimento e na adoção de crianças por casal homoafetivo: um estudo de caso . Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Ariès, F. (1978). História social da criança e da família (D. Flasksman, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. Bion, W. R. (1991). Learning from experience. Londres: Karnac. (Trabalho original publicado em 1962). Bulamah, L. C. & Kupermann, D. (2013). Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico. Estudos da língua(gem), 11 (1),147-64. Corrêa, M. E. C. (2012). Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade . Tese de Doutorado. Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. Couto, M. (2013). Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras. Diehl, A. (2002). O homem e a nova mulher: novos padrões sexuais de conjugabilidade. In A. Wagner (Org.), Família em cena. Petrópolis, RJ: Vozes. Freud, S. (1980). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 118-216). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905) Freud, S. (1980a). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 13-86). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923) Freud, S. (1980b). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 303-322). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925) Freud, S. (1980c). Sexualidade feminina. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 257-282). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1931) Freud, S. (1980d). Esboço de psicanálise. In S. 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- Os riscos no processo de diferenciação mãe e filha: uma análise do filme Cisne Negro.
O artigo aborda alguns aspectos psíquicos de quando o processo de diferenciação entre mãe e filha é insuficiente. Nessa dupla a semelhança parece contribuir para uma confusão identificatória própria, de modo que estudar a construção da feminilidade nas mulheres exige pensar a complexidade deste vínculo, e suas possíveis armadilhas narcísicas. Para tanto, foram feitas reflexões sobre o fenômeno do duplo (FREUD, 1919/1969), ao qual foram articulados conceitos psicanalíticos contemporâneos de Eric Bidaud (1998), Halberstadt-Freud (2001) e Marina F. R. Ribeiro (2009, 2011). Fazendo uso dos conceitos apresentados, foi analisado o filme Cisne Negro . Daina Edith Paegle Bittar; Marina Ferreira da Rosa Ribeiro; Marina Abud da Silva Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952020000200009&lng=pt&nrm=iso
- Sobre intuição psicanalítica: a afetação enigmática
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2022 nos Cadernos de Psicanálise | CPRJ , volume 44, número 46, páginas 155–168, na edição intitulada Afinando a escuta: um enorme passado pela frente . Resumo : O artigo apresenta reflexões sobre a intuição psicanalítica na obra de Bion, sustentando a conjectura de que a intuição é uma afetação enigmática que ocorre entre diferentes cesuras em constante oscilação. A mente é constituída por diversas cesuras, uma entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. A intuição se fenomenaliza na reverie, ou seja, a intuição (não sensorial) evolui para uma reverie (sensorial) que emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão. A reverie é compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando. Se a situação analítica for intuída com precisão – prefiro esse termo a “observada”, “ouvida” ou “vista”, porquanto ele não traz consigo a penumbra de associação sensorial –, o analista comprova que o inglês falado, comum, é surpreendemente adequado para formular a sua interpretação. (BION, 1967/1994, p. 153). Inspirada 1 na capacidade do analista de acolher o enigmático no encontro com seu analisando, senti-me instigada a refletir sobre um tema complexo e ainda pouco referido em textos: a intuição psicanalítica, especificamente na teoria de Bion, ou seja, o que ainda não sabemos 2 , a afetação enigmática que ocorre na sala de análise. Vou começar pelo que poderíamos chamar uma ilustração teórica a partir do texto de Chuster (2019), no qual o autor destaca que o Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) pode ser compreendido como um texto testemunho de uma intuição freudiana de toda a obra que se desenvolveria posteriormente, uma espécie de memória do futuro (BION, 1975/2014). O Projeto foi um texto freudiano desconsiderado por muitos anos, em função de sua característica não psicanalítica ou, poderíamos dizer, de um pensamento com características que podem lembrar quase um pensamento alucinatório. Quinodoz (2007) escreve que encontramos no Projeto intuições geniais de Freud disseminadas em um texto inacabado. Como podemos pensar psicanaliticamente sobre um conhecimento imediato, intuído, que tem características que podem se assemelhar a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento: dedução, associação, comparação, análise, constatação etc., mas algo que aparece como uma imagem, que vemos, ou seria melhor dizer, criamos de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável. Podemos conjecturar que Freud viu, por meio da sua imaginação criadora – termo de Chuster (2018, 2019, 2020) – uma prévia do que seria a sua futura obra, ou uma intuição de um conhecimento que precisaria de muitos anos para se desenvolver em vários textos e deixar uma marca considerável na História. Mudanças que podemos considerar cesuras (BION, 1977) na história, na qual há um antes e um depois, há continuidade e ruptura. Cesura é um conceito de Bion que nos ajuda na aproximação dessa afetação enigmática – expressão de Figueiredo (2021) – que parece ser a intuição psicanalítica, algo que nos afeta, nos captura de forma enigmática. Cesura é um termo retirado do texto de Freud (1926), Inibição, sintoma e angústia , no qual ele escreve que há mais continuidade entre a vida intrauterina e a vida pós-natal do que a impressionante cesura do nascimento nos faz crer. E aqui, podemos pensar na presença do paradoxo: há uma impressionante ruptura, mas há, também, continuidade. Cesura é sinapse, é conexão, é o vínculo, escreve Bion (1977). O termo originalmente se refere a um espaço no poema, na estrofe, um espaço que dá ritmo, que faz conexão, que gera ruptura e movimento. Bion escreve: “... Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse; a (contra-trans) – ferência, o humor transitivo-intransitivo” (BION, 1977/1981, p. 136). A mente é constituída por diversas cesuras, essa entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. Por exemplo, o lusco-fusco ao acordarmos, momento no qual temos uma cena onírica em mente e, por um instante, não há diferenciação entre a cena e o mundo da vigília; temos a impressão de que aquilo foi vivido e, subitamente, acordamos e percebemos que a cena foi experienciada em um sonho, e rapidamente se evapora na luz do dia. Na cesura entre o sonho e a vigília: há conexão, há continuidade e há ruptura entre dois estados mentais, assim como entre consciente e inconsciente, o eu e o outro, estados indiferenciados de mente e estados diferenciados. A hipótese que levanto é que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito; eu/outro; o formar/o desformar, as transformações em K/as transformações em O 3 . A partir dessas já conhecidas cesuras, podemos conjecturar a cesura intuição/alucinação. A intuição é um tipo de fenômeno, uma afetação enigmática que se dá na cesura, entre a oscilação da área indiferenciada da mente – ainda sem forma – e a área diferenciada, e por esse motivo, podemos ter a impressão de uma alucinação, pois é uma criação imaginativa que encontra sentido apenas no a posteriori da sessão 4 . Precisamos do tempo para saber de qual lado da cesura estamos, da alucinação ou da intuição. Freud ao escrever o Projeto estava em um estado alucinatório ou estava intuindo o funcionamento psíquico? Muitos anos foram necessários para que esse texto fosse considerado um momento fundante da psicanálise, e que fosse encontrado nas linhas e entrelinhas do Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) quase tudo que foi desenvolvido posteriormente. Ao escrever sobre cesura Bion (1977) usou a analogia com a foto de Picasso 5 pintando sobre um vidro, ou seja, podemos ver de vértices diferentes e simétricos a mesma pintura, assim como os estados mentais podem ser vistos por vértices diferentes, porém simétricos, o exemplo de Bion (1979): desamparo/onipotência 6 . Para sustentar a hipótese apresentada acima, de que podemos conjecturar que a intuição ocorre entre cesuras e que há uma cesura intuição/alucinação, irei examinar dois recortes do texto de Bion (1965) no livro Transformações : Pode-se ver alucinação de modo mais proveitoso como uma dimensão da situação analítica, na qual, juntamente com as outras ‘dimensões’ restantes, estes objetos são ‘sensorializáveis’ (caso incluamos a intuição analítica, ou consciência, seguindo uma indicação de Freud 7 , com um órgão sensorial da qualidade psíquica). (BION, 1965/2004, p. 129). 8 Resumindo, Cs (A1) representa uma conjunção constante de relações. Cs (A1) tem a natureza de um tropismo Esta ‘consciência’ é uma consciência ( awareness ) de uma falta de existência, um pensamento em busca de um significado, uma hipótese definitória em busca de uma realização que dela se aproxime, uma psique procurando por uma habitação física, ♀ procurando ♂. (BION, 1965/2004, p. 124). 9 Nesses dois sucintos parágrafos, temos ideias complexas e condensadas a partir das quais vou desenvolver algumas reflexões. Bion no livro Transformações compreende a intuição como um fenômeno próximo à consciência, e a consciência como um órgão sensorial que apreende qualidades psíquicas. Apoiado em Freud (1900), Bion coloca a intuição psicanalítica e a consciência lado a lado, tornando evidente a importância que esse autor deu à capacidade de observação analítica, proposição técnica apreendida por Freud de seu mestre Charcot 10 : continue a observar, até que algo faça sentido – usando termos bionianos – até que uma forma emerja do infinito vazio sem forma, o inconsciente. Aquilo que pode ser treinado pelo analista é sua capacidade de observação, para que a intuição capte um elemento psíquico 11 por meio da eclosão de uma reverie na mente do analista. A intuição emerge na cesura entre consciente/inconsciente, ou como Bion propôs: o finito da consciência e o infinito do inconsciente; o inconsciente como aquilo que ainda não sabemos, que ainda não tem forma: o infinito vazio e sem forma. Podemos, também, conjecturar uma possível intuição de Bion a partir da obra freudiana: algo é percebido, ou melhor, sensorializado pela consciência, um órgão capaz de apreender qualidades psíquicas, órgão que sofre o impacto do elemento bruto da experiência, o elemento beta, o enigmático da experiência (FIGUEIREDO; RIBEIRO; TAMBURRINO, 2011), que precisará ser sonhado pela função onírica alfa, uma função transformadora, para se tornar um elemento psíquico, um pensamento imaginativo, a reverie. Ao usar de forma surpreendente a intuição analítica e a consciência como sinônimos, Bion ilumina outro sentido no texto freudiano, poderíamos dizer ressaltando as qualidades da consciência – “ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, p. 609) – em outras palavras, a consciência nada mais é, ou, ela é um importante órgão sensorial de percepção de qualidades psíquicas, fundamental para a observação analítica treinada e para a intuição psicanalítica. Será que estamos teoricamente diante da carta roubada do famoso conto de Edgar Alan Poe (1809-1849)? A carta está na mesa, tão visível que passa a não ser vista, assim como aquilo que é considerado óbvio ou elementar, mas que nos escapa. Consciência como awareness , ou seja, um estado de mente receptivo para o que parece estar invisível devido ao fato de ser excessivamente visível. A carta roubada está visível para aqueles observadores em estado de capacidade negativa (BION, 1977), uma capacidade virtuosamente expectante (CHUSTER, 2019a) ou, também, uma consciência como awareness. O termo negativo é no sentido do polo que contém, recebe, permite a afetação enigmática. Se estamos na sessão em estado de capacidade negativa, podemos ver a carta roubada, e a imagem que se cria transforma tudo em um antes e um depois, como a carta no conto, promove uma cesura na sessão e, posteriormente, a possibilidade de uma construção narrativa e um sentido para a experiência, pois as palavras precisam tentar dizer o indizível, precisam tentar alcançar, mesmo que à distância e parcialmente, o enigmático de qualquer experiência emocional. A consciência é o órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas, em outras palavras, um dos elementos que compõe a complexidade da intuição psicanalítica. A disciplina de observação do analista no campo analítico pode ser treinada, favorecendo a intuição. A observação analítica é treinada a partir da proposta metodológica de Bion (1965, 1967): sem memória, sem desejo, e sem compreensão prévia. Algo é captado por esse órgão sensorial e posteriormente sonhado, inconscientizado por meio da função alfa. A experiência é percebida, primeiramente, como um elemento bruto (beta), enigmático, que pode gerar estados de enlouquecimento sem a função sonho, a função alpha. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, como escreveu Kant (1724-1804), postulado filosófico que marcou o pensamento de Bion sobre a intuição psicanalítica. Ogden (2016) escreve que o artigo de Bion (1967/2014) “Notas sobre memória e desejo”, é um texto sobre o pensamento intuitivo e como este pensamento se apresenta na situação analítica. O autor considera que esse pequeno e difícil artigo é um marco para a psicanálise, pois ele compreende que Bion propõe uma revisão da metodologia analítica. Penso que a proposta de Bion no artigo de 1967 pode ser compreendida como uma cesura na metodologia analítica, ou seja, representa tanto uma continuidade da proposta freudiana da atenção flutuante, como uma ruptura, pois convoca a capacidade intuitiva do analista, não somente seu pensamento associativo e analítico, mas seu pensamento imaginativo, a imaginação criadora (CHUSTER, 2019), a capacidade de ser afetado pelo enigmático da experiência e construir um pensamento imaginativo, a reverie. Em uma nota ainda inédita de Bion, publicada nas Obras completas , encontrei: a reverie seria uma forma de fabricar um pensamento, ainda sem pensador 12 (BION, 1968/2014). Neste texto Bion se refere à reverie do analista, e não somente entre a mãe e seu bebê (BION, 1962), ideia que foi desenvolvida por outros autores (Ogden, Rocha Barros, Ferro, Civitarese). Compreendo a reverie como a capacidade imaginativa da mente, e quando a mente é imaginativa capta os mais tênues sinais de vida (OGDEN, 2013). A afetação enigmática seriam esses tênues sinais de vida psíquica, captados pela intuição do analista na cesura entre consciente/inconsciente e transformados em uma imagem pela função alfa. Memória (passado), desejo (futuro) e compreensão prévia são opacidades que obstruem a capacidade de intuição do analista e a observação psicanaliticamente treinada. Bion (1992, p. 324) escreve que a intuição opera entre opacidades e transparências, ou seja, na cesura entre opacidades e transparências. Bion (1970) faz uma analogia 13 que nos ajuda a compreender esse processo psíquico: os negativos da fotografia antes da época digital. Faço aqui uma apropriação sutilmente diversa dessa analogia: o negativo é uma película transparente escura que recebe quaisquer impressões, ou poderíamos dizer, afetações enigmáticas. A mente do analista precisaria ter essa qualidade negativa, uma qualidade de recepção, de hospitalidade, de continência a qualquer afetação. No processo de revelação, ou melhor, realização, feito por elementos que precisam de um período para produzirem efeito e uma sala escura para que a afetação do negativo se realize em uma imagem, ou seja, um facho de intensa escuridão que precisa de tempo e espaço. Há uma composição complexa de elementos para que a realização da imagem ocorra. Memória, desejo e compreensão prévia podem ser a luz precipitada que queima o filme antes da realização da imagem. A imagem é criada a partir da afetação no polo negativo da mente do analista, a capacidade negativa, pela captação da consciência como awareness , a observação psicanalítica, sob a égide da função alpha, que transforma o enigmático da experiência em elementos psíquicos. A observação psicanaliticamente treinada é a disciplina do analista para não queimar o filme com a sua equação pessoal (BION, 1992). O treinamento do analista é sua análise pessoal e sua disciplina ética analítica. 14 Podemos pensar na intuição de Bion ao ler Freud, considerando a outra via da interpretação dos sonhos, a interpretação dos fatos, Bion: ...sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos – não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos (BION, 1977/1992, p. 104). A interpretação dos fatos seria a inconscientização da experiência, a transformação do enigmático em elemento onírico (alfa), o que é percebido pela consciência como awareness , ou seja, a capacidade de observação analítica de um pensamento em busca de um pensador, de um contido em busca de um continente, o bebê buscando a mente da mãe, o analisando buscando a mente do analista para dar forma, palavra e sentido a sua experiência, torná-la finita e narrável. Bion (1965) denominou tropismo 15 essa busca. A consciência é da natureza de um tropismo, escreve Bion (1965/2014), essa consciência como awareness é um estado propício para se notar coisas, um estado de prontidão presentificada, que capta algo, uma conjunção constante, uma forma, a carta roubada: invisível por ser excessivamente visível. No início há um tropismo, uma força de atração para algo existir, para que ocorra a realização de uma experiência, como o bebê realiza a existência do seio no encontro com este, mas antes do encontro, há apenas um tropismo intuitivo de que há algo a ser encontrado, mas não se sabe o que realmente será encontrado. A pré-concepção do seio, ao encontrar uma realização, se transforma em uma concepção. O bebê busca o seio, busca o olhar da mãe, a mente da mãe, em uma cena de apaixonamento que funda o humano. 16 A intuição psicanalítica captura algo que demanda uma existência, como um campo magnético, um tropismo, no qual é preciso encontrar sentido e forma para a experiência vivida, torná-la pensável, palavra narrada, finita e saturada. Poderíamos dizer que Bion ilumina, por outro vértice, a compreensão freudiana de consciência como awareness , um estado de observação presentificado, um estado de notação: um órgão sensório que capta a realidade psíquica, capta as nuances sutis do vivido ainda não sonhado, ainda não representado, que precisa da imaginação criadora (CHUSTER, 2019) para se transformar em imagens – reveries – e posteriormente, em construções narrativas na situação analítica. Dizendo de outra forma, não se trata de uma consciência como racionalidade, mas uma consciência como awareness , um estado de prontidão presentificado que pode evoluir para uma futura notação, como a carta roubada no conto, que quando é vista, promove uma cesura na história, um antes e um depois. A partir de Bion, os conceitos são compreendidos de forma espectral, dessa forma, a intuição teria tanto um polo consciente ( awareness) , no sentido da observação presentificada, como um polo inconsciente no qual a função alpha faz seu trabalho: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie , um pensamento imaginativo. Em outras palavras, há um trânsito constante, absurdamente rápido, fugaz, e sempre instável, entre a cesura do finito (consciência, forma, área de diferenciação da mente) e o infinito (inconsciente, sem forma, área de indiferenciação da mente). No movimento e no espaço gerado pela cesura a intuição emerge como um raio em céu azul 17 , a afetação enigmática. Poderíamos pensar que há uma função intuitiva (CHUSTER, 2021) em trânsito constante entre cesuras, na qual a capacidade de reverie/ função alpha 18 do analista se sustenta, uma capacidade imaginativa e de criação de elementos psíquicos. Podemos compreender a intuição psicanalítica, favorecida pela capacidade treinada de observação do analista, uma capacidade negativa, um estado de awareness , de observação presentificada, um tropismo da consciência na direção de uma notação que se dá na posterioridade da afetação enigmática. Em outros termos, primeiramente somos abduzidos pela experiência, somente na posterioridade podemos representar partes do que foi vivido. Retomando a minha conjectura: a função intuitiva (CHUSTER, 2021) acontece entre cesuras, a passagem e oscilação contínua entre estados mentais: o não-sensorial/sensorial; finito/infinito; transformações em K/transformações em O; conhecido/desconhecido; eu/outro. Além de considerarmos uma contínua oscilação, a partir de uma compreensão espectral dos conceitos, há sempre um ponto de indecibilidade, ou seja, um ponto no qual não é possível saber em qual dos dois polos do espectro estamos. E, talvez, o ponto possa ser, também, uma área, um território de indiferenciação conceitual e fenomenológico. A imprecisão e a indecibilidade fazem parte das nuances das cesuras constitutivas do psíquico, com suas opacidades e transparências. Como escreve Ogden (2013, p. 21): “A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão”. Para ilustrar essa complexidade conceitual, faço uso de uma imagem 19 : O encontro entre o Rio Negro e o Rio Solimões na Amazônia é uma boa analogia para a cesura, há pontos de indecibilidade nos quais não sabemos mais se é Negro ou Solimões, analista ou paciente, alucinação ou intuição. O boto que emerge subitamente da água é, na sua parte invisível, a intuição psicanalítica; na sua parte visível, a reverie. O boto, ou melhor, a intuição e sua fenomenalização na reverie , emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão. A reverie , compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo; ou uma imaginação criadora (CHUSTER, 2019), são nomeações e transformações bem-sucedidas da intuição freudiana do caráter alucinatório das construções do analista (FREUD, 1937). Por essa perspectiva podemos pensar na cesura intuição/alucinação, sendo que há um ponto de indecibilidade, um momento em que não sabemos se aquela imagem que nos arrebata na sessão analítica é uma alucinação ou se é uma intuição. Concluindo, penso que a intuição psicanalítica é uma afetação enigmática que ocorre de forma fugaz no trânsito contínuo e oscilante entre diferentes cesuras, e que evolui por meio de uma imaginação criadora para uma imagem, um ideograma, a reverie , um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando. NOTAS 1 As ideias aqui expostas foram apresentadas no II Colóquio Jean Laplanche Brasil em 15 de outubro de 2021. 2 Faço aqui uma referência, que é uma reverência, ao que já foi bem apresentado por Paulo Ribeiro, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho, no texto Sobre intuição e inspiração. Algumas ideias acerca de Bion e Laplanche (2019). Destaco o principal ponto de convergência entre Bion e Laplanche referido pelos autores: uma transferência com o não saber. 3 Transformações em K são as transformações em conhecer ( knowledge ), e transformações em O são as transformações em ser. 4 Com relação à localização na obra de Bion das suas ideias sobre intuição, elas aparecem a partir de 1965, no livro Transformações (1965), na conferência ministrada em 1965 em Londres, intitulada Memória e Desejo , no pequeno, porém notável texto de 1967, Notas sobre memória e desejo , nos Comentários ao livro Estudos psicanalíticos revisados (1967), nos Seminários em Los Angeles (1968/2013) e nos primeiros capítulos de Atenção e interpretação de 1970, e, também, no livro Cogitações (1992). 5 Disponível em: < https://www.arteeblog.com/2012/08/pablo-picasso-pintando-sobre-vidro . html.>. Acesso em: 12 dez. 2021. 6 No texto original: “ It also resorts to omnipotence; thus, omnipotence and helplessness are inseparably associated ” (BION, 1979/2014, p. 137). 7 O texto de Freud, referido por Bion, no livro Interpretação dos sonhos : “Que papel sobra, em nossa exposição, para a outrora todo-poderosa consciência, que encobria todo o resto? Ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, v. 4, p. 609). 8 No texto original: “ Hallucination may be more profitably seen as a dimension of the analytic situation in which, together with the remaining ‘dimensions’, these objects are sense-able (if we include analytic intuition or consciousness, taking a lead from Freud, as a sense-organ of psychic quality )” (BION, 1965/2014, v. 5, p. 229). 9 No original: Cs (A1) is of the nature of a tropism. … This ‘consciousness’ is an awareness of a lack of existence that demands an existence, a thought in search of a meaning, a definitory hypothesis in search of a realization approximating to it, a psyche seeking for a physical habitation to give it existence, ♀ seeking ♂ (BION, 1965/2014, v. 5, p. 223). 10 “Podia-se verificar a maneira como ele, inicialmente, ficava indeciso em face de alguma nova manifestação difícil de interpretar; podia-se seguir os caminhos pelos quais se esforçava por chegar a uma compreensão; podia-se estudar o modo como avaliava as dificuldades e vencia; e podia-se observar, com surpresa, que ele nunca se cansava de observar o mesmo fenômeno, até que seus esforços repetidos e sem prevenções lhe permitissem chegar a uma visão correta de seu significado” (FREUD, 1886, p. 44). 11 O elemento psíquico emerge por serendipidade (CHUSTER, 2018), ou seja, quando encontramos algo sem procurar, e o que é encontrado faz toda a diferença. 12 No texto original: “ Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’ ” (BION, 1968/ 2014, v. 15, p. 77). 13 Encontrei essa analogia de Bion primeiramente nos textos de Chuster (1996). 14 “Bion também desenvolveu um instrumento técnico que teria a função de afinar a intuição do analista, a grade. A grade foi proposta por ele para ser usada fora da sessão, como um tipo de academia para a mente do analista” (CHUSTER, 2019). 15 Sandler (2021, p. 1154) considera que o termo tropismo é um antecessor do conceito de reverie. 16 Os apaixonados também buscam o olhar do outro, a comunicação se dando pelo olhar, continente e contido, penetrado e penetrável. 17 Expressão usada por João Carlos Braga em aula, 2021. 18 Chuster (2019) coloca reverie e função alfa em um espectro, no qual a reverie seria predominantemente sensorial e a função alfa predominantemente simbólica; em seus textos encontramos essa grafia: reverie /função alpha. 19 Disponível em: < https://br.pinterest.com/pin/299278337712804587/?amp_client_id=CLIENT_ ID(_)&mweb_unauth_id={{default.session}}&simplified=true.>. Acesso em: 12 dez. 2021. 20 Sob essa perspectiva, podemos compreender a inspiração como o polo negativo que recepciona, hospeda e contém a afetação enigmática da experiência emocional na sessão. 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- Inveja: a estética contemporânea da violência [1]
Este artigo foi escrito por Janderson Farias Silvestre dos Santos [I], Marina Ribeiro [II] e Igor Marques dos Santos [III], publicado em 2018 na revista Ide (São Paulo) , volume 40, número 65, páginas 75–89. O artigo está disponível online em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062018000100007&lng=pt&nrm=iso Além disso, uma versão relacionada, intitulada “A inveja: diálogos contemporâneos”, foi publicada em 2019 no livro Melanie Klein na psicanálise contemporânea: teoria, clínica e cultura (São Paulo: Zagodoni). RESUMO Este artigo objetiva realizar uma reflexão conceitual sobre a problemática da inveja. A partir do conceito de inveja primária, de Melanie Klein, é proposto um breve diálogo com textos pertencentes à tradição judaico-cristã que tratam da inveja. A fim de mostrar a potência do conceito na atualidade, são feitos alguns apontamentos sobre questões contemporâneas ligadas a atos de violência e que mostram uma estreita relação com a inveja. Em seguida é realizada uma análise de uma produção cinematográfica contemporânea, o filme The Neon Demon (Demônio de Neon), do diretor Nicolas Winding Refn, lançado em 2016. O filme mostrou-se rico em metáforas que nos auxiliam a pensar nos desdobramentos do processo invejoso. Sobre a inveja Também vi eu que todo o trabalho,e toda a destreza em obras, traz ao homema inveja do seu próximo. Também istoé vaidade e aflição de espírito. (Eclesiastes, 4:4) A epígrafe que abre este artigo está presente em Kohelet 2 ( Eclesiastes ), texto hebraico datado de aproximadamente 935 a.C. (Ellisen, 1984/1993), tradicionalmente atribuído a Salomão, considerado pela tradição judaico-cristã um homem dotado de muita sabedoria. Nesse texto, Salomão observa que o trabalho realizado por um homem é, para outro, motivo de inveja, definindo inveja como vaidade e aflição de espírito. Antes de falarmos sobre esses dois atributos, vejamos o texto que antecede imediatamente o supracitado: Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador. Por isso eu louvei os que já morreram, mais do que os que vivem ainda. E melhor que uns e outros é aquele que ainda não é; que não viu as más obras que se fazem debaixo do sol. (Eclesiastes, 4:1-3) A sabedoria salomônica 3 aponta que a inveja não tem conexão direta com os fatos exteriores, não surgindo diretamente das condições do meio circundante. O escritor observa um mundo desolado, repleto de opressão e injustiça. Sua desesperança chega ao ponto de louvar a morte mais do que a vida. E mesmo em meio à desolação há espaço para o surgimento da inveja, pois o sujeito inveja a própria capacidade de realizar trabalho, ainda que este nasça na opressão. A inveja se destina a algo imaterial. Isso nos leva a pensar na própria raiz da inveja que, fundamentalmente, é sempre dirigida a algo imaterial e inapreensível, o que levou Mezan (1986) a fazer uma diferenciação entre objeto de inveja e suporte da inveja. O objeto da inveja é imaginário, inalcançável, só existe no psiquismo do sujeito enquanto promessa de retorno a um estado idealizado de perfeição plena, quando o sujeito era o seu próprio ideal. O suporte da inveja é contingente, e pode ser qualquer coisa: um carro, uma casa, dinheiro ou mesmo a própria capacidade para o trabalho. A raiz da inveja é o que Salomão define como aflição de espírito. O sujeito aflito anseia por algo que amaine a sua aflição, nesse anseio, julga que o outro tem aquilo que ele necessita e, mais do que isso, crê que foi deliberadamente privado do bem tão ansiado. Vê-se, portanto, a raiz destrutiva da inveja que, como observa Mezan (1986), está associada ao desejo, mas não se reduz a ele, na medida em que o sujeito necessita despojar o outro, privá-lo de sua felicidade. Britton (2008) descreve que em alguns sujeitos a inveja domina grande parte da vida mental, aparecendo como uma inveja patológica numa personalidade patologicamente invejosa. Para esse autor, a inveja é um composto que surge da conjunção de vários elementos, dos quais ele destaca o doloroso reconhecimento da separação self/objeto e a frustração advinda do desapontamento do desejo de ter a mesma natureza do objeto amado. Ele considera que esse composto pode se formar na entrada da posição depressiva e que se a essa conjunção de fatores se soma uma quota elevada de pulsão destrutiva constitucional, a inveja torna-se particularmente poderosa e destrutiva. Nesses casos a inveja se tornaria um complexo insolúvel no seio da personalidade. Trinca, por sua vez, refere-se a um sistema mental determinante da inveja , ligado a uma "constelação do inimigo interno" (2009, p. 59), que é uma representação da pulsão de morte. A inveja estaria, então, bastante ligada às ansiedades da posição esquizoparanoide que não foram aplacadas pela internalização eficaz do objeto bom, levando a um incremento da pulsão de morte, ao ódio e à inveja: "a ação da pulsão de morte acompanha a falha e a falta ambientais precoces representadas pelo seio e pela mãe" (Trinca, 2009, p. 55). A inveja, portanto, não é puro ódio, não é apenas impulso destrutivo voltado contra um objeto mau. O ataque invejoso é dirigido contra o objeto bom que supostamente teria privado o sujeito da experiência de completude, deixando-o na iminência de uma desintegração interna. O ódio manifestado em inveja poderia ser entendido como uma defesa contra essa desintegração e a sensação de vazio que ela acarreta (Trinca, 2009). Além disso, estando a inveja ligada à idealização do objeto invejado, menor será a inveja quanto menor for a necessidade de idealização. O rebaixamento dessa necessidade está diretamente ligado à diminuição das ansiedades persecutórias, visto que, como observa Klein (1957/1991b), quanto maior a perseguição, maior a idealização. A passagem do ego ideal para o ideal do ego, passagem que é o cerne do estabelecimento de relações alteritárias saudáveis, implica não apenas uma mudança na direção do investimento libidinal na saída do narcisismo primário (do ego para os objetos) e o resguardo desse narcisismo na figura do ideal do ego (Freud, 1914/1996b), mas, também, do ponto de vista kleiniano, a necessidade de suportar as ansiedades paranoides e, posteriormente, as depressivas, que se somam às anteriores. Se não há uma elaboração bem-sucedida da posição depressiva, que culminaria na firme internalização do objeto bom (Klein, 1935/1996b), está assentado o terreno para a formação de uma personalidade patologicamente invejosa, como diz Britton (2008). Nesse estado, o sujeito não terá realizado satisfatoriamente a passagem do registro do ego ideal para o ideal do ego e terá que recorrer constantemente à idealização como defesa contra a perseguição, já que não tem por núcleo de seu ego o objeto bom primordial. Da idealização advirá a inveja, já que aquilo que o sujeito anseia não encontra respaldo na realidade objetiva. O objeto idealizado sempre se tornará, em algum momento, aos olhos do sujeito, mesquinho, transformando-se na causa do seu sofrimento. Se retornarmos agora ao Kohelet , fica mais fácil entender a origem da aflição de espírito que o autor aponta como subjacente à experiência da inveja. Uma aflição que não pode ser amainada por objeto algum do mundo material. É precisamente esse aspecto de impossibilidade de apaziguamento da inveja, por meio da consecução de quaisquer bens que sejam, que subjaz ao outro atributo da inveja de acordo com o autor de Kohelet : a vaidade. No original hebraico a palavra para vaidade é hebel ( הבל ), palavra que remete a sopro, vapor (Kirst et al. , 2009). Em alguns contextos o autor usa hebel para lamentar a brevidade da vida, "a vida, em sua qualidade é 'vazia', ou 'vacuidade' (e assim insubstancial) e em sua quantidade é 'transitória'" (Kirst et al. , 2009, p. 336). A inveja é, por excelência, sempre um anseio pelo impossível. Klein (1957/1991b) a define como constitucional, querendo dizer com isso, de acordo com Cintra e Figueiredo (2004), que ninguém pode dela se esquivar, na medida em que surge da inevitável diferença entre a idealizada completude do estado pré-natal e o nascimento. Não importa quão suficientemente boa a mãe seja, jamais poderá restituir ao bebê a unidade intrauterina. É nesse sentido, por conseguinte, que poderíamos dizer que a inveja é hebel , é sopro, vapor, um anseio indefinido, sem consistência, que tenta materializar-se de suporte em suporte (Mezan, 1986), sem nunca encontrar concretude no objeto ansiado, pois esse objeto é um seio inexaurível que só existe na fantasia (Klein, 1957/1991b). Em outros contextos de Kohelet , a palavra hebel é usada pelo autor para referir-se a sua "incapacidade de encontrar realização em seu trabalho, tanto por não conseguir ser criativo quanto por não conseguir controlar o livre uso e o destino de suas posses" (Kirst et al. , 2009, p. 336). Ora, se a inveja é hebel , vemos aqui a associação que há entre inveja e trabalho, lembremos a observação do autor de Kohelet : o homem inveja a capacidade do outro para o trabalho. O trabalho está ligado à potencialidade criativa e, com essa constatação, chegamos ao cerne da experiência de inveja como descrita por Klein: "A capacidade de dar e preservar vida é sentida como dom máximo e, portanto, a criatividade torna-se a causa mais profunda de inveja" (1957/1991b, p. 233). Na medida em que a inveja é um derivado da ansiedade persecutória oriunda do nascimento e relaciona-se com a idealização de um seio inexaurível, é ao seio infinitamente criativo, fonte de todos os prazeres e maravilhas existentes, que se destina a inveja. A pergunta que o invejoso parece fazer é: se esse seio é assim tão poderoso, porque ainda me defronto com a perseguição dos objetos maus ("constelação do inimigo interno") e com essa angústia de fragmentação? Como diz Klein: "[...] não é apenas o alimento que ele [o bebê] deseja; quer ser libertado dos impulsos destrutivos e da ansiedade persecutória" (1957/1991b, p. 217). Já que o seio nunca poderá livrar plenamente o sujeito das ansiedades persecutórias, o ataque invejoso torna-se (na fantasia do invejoso) justificado. Desde tempos imemoriais, o homem luta contra seu semelhante para retirar-lhe aquilo que ele tem de bom. Os grandes impérios foram construídos às custas do massacre de povos mais fracos com o intuito de pilhar suas riquezas. O anseio pelo indefinido, que busca materialização de ataque em ataque, de guerra em guerra, adquire novas formas no decorrer da história 4 . Atualmente assistimos ao crescimento do fundamentalismo, não apenas no que tange ao extremismo terrorista, mas também na ascensão de políticos com discursos marcadamente segregacionistas e de desrespeito às diferenças, isto sob o pretexto da justiça. Mas, como observam Chuster e Trachtenberg (2009), "a demanda da justiça não é por igualdade, mas pelo respeito às diferenças. É a inveja que demanda igualdade e sempre equivalendo por baixo" (2009, p. 112). Caetano Veloso já cantou que "Narciso acha feio o que não é espelho". Essa "feiura" não é intrínseca ao objeto olhado, mas simplesmente ao fato de que o que está sendo visto não é o próprio sujeito, porém o diferente, o outro, e esse outro sempre se apresenta como uma afronta à ambição imaginária de constituição de um ego ideal. Nesse sentido, parece-nos ser de grande valia a teoria lacaniana do estágio do espelho (Lacan, 1949/1998), que explica o narcisismo primário 5 a partir de uma relação especular primordial em que se constitui o ego, a princípio um ego ideal . Esse ego rudimentar formado, no bebê, a partir da visão distorcida de si mesmo (por uma gestalt imaginária, segundo Lacan), será sempre o ponto para onde tenderá a idealização do sujeito. A inveja é um sentimento que se origina de um grande sofrimento e que, por outro lado, acarreta sofrimento. Klein já disse que estar "relativamente livre dela é sentido como um estado de espírito de contentamento e de paz" (1957/1991b, p. 235). Na contemporaneidade, vemos os seus efeitos nas patologias narcísicas, nas quais o sujeito se corrói e se autodestrói, em função de um sofrimento que se origina precisamente de feridas narcísicas precoces e inscreve no sujeito um acachapante anseio de retorno a um estado de plenitude idílica. "Há qualquer coisa que eu não gosto na vida", dizia Erna a Klein (1932/1975), num dos primeiros casos em que se apresentou a Klein a problemática da inveja. Essa frase parece ecoar na contemporaneidade como um lamento compartilhado, um lamento indefinido que se manifesta em anseios ainda mais indefinidos. Em 1934, no artigo "Sobre a criminalidade", Melanie Klein questiona a crença de que os criminosos não teriam moralidade. Klein (1934/1996a) diz que, ao contrário do que costumeiramente se imagina, os atos criminosos, notadamente os crimes violentos, seriam oriundos de uma hipermoralidade, uma moralidade persecutória. O criminoso estaria lutando contra um superego arcaico, persecutório. Isso nos remete à constelação de inimigo interno à qual Trinca (2009) se refere como subjacente à experiência da inveja, e nos parece pertinente questionar o lugar da inveja em atos criminosos tão corriqueiros na contemporaneidade, como os sequestros e os latrocínios. Atos em que o que está em jogo não é somente uma agressão deliberada, não se trata "apenas" de destruir ou lesionar o outro ou "apenas" saquear o que ele tem, e, sim, de apossar-se por meio da violência, de atacar o objeto que tem o que eu não tenho. Não basta apenas pilhar as suas posses, há o ataque e a destruição desse outro. No tópico seguinte continuaremos nossa reflexão sobre a inveja a partir de uma produção cinematográfica contemporânea, o filme The Neon Demon (Refn, 2016). Demônio de Neon: a estética da inveja Lançado em 2016, The Neon Demon explora o lado competitivo e agressivo da indústria da moda, com uma perspectiva que enfoca o aspecto estético. Os diálogos são escassos, de linhas únicas. É no aspecto visual do filme que vemos uma primeira porta de entrada para trazermos a temática da inveja para análise: afinal, a inveja se dá pelos olhos. A primeira cena mostra a personagem principal, Jesse, ensanguentada e morta em um sofá, ricamente adornada e em uma posição que evoca certa beleza. À medida que o enquadramento muda, percebe-se que a cena, na verdade, é um ensaio fotográfico. É um choque inicial que dá o tom ao transcorrer de todo o filme: é um filme permeado de metáfora e simbolismo imagético. Jesse termina seu trabalho, levanta-se e vai para o camarim tirar a maquiagem; Ruby, sua maquiadora, já estava no camarim, acontece, nesse momento, um primeiro deslumbramento: Ruby a ajuda a se limpar, apreciando-a a cada vez que passa o pano em sua pele, delicadamente. O cenário em que se estabelece esse primeiro diálogo é instigante: Jesse e Ruby estão de costas uma para a outra, ambas se olhando através do espelho. Ruby admira Jesse mas não olha diretamente para ela, fita o reflexo de Jesse no espelho enquanto vê a si mesma, e diz: "Am I staring?". Esse primeiro contato, portanto, é especular. O deslumbramento de Ruby ao ver Jesse através do espelho assemelha-se ao júbilo da criança que apreende sua própria imagem no espelho e forma os rudimentos do ego, um ego ideal, especular, inserido no registro do narcisismo primário. Ruby, como maquiadora, não está, a princípio, numa relação de competição com Jesse. Ela pode tocar sua pele, sentir seu cheiro. Ela é suprida por isso. É o bebê fundido com o seio idealizado, fruindo plenamente de todo o potencial de prazer que o seio possui. Ainda não há, de fato, a experiência da inveja, por não haver a percepção da separação eu/outro, pois como diz Britton (2008), nos estados de onipotência narcísica o sujeito nega as limitações e qualidades finitas, de forma a evitar a inveja. É claro que, na perspectiva kleiniana, há inveja desde o início da vida, na medida em que ela é derivada da pulsão de morte e está associada à ansiedade persecutória que advém do nascimento (Klein, 1957/1991b). Todavia, gostaríamos de propor, com o intuito de analisar o filme, pensar os primeiros contatos de Ruby com Jesse como uma metáfora para uma relação ideal da mãe com seu bebê, uma relação em que a experiência de inveja ainda seria mínima. Nesse sentido, podemos pensar que a destrutividade cresce, gradativamente, conforme o sujeito se percebe distante do lugar de ideal e necessita projetar esse ideal em outros objetos (Freud, 1914/1996b). Quanto mais o sujeito se ver distante do lugar de ideal, maior será sua propensão para a inveja. É esse gradual distanciamento, isto é, essa saída da relação especular/ego ideal para a projeção do ideal do ego, que Ruby efetua no decorrer do filme, culminando numa fatal inveja. Jesse é apresentada como essencialmente perfeita, convidando quem acompanha o filme a amá-la também. Seus trajes e maquiagens são leves, suas expressões são "imaculadas", como se ela fosse uma figura sem maldade, "pura" (ou pelo menos sem passado), inocente, como um objeto parcial totalmente (e surrealmente) bom. Somos levados, como espectadores, a também idealizá-la e a invejá-la. Porém, em grande parte do filme ela é inacessível. É quieta, nega algumas aproximações. A sensação que fica é de ambiguidade. Ao mesmo tempo que Jesse é a personagem principal do filme, ela é esquiva, alguém sobre quem pouco se sabe. Ela é inatingível, misteriosa, quase não humana. Essa distância nos remete ao objeto idealizado: o diretor mostra a perfeição do objeto, perfeição que é negada não apenas às demais personagens, mas também ao espectador, que é transformado em "expecta-dor", isto é, ficamos na expectativa de saber (e ter) mais de Jesse, e na dor de não tê-la. Por outro lado essa distância na qual Jesse se encontra é reveladora da própria essência do objeto invejado, um objeto que, como destaca Mezan (1986), é apenas suporte de algo imaterial e intangível, que pode ser apenas vagamente vislumbrado, um horizonte inalcançável. A apresentação de Jesse como um objeto ideal, ou melhor, o processo de idealização que somos conduzidos a realizar como espectadores, é notório na cena em que a personagem caminha de modo infantilizado, tendo ao fundo a "cidade grande", que é representada como um lugar maldoso, corrompido. A trilha sonora da cena é uma música delicada e calma, com instrumentos que são utilizados em cantigas infantis. Fica nítida a cisão bom/ mau, imaculado/corrompido. Jesse é apresentada como o objeto ideal que, contrastando diametralmente com os objetos maus, poderia fazer frente aos inimigos internos (Trinca, 2009), isto é, a cidade e os objetos corrompidos. O próximo "experimento cênico" do diretor é colocar Jesse em um fundo totalmente branco, num contexto em que será fotografada para um ensaio. Constrói-se uma tensão, que evoca um clima sexual. Jesse fica sozinha com o fotógrafo da sessão, que a olha sadicamente, agressivamente. O enquadramento todo branco, sem limites e sem sugestões de espacialidade sugere uma indiscriminação criativa; é como a folha branca diante do escritor, que convida a ser habitada, escrita, desenhada. Essa capacidade criativa, essa fertilidade, é um dos benefícios do objeto bom, que o diretor Refn "traduz" do registro afetivo para o visual. Com o início do ensaio, o enquadramento fixa-se em Jesse, pintada de ouro, "esclarecida" pela iluminação, e o fotógrafo de camiseta preta, em sua expressão fria e agressiva, ambos em um fundo totalmente preto. O fotógrafo pinta Jesse com suas mãos, em cenas pausadas, tensas; aparece como figura controladora, o que nos leva a pensar no caráter sádico oral e anal da inveja. Essa cena representa bem a dinâmica ambígua da inveja: uma relação que traz consigo traços destrutivos (que são representados pela tensão incitada pela presença e a ação do fotógrafo) é baseada, porém, num movimento de enaltecimento do objeto. Em outra cena, no quarto do hotel no qual está hospedada, Jesse sonha que o dono do estabelecimento invade seu quarto e coloca uma espada em sua garganta; quando acorda, olha pela janela e vê esse homem a observando; ele então sobe as escadas, e a garota tranca todas as portas de seu quarto. Jesse foge e pede abrigo na casa de Ruby, no entanto, a maquiadora tenta deflorá-la, em um avanço agressivo que é nitidamente incômodo para Jesse. Nessa cena, a dinâmica que se explicita é a trágica continuação da inveja que, frustrando o desejo da pessoa invejosa, aumenta ainda mais sua voracidade. Há um prazer sádico em Ruby em destituir a virgindade de Jesse, traço fundamental de sua imagem de objeto idealizado. A recusa de Jesse em satisfazer a investida sexual de Ruby parece se configurar como o momento em que de fato Ruby é confrontada com a experiência da inveja, pois é nesse momento que, como diria Britton (2008), se inscreve em Ruby a percepção do hiato entre o ego ideal e o ideal do ego, tornando o objeto idealizado o receptáculo do ódio invejoso. Transcorridas algumas cenas, Ruby, trabalhando como maquiadora em um necrotério, vê-se sozinha com um corpo morto de uma mulher, ao qual ela despe e toca sexualmente, masturbando-se em cima do corpo. A voracidade aparece no sexo necrofílico, em que Ruby tenta alcançar seu prazer inatingível com um corpo sem vida, levando-nos a pensar que a voracidade tem uma demanda tão surreal e extrema que pode ultrapassar os limites da vida. Life is so unfair Algumas cenas após o primeiro contato de Ruby com Jesse, ambas vão para uma festa, onde Jesse conhece duas colegas modelos: Gigi e Sarah. No banheiro do lugar, em meio a conversas sobre sexo, Gigi, ao admirar a beleza de Jesse, diz: "Life is so unfair". Aqui fica clara a relação de competição na qual o sucesso de uma envolveria o fracasso da outra. As personagens estão bem-vestidas, há momentos de silêncio em que elas se entreolham, mantendo sempre o foco em (e revelando o desejo por) Jesse, que é "comida" pelos olhares invejosos das três. Enquanto Ruby conhece Jesse num "plano especular", admirando-a como se admirasse a si mesma, Sarah e Gigi são apresentadas a Jesse na festa e conversam face a face. Elas são imediatamente confrontadas com a alteridade de Jesse. Na cena seguinte, no banheiro, elas conversam enquanto se maquiam olhando no espelho, mas quando falam com Jesse olham diretamente para ela. Note-se que nessa cena é apenas Ruby que, em alguns momentos, ao falar com Jesse, continua olhando-se no espelho. Ruby ainda está capturada por sua própria imagem, enquanto para as demais Jesse parece representar, de imediato, a marca da alteridade, o ideal do ego inalcançável, que as retira do registro do ego ideal. Ela é imediatamente reconhecida como um objeto-outro, que não é o ego ideal, mas se apresenta como o ideal do ego. Para alguns sujeitos esse reconhecimento e essa busca podem ser fontes de uma angústia esmagadora, acompanhada pela experiência da inveja. Parece ser o caso de Gigi, Sarah e, como o filme mostrará, também Ruby. Voltando às cenas específicas, temos o momento no qual Jesse e Sarah competem por uma vaga. Para isso, desfilam em frente a um avaliador e sua assessora. O avaliador ignora o desfile de Sarah e se encanta por Jesse. Sarah fica nitidamente desconfortável. Durante o desfile, Sarah sente como se Jesse tivesse lhe roubado sua vaga. Na próxima cena, tendo sido "trocada" por Jesse, ela se olha no espelho, com raiva, e arremessa uma lata de lixo em seu reflexo, estilhaçando-o em pedaços. O espelho quebrado pode ser pensado como metáfora do ego ideal partido, experiência que se dá no reconhecimento da alteridade materna com o advento da posição depressiva (Klein, 1935/1996b). A "retomada" do ego ideal deve ser agora realizada por meio de múltiplas identificações (múltiplos "pedaços do espelho"), como Freud (1923/1996d) já observara. Apesar de seu caráter constitucional (Cintra e Figueiredo, 2004), é nesse momento que a inveja é intensificada, pois é quando o sujeito é desbancado de seu lugar de ideal. Mesmo recebendo uma crítica que pode ser considerada construtiva, Sarah não aceita o elogio de Jesse - desprezo comum, por exemplo, em análises, em que o paciente invejoso pode recusar uma interpretação mesmo tendo lhe feito sentido - há uma dificuldade em usufruir do seio (ou do objeto bom, ou do prazer) de forma prazerosa e plena. Sarah então chupa a ferida de Jesse (causada pelo estilhaçamento do espelho), o que nos remete novamente ao caráter sádico-oral da inveja, sendo uma das fantasias o esvaziamento da capacidade criativa do objeto bom, da capacidade de nutrição (física e psíquica) do seio/leite/sangue de Jesse, que lhe permite a vida. O banquete invejoso A tensão entre Jesse e as três personagens aumenta culminando na cena de sua morte: Jesse, na prancha de uma piscina seca, conta sobre sua infância para Ruby. Ao mesmo tempo que se reconhece como perigosa, como distante e inatingível, Jesse também se reconhece perfeita: "God! Was there ever anything better than this? I mean, look at me. What else is there?". É a fantasia do invejoso: o seio pleno, absoluto, sabendo-se capaz de produzir alimento, nega-o sadicamente para o bebê. Surgem na cena Sarah e Gigi, olhando ameaçadoramente para Jesse, que começa a fugir das três mulheres - ao que descobrimos que não tem sucesso, sendo morta. A próxima cena mostra Gigi e Sarah tomando banho, ensanguentadas, ao passo que Ruby as observa de uma banheira repleta de sangue. O corpo de Jesse (que pela quantidade de sangue supõe-se ter sido esquartejado) é festejado como no banquete da horda primitiva (Freud, 1913/1996a); seu assassinato é uma forma de elas terem acesso a tudo de bom que Jesse possuía. Seguem-se então três reações para essa introjeção violenta e canibalesca de Jesse. A primeira cena após o assassinato mostra Ruby sentada, nua, em meio a um quarto escuro, sem móveis, iluminada pelo luar através de uma grande janela, que parte do chão e alcança o teto. Ela menstrua copiosamente e mostra-se aliviada. A menstruação, sendo um processo natural e saudável do corpo feminino, pode ser aqui entendida como representação da saúde que Ruby atinge com essa introjeção; tendo ingerido o objeto bom, torna-se novamente capaz de criatividade - no filme encenada como uma criatividade biológica, que é a fertilidade, a capacidade de gerar uma criança. Por outro lado, o sangue que escorre de Ruby pode ser também entendido de forma contrária, a saber, como sinal de destrutividade do invejoso em relação ao seu objeto que, em sua relação sádica com este, mina a capacidade criativa do objeto desejado; os bebês de dentro da mãe, fantasiados pelo invejoso, são atacados e mortos, fazendo escorrer uma quantia de sangue que ultrapassa o volume saudável da menstruação, por se tratar, talvez, do sangue desses bebês. Voltam então os cenários claros e calmos, como lembrando da presença de Jesse dentro (no filme, de forma literal) de Sarah e Gigi. Sarah retoma sua capacidade de ser validada (enquanto modelo), de também produzir (nesse caso, produzir num formato capitalista, ganhando cachês). Acompanhando sua amiga em um ensaio fotográfico, Sarah permanece distante das fotos. O fotógrafo, porém, insatisfeito com o desempenho de uma das modelos do ensaio, chama-a para substituí-la. Ela sorri, triunfante. Sua amiga, Gigi, por sua vez, no momento em que está desfilando, começa a passar mal, mostrando um desconforto em seu estômago. Corre para o banheiro, onde se despe rapidamente e começa, aflita, movimentos de vômito. Vomita então o olho de Jesse, corta o próprio ventre com uma tesoura e cai morta no banheiro. É interessante lembrar que toda essa voracidade das introjeções presentes na inveja cria um mundo interno cada vez mais maldoso e, por isso, persecutório. Jesse, ingerida por Gigi, passa a lhe fazer mal de "dentro" para "fora". Passaremos agora a destacar brevemente o entrelaçamento, articulado neste texto, entre a sabedoria antiga e o mundo contemporâneo. O livro dos Provérbios ( Míshlê Shelomoh 6 ), no qual constam textos reunidos de aproximadamente 950 a.C. a 700 a.C. (Ellisen, 1984/1993), dos quais uma parte também é atribuída a Salomão, diz que "o sentimento sadio é vida para o corpo, mas a inveja é podridão para os ossos" (Provérbios, 14:30). Vemos, de maneira literal, esse efeito danoso da inveja em Gigi, que sente dentro de si a corrosão da inveja. Em outro dito dos Provérbios, em forma de pergunta, o autor acentua o potencial destrutivo da inveja: "O furor é cruel e a ira impetuosa, mas quem poderá enfrentar a inveja?" (Provérbios, 27:4). Aliás, a própria Klein (1957/1991b) afirma que há uma grande pertinência em relação às razões psicológicas para que a inveja esteja entre os sete pecados capitais e sugere que talvez ela seja "inconscientemente sentida como o maior de todos os pecados, por estragar e danificar o objeto bom que é a fonte de vida" (1957/1991b, p. 221). No filme, esse estrago é levado às últimas consequências, culminando na morte e desmembramento do objeto bom/Jesse. Em Kohelet , o autor escreve sobre um mundo desértico, repleto de opressão e carente de vida, no qual se observa a inveja (o que talvez seja a própria causa da condição desse mundo). O filme, por sua vez, finaliza-se com os créditos passando em um cenário desértico, com o chão craquelado, enquanto escutamos a primeira música com vocais do filme inteiro. Nesse momento, ego e/ou deserto são lugares inabitados, inférteis, hostis para qualquer moradia. Esse deserto sugere, então, a sensação de vazio interior que a inveja promove no invejoso. Vazio este contra o qual, ao mesmo tempo, a inveja se mobiliza, como pontua Trinca (2009). Considerações finais Apontamos sucintamente que o conceito de inveja primária, apresentado por Klein no fim da década de 1950, ainda hoje mostra sua potência como importante articulador (juntamente com outros conceitos da própria Klein e de outras searas teóricas) para pensar problemáticas do campo clínico e sociocultural. É interessante observar no enredo do filme um tipo de escalada da inveja, que corresponde a uma semelhante escalada da violência. O filme inicia-se com a encenação de uma morte, como que anunciando e denunciando o seu clímax sangrento. A violência é então gradualmente apresentada, iniciando nos olhares desejantes que se projetam sobre o objeto invejado. Ela cresce e toma forma (num sonho) de um homem com uma espada, depois se apresenta com uma alusão a um abuso sexual e ganha materialização em diversas formas: um espelho quebrado que fere Jesse, uma investida sexual intensa, até culminar no desfecho fatal. Essa crescente nos faz pensar em questões contemporâneas ligadas à inveja e à violência. A inveja primária, por seu caráter constitucional, não pode ser evitada, mas assim como a relação do bebê com sua mãe pode causar-lhe feridas narcísicas precoces, intensificando as angústias persecutórias e a inveja, acreditamos que a contemporaneidade, com sua ênfase na imagem e na felicidade de aparência, tem uma relação de retroalimentação com a experiência da inveja e diversas situações de violência. Além disso, o desfecho "grotesco" do filme, que transforma a introjeção numa experiência concreta canibalística, pode ser pensado como um alerta: quantos atos horrendos de violência não se iniciam com ações sutis e aparentemente inocentes? Olhos que se acendem como fagulhas, bocas que salivam e lábios que se mordem em desejo: é a inveja primária do bebê, representada nas personagens do filme. Essa inveja primária, porém, pode tomar diversas formas, o que nos leva a pensar que devemos ficar atentos aos pequenos atos de violência, de discriminação, de desrespeito às diferenças, pois sob a máscara de palavras e ações "ingênuas" pode estar contido o prenúncio de um horror impensável. NOTAS 1 Este trabalho é fruto das discussões e orientações no grupo de pesquisa e estudos sobre intersubjetividade e psicanálise contemporânea do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), constituído por alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, coordenado por Marina F. R. Ribeiro. 2 Segundo Ellisen, o título hebraico "[...] significa 'Pregador' ou 'alguém que se dirige a uma assembleia'[...]. Os tradutores gregos deram-lhe o nome de 'Eclesiastes', que significa 'função de pregador'. É um título bem apropriado, pois a obra contém muitas características de sermão, embora não principie por texto bíblico" (1983/1991, p. 190). 3 Sobre o uso de textos bíblicos, Ogden escreve: "Tratarei a escrita, nesse trecho, como texto literário, não texto religioso e, como tal, não tratarei as figuras e acontecimentos descritos na História como expressões de significado teológico, mas como expressões de verdades emocionais a que se chegou por meio de uma forma específica de pensar" (2016, p. 39). É também a partir dessa perspectiva que, neste artigo, tratamos os textos bíblicos. 4 Remetemos o leitor a um interessante livro de Chuster e Trachtenberg (2009), intitulado As sete invejas capitais , nele os autores realizam uma profunda reflexão a respeito da inveja, que parte da inveja do pênis, passando pela inveja do seio e no Édipo, chegando às implicações da inveja não apenas no plano social, mas nos próprios caminhos trilhados pela humanidade em suas ações autodestrutivas, como o constante ataque ao nosso próprio planeta. 5 Embora Klein não concordasse com a hipótese da existência de um narcisismo primário absoluto, referindo-se a estados narcísicos em vez de estágio narcísico (Klein, 1952/1991a), acreditamos que a posição esquizoparanoide pode ser definida como um estágio narcísico, no seguinte sentido: há uma cisão entre Ego ideal (e objetos idealizados) e outro (objetos ex no seguinte sentido: há uma cisão entre Ego ideal (e objetos idealizados) e outro (objetos extremamente maus/persecutórios). Há uma idealização de parte do ego e de parte dos objetos e o rechaçamento/ataque aos objetos considerados maus/persecutórios. Isso nos permite estabelecer um diálogo com a teoria freudiana do narcisismo primário, que diz que a relação primordial do sujeito com o mundo externo (na ótica kleiniana, objetos maus/persecutórios) é uma relação de ódio (Freud, 1915/1996c), e com a teoria lacaniana do estágio do espelho (Lacan, 1949/1998). Nesse sentido, Etchegoyen, no prefácio ao livro de Chuster e Trachtenberg, destaca o interessante posicionamento dos autores em relação a mesma questão: "a fúria narcisista que sente o bebê frente às fontes da vida pode ser interpretada como a inveja na teoria kleiniana" (2009, p. 13). 6 De acordo com Ellisen, o título hebraico "significa as analogias ou máximas de Salomão. O termo 'Mishle' quer dizer comparação ou provérbio, e é provável que derive do verbo "mashal" (governar). Designa, portanto, um controlador princípio de vida, expresso por analogia" (1984/1993, p. 181). I Psicólogo, mestre em psicologia clínica pelo IP-USP II Professora doutora do IP-USP e membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae III Iniciação científica no curso de psicologia do IP-USP REFERÊNCIAS Bíblia Sagrada. (1995). (J. F. de Almeida, trad.). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil. [ Links ] Britton, R. (2008). He thinks himself impaired: the pathologically envious personality. In Envy and gratitude revisited. Londres: Karnac. [ Links ] Chuster, A. & Trachtenberg, R. (2009). As sete invejas capitais: uma leitura psicanalítica contemporânea sobre a complexidade do mal. Porto Alegre: Artmed. [ Links ] Cintra, E. M. U. & Figueiredo, L. C. (2003). Melanie Klein: estilo e pensamento . São Paulo: Escuta. [ Links ] Ellisen, S. (1991). Conheça melhor o antigo testamento: um guia com esboços e gráficos explicativos dos primeiros 39 livros da Bíblia. 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- Reading Bion’s Transformation: Introdução à edição inglesa
Este texto é a tradução para o português da introdução à edição inglesa de Reading Bion’s Transformations , realizada por Marina Ribeiro e publicada em 2024. A obra original em português corresponde ao clássico Bion em Nove Lições: Lendo Transformações (2011), de autoria de Luís Cláudio Figueiredo, Gina Tamburrino e Marina Ribeiro. The analyst must focus his attention on O, the unknown and unknowable. The success of psychoanalysis depends on the maintenance of a psychoanalytic point of view; the point of view is the psychoanalytic vertex; the psychoanalytic vertex is O. With this the analyst cannot be identified: he must be it. (Bion,1970/2014, Vol. VI, p.243) Para início de conversa, o livro Transformações (1965) é considerado um dos mais enigmáticos e difíceis textos de Bion. Além disso, o próprio livro pode ser lido como o testemunho de um processo de transformação em O; uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion, esta introdução segue essa pressuposição, também abordada por outros autores. O livro ora apresentado para a publicação em inglês tem como intenção expor a importância do estudo desse texto de Bion para aqueles que desejam um aprofundamento na obra, e, especificamente, na mudança que ocorre nos últimos capítulos de Transformações , no qual Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. O subtítulo do livro aborda justamente essa mudança na obra: change from learning to growth. O livro Transformações (1965) representa uma guinada na direção que Bion vinha seguindo em seus trabalhos anteriores. Anteriormente a esse livro, Bion estava interessado no aprender com as experiências emocionais, ou seja, nas transformações em K (conhecimento), que pertencem ao campo das representações. A partir do final dessa publicação Bion se dedica às transformações em O, que ocorrem em um nível não representacional da experiência; no Ser e no tornar-se. Considero produtivo e criativo quando um conceito, no caso cesura, é usado para pensar a própria obra do seu criador . A cesura ocorre justamente no livro Transformações, especialmente nos seus três últimos capítulos. Podemos considerar que a leitura feita por Luis Cláudio Figueiredo é um tipo de microscopia dessa cesura, sob esse ângulo, um texto original, considerando a vasta publicação de livros e artigos sobre Bion até o momento, em inglês e português. O psicanalista interessado na obra de Bion precisa inevitavelmente se dedicar ao estudo das ideias desenvolvidas em Transformações (1965). Para aqueles que estão se iniciando na obra, o livro ora apresentado pode ser um bom acompanhante na leitura do texto original de Bion. E, para aqueles que já conhecem a obra em profundidade, o livro levanta questões importantes e atuais de natureza epistemológica, principalmente no que se refere aos diversos estatutos de O, apresentados por Bion no final do livro Transformações e destacados pela leitura minuciosa e desconstrutiva de Luis Cláudio. A partir do insight que Bion teve no final do livro Transformações , momento no qual postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na vida e na obra. Aos setenta e um anos Bion se muda para a Califórnia - Los Angeles (1968), para surpresa de seus pares ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a sua própria verdade emocional? Uma transformação em O? Figueiredo segue, na sua leitura, os vestígios deixados no texto pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica. É justamente nos anos californianos, um período criativo e produtivo da sua vida, que Bion fez quatro viagens ao Brasil (1973, 1974, 1975 e 1978), a convite de seu amigo e colega Frank Philips, ministrando seminários e supervisões; semeando um legado que tem gerado várias publicações em português. O livro Reading Bion´s Transformation é uma leitura em profundidade do texto Transformações (1965), uma análise conceitual não convencional, realizada originalmente nos anos 2.000 no contexto de aulas na pós-graduação. O texto de Bion é discutido passo a passo, as referências epistemológicas são destacadas e analisadas. O livro aborda os três primeiros e os três últimos capítulos do livro Transformações . A intenção é exercitar a capacidade de leitura psicanalítica desconstrutiva, reconhecendo que Bion elevou o pensamento e a prática psicanalítica a novos patamares. A leitura que Figueiredo (2000, 2011) faz desfocaliza e refocaliza constantemente os diversos estatutos de O que Bion discorre em 1965. Sumarizando, o principal objetivo do livro Reading Bion’s Transformation é investigar os estatutos epistemológicos de O no livro Transformações (1965); Figueiredo destacou e problematizou três, que serão apresentados brevemente nesta introdução. Figueiredo (1999), a partir das postulações de Jacques Derrida, expõe que uma leitura desconstrutiva parte de uma proximidade, lealdade e liberdade para com o texto em todas as suas dimensões. A leitura próxima e desconstrutiva privilegia o texto e a intertextualidade no lugar da obra e de seu autor. Mesmo sendo necessário que a primeira leitura de um texto seja sistemática e o texto tratado como obra, em um momento posterior, o leitor precisará se desprender e se lançar em uma segunda leitura próxima e desconstrutiva, que considere o texto e os diálogos intertextuais implicados. Esse método de leitura considera que há sempre uma intertextualidade em cada trabalho. O texto de um autor nos remete a outros textos do mesmo autor ou de outros autores, anteriores ou posteriores a este, ou ainda aqueles textos que estão por vir. Bion (1965) propõe no início de Transformações que esse seria um livro que dispensaria outros livros, o que evidentemente, não se sustentou. O livro Atenção e interpretação (1970) é uma expansão dos insights presentes no livro Transformações , principalmente no que se refere às transformações em O. A partir da postulação das transformações em O, o vértice psicanalítico para Bion passa a ser O, e não mais K; como citado na epígrafe desta introdução: o analista não pode estar identificado com O, ele precisa sê-lo (Bion, 1970/2014). Isso promoveu uma mudança na compreensão dos conceitos postulados por Bion antes de 1965, e, principalmente, uma retomada, em outros patamares, do que Freud propôs como método psicanalítico da atenção livremente flutuante. O analista precisa ter a disciplina de, ao receber seu analisando, estar em um estado de sem memória (passado), sem desejo (futuro) e sem compreensão prévia, como proposto por Bion (1965, 1967). O analista precisa estar aberto para a experiência nova que irá evoluir do encontro entre duas personalidades, a do analista e a do paciente, ou seja, estar à deriva, deixando-se flutuar por experiências ainda não vividas pela díade. Essa proposta metodológica de Bion é, segundo Gerber e Figueiredo (2018, p.81) uma "...verdadeira renovação da escuta em atenção livremente flutuante em sua dimensão ética: ouvir o outro sem preconceitos, sem filtros, sem lembranças, sem expectativas ou desejos específicos, …”. A obra de Bion considera enfaticamente a complexidade do funcionamento mental, além disso, remete constantemente o leitor ao desconhecido, mantendo o texto insaturado, aberto a outros possíveis significados, sempre momentâneos. No instante em que temos a impressão de compreender algo na leitura, já perdemos essa sensação efêmera de apreensão do conteúdo. Dessa forma, sugerimos uma leitura a partir do estado de mente que Bion (1965, 1967) propôs: sem memória, sem desejo, sem compreensão prévia, o que sabemos ser um desafio considerável para o analista, e, talvez, ainda mais, para alguns leitores de textos psicanalíticos que podem estar em busca de compreensões saturadas e conclusivas. Grotstein (2019, p. 239) propõe uma técnica para ler Bion: He later made the statement that the analyst, while listening to the patient, should really listen to himself listening to the patient. This novel ‘technique’ can also be applied to reading his published work, and I have every reason to believe that that was how Bion desired for readers to approach his works: to listen to their own spontaneous thoughts while reading him, i.e., their own transformations of their own personal experiences upon reading him. A leitura do texto pode vir a ser uma experiência de transformação para o leitor, exigindo o que Bion (1970) chamou de paciência: a tolerância ao não saber, a estar à deriva. E, também, ter fé, denominada como uma atitude científica por Bion, de que algum sentido emergirá do caos do estado esquizopanóide de mente, para se entrar em um estado de segurança, o estado depressivo de mente, assim se chega a um K (conhecimento), sempre provisório e momentâneo. Lembrando que Bion ofereceu aos conceitos kleinianos uma tridimensionalidade, complexidade e plasticidade significativas; principalmente aos conceitos das posições esquizoparanóide e depressiva, ao de identificação projetiva e ao de inveja (Cintra, E. e Ribeiro, M. 2018). Há uma especificidade na leitura feita por Luis Cláudio Figueiredo (1999) do livro Transformações : trata-se de uma leitura próxima e desconstrutiva, como já dito, atenta às impurezas, às irregularidades, às fraturas, às alteridades do e no texto, sem idealizações ou partidarismos, considerando a complexidade do texto bioniano. Sob esse ângulo, o livro também é o testemunho do uso criativo do método de leitura psicanalítica desconstrutiva, além de ser um estudo feito no âmbito da pós-graduação universitária, ou seja, um método usado atualmente em pesquisas psicanalíticas; um método sofisticado de investigação e estudo de um texto psicanalítico. Bion ainda é um autor pouco presente nas universidades; dessa forma, penso ser fundamental apresentar algumas ideias de Bion, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Compreendo que a experiência de abertura e interesse de uma nova geração para um autor tão instigante como Bion pode acontecer na graduação, o que pode vir a favorecer a expansão do seu pensamento ao longo das futuras gerações. A teoria das transformações é uma teoria da observação clínica no aqui e agora da sessão analítica. Uma observação de como evoluem os fenômenos clínicos entre analista e analisando, a sequência de transformações que acontecem em uma sessão, na dupla analítica em complexa interação. E, também, a interpretação, a construção do analista ou sua formulação verbal, que é compreendida como um produto dessas inúmeras transformações que ocorrem durante uma sessão de análise, sendo que, a própria interpretação gera novas transformações. O livro Transformações aborda a eficácia psicanalítica e não apenas as verdades do conhecimento psicanalítico. Bion retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise: “If I am right in suggesting that phenomena are known but reality is ‘become’, the interpretation must do more than increase knowledge” (Bion 1965/2014, p.259). Em outras palavras, a interpretação deve favorecer uma transformação em O, deve favorecer o tornar-se si mesmo, não apenas um conhecimento de si. Em toda transformação há uma invariância, algo que permanece inalterado. Zimerman (2014) esclarece o conceito com o exemplo da água: líquida, gasosa ou como um cubo de gelo, o elemento invariante é a molécula de H2O. Outra analogia que podemos fazer para compreender essa díade transformação/ invariância é com a fotografia de uma mesma pessoa aos cinco e aos cinquenta anos, qual é a invariância que permite que ocorra um reconhecimento de que é a mesma pessoa? E no material clínico, como é possível reconhecer uma invariância? Compreendemos que a invariância pode favorecer o surgimento do fato selecionado, ou seja, aquilo que será objeto da interpretação por parte do analista, ou como um fato que é fundamental na compreensão do funcionamento psíquico do analisando, por exemplo: o sofrimento psíquico do paciente pode estar condensado em uma imagem que emerge na sessão por meio da capacidade de reverie do analista , como veremos na vinheta clínica apresentada no final desta introdução. Partindo do modelo apresentado por Bion (1965/2014) de que o analista observa o reflexo das árvores no lago, nunca as árvores diretamente, ou seja, há graus diferentes de distorções daquilo que é percebido segundo a turbulência da água e as condições atmosféricas. As árvores na beira do lago são uma manifestação de O, pois O é incognoscível. A turbulência da água e as condições atmosféricas são as emoções que circulam na sessão, no campo analítico, os vínculos L, H e K. Bion chamará essas distorções de hipérboles, com diferentes graus de transformação da experiência emocional original, no sentido de um distanciamento, como as ondas que reverberam ao lançarmos uma pedra no lago. A teoria das transformações abrange e contém a teoria freudiana da transferência (transformações em movimento rígido) e a teoria kleiniana da identificação projetiva (transformações projetivas). A transformação em moção rígida aproxima-se da transferência como postulada por Freud, algo do passado do paciente é transferido ao analista, e, geralmente, isso é identificado como uma invariância, algo que permanece e é reapresentado continuamente na transferência. Nas transformações em movimento rígido a invariância é reconhecível com uma certa facilidade. Temos as transformações projetivas, postuladas a partir da expansão do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein. Bion, na teoria sobre o pensar (1962), propôs os conceitos de continente e contido e considerou que as mentes se comunicam via identificação projetiva, alocando o conceito kleiniano em outro patamar de complexidade e no campo da intersubjetividade. As transformações projetivas comportam graus diferentes de distorção, sendo que as transformações em alucinose distorcem ao limite extremo, ou seja, o ápice da distorção hiperbólica, o limite entre o mental e o não-mental, no qual, torna-se difícil reconhecer uma invariância, pois a distorção é brutal. Temos as transformações em K (conhecimento), e, ao final do livro Transformações , Bion aborda as transformações em O, o tornar-se si mesmo. As várias formas de transformação são vértices oscilantes e podem ocorrer em diferentes momentos de uma mesma sessão, sendo que a análise deveria favorecer as transformações em K e em O, o aprender com a experiência (K) e o tornar-se (O). A partir de Transformações, Bion (1965) compreende que o contato com a realidade psíquica ocorre de forma a-sensorial, ou seja, uma apreensão que acontece por meio da intuição e não pela captação sensorial. O estar em O do analista, como Bion (1970) escreve, é o estado de mente que favorece a intuição psicanalítica, no que se refere ao contato com a realidade psíquica do paciente, um conhecimento sem a mediação de elementos sensoriais. Bion (1965, 1967) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade, e intensificados por esta, e não favorecem a intuição, motivo pelo qual faz essa sugestão técnica de difícil compreensão ainda hoje: o analista precisa receber seu paciente em um estado mental sem desejo, sem memória e sem compreensão prévia, como se fosse sempre a primeira vez. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo em 1965 (publicado como texto em 1967) nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: Nevertheless, as analysts we do know – and I think it is borne in on us more and more as experience builds up – that we really do deal with something ; that the psychoanalytic experience, however sceptical we may be, is really an emotional experience and it really exists, even if we shall never know or be in a position to give even an approximately correct description of what takes place. For this reason, I think – and find it most useful to do so – of any clinical description as being by nature of a pictorial representation, or, shall we say, a sensuous representation (because I am thinking of what takes place in an analytic situation).I transform that situation into visual images and then a further transformation into verbal formulations, such as those with which we are familiar here (Bion, 1965/2014, p.10). O analista está diante do desafio de lidar com o aquém da sensorialidade, o não sensorial, captado pela intuição psicanalítica, o terceiro olho da mente, a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente. E, também, o psicanalista precisa lidar com o sensorial, aquilo que pôde ser transformado em uma representação pictórica pela sua capacidade de reverie. E, além disso, o psicanalista precisa se defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens que emergem do encontro analítico; as formulações verbais. Há, também, a geração de imagens a partir das interpretações ou construções feitas pelo analista, em uma circularidade que se retroalimenta, e que favorece a intimidade psíquica e a expansão do campo analítico. É dessa forma que compreendo quando Bion (1965) escreve sobre o diâmetro gerado pela interpretação, que não pode ser nem limitado e nem amplo demais, mas precisa ser um diâmetro que favoreça o contato íntimo entre as duas mentes, a do analista e do analisando, em constantes transformações de um O comum a díade. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica, ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion,1992/2014). As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967). Precisamos de um facho de intensa escuridão para intuir no aqui e agora da sessão, tornar visível o invisível da experiência. Freud, in a letter to Lou Andreas-Salomé, suggested his method of achieving a state of mind which would give advantages that would compensate for obscurity when the object investigated was peculiarly obscure. He speaks of blinding himself artificially. As a method of achieving this artificial blinding I have indicated the importance of eschewing memory and desire. (Bion, 1970/2014, vol. VI, p. 257). A função do analista na sessão, a partir da postulação das transformações em O, passa a ser uma oscilação contínua entre conhecer (K) e ser (O). Em outros termos, uma transformação contínua de O para K, e de K para O, a partir do atravessamento das turbulências hiperbólicas, das distorções da realidade psíquica sempre presentes, Figueiredo (2014) escreve: …Bion nos fala da experiência de O - a experiência emocional em sua condição de Origem de toda a nossa vida somatopsíquica: aqui não se trata de ‘conhecer’, mas de ‘tornar-se’, reconciliar-se em profundidade com a própria experiência emocional inconsciente, sem defesas e subterfúgios, inclusive sem a redução desta experiência ao campo dos sentidos instituídos e reconhecíveis pela consciência. Neste contexto, que ultrapassa a epistemologia clássica, pois o que está em jogo é a correspondência entre a representação e o seu objeto, dá-se ‘uma outra verdade’, a verdade em O, da maior importância para a clínica psicanalítica, cujas metas não se reduzem a conhecer ou reconhecer-se - embora passem por isto - mas se projetam no rumo de uma efetiva transformação subjetiva, o que só acontece a partir do contato profundo e sem disfarces do sujeito consigo mesmo, com o inconsciente infinito que o habita e move. ( p.127) . Ainda que possamos compreender as transformações em K e em O como vértices oscilantes, a transformação princeps é o tornar-se: “Their value therapeutically is greater if they are conducive to transformations in O; less if conducive to transformations in K” (Bion, 1970/2014, p. 242). Bion, inspirado em Nietsche, diz que em uma análise o paciente se torna quem ele é, o melhor que se pode com o que se é a cada momento, pois o inconsciente é infinito; é o que nos move, uma constante iman ência. Retomando as transformações em O, Figueiredo (2000, 2011) faz uma discriminação de três concepções de O que surgem em Transformações , ou seja, qual é a concepção, ou o estatuto de O no plano da teoria das transformações? Como esta concepção oscila ao longo do livro de Bion? Primeiramente, temos O evocado através das formas platônicas; O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza, mas conteria as matrizes dos possíveis fenômenos, ou seja, comporta uma ordem: as formas transcendentais. Essa concepção de O como formas platônicas colaboram na compreensão das preconcepções inatas, o arcabouço da mente, as tendências herdadas para organizar o mundo segundo certos padrões, como relata Figueiredo (2000, 2011). Na segunda concepção, O não comporta as formas platônicas, mas uma potencialidade para as distinções ainda não desenvolvidas. No entanto, segundo Figueiredo (2000, 2011), nessa concepção, a razão da resistência ser deflagrada não é compreensível. O que geraria a resistência? Quando há um movimento em direção a O, em direção à experiência da verdade emocional do analisando, o que geraria a resistência? Bion escreve que a verdade emocional é o alimento da mente, mas que tememos o contato com essa verdade, ou seja, resistimos a ela, resistimos ao desconhecido em nós. Na terceira, última e plena acepção de O como o infinito vazio e sem forma do qual o mundo emerge em estado ainda caótico, as razões da emergência da resistência se tornam compreensíveis. A resistência é gerada diante da angústia ao infinito vazio e sem forma, ao desconhecido. Bion (1965/2014, p. 261) usa essa formulação poética de John Milton em Paradise Lost para representar O: The rising world of waters dark and deep. Won from the void and formless infinite. Figueiredo (2000, 2011) considera que apenas nesta terceira compreensão que O corresponde à coisa-em-si kantiana, que não pode ser conhecida, no entanto, suas qualidades primárias e secundárias podem ser apreendidas, citando Bion: I am not interpreting what Milton says but using it to represent O. The process of binding is a part of the procedure by which something is “won from the void and formless infinite”; it is K and must be distinguished from the process by which O is ‘become’. The sense of inside and outside, internal and external objects, introjection and projection, container and contained, all are associated with K. (Bion, 1965/2014, p. 262) Dessa forma, como compreende Figueiredo (2000, 2011), Bion acentua o hiato entre a lógica do mundo dos conceitos (K) - o senso de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e contido - e o plano do infinito vazio e sem forma no qual a experiência emerge. Esse hiato tem uma reverberação significativa no universo teórico da psicanálise: o intervalo entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre o saber de si e o tornar-se si mesmo. Continuando nessa direção de destacar algumas articulações específicas presentes neste livro, no intuito de conduzir e instigar o futuro leitor, enfatizamos, que é a partir do livro Transformações (1965) que passa a ser fundamental a qualidade das transformações que se realizam na sala de análise e na dupla analítica, dentro do campo analítico. Transformar é trans + formar, formar para além, que implica tanto em movimentos formativos, quanto nos desintegradores, transformar tanto forma como destrói formas. Na experiência do inconsciente implicada na psicanálise, é preciso que se reconheça tanto a dimensão do tornar-se como do desfazer-se, movimento, este último, pouco realçado em outros textos. O movimento de desformar, desfazer-se em O, é uma ênfase da leitura de Figueiredo (2000, 2011): Being become by O seems to imply a “constructive” movement in which O imposes itself with its “development” potential. Becoming O, understood now as a void and formless infinite, is, on the contrary, a deconstructive movement back to baseless, to the dark nights of the soul. In the first case it is letting oneself be done by O , in the other is letting oneself be undone in O . Na mesma direção do desformar, é abordado neste livro uma discussão sobre os conceitos de função α e transformação α (Tα), estabelecendo relações entre ambos. É considerado que Tα inclui a função α, mas não se reduz a ela, uma vez que o resultado de certas transformações – em função da destrutividade e desintegração – não são pensamentos propriamente ditos, mas sim evacuações e projeções. A transformação implica em formar, mas, também, em desformar, ou seja, não só os pensamentos podem se apresentar destruídos; a própria capacidade de pensar pode estar destruída. Outra compreensão a ser destacada no texto ora apresentado é referente à dimensão beta do material clínico, sempre presente. Bion usa o termo elemento β , e T β (transformação β ), gerando uma certa confusão no leitor, pois T β é produto de uma transformação, e o elemento β é uma experiência em estado bruto. O termo transformação é desdobrado em três: as Transformações (T) englobam transformações em termos de processo (T α) e transformações em termos de produtos (T β). Quando estamos diante T paciente β , estamos diante de um produto de uma transformação; esse é o material clínico que será apresentado ao analista, no entanto, esse material continua contendo uma dimensão beta. Estamos sempre diante de uma sequência infinita de transformações, nas quais a origem (O) é incognoscível, e o que se apresenta como forma ou representação permanece continuamente com uma dimensão beta, enigmática. Bion nos fala dos limites da representação, do constante formar e desformar, sempre parcial, ou seja, a dimensão beta da experiência está sempre presente. Mawson escreve: “A careful reading of Bion, however, allows us to see that it is an epistemological idea relating to the limits of representation.” (2014, vol.VI , p.215) Figueiredo (2000, 2011) dia que o material clínico – ainda que já contenha algumas formas e padrões dos quais se possam extrair invariantes – está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada, e a interpretação a ser formulada. O material clínico contém uma dimensão beta, enigmática, intrusiva, perturbadora, que convoca o analista a uma experiência que é sempre de turbulência emocional, um mau negócio, como escreve Bion em seu último artigo (1979/2014). Será que o analista pode propiciar uma transformação em O a partir da interpretação e do conhecimento psicanalítico? O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza. Contudo, ele já conteria em si as matrizes dos possíveis fenômenos. A experiência que Bion denomina mística será um modelo para esta modalidade de transformação, que já não é uma transformação DE O, mas uma transformação EM O, já não é um conhecimento de O, mas um tornar-se O, ou seja, o intervalo, ou hiato como escreve Bion (1970), entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre ter um conhecimento de si e o tornar-se si mesmo, como dito acima. Embora Bion não esteja se apresentando como místico, não deixa de nos sensibilizar a lembrança de que para ele a procura das formas adequadas de expressão é tão necessária, quanto fracassada, pois é sempre uma aproximação que comporta distorções, como escreve Figueiredo (2000, 2011). Tal como o místico, o psicanalista tem uma experiência de O que não pode ser nem desqualificada nem transformada em representação adequada, já que toda transformação de O é de alguma forma hiperbólica. Poderíamos dizer que L, H, e K são sempre inadequados a O, embora sejam apropriados a transformações DE O. Em cada um destes vínculos há uma espécie de exagero e distanciamento, o que está na raiz do que Bion chama de hipérbole. Para Bion, ser O ou tornar-se O, nem é uma possibilidade teórica, nem pode ser um imperativo categórico, ou seja, superegoico, como diz Figueiredo (2000, 2011). É abordado neste livro que a passagem a O, muito mais que o conhecimento de O, é o que está presente nas situações de resistência, ou seja, no ato de se desfazer no desconhecido, nas águas turvas e profundas. É a iminência de O, como sentimento de que aceitar e acolher O, que pode ser a melhor solução – ainda que penosa – que deflagra a resistência a O. O conhecimento (K), inclusive, pode ser um dos modos de não ocorrer a transformação EM O, de impedir sua iminência. O que está em jogo não é o conhecimento e suas vicissitudes, ou seja, as capacidades cognitivas do homem e seus limites, mas a possibilidade assustadora de passar a O, de transformar-se em O, em sua iminência e imanência: o infinito vazio e sem forma. Segundo Figueiredo (2000, 2011), uma situação patológica se instala quando o encontro com O deve ser evitado e adiado infinitamente. Neste desviar-se, ficamos às voltas apenas com as transformações de O. Isso quer dizer que não só prevalece o vínculo H, mas, também, quando prevalece L e K – situações em que O está apenas hiperbolicamente presente, nessa situação, há sempre uma resistência a O operando, uma resistência ao desconhecido. O que gera a resistência é a angústia diante do infinito vazio e sem forma – nada de entes – e, provavelmente, o pavor do mundo emergente de águas turvas e profundas, pois o mundo aqui não é conquistado, a partir do nada, na forma de algo simples e bem discriminado. Nesta versão, o estatuto de O como incognoscível, encontra a sua plena formulação. A ideia de O como infinito vazio e sem forma – um nada de entes, em termos heideggerianos, ou seja, momento no qual o mundo emerge em estado ainda caótico. Neste caso, fica muito mais fácil identificar as razões da resistência, da evitação ao desconhecido. Assim, podemos supor que O seja um campo de possibilidades de ‘evolução’, em si mesmo inacessível, mas cujos ‘produtos’ podem ser conhecidos, ou que O é o infinito vazio e sem forma de onde são conquistadas as qualidades secundárias e primárias de que se compõem os entes. Após essa explanação teórica da teoria das transformações, vou apresentar uma vinheta clínica que servirá de referência para refletirmos sobre os conceitos. Considerando, que é sempre um desafio articular o material clínico com as abstrações teóricas, mas vamos confiar no estímulo e curiosidade provocados pela experiência: Ao encontrar Antônio pela primeira vez, sem nenhuma informação a seu respeito, fixo-me incomodamente em seus sapatos e penso: são sapatos de um morto, como alguém pode usar sapatos de um morto? Percebo-me quase em uma experiência alucinatória, os sapatos produzem o efeito de um campo magnético do qual não consigo desviar os olhos e o pensamento: vejo a morte e estou paralisada. Ele começa a falar, fico dividida, observando o que é dito e a intensa sensação de morte na qual estou imersa, sem compreender absolutamente nada do que está ocorrendo, sendo arrastada pela experiência perturbadora. Aguardo em um silêncio receptivo. Ao final do nosso encontro, Antônio relata de forma distanciada e breve os fatos de sua vida que precisavam ser sonhados, fatos estes que estavam contidos e condensados na imagem dos sapatos de um morto, representação pictórica pela qual fui subitamente abduzida ao encontrá-lo. Sua única filha nascera com várias malformações, passou por intervenções cirúrgicas e viveu poucos anos. Antônio havia me procurado após um ano da morte da menina ou da sua quase morte psíquica; ele andava com os sapatos de um morto, desvitalizado, um morto ainda vivo. Sua demanda manifesta de análise era expressa, porém, por outras questões: não conseguia encontrar um lugar de reconhecimento profissional e financeiro. A profissão - vida - se mostrou de uma brutalidade ímpar, e ali estava ele, um homem andando com a morte acorrentada aos seus pés. E, na mesma sala, a analista, tentando sonhar a brutalidade dos fatos de sua vida. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “ I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analystand analysand equally. ” (Bion 1965/2014, p. 169). A turbulência gerada pelo encontro com Antônio - o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979) -, rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma reverie na mente da analista: a imagem dos sapatos de um morto, que também passa a ser um fato selecionado da sessão. A imagem pictórica já é o produto (T analista β) de um processo de transformação (T analista α). A analista em estado de capacidade negativa (sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia), estado de mente receptivo a O, e, também, favorecedor da intuição psicanalítica, é arrastada pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido, ficando à deriva. É preciso ter paciência (estado de mente esquizopananoide) e fé, o ato de fé (Bion, 1970) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo), que propicie uma evolução em K, um conhecimento do sofrimento psíquico do paciente. A experiência de ‘ver’ os sapatos de um morto é algo do âmbito do que (Bion, 1970/2014, vol. VI, p. 250) chamou de transformação em alucinose: …to appreciate hallucination the analyst must participate in the state of hallucinosis. From what I have said it will be clear that this is so, for I have postulated that a K link can operate only on a background of the senses, is capable of yielding only knowledge ‘about’ something, and must be differentiated from the O link essential to transformations in O. Before interpretations of hallucination can be given, which are themselves transformations O ˃ K, it is necessary that the analyst undergoes in his own personality the transformation O ˃ K. By eschewing memories, desires, and the operations of memory he can approach the domain of hallucinosis and of the ‘acts of faith’ by which alone he can become at one with his patients’ hallucinations and so effect transformations O ˃ K. A representação pictórica dos sapatos de um morto é uma transformação de O em K, uma experiência que se fenomenaliza em uma imagem, um ideograma afetivo (1992/2014); imagem que está no âmbito da alucinose, pois não há nenhum apoio sensório na captação dessa realidade psíquica, isso acontece pela capacidade de intuição do analista, que evolui para uma reverie, ou seja, entra no campo das representações. Podemos refletir que ocorreu na mente da analista, diante da turbulência emocional do encontro, uma transformação de O para K, ou seja, algo sem forma (O), evolui para uma forma (K), a imagem pictográfica. Isso ocorre pela capacidade de reverie da analista, sua função α; lembrando que a reverie é um fator da função α, uma função transformadora da brutalidade dos fatos. K é uma forma, algo que se fenomenizou, passível de representação por uma imagem com características estéticas, e que, posteriormente, pode ser transformada pelo analista em uma narrativa, uma formulação verbal como escreve Bion (1965). Resumidamente, O se manifesta em K (Bion,1970/2014), se fenomenaliza em K. A experiência estética na sessão analítica é outro vértice que surge a partir do livro Transformações . Bion inicia o livro descrevendo a mutação que o artista faz ao pintar um campo de papoulas, e as invariâncias que fazem com que seja possível o reconhecimento do campo de papoulas, no entanto, essa analogia se tornará cada vez mais complexa ao longo do livro. Seria a transformação em O uma experiência estética? Ou a transformação em K? Ou mesmo as distorções hiperbólicas das transformações projetivas e a transformação em alucinose poderiam ser compreendidas como experiências estéticas? Como geralmente estamos diante de construções imagéticas da mente, os ideogramas afetivos (Bion, 1992/2014), uma experiência estética parece estar sempre presente nos diversos vértices de transformação que poderiam até ser pensados como vértices estéticos da experiência emocional. A linguagem poética que Bion passa a usar com mais frequência após o livro Transformações , e indubitavelmente, na publicação da trilogia Memória do Futuro e dos textos autobiográficos, é uma linguagem da imaginação estética, uma linguagem de êxito, como ele escreveu em Atenção e Interpretação (1970) . Somente a linguagem poética pode ser uma evolução das transformações EM O e DE O. A mente se organiza como poiesis, a diuturna capacidade de sonhar as experiências emocionais, uma criação estética, imaginativa, constante e infinita. Agradecimentos e a história do livro Reading Bion’s Transformation O atual é aquilo que não envelhece com a passagem do tempo, talvez até se torne melhor compreendido, o que penso ser o caso da leitura que Luís Cláudio Figueiredo fez do livro Transformações em março de 2000, tendo como interlocutores os alunos da pós-graduação da PUCSP. A época em que essas aulas foram ministradas é um dado a ser destacado, pois escassos textos nos anos 2000 se referiam a essa mudança na obra de Bion, e, especificamente, os estatutos de O, do Ser e do tornar-se, justamente o que é examinado nessa leitura do livro Transformações , e que vem sendo discutido atualmente entre estudiosos da obra: o estatuto clínico das transformações em K e em O. No ano de 2008, Gina Tamburrino e eu fazíamos doutorado, tendo como orientador o Luis Cláudio. Na ocasião, ele disponibilizou suas anotações das aulas ministradas em 2000 para organizarmos um seminário sobre Transformações . Ficamos impactadas com a originalidade e complexidade daquelas anotações de aula e sem hesitação comentamos que seria interessante a publicação daquele material. Luis Cláudio nos convidou para organizar e editar aquelas preciosas anotações, o livro foi publicado em português em 2011. Na direção de orientar o leitor de língua inglesa, o livro Reading Bion de Rudi Vermote (2019) é um bom interlocutor para o livro Reading Bion’s Transformation , que consiste em uma leitura pormenorizada e detalhada de um dos livros teóricos de Bion, considerado extremamente complexo, mas fundamental para compreender de forma consistente o pensamento bioniano. A semelhança dos títulos dos dois livros foi uma coincidência, o livro em português se chama Bion em nove lições. Lendo transformações , publicado em 2011. A origem do texto são aulas ministradas na pós-graduação por Luis Cláudio Figueiredo, por esse motivo, mantivemos os capítulos nomeados como lições. Como o título em português comporta um certo humor paradoxal, pois não se trata de apresentar Bion em nove lições, mas de expor uma leitura complexa do livro Transformações (1965), preferimos retirar a primeira parte do título para a versão em inglês, o que acentuou a proximidade entre os dois títulos. Coincidências à parte, ou melhor dizendo a partir do próprio Bion: os pensamentos psicanalíticos buscam autores em diferentes continentes geográficos e psíquicos; os livros são escritos em línguas e tempos diversos, no entanto, podem se interconectar na sua textualidade, mesmo que em parte. Além disso, o título em inglês permite uma outra compreensão: que Figueiredo segue atentamente os vestígios deixados no texto pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica, como já exposto. Ao final, gostaríamos de agradecer ao Luís Cláudio Figueiredo que foi generoso em concordar com a publicação das suas ideias para o leitor de língua inglesa; e à colega Gina Tamburrino que também endossou a proposta. A Elias da Rocha Barros pelo prefácio feito para a versão em inglês, mas não apenas isso, seu incentivo para traduzir e publicar o livro foi simplesmente decisivo. A Howard Levine pelo interesse nas ideias presentes no livro e pela prestimosa orientação para que uma introdução fosse escrita orientando o leitor de língua inglesa aos desafios na leitura do texto, tanto do texto original de Bion, Transformações, como a leitura apresentada neste livro. Traduzir é em parte trair o texto original, sendo que, o português e o inglês são línguas com estruturas diversas, tornando a aventura da tradução um risco e um trabalho árduo . Um agradecimento a Davi Flores, o tradutor, e a Taís Nicoletti, a revisora, que aceitaram o desafio de traduzir para o inglês um livro difícil e complexo em português. Ambos são psicanalistas e pesquisadores interessados na obra de Bion, e que fazem parte do meu grupo de pesquisa na Universidade de São Paulo e do LipSic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea IPUSP - PUCSP). Agradeço a resenha do livro em português, escrita por Júlio Fochtengarten (2012), que foi usada como uma das referências para este texto. Sou grata a leitura cuidadosa e atenta ao manuscrito desta introdução e as sugestões feitas por Evelise Marra, Ignácio Gerber, Júlio Fochtengarten, e Gina Tamburrino. Agradeço a Evelise de Souza Marra, co-organizadora das Jornadas sobre a obra de Bion em São Paulo iniciadas em 2008, e realizadas com a colaboração de outros colegas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), até o momento foram doze jornadas, e pelos textos e livros que foram gerados a partir desses profícuos encontros, até o momento são cinco livros, tornando o legado de Bion no Brasil algo em constante expansão. E, agora, parte dessa consistente produção brasileira é apresentada ao leitor de língua inglesa tendo Howard Levine como editor. NOTAS 1 Luis Cláudio Figueiredo inicia muitos de seus textos e aulas com essa expressão - para início de conversa -, dessa forma, fazemos aqui um tributo a esse psicanalista e pesquisador tão profícuo. 2 Vermote (2019) no livro Reading Bion refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana; dividindo seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros. 3 Luis Cláudio Figueiredo tem uma publicação considerável em português, são vinte e quatro livros publicados até o momento; considerado um dos psicanalistas brasileiros mais lidos, citados e referidos por seus pares. O leitor de língua inglesa pode encontrar alguns artigos desse autor em revistas científicas. 4 A história detalhada deste livro está no final da introdução. 5 Os termos transformações e invariâncias tem origem na matemática. 6 Retomo o conceito de transformação em alucinose na discussão da vinheta clínica no final da introdução. 7 Vermote (2019, p.166) considera que no livro Atenção e interpretação (1970) Bion “...succeeded in integrating T (K) and T (O) as a dual track of psychic functioning and change. ” 8 Se permanecermos estritamente dentro de uma conceptualização bioniana, a resistência se refere ao desconhecido, ou seja, ao espectro conhecido-desconhecido e ao aprender e não aprender com a experiência emocional. Lembrando, também, que referente a díade consciente-inconsciente, Bion propõe a díade finito-infinito. 9 Atualmente, Luis Cláudio Figueiredo é um dos professores orientadores do LipSic. REFERÊNCIAS Bléandanu, G. Wilfred R. Bion. A vida e a obra. (1993). Rio de Janeiro: Imago. (Trad. Hoory e Mortara). Bion, R. Wilfred (1965). Transformations. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1965). Memory and desire, 1965. The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1967). Notes on memory and desire. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1970). Attention and interpretation. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson. Bion, R. Wilfred (1992). Cogitations. The complete woks of W.R.Bion . London: Karnac Books, 2014. Cintra, E.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP: Escuta. Figueiredo, L. C. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo, SP: Escuta. Figueiredo, L. C. (2000). Anotações de aulas ministras na pós-graduação da PUCSP. Figueiredo, L. C; Tamburrino, G., Ribeiro, M. (2011) Bion em nove lições. Lendo Transformações. São Paulo. Editora Escuta. Frochtengarten, J. (2012). Bion em nove lições: lendo Transformações. Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3), 229-232. Recuperado em 30 de janeiro de 2021, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo . Gerber, I. & Figueiredo, L.C. (2018). Por que Bion? São Paulo: Ed. Zagodoni. Grotstein, J. (2007). A beam of intense darkness. Wilfred Bion’s Legacy to Psychoanalysis. London: Karnac Books. Grotstein, J. (2019). Listening to and reading Bion. In: Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge, pp. 238-243. Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge. Zimerman, D. Bion da Teoria à Prática. Uma leitura didática . (2004). Porto Alegre: Artmed. Livros publicados decorrentes das 12 Jornadas sobre a obra de Bion em São Paulo ocorridas na SBPSP desde 2008: Psicanálise: Bion - Transformações e Desdobramentos . Organização: Cecil José Rezze Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani-. Primeira edição: Casa do Psicólogo. São Paulo, 2009 . Segunda edição: Ed. Blücher: São Paulo, 2020. Bion: A décima face-novos desdobramentos . Org: Cecil José Rezze, Celso Antonio Vieira de Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Blücher: São Paulo, 2018. Bion: Transferência, Transformações, Encontro Estético . Org: Cecil José Rezze, Celso Antonio Vieira de Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Primavera: São Paulo, 2016. Psicanálise: Bion. Afinal o que é experiência emocional em Psicanálise? Org: Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani. Ed. Primavera: São Paulo, 2012. Psicanálise: Bion- Clinica ↔ Teoria . Org: Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani. Ed. Vetor: São Paulo, 2011.
- Transformações em K e em O: vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e ontológica
Este artigo, de autoria de Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, foi publicado em 2024 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 31, número 1, na edição intitulada Bion: transformações, evoluções e expansões II . O texto pode ser acessado em: https://revista.sppa.org.br/RPdaSPPA/article/view/962 . Resumo: Neste texto, aproximo a nomeação de Thomas Ogden (2020) de uma psicanálise epistemológica e uma psicanálise ontológica com as transformações em K (conhecimento) e transformações em O (tornarse) de Bion (1965). Proponho a existência de dois vértices oscilantes, realçando que há um movimento contínuo entre ambos. Compreendo que uma psicanálise epistemológica e ontológica já estava presente no livro de Bion, Transformações (1965/2014), ao abordar as transformações em K e as transformações em O, ou seja, o conhecer e o tornar-se. A obra Transformações pode ser lida como o testemunho de um processo de transformação em O, uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion a partir de sua mudança para Los Angeles. Nos últimos capítulos de Transformações , Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. Palavras-chave: Transformações; Psicanálise ontológica; Psicanálise epistemológica; Bion; Thomas Ogden “O analista precisa focalizar sua atenção sobre O, o desconhecido e incognoscível. O sucesso da psicanálise depende de se manter um ponto de vista psicanalítico; o ponto de vista é o vértice psicanalítico; o vértice psicanalítico é O. O analista não pode estar identificado com O: ele precisa sê-lo.” (Bion, 1970/2007) Ogden (2020) usa as expressões “predominância da psicanálise epistemológica” e “predominância da psicanálise ontológica”. Vértices oscilantes é uma construção própria para nomear o fenômeno da constante transição entre esses dois campos. Vértice psicanalítico é um termo usado por Bion em vários textos e supervisões, uma analogia feita a partir da geometria, um modelo usado pelo autor (Sandler, 2021). Segundo Ogden (2020), a psicanálise epistemológica está relacionada ao conhecimento e à compreensão, ou seja, ao campo das representações e diferenciações, tendo Freud e Klein como principais autores; por outro lado, a psicanálise ontológica tem Bion e Winnicott como referências, e é relativa ao ser e ao tornar-se - campo do não representado e do indiferenciado. A psicanálise ontológica propõe que o paciente descubra sentidos de maneira criativa, de modo a tornar-se mais plenamente humano: “o enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornarse mais pleno e as experiências mais vivas e reais” (Ogden, 2020, p. 24). Nesse sentido, Ogden destaca que, em Bion, a experiência de sonhar, considerada em todas as suas formas, acaba por se sobrepor ao sentido simbólico dos sonhos. Além disso, Ogden considera Bion como um pensador ontológico, afirmando que sua concepção de rêverie e função alfa, bem como sua proposição para o estado de mente do analista na sessão (capacidade negativa), demonstram a predominância ontológica no seu pensamento. Importante destacar a existência de um enriquecimento mútuo entre esses vértices oscilantes da experiência clínica – entre o conhecer e o ser. Assim, a cada momento da sessão e atento ao movimento intersubjetivo do campo analítico, o analista pode tornar figura um dos vértices, com o outro permanecendo como fundo, e vice-versa. Da mesma maneira, é capaz de identificar, a posteriori, qual vértice predominou naquele encontro analítico. Discorrerei a seguir sobre essa mudança do vértice epistemológico para o vértice ontológico no livro Transformações (Bion, 1965/2014) a partir da leitura de Figueiredo (2000; 2011)2 . No livro Transformações (1965/2014), Bion propõe uma reflexão sobre a eficácia psicanalítica e não apenas acerca das verdades do conhecimento psicanalítico. Retoma, assim, a questão da finalidade da interpretação na psicanálise, sustentando que o fenômeno é conhecido, mas a realidade é tornada; sendo assim, a interpretação deve ir além da ampliação do conhecimento que o paciente tem de si mesmo. Ou seja, a interpretação deve favorecer uma transformação no sentido do tornar-se si mesmo, de uma transformação em O, vértice ontológico, e não apenas no sentido de um conhecimento de si, vértice epistemológico. Compreendo que há uma suplementariedade3 entre esses dois vértices, assim como uma oscilação contínua, da qual podemos falar apenas de predominâncias a partir de uma compreensão espectral dos conceitos4 . Transformações representa uma guinada na direção que Bion vinha seguindo em seus trabalhos anteriores. Anteriormente a essa obra, Bion estava interessado em aprender com as experiências emocionais, ou seja, nas transformações em K (conhecimento), as quais pertencem ao campo das representações, ou seja, estava voltado ao que denominamos na introdução de psicanálise epistemológica (Ogden, 2020). A partir do final dessa publicação, Bion dedica-se às transformações em O, que ocorrem em um nível não representacional da experiência, no ser e no tornarse, ou seja, no âmbito de uma psicanálise ontológica (Ogden, 2020). O livro Transformações (1965/2014) é considerado um dos mais enigmáticos e difíceis textos de Bion. Além disso, o próprio livro pode ser lido como o testemunho de um processo de transformação em O; uma mudança catastrófica, uma cesura na obra e na vida de Bion. Uma mudança ocorre nos últimos capítulos de Transformações , quando Bion desloca o seu interesse em conhecer a realidade psíquica, transformações em K (conhecimento), para o Ser, o tornar-se, as transformações em O. O subtítulo do livro aborda justamente essa mudança na obra: do aprendizado para o crescimento. Considero produtivo e criativo quando um conceito, no caso cesura5 , é usado para pensar a própria obra do seu criador. A cesura ocorre justamente no livro Transformações , em especial nos seus três últimos capítulos. A partir do insight que Bion teve no final do livro Transformações , momento no qual postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na sua vida e obra. Aos setenta e um anos, Bion muda-se para a Califórnia – Los Angeles (1968), para surpresa de seus pares ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a própria verdade emocional? Uma transformação em O? Na sua leitura, Figueiredo (2000) relata os vestígios deixados no texto do livro pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica. É justamente nos anos californianos, um período criativo e produtivo da sua vida, que Bion fez quatro viagens ao Brasil (1973, 1974, 1975 e 1978), a convite de seu amigo e colega Frank Philips, ministrando seminários e supervisões, enquanto semeava um legado que tem gerado várias publicações. Bion (1965/2014) propõe, no início de Transformações , que esse livro dispensaria outros livros, algo que, evidentemente, não se sustentou. A obra Atenção e interpretação (1970/2014) é uma expansão dos insights presentes no livro Transformações , principalmente no que se refere às transformações em O. A partir da postulação das transformações em O, o vértice psicanalítico para Bion passa a ser O, e não mais K. Como citado na epígrafe desse texto, o analista não pode estar identificado com O, ele precisa sê-lo (Bion, 1970/2014). Tal ideia promoveu uma mudança na compreensão dos conceitos postulados por Bion antes de 1965 e, principalmente, levou a uma retomada, em outros patamares, do que Freud propôs como método psicanalítico da atenção livremente flutuante. O analista precisa ter a disciplina de, ao receber seu analisando, estar em um estado sem memória (passado), sem desejo (futuro) e sem compreensão prévia, como proposto por Bion (1965/2014; 1967/2014). O analista necessita estar aberto para a experiência nova que irá evoluir do encontro entre duas personalidades, a do analista e a do paciente, ou seja, estar à deriva, deixando-se flutuar por experiências ainda não vividas pela díade. Essa proposta metodológica de Bion é, segundo Gerber e Figueiredo (2018, p. 81), uma “verdadeira renovação da escuta em atenção livremente flutuante em sua dimensão ética: ouvir o outro sem preconceitos, sem filtros, sem lembranças, sem expectativas ou desejos específicos”. A obra de Bion considera de forma enfática a complexidade do funcionamento mental, além de remeter constantemente o leitor ao desconhecido, mantendo o texto insaturado, aberto a outros possíveis significados, sempre momentâneos. No instante em que temos a impressão de compreender algo na leitura, já perdemos essa sensação efêmera de apreensão do conteúdo. Por tal motivo, sugerimos uma leitura dos textos de Bion a partir do estado de mente proposto por ele (1965/2014, 1967/2014): sem memória, sem desejo, sem compreensão prévia, o que sabemos ser um desafio considerável para o analista, e talvez ainda mais para alguns leitores de textos psicanalíticos que estejam em busca de compreensões saturadas e conclusivas. A leitura dos textos pode tornar-se uma experiência de transformação para o leitor, exigindo o que Bion (1970) chamou de paciência: a tolerância ao não saber, ao estar à deriva. Também é necessário ter fé, denominada como uma atitude científica por Bion, de que algum sentido emergirá do caos do estado esquizopanóide de mente para se entrar em um estado de segurança, o estado depressivo de mente, chegando assim a um K (conhecimento), sempre provisório e momentâneo. Oportuno lembrar que Bion ofereceu aos conceitos kleinianos tridimensionalidade, complexidade e plasticidade significativas, principalmente aos conceitos de posições esquizoparanóide e depressiva, de identificação projetiva e de inveja (Cintra & Ribeiro, 2018). A teoria das transformações é uma teoria da observação clínica no aqui e agora da sessão analítica. Uma observação de como evoluem os fenômenos clínicos entre analista e analisando, a sequência de transformações que acontecem em uma sessão envolvendo a dupla analítica em complexa interação. Além disso, também é a interpretação, a construção do analista ou sua formulação verbal, compreendida como um produto das inúmeras transformações que ocorrem durante uma sessão de análise, sendo que a própria interpretação gera novas transformações. O livro Transformações aborda a eficácia psicanalítica, e não apenas as verdades do conhecimento psicanalítico. Bion retoma a questão da finalidade da interpretação na psicanálise: “se estou certo ao sugerir que os fenômenos são conhecidos, mas a realidade ‘é tornada’, a interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento” (Bion 1965/2014, p. 259, tradução minha)6 . Em outras palavras, a interpretação deve favorecer uma transformação em O, necessita ajudar no tornar-se si mesmo, não apenas um conhecimento de si. Em toda transformação há uma invariância7 , algo que permanece inalterado. Zimerman (2004) esclarece o conceito com o exemplo da água: líquida, gasosa ou como um cubo de gelo, o elemento invariante é a molécula de H2O. Outra analogia para compreender essa díade transformação / invariância é feita com a fotografia de uma mesma pessoa aos cinco e aos cinquenta anos: qual invariância permite que ocorra um reconhecimento de que é a mesma pessoa? No material clínico, como é possível reconhecer uma invariância? Compreendemos que a invariância pode favorecer o surgimento do fato selecionado, ou seja, aquilo que será objeto da interpretação por parte do analista, ou pode surgir como um fato fundamental na compreensão do funcionamento psíquico do analisando. Em outras palavras, o sofrimento psíquico do paciente pode estar condensado em uma imagem que emerge na sessão e é captado por meio da capacidade de rêverie do analista. Partindo do modelo apresentado por Bion (1965/2014), o analista observa o reflexo das árvores no lago, nunca as árvores diretamente, ou seja, há graus diferentes de distorções naquilo que é percebido, dependendo da turbulência da água e das condições atmosféricas. As árvores na beira do lago são uma manifestação de O, pois O é incognoscível. A turbulência da água e as condições atmosféricas são as emoções que circulam na sessão, no campo analítico, os vínculos L, H e K8 . Bion chamará essas distorções de hipérboles, com diferentes graus de transformação da experiência emocional original, no sentido de um distanciamento, como as ondas que reverberam ao lançarmos uma pedra no lago. A teoria das transformações abrange e contém a teoria freudiana da transferência (transformações em movimento rígido) e a teoria kleiniana da identificação projetiva (transformações projetivas). A transformação em moção rígida aproxima-se da transferência conforme postulada por Freud: algo do passado do paciente é transferido ao analista e, geralmente, isso é identificado como uma invariância, um elemento que permanece e é reapresentado continuamente na transferência. Nas transformações em movimento rígido, a invariância é reconhecível com certa facilidade. Temos as transformações projetivas, postuladas a partir da expansão do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein. Bion, na teoria sobre o pensar (1962), propôs os conceitos de continente e contido e considerou que as mentes se comunicam via identificação projetiva, alocando o conceito kleiniano em outro patamar de complexidade e no campo da intersubjetividade. As transformações projetivas comportam graus distintos de distorção, sendo que as transformações em alucinose distorcem ao limite extremo, ou seja, vão até o ápice da distorção hiperbólica, até o limite entre o mental e o não-mental, quando se torna difícil reconhecer uma invariância, pois a distorção é brutal. Temos as transformações em K (conhecimento) e, ao final do livro Transformações, Bion aborda as transformações em O, o tornar-se si mesmo. As várias formas de transformação podem ocorrer em diferentes momentos de uma mesma sessão, sendo que a análise deveria favorecer as transformações em K e em O, o aprender com a experiência (K) e o tornar-se (O)9 . Podemos compreender, como vértices oscilantes entre o campo da psicanálise epistemológica, o conhecer, e o campo da psicanálise ontológica, o tornar-se. A partir de Transformações , Bion (1965/2004a) compreende que o contato com a realidade psíquica ocorre de forma a-sensorial, ou seja, uma apreensão que acontece por meio da intuição e não pela captação sensorial. O estar em O do analista, como Bion (1970/2014) escreve, é o estado de mente que favorece a intuição psicanalítica, no que se refere ao contato com a realidade psíquica do paciente, um conhecimento quase sem a mediação de elementos sensoriais. Bion (1965/2014, 1967/2014) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade e são intensificados por esta, não favorecendo a intuição, motivo pelo qual essa sugestão técnica é de difícil compreensão ainda hoje: o analista precisa receber seu paciente em um estado mental sem desejo, sem memória e sem compreensão prévia, como se fosse sempre a primeira vez. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo em 1965 (publicado como texto em 1967), realizada nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: No entanto, como analistas, sabemos – e acho que isso se torna cada vez mais evidente à medida que a experiência se acumula – que realmente lidamos com alguma coisa; que a experiência psicanalítica, por mais céticos que sejamos, é realmente uma experiência emocional e realmente existe, mesmo que nunca venhamos a saber ou estar em condições de dar uma descrição sequer aproximadamente correta do que ocorre. Por isso, penso – e acho muito útil fazê-lo – em qualquer descrição clínica como sendo, por natureza, uma representação pictórica, ou, digamos, uma representação sensória (porque estou pensando no que acontece em uma situação analítica). Eu transformo essa situação em imagens visuais e depois uma transformação em formulações verbais, como aquelas que conhecemos aqui. (Bion, 1965/2014, p. 10, tradução minha) O analista está diante do desafio de lidar com o aquém da sensorialidade, com o não sensorial, captado pela intuição psicanalítica, com o terceiro olho da mente, com a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente. Além disso, precisa lidar com o sensorial, aquilo que pôde ser transformado em uma representação pictórica pela sua capacidade para a rêverie. Não suficiente, o psicanalista precisa se defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens que emergem do encontro analítico: as formulações verbais. Há, também, a geração de imagens a partir das interpretações ou construções feitas pelo analista, em uma circularidade que se retroalimenta e que favorece a intimidade psíquica e a expansão do campo analítico. É dessa forma que compreendo quando Bion (1965/2014) escreve sobre o diâmetro gerado pela interpretação, que não pode ser nem limitado e nem amplo demais, mas precisa favorecer o contato íntimo entre as duas mentes, a do analista e do analisando, em constantes transformações de um O comum à díade. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion,1992/2014). As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967/2014). Precisamos de um facho de intensa escuridão para intuir no aqui e agora da sessão, tornando visível o invisível da experiência. Em carta a Lou Andreas-Salomé, Freud sugeriu um método para alcançar um estado de mente cujas vantagens compensassem a obscuridade, no caso de o objeto investigado ser particularmente obscuro. Freud fala de cegar-se artificialmente. Assinalei a importância da abstinência de memória e desejo como um método para conseguir essa cegueira artificial. (Bion, 1970/2007a, p. 57) A função do analista na sessão, a partir da postulação das transformações em O, passa a ser uma oscilação contínua entre conhecer (K) e ser (O), ou seja, vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e uma psicanálise ontológica. Em outros termos, uma transformação contínua de O para K, e de K para O, a partir do atravessamento das turbulências hiperbólicas, das distorções da realidade psíquica sempre presentes, Figueiredo (2014, p. 127) escreve: Bion nos fala da experiência de O - a experiência emocional em sua condição de Origem de toda a nossa vida somatopsíquica: aqui não se trata de ‘conhecer’, mas de ‘tornar-se’, reconciliar-se em profundidade com a própria experiência emocional inconsciente, sem defesas e subterfúgios, inclusive sem a redução desta experiência ao campo dos sentidos instituídos e reconhecíveis pela consciência. Neste contexto, que ultrapassa a epistemologia clássica, pois o que está em jogo é a correspondência entre a representação e o seu objeto, dá-se ‘uma outra verdade’, a verdade em O, da maior importância para a clínica psicanalítica, cujas metas não se reduzem a conhecer ou reconhecer-se - embora passem por isto - mas se projetam no rumo de uma efetiva transformação subjetiva, o que só acontece a partir do contato profundo e sem disfarces do sujeito consigo mesmo, com o inconsciente infinito que o habita e move. Ainda que possamos compreender as transformações em K e em O como vértices oscilantes, a transformação princeps é o tornar-se: “Seu valor terapêutico é maior quando elas conduzem a transformações em O; menor quando conduzem a transformações em K” (Bion, 1970/2007a, p. 41). Bion, inspirado em Nietzsche, diz que, em uma análise, o paciente se torna quem ele é, o melhor que se pode ser com aquilo que se é a cada momento, pois o inconsciente é infinito; é o que nos move, uma constante imanência. Retomando as transformações em O, Figueiredo (2000) e Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2011) fazem uma discriminação de três concepções de O abordadas em Transformações, ou seja, qual é a concepção ou o estatuto de O no plano da teoria das transformações? Como esta concepção oscila ao longo do livro de Bion? Primeiramente, vemos O sendo evocado através das formas platônicas: O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza, mas conteria as matrizes dos possíveis fenômenos, ou seja, comporta uma ordem, que seriam as formas transcendentais. Essa concepção de O como formas platônicas colabora para a compreensão das preconcepções inatas, do arcabouço da mente, das tendências herdadas para organizar o mundo segundo certos padrões, como relata Figueiredo (2000). Na segunda concepção, O não comporta as formas platônicas, mas uma potencialidade para distinções ainda não desenvolvidas. No entanto, segundo Figueiredo (2000), nessa concepção, a razão da resistência10 ser deflagrada não é compreensível. O que geraria tal resistência? Quando há um movimento em direção a O, em direção à experiência da verdade emocional do analisando, o que causaria a resistência? Bion escreve que a verdade emocional é o alimento da mente, mas tememos o contato com essa verdade, ou seja, resistimos a ela, resistimos ao desconhecido em nós. Na terceira, última e plena acepção de O como o infinito vazio e sem forma do qual o mundo emerge em estado ainda caótico, as razões da emergência da resistência passam a ser compreensíveis. A resistência é gerada diante da angústia ao infinito vazio e sem forma, ao desconhecido. Bion (1965/2004a, p. 165) usa a seguinte formulação poética de John Milton em Paradise Lost para representar O: “Nascente mundo de profundas, obscuras águas do infinito vazio e sem forma arrebatado”. Figueiredo (2000) considera que é apenas nesta terceira compreensão que O corresponde à coisa-em-si kantiana, a qual não pode ser conhecida, ainda que suas qualidades primárias e secundárias possam ser apreendidas, citando Bion: Não estou interpretando a fala de Milton, mas usando-a para representar O. O processo de vinculação constitui uma parte do procedimento pelo qual é “do infinito vazio e sem forma arrebatado”; este processo é K; É preciso ser distinguido do processo por meio do qual O é “tornado”. O sentido de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e conteúdo, todos estão associados com K. (Bion, 1965/2004, p. 165) Dessa forma, como compreende Figueiredo (2000), Bion acentua o hiato entre a lógica do mundo dos conceitos (K) – o senso de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e contido – e o plano do infinito vazio e sem forma no qual a experiência emerge. Esse hiato tem uma reverberação significativa no universo teórico da psicanálise: o intervalo entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre o saber de si e o tornar-se si mesmo. A partir do livro Transformações (1965/2004a), passa a ser fundamental a qualidade das transformações realizadas na sala de análise e na dupla analítica, dentro do campo analítico. Transformar é trans + formar, formar para além, que implica tanto movimentos formativos quanto desintegradores, pois transformar pode formar e também destruir formas. Na experiência do inconsciente implicada na psicanálise, é preciso que se reconheça a dimensão do tornar-se e a dimensão do desfazer-se, movimento este pouco realçado em outros textos. O movimento de desformar, desfazer-se em O, é uma ênfase da leitura de Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro, (2011, p. 159): “Tornar-se O, entendido agora como infinito vazio e sem forma, é, ao contrário, um movimento desconstrutivo de retorno ao sem forma, às noites escuras da alma. No primeiro caso é o de deixar-se fazer por O, no outro, é deixar-se desfazer em O”. O termo transformação é desdobrado em três: as Transformações (T) englobam transformações em termos de processo (T α) e transformações em termos de produtos (T β). Quando estamos diante de T paciente β, consideramos como o produto de uma transformação; esse é o material clínico que será apresentado ao analista. No entanto, tal material continua contendo uma dimensão beta. Estamos sempre diante de uma sequência infinita de transformações, nas quais a origem (O) é incognoscível, ao passo que aquilo que se apresenta como forma ou representação permanece continuamente com uma dimensão beta, enigmática. Bion fala dos limites da representação, do constante formar e desformar, sempre parcial, ou seja, a dimensão beta da experiência está sempre presente. Mawson escreve: “Uma leitura atenta de Bion, entretanto, permite perceber que se trata de uma ideia epistemológica relativa aos limites da representação” (2014, p. 215, tradução minha). Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro, (2011) dizem que o material clínico – ainda que já contenha algumas formas e padrões dos quais é possível extrair invariantes – está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada, bem como a interpretação a ser formulada. O material clínico contém uma dimensão beta, enigmática11, intrusiva, perturbadora, que convoca o analista a uma experiência sempre de turbulência emocional, um mau negócio, como escreve Bion em seu último artigo (1979/2014). Será que o analista pode propiciar uma transformação em O a partir da interpretação e do conhecimento psicanalítico? O é inacessível aos sentidos e, em si mesmo, não se fenomenaliza. Contudo, ele já possui em si as matrizes dos possíveis fenômenos. A experiência que Bion denomina mística será um modelo para esta modalidade de transformação, que já não é uma transformação DE O, mas uma transformação EM O, já não é um conhecimento de O, mas um tornar-se O, ou seja, o intervalo, ou hiato como escreve Bion (1970), entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre ter um conhecimento de si e o tornar-se si mesmo, conforme dito acima. Embora Bion não esteja se apresentando como místico, não deixa de nos sensibilizar a lembrança de que, para ele, a procura das formas adequadas de expressão é tão necessária quanto fracassada, pois é sempre uma aproximação que comporta distorções, como escreve Figueiredo (2000). Tal como o místico, o psicanalista tem uma experiência de O que não pode ser nem desqualificada nem transformada em representação adequada, uma vez que toda transformação de O é, de alguma forma, hiperbólica. Poderíamos dizer que L, H, e K são sempre inadequados a O, embora sejam apropriados a transformações DE O. Em cada um destes vínculos há uma espécie de exagero e distanciamento, o qual está na raiz do que Bion chama de hipérbole. Para Bion, ser O ou tornar-se O nem é uma possibilidade teórica, nem pode ser um imperativo categórico, ou seja, superegoico, como diz Figueiredo (2000). A passagem a O, muito mais que o conhecimento de O, é o que está presente nas situações de resistência, ou seja, no ato de se desfazer no desconhecido, nas águas turvas e profundas. A iminência de O, como sentimento de aceitar e acolher O, pode ser a melhor solução – ainda que penosa – que deflagra a resistência a O. O conhecimento (K), inclusive, pode ser um dos modos de não ocorrer a transformação EM O, de impedir sua iminência. O que está em jogo não é o conhecimento e suas vicissitudes, ou seja, as capacidades cognitivas do homem e seus limites, mas a possibilidade assustadora de passar a O, de transformar-se em O, em sua iminência e imanência: o infinito vazio e sem forma. Segundo Figueiredo (2000), uma situação patológica se instala quando o encontro com O deve ser evitado e adiado infinitamente. Neste desviar-se, ficamos às voltas apenas com as transformações de O. Isso quer dizer que não só prevalece o vínculo H, mas também que, quando prevalece L e K – situações em que O está apenas hiperbolicamente presente –, há sempre uma resistência a O operando, uma resistência ao desconhecido. O fator que gera a resistência é a angústia diante do infinito vazio e sem forma – nada de entes – e, provavelmente, o pavor do mundo emergente de águas turvas e profundas, pois aqui ele não é conquistado a partir do nada, na forma de algo simples e bem discriminado. Nesta versão, o estatuto de O como incognoscível encontra a sua plena formulação. É a ideia de O como infinito vazio e sem forma – um nada de entes, em termos heideggerianos, ou seja, o momento no qual o mundo emerge em estado ainda caótico. Neste caso, fica muito mais fácil identificar as razões da resistência, da evitação ao desconhecido. Assim, podemos supor que O seja um campo de possibilidades de evolução, em si mesmo inacessível, mas cujos produtos podem ser conhecidos, ou que O é o infinito vazio e sem forma a partir do qual são conquistadas as qualidades secundárias e primárias as quais compõem os entes. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “Postulo, portanto, que O em qualquer situação analítica está disponível para transformação por analista e analisando igualmente” (Bion 1965/2014, p. 169, tradução do autor). A turbulência gerada pelo encontro analítico – o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979/2014) –, rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma rêverie na mente da analista, que também passa a ser um fato selecionado da sessão. A imagem pictórica da rêverie já é o produto (T analista β) de um processo de transformação (T analista α). O analista, em estado de capacidade negativa (sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia), estado de mente receptivo a O e também favorecedor da intuição psicanalítica, é arrastado pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido, ficando à deriva. É preciso ter paciência (estado de mente esquizoparanoide) e fé, o ato de fé (Bion, 1970/2014) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo) capaz de propiciar uma evolução em K, o conhecimento de um elemento psíquico no campo analítico. A experiência da rêverie, de “ver” uma imagem, é algo do âmbito do que Bion (1970/2007a, pp. 49-50) chamou de transformação em alucinose: para avaliar a alucinação o analista precisa participar do estado de alucinose. A partir daquilo que eu disse, ficará claro que isso é assim, pois postulei que um vínculo K pode operar apenas sobre um background de sentidos; é capaz apenas de produzir um conhecimento “sobre” algo, e precisa ser diferenciado do vínculo O, essencial para transformações em O. Antes que se possa dar interpretações de alucinose, que são elas mesmas transformações O→K, é necessário que o analista se submeta, em sua própria personalidade, à transformação O→K. Abstendo-se de memórias, desejos e das operações da memória, o analista pode se aproximar do âmbito da alucinose e dos “atos de fé”, através dos quais pode ficar, sozinho, “uno às” alucinações de seus pacientes e assim efetuar transformações O→K. A representação pictórica na rêverie é uma transformação de O em K, uma experiência que se fenomenaliza em uma imagem, um ideograma afetivo (1992/2014); tal imagem está no âmbito da alucinose, pois não há nenhum apoio sensóreo na captação dessa realidade psíquica. Tal fato acontece pela capacidade de intuição do analista, que evolui para uma rêverie, ou seja, entra no campo das representações. Podemos refletir que, na mente do analista durante a rêverie, diante da turbulência emocional do encontro, ocorre uma transformação de O para K, ou seja, algo sem forma (O) evolui para uma forma (K), a imagem pictográfica. Isso ocorre pela capacidade de rêverie do analista, sua função α, lembrando que a rêverie é um fator da função α, uma função transformadora da brutalidade dos fatos. K é uma forma, algo que se fenomenizou, passível de representação por uma imagem com características estéticas que, posteriormente, pode ser transformada pelo analista em uma narrativa, uma formulação verbal como escreve Bion (1965/2014). De forma resumida, podemos dizer que O se manifesta em K (Bion,1970/2014), se fenomenaliza em K. A experiência estética na sessão analítica é outro vértice surgido a partir do livro Transformações. Bion inicia o livro descrevendo a mutação que o artista faz ao pintar um campo de papoulas e as invariâncias que tornam possível o reconhecimento desse campo de papoulas. No entanto, essa analogia irá se tornar cada vez mais complexa ao longo do livro. Seria a transformação em O uma experiência estética? Ou a transformação em K? As distorções hiperbólicas das transformações projetivas e a transformação em alucinose poderiam ser compreendidas como experiências estéticas? Como geralmente estamos diante de construções imagéticas da mente, os ideogramas afetivos (Bion, 1992/2014), uma experiência estética parece estar sempre presente nos diversos vértices de transformação que poderiam até ser pensados como vértices estéticos da experiência emocional. A linguagem poética que Bion passa a usar com mais frequência após o livro Transformações e, indubitavelmente, na publicação da trilogia Memória do Futuro e dos textos autobiográficos, é uma linguagem da imaginação estética, uma linguagem de êxito, como escreveu em Atenção e Interpretação (1970/2014). Somente a linguagem poética pode ser uma evolução das transformações em O e de O. A mente se organiza como poiesis, a diuturna capacidade de sonhar as experiências emocionais, uma criação estética, imaginativa, constante e infinita. Estamos no âmbito da transição entre a teoria do pensar em Bion (1962/2014) e a teoria das transformações (1965/2014) – vértices oscilantes entre uma psicanálise epistemológica e ontológica, como proposto no início deste texto. O horizonte da psicanálise ontológica favorece o movimento do paciente na direção de tornar-se si mesmo, tornar-se verdade12, sendo que a capacidade do analista de criar narrativas imaginativas e palavras aladas13 é fundamental nesse processo contínuo de vir a ser que consiste no existir humano. NOTAS 1 Psicanalista. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). 2 Apresento neste texto a leitura de Figueiredo (2000) e Figueiredo, Tamburrino e Ribeiro (2011) do livro Transformações (Bion, 1965/2014). O livro Bion em sete lições: lendo transformações teve origem em aulas ministradas na pós-graduação da PUCSP em 2000, as quais posteriormente foram editadas e reescritas para serem publicadas como um livro por Gina Tamburrino e por mim em 2011. O nome sete lições faz referência ao fato de que foram aulas ministradas por Luis Cláudio Figueiredo. 3 Fazendo referência ao pensamento de Derrida, Coelho Junior e Figueiredo (2004, p. 24) compreendem a suplementaridade das dimensões intersubjetivas, argumentando que “cada dimensão é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos”. 4 “Os sistemas abertos têm sua primeira grande expressão no trabalho em que Bion descreve um modelo espectral de partes psicóticas e não-psicóticas da personalidade (1956/2014). O modelo espectral nos traz o alerta para as limitações da capacidade de observação, pois o modelo expõe o fato de que, colocadas as partes em simetria, vamos observar apenas determinados fatos, e que podem ser bem limitados em relação ao todo.” (Chuster, 2023). A compreensão espectral dos conceitos de Bion é enfatizada em vários textos do psicanalista brasileiro Arnaldo Chuster. 5 Vermote (2019) no livro Reading Bion refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana; dividindo seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros. 6 If I am right in suggesting that phenomena are known but reality is ‘become’, the interpretation must do more than increase knowledge. 7 Os termos transformações e invariâncias tem origem na matemática. 8 Love, Hate e Knowledge. 9 Vermote (2019, p. 166, tradução minha) considera que, no livro Atenção e interpretação (1970/2014), Bion “conseguiu integrar T (K) e T (O) como uma trilha dupla de funcionamento e mudança psíquica”. 10 Se permanecermos estritamente dentro de uma conceptualização bioniana, a resistência se refere ao desconhecido, ou seja, ao espectro conhecido-desconhecido e ao aprender e não aprender com a experiência emocional. Lembrando também que, em relação à díade consciente-inconsciente, Bion propõe a díade finito-infinito. 11 A afetação enigmática, a intuição analiticamente treinada, é uma afetação do O da dupla analistaanalisando, o uníssono da experiência. 12 A verdade é tornada concomitante ao tornar-se quem se é. 13 Ideias desenvolvidas em dois artigos: Narrativas imaginativas na sala de análise, W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto (2017) e Palavras aladas guiando o encontro analítico (2022). REFERÊNCIAS Bléandanu, G. (1993). Wilfred R. Bion: a vida e a obra. Rio de Janeiro: Imago. Bion, W. R. (2014). Transformations. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 5, pp. 115-280. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2004a). Transformações: do aprendizado ao crescimento. (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2014). Memory and desire. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 7-18). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1965). Bion, W.R. (2014). Notes on memory and desire. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 203-210). (Trabalho original publicado em 1967). Bion, W.R. (2014). Attention and interpretation: a scientific approach to insight in psychoanalysis and groups. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 211-330). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1970). Bion, W.R. (2007a). Atenção e Interpretação (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970). Bion, W.R. (2014). Cogitations. In The complete works of W. R. Bion. (Vol. 11, pp. 1-350). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1992). Bion, W.R. (2014). Making the best of a bad job. In The complete woks of W. R. Bion. (Vol. 10, pp. 136-145). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1979). Cesar, F.F., Ribeiro, M.F.R. & Perrota, C. (2022). Palavras aladas guiando o encontro analítico. Revista de Psicanálise da SPPA, 29, pp. 297-314. Chuster, A. (2023, 11 de março). Trabalho apresentado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Cintra, E.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo: Escuta. Derrida, J. (1967). De la Grammatologie. Paris: Minuit. Figueiredo, L.C. (2000). Anotações de aulas ministras na pós-graduação da PUCSP. Figueiredo, L.C., Tamburrino, G. & Ribeiro, M.F.R. (2011). Bion em nove lições: lendo transformações. São Paulo: Escuta. Gerber, I. & Figueiredo, L.C. (2018). Por que Bion? São Paulo: Zagodoni. Grotstein, J. (2007). A beam of intense darkness: Wilfred Bion’s Legacy to Psychoanalysis. London: Karnac. Grotstein, J. (2019). Listening to and reading Bion. In R. Vermote (Ed.). Reading Bion (pp. 238- 243). New York and London: Routledge. Mawson, C. (2014). Editor’s introduction. In The complete works of W. R. Bion (Vol. 6, pp. 213‑217). London: Karnac. Ogden, T. (2020). Psicanálise ontológica ou O que você quer ser quando crescer? Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-45. Ribeiro, M.F.R. (2017). Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20, p. 181-193. Vermote, R. (2019). Reading Bion. New York and London: Routledge. Zimerman, D. (2004). Bion da Teoria à Prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed.
- Cumulonimbus: um continente para a complexidade [1]
Este artigo, de autoria de Davi Berciano Flores [2] e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro [3], foi publicado em 2024 na Revista de Psicanálise da SPPA , volume 31, número 2, na edição intitulada Meltzer – O conflito estético e o florescimento do psiquismo . O texto pode ser acessado em: https://revista.sppa.org.br/RPdaSPPA/article/view/1207 Resumo: Este trabalho visa percorrer algumas concepções de espacialidade na obra de Wilfred Bion, mapeando a busca do autor por múltiplas formas de alcançar o espaço psíquico, a fim de abarcar a complexidade do fenômeno clínico e do encontro entre duas mentes. Os principais pontos da obra do autor são a Teoria do Pensar (1962/2022), Transformações (1965a/2014) e a noção de Cesura (1975/2014). Para percorrer tal percurso, tomaremos como ponto de partida – ou hipótese definitória – um fragmento intersubjetivo extraído de um atendimento clínico, no intuito de abordar os vértices do desenvolvimento do pensamento bioniano. Em busca por um arcabouço que contemple a noção de complexidade, colocaremos a obra do autor em diálogo com passagens da obra de Freud, assim como com textos de James Grotstein (2003) e de Edgar Morin (2015). Palavras-chave: Bion; Complexidade; Espacialidade; Psicanálise; Transformações; Cesura, Morin Uma hipótese definitória (4) – a nuvem Certa vez, um paciente5 , com cerca de trinta anos de idade, enquanto me encarava de baixo para cima como um menino, fechava os olhos e, ao fazêlo, espremia-os. Depois abria-os, fixando-os nos meus, em silêncio. Sua boca contorcia-se, como se investigasse um espaço bagunçado – pelos movimentos dela, não sei bem como, via o seu corpo todo se movimentar em algum tipo de investigação interna. Com um semblante de expectativa, ele parecia buscar um jeito de exprimir o que lhe passava internamente, já com um perceptível anseio delirante de que eu fosse lhe entender, independente das palavras que viesse a encontrar. Seus olhos cerrados eram, a meu ver, tanto um tique quanto um esforço para encontrar algum pensamento na escuridão. A bem da verdade, fechar os olhos é um evento significativamente trabalhoso para alguns pacientes mais psicóticos: a escuridão não é, a priori, um espaço para pensar. Do mesmo modo que uma criança, ao apagarmos a luz, pode se contrair diante de um nada terrorífico. Depois de tanto espremer os olhos, neste esforço de apertar o escuro até surgir uma forma, o paciente arregala os olhos e diz, com cara de insight: “tem uma nuvem na minha cabeça! Sabe?”. Diante da pressão ansiosa desta aparente busca por alguém que o entendesse, não pude me conter: “Sei! Claro!”. Talvez eu já estivesse preparado para responder afirmativamente antes que qualquer forma surgisse em sua mente. Uma conversa estava pronta antes de um pensamento surgir6 . Ele buscava algo para me entregar, queria uma conexão, e foi isso o que lhe dei. Saí desse encontro com uma sensação cômica – uma nuvem! Um gigante inalcançável de partículas aglomeradas aguardando uma precipitação. Existiria forma mais volátil e imprecisa para expressar o que se passava dentro de si? Mais do que isso, a fisionomia de “eureca!”, de quem havia encontrado a palavra perfeita, associada à imprecisão volumosa e trespassável de uma nuvem, levou-me a boas gargalhadas silenciosas em diversos momentos após este encontro. Uma nuvem! Acompanhada de uma expressão emocional de conclusão implacável. Hoje consigo entender que meu humor buscava, também, digerir uma experiência que continha clivagens : – O semblante de insight diante de uma experiência mal compreendida; – O senso de revelação após uma visão turva e imprecisa; – Minha consequente resposta desconectada do que eu, de fato, pensava; – Os olhos espremidos levando à ilusória impressão de que pensamentos surgiriam da contração muscular. Um aglomerado complexo de partículas – teoria do pensar “O silêncio dos espaços infinitos me apavora.” (Blaise Pascal, 1670) “Para ver um mundo em um grão de areia E um céu em uma flor selvagem, Segure o infinito na palma da mão E a eternidade em uma hora.” (William Blake, 1803) Encontramos correspondências entre os dados dissociados citados acima e o pensamento de Bion (1957/2022), quando ele diz que o estado psicótico de mente leva a clivar partes da personalidade ao projetá-las, mutilando atividades mentais (que bem podem ser alegoricamente vistas como pequenas gotículas de água em estado de suspensão). Em outro texto, Bion (1953/2022, p. 40) já havia demonstrado como as expressões verbais de um paciente esquizofrênico podem deflagrar clivagens: “Como é que o elevador sabe o que fazer quando pressiono dois botões ao mesmo tempo?”, cita ele quando, ao descrever a fala de um paciente psicótico, encontra estados que geram dois movimentos antagônicos. Bion referese a gestos, frases, estados mentais, que indicam dois sentidos simultaneamente, resultando em uma tendência psíquica de ruptura ou deflagrando a mutilação do pensamento, a falta de conexões entre dois botões que podem nos levar a sentidos distintos. Ao tratar deste tipo de paciente em que a parte psicótica da personalidade está significativamente presente, Bion (1957/2022, p. 90) diz: Descobri não apenas que há pacientes que recorreram cada vez mais ao pensamento verbal comum, mostrando assim uma maior capacidade para esse tipo de pensamento, e maior consideração pelo psicanalista como um ser humano comum, mas também que esses mesmos pacientes pareciam estar se tornando cada vez mais hábeis neste tipo de discurso aglomerado, em vez do discurso articulado. O ponto principal sobre o discurso civilizado é que ele simplifica muito a tarefa do pensador, ou do orador. (...) Há algo de extraordinário nesse tour de force pelo qual modos de pensamento primitivos são usados pelo paciente para enunciar temas de grande complexidade. (grifo nosso) Nesta citação encontram-se, em status nascendi, ideias que se desdobrarão em partes significativas de sua obra e outras que iluminam o episódio da nuvem na cabeça. Comecemos pelo fragmento clínico: Bion fala em “discurso aglomerado, em vez do discurso articulado”, ou seja, que, neste encontro, a nuvem, um aglomerado quase amorfo, ocupou o lugar do que poderia ser a descrição, narrativa, de uma experiência interna complexa. Fora do discurso civilizado, que facilita a tarefa do pensador, estiveram o paciente (em contração) e o analista (em descontração) tentando digerir a tal nuvem que se formou. Por fim, Bion fala no tour de force, ou seja, os olhos espremidos em busca de imagens internas, o esforço bem-sucedido através do qual pensamentos primitivos alcançam a grande complexidade da mente. Vejamos agora a citação de uma perspectiva teórica: Bion já trata de aglomerações e articulações como formas distintas de expressão de um pensamento. Refere-se, ainda, a um pensador cuja tarefa é facilitada se os pensamentos já lhe chegam articulados em ideias. Encontra, por fim, continuidade e ruptura entre pensamentos primitivos e a “grande complexidade”. Podemos fazer duas perguntas que, em um nível, são evidentemente distintas, mas, em outro, apontam para a mesma questão: 1. Como é possível enxergar elementos posteriores da obra de Bion, apresentados entre 1962 e 1977, em um parágrafo de 1957? 2. Quais destinos teria uma nuvem dentro da cabeça? Cinco anos depois da citação acima, Bion apresenta, em A teoria do pensar (1962/2022), o início de uma importante reviravolta epistemológica em sua obra, resultante de uma série de textos desenvolvidos ao longo da década de 50. Foi quando ele passou a abordar o funcionamento psicótico e suas características, dentre elas os ataques aos vínculos (ou elos de ligação), que resultam em uma mutilação das associações, ruptura de relações e, em decorrência, perda da capacidade de simbolização (Bion, 1959/2022); a identificação projetiva, através da qual partes do self são expulsas e projetadas em um objeto; a tendência do psicótico em optar pela ação ao invés do pensar, ou um pensar com características de ação (acting out), fato constatável nos mecanismos de expulsar algo ou atacar os vínculos entre dois elementos quaisquer. Quando pede para ver um brinquedo, uma criança estica a mão no intuito de pegar, e é para esta direção que o pensamento psicótico aponta, no sentido de transformar as atividades do pensar (e as funções do ego) em ações que implicam em sensorialidade e concretude. Bion (1953/2022, pp. 38-39) explicita isso na seguinte passagem: Esquizofrênicos empregam linguagem de três modos interligados: como modo de agir; como método de comunicação; e como modo de pensar. Quando outros pacientes se dariam conta de que a necessidade seria pensar, um esquizofrênico demonstrará preferência em agir. Em consequência, um esquizofrênico passaria por cima de um piano para obter entendimento sobre o motivo de alguém tocar um piano. Reciprocamente, se um esquizofrênico tiver um problema cuja solução depende de uma ação – por exemplo, o ato de nos transladarmos de um lugar para outro –, lançará mão de um pensamento, um pensamento onipotente, à guisa de meio de transporte. Quando Bion trata do trânsito entre a busca por entender e a subsequente transformação disto em um gesto, ou o revés, a transformação de um gesto em um pensamento onipotente, estamos diante de diferentes formas através das quais um pensamento pode se manifestar e, mais do que isso, diferentes expressões, no espaço dos pensamentos. Uma das grandes viradas da obra de Bion consiste na compreensão de que, nas áreas psicóticas, não apenas partes do self podem ser ejetadas para fora do funcionamento mental, como também qualquer função mental. Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/2010), Freud aponta que, uma vez inaugurado o princípio de realidade, que consiste na capacidade de reconhecer a falta, tolerar a frustração que ela gera e, por fim, substituí-la por um processo interno, surgem funções do ego, capazes de oferecer um caminho interno de possibilidades diante da inviabilidade de perpetuar a hegemonia absoluta do princípio do prazer na realização imediata com o objeto de satisfação (no caso do bebê, a ausência do seio materno). A falta de um objeto de satisfação inaugura um novo espaço interno ou, dentro do pensamento freudiano, podemos entender que a necessidade de descarga, originalmente regida pelo princípio do prazer, agora se vê impedida e busca novas vias de realização, internas. Estamos, mais uma vez, dentro do pensamento freudiano, neste movimento entre buscas de dentro para fora (a descarga busca um objeto externo, ou, fenomenologicamente, alguém passa por cima de um piano) e retornos do fora para dentro (na ausência do objeto, a descarga busca um objeto interno ou, fenomenologicamente, surge um pensamento onipotente). Para Freud, as funções do ego, estas possibilidades internas, consistem nas seguintes categorias: atenção (sensorialidade e consciência), notação (memória e registro), julgamento (capacidade de avaliar se uma ideia é falsa ou verdadeira), descarga motora (capacidade de alterar a realidade) e, por fim, o pensamento em sua totalidade, visto como um campo capaz de tornar a frustração tolerável. Na obra de Freud, sem o incremento bioniano de que as funções do ego podem se derramar para fora da mente (e, claro, é importante citarmos Klein7 como a ponte fundamental para que ocorra tal transformação teórica), o ego consiste em uma instância interna e, mais especificamente neste momento de sua obra, trata-se de um ego que se aproxima da noção de consciência8 . Ao longo de sua obra, Freud avança no intuito de identificar uma parte significativa de inconsciência do ego, tirando seu poder enquanto instância controladora, mas, ainda assim, deixando-o como centralizador de um sistema. Grotstein (2003) escreveu sobre o estranhamento vivenciado quando, ao despertar, não se reconhecia como o sonhador do sonho que teve. Trata-se de um motivo aparentemente singelo, se considerarmos a complexidade das páginas que o seguem, mas foi a nuvem de Grotstein: a hipótese definitória que inicia um campo de pensamento. Para o autor, a questão da autoria dos fenômenos mentais é questionável, e a maneira como tratamos destes é fundamental para pensarmos os fenômenos clínicos e os eventos que se passam dentro de nós. Dentro da mesma questão, Grotstein (2003, p. 24) atesta que o ego freudiano, com sua “latinidade muito alienante”, “dissimula sua natureza numênica9 e misteriosa como ‘eu’, o sujeito da experiência, especialmente em seus pontos inconscientes”. Aqui, Grotstein está dentro da tradição bioniana de pensamento, ao tratar do engodo que a noção de “ego” pode acarretar. A natureza numênica de que fala, “númeno”, é o nome dado por Kant à coisa-em-si, ou seja, aquilo que existe independentemente de como somos capazes de percebê-lo. A ideia de “ego” sugeriria uma autoria sobre fenômenos que, na realidade, portam uma qualidade fundamentalmente numênica. Ou ainda, dito de outro modo, o ego freudiano parece ser o autor dos pensamentos, uma fábrica que molda o próprio sujeito, enquanto, na realidade, trata-se de um nome que indica um contorno quando, clinicamente, o fenômeno consiste em significativa imprecisão e falta de alcance. Poderíamos dizer, ainda de um outro modo, que a noção de “ego” consiste em um insight de forma sobre um terreno informe. Nas palavras de Grotstein (2003, p. 23, grifos do autor): Encontrei-me tentando desconstruir o conceito do sujeito, mais particularmente aquele que conhecemos como “Eu”, diferenciado de “mim” ou “self”. Comecei a perceber que eu queria trazer entidades psíquicas, o inconsciente e seus habitantes (seu sujeito interno e seus objetos internos), assim como o ego e o id, para fora das sombras e névoas que os envolveram e os obscureceram na roupagem enganosa e enganadora da ciência determinística que foi a obra de Freud, e restaurá-las à sua verdadeira vida. Edgar Morin (2015, p. 5) aproxima-se da observação de Grotstein: “O conhecimento científico também foi durante muito tempo e com frequência ainda continua sendo concebido como tendo por missão dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem”. Para Morin, os modos simplificadores de conhecimento “mutilam mais do que exprimem as realidades ou os fenômenos de que tratam”. Dissipar e mutilar, curiosamente são os dois verbos utilizados por Morin para tratar dos modos de conhecimento que nos impedem de alcançar a complexidade. Estamos aqui, evidentemente, em um campo de conexões entre o pensar psicótico (que mutila e dissipa) e o pensar científico. Parece-nos que se trata de pensar quais são as características psicóticas de uma metodologia de investigação, isto é, de que maneiras dissipamos e mutilamos o conhecimento para podermos alcançar o âmbito numênico10. Quando não podemos reduzir as coisas a uma ideia simples, estamos diante do terreno da complexidade, de acordo com Morin (2015). Seria a nuvem uma ideia simples para expressar um estado de mente? Para Morin (2015, p. 5), a ideia de complexidade envolve “uma pesada carga semântica, pois traz em seu seio confusão, incerteza, desordem”. Retomando o debate a respeito do ego freudiano, não se trata de considerar Freud ingênuo em suas construções. Pelo contrário, ele inaugura um caminho para a complexidade e, apesar de seu sistema de pensamento resultar em uma série de aspectos lógicos, teorias de causalidade e determinismos que circunscreviam a vida mental, Freud (1910/2013, pp. 128-129) dava notícias de que, por debaixo de tal sistema, desta tentativa de domar os fenômenos da mente, existia algo fora de seu alcance: “Nisso esquecemos que praticamente tudo na vida humana é acaso (...), acaso, porém, que participa das leis e da necessidade da natureza e não tem nenhum nexo com nossos desejos e ilusões”. Esta teoria freudiana, em Bion (1962/2022), resulta no fato de que qualquer função do ego pode também ser expulsa e, portanto, ser identificada fora do continente psíquico. Assim, uma memória é capaz de surgir encapsulada em um objeto ou alguém pode estar cônscio dos pensamentos oriundos de outra mente, que expulsou para fora uma parte da capacidade de conscientizar-se. Esta teoria, em última instância, resulta em uma impossibilidade generalizada de identificar em que os processos mentais se encerram ou quais as fronteiras daquilo que é próprio, singular, autoral, pessoal. O fato de que os pensamentos não têm um lugar, uma sede na qual irão surgir, de que não são patenteados em algum momento, ilumina a vida psíquica de outra maneira: por que um analista lembra de determinado analisando ao abrir o armário da cozinha de sua casa? Como é possível que a lembrança de uma analisanda venha à mente de seu analista toda vez que ele passa pela mesma bifurcação em certa rua? Naqueles espaços físicos, naqueles lugares, no desenho dos caminhos ou no ranger da dobradiça do armário, estão os pensamentos aguardando um pensador. De outra perspectiva, um paciente pode dizer que estava há pouco pensando em algo, mas que, no momento em que entrou na sala do analista, não consegue mais alcançar tais ideias. Estaria o pensamento em repouso na sala de espera? Um outro paciente comenta que, ao vir para a análise, errou, pela segunda vez, o mesmo ponto do caminho, entrando em uma rua antecipadamente Diz ainda desconfiar que, em ambas as vezes, pensava na mesma coisa. Poderíamos entender que uma parte do pensamento está contido em sua mente, mas que algo segue identificado em uma conversão invisível na tela do Waze11? O que esta linha invisível, que indicaria um outro caminho (entendido pelo paciente como “errado”), seria se pudesse ser expressa em palavras? Uma das tantas hipóteses esboçáveis: “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise”12. Abre-se, na Teoria do pensar (Bion, 1962/2022), um campo de infinitas possibilidades de interação entre um aparelho para pensar pensamentos e pensamentos em busca de um pensador. Temos aqui a primeira expressão do espaço de complexidade na obra de Bion, no qual pensamentos têm trânsito livre entre mentes e dentro da mente, entre objetos, entre pontos distintos do espaço, enquanto pensadores buscam expressá-los através de seus aparelhos de pensar. Como registro das possibilidades destes movimentos, Bion busca um eixo cartesiano, ou seja, duas coordenadas: uma representando os usos do pensar; a outra, a genética dos pensamentos. A interação entre uma coordenada e outra, as infinitas formas através das quais um pensamento pode se expressar em um pensador, ou um pensador pode encontrar um pensamento, resulta em inúmeros pontos de encontro neste espaço, figurado matematicamente, mas que expressa possibilidades do pensar. Dentro deste modelo epistemológico, a proposta é pensar relações. Um eixo em relação com o outro gera uma interação, da qual conhecemos os efeitos, as evidências13. Elementos colidem, outros se aproximam, projeta-se algo para dentro de outro algo, um outro algo é introjetado de volta, constituindo inúmeros movimentos de relação que consideram movimentos internos e externos, fenômenos intrapsíquicos e intersubjetivos. Morin (2015, p. 6), apesar de não citá-lo, parece descrever o esforço de Bion em sua teoria do pensar: Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera reflexo do que há de real na realidade. Podemos fazer um simples cálculo de probabilidade ao pensarmos nas possibilidades de combinação dentro de um sistema complexo (uma mente que gera pensamentos) e no número de combinações possíveis na interação entre dois sistemas complexos (uma mente e outra mente, ou mentes capazes de pensar e pensamentos que buscam pensadores). Evidentemente, há uma profusão de possibilidades quando levamos em consideração o encontro entre dois sistemas. Dentro da tradição bioniana, não se pode mais falar em uma autoria sobre os pensamentos ou sobre os fenômenos psíquicos em geral, já que sempre existem dois sistemas em contato. O resultado desta impossibilidade consiste em uma mudança de linguagem, de comunicação dos fenômenos mentais, uma maior parcialidade diante do fato de que somos, sempre, sistemas complexos em contato com coisas que não sabemos bem o que são. Desta forma, Bion (1962b/2021) demonstra como podemos tratar um fenômeno de relação entre elementos sem recorrer a uma autoria, o que poderia resultar, inclusive, em um tipo de acusação, revertendo a perspectiva de um fenômeno dinâmico à estática de um lugar, de uma origem, de um ponto imóvel no espaço. Primeiramente, Bion (p. 24) aponta qual seria a versão comum, que pressupõe uma autoria, um lugar fixo: A inveja que X sente de seus sócios é um fator que temos que levar em conta em sua personalidade” é uma formulação que qualquer leigo poderia fazer e pode significar muito ou pouco; seu valor depende de nossa avaliação da pessoa que faz a formulação e do peso que ela mesma dá às próprias palavras. A força da formulação é afetada se eu conecto ao termo “inveja” o peso e o significado que lhe foram dados pela sra. Klein. Em seguida, Bion propõe como seria a mesma observação se tomássemos os elementos observados como funções e fatores, fora do campo de autoria, levandonos a um delicado senso de movimento, dinâmico, transitivo: Agora, suponha uma outra formulação: “A relação de X com seus sócios é típica de uma personalidade na qual a inveja é um fator”. Essa formulação expressa a observação de uma função na qual os fatores são transferência e inveja. O que se observa não é a transferência ou a inveja, mas algo que é uma função de transferência e inveja. À medida que uma análise prossegue, é necessário deduzir novos fatores a partir das mudanças observadas na função e distinguir diferentes funções. Quando Bion diz à medida que uma análise prossegue, entendemos que a observação de uma relação é um ponto no tempo, não devendo ser considerada mais do que isso. No momento seguinte da sessão, tal observação já pode ter se alterado. Vejamos agora o que Grotstein (2003, p. 37) tem a dizer sobre o dia que despertou e não se identificou com o sonhador de seu sonho, tampouco com o sonho sonhado: Percebi que admitimos este incrível fenômeno sem questionar. Dizer “tive um sonho na noite passada” é, de certo modo, presunçoso. Tudo o que podemos honestamente dizer é “fui privilegiado de testemunhar e experimentar uma parte de um sonho na última noite. Gostaria de poder ter testemunhado e experimentado o sonho todo”. Notamos invariâncias14 significativas entre as citações. Tanto Bion quanto Grotstein buscam uma linguagem que seja capaz de expressar movimento e libertar o sujeito da autoria sobre os pensamentos, propondo a transitividade como solução à busca por um lugar de origem. Grotstein (2003, p. 47, grifos do autor) segue: A simples verdade ocorreu-me no momento em que despertei, de que eu não poderia ter sonhado este sonho, primeiro porque eu geralmente não falei do jeito que os personagens do sonho falaram, e segundo porque eu estava dormindo na hora que o sonho aconteceu – portanto, eu não poderia ter sido seu sonhador! Para Grotstein (2003), portanto, há um sonhador que sonha o sonho e um sonhador que entende o sonho depois de sonhá-lo. Trata-se, no nosso entendimento, de uma revisitação ao pensamento bioniano, mas a partir de outra perspectiva. Também poderíamos entender que ambos revisitam o pensamento freudiano, uma vez que as noções de processos primários e secundários apontavam para a existência de uma diferença significativa de experiência entre o fenômeno do sonhar e o discurso manifesto sobre este. Ao fim de sua obra, Bion (1979/2014, p. 473) versa sobre o assunto e demonstra a exploração destas mudanças de estado. Em seguida veremos de forma mais detalhada como o autor chega ao tema, mas vamos antecipar a citação, dado que conversa com o Bion de 1962 e com Grotstein: Suponhamos que se considere o sono como um estado particular da mente no qual se vêem paisagens, visitam-se lugares e põem-se em prática atividades que não são realizadas habitualmente quando estamos acordados, ainda que possam ser realizadas quando estamos acordados e que são reminiscências de sonhos. Falando metaforicamente, as pessoas dizem que vão a lugares onde sempre sonharam ir. Quando se trata de mudança não do fluido aquoso para o gasoso mas para um estado de mente no qual se está quando adormecido (“S-state”) para quando se está acordado (“W-state”), a mudança é retrospectiva da passagem do fluido aquoso ao gasoso, pré-natal e pós-natal (...). Temos uma desvantagem a favor do estado de vigília (“W-state”); as pessoas contam sem hesitar que tiveram um sonho, por conseguinte querendo dizer que não aconteceu na realidade. E segue (pp. 474-475): Se o sono (“S-state”) é considerado como digno de respeito, assim como a vigília (“W-state”) – se o árbitro for imparcial – então onde estivermos, o que se vê e experimenta deve ser considerado como tendo um valor que é igualmente válido. Isto está implícito quando Freud, como muitos antecessores, considera os sonhos dignos de respeito. Assim poderemos dizer que a elaboração da vigília deverá ser considerada tão digna de respeito quanto a elaboração onírica. Qual direção um elemento tomará em nossa mente? A nuvem, por exemplo. De uma determinada perspectiva, poderia ser pensada como um aglomerado de associações que, regressivamente, encontram-se transformadas em partículas e acumuladas em um continente informe. De outra, pode consistir em uma forma rudimentar encontrada para representar um campo de complexidade que não se converteu em possibilidades associativas. Esta dúvida de sentido – ou, podemos ainda pensar, este dilema de direção15, a questão sobre qual botão do elevador será apertado pela mente (para cima ou para baixo, em direção à complexidade articulada ou à primitividade aglomerada) – resulta em esforço para simplificar o que se entende por complexidade. As provocações de Bion, assim como os questionamentos de Grotstein, apontam para a mesma direção: hierarquizar os estados de mente, atribuindo-lhes diferentes valores – ou, ao invés disso, atribuir uma mesma autoria a estados distintos de mente –, pode nos levar a leituras enviesadas, mutilando a complexidade dos processos psíquicos. Ao considerarmos o campo de possibilidades, é preciso reconhecer os contraditórios, ou seja, que a complexidade pode ser aglomerada e a primitividade articulada. Em termos práticos, é possível que um analisando, com imprecisão e poucas palavras, aproxime-se mais da própria experiência emocional do que alguém que, prolixamente, ocupa a sessão com centenas de palavras. O que você vê naquela nuvem? – transformações Assim como Bion apresenta mudanças de direção em seus pensamentos, e justamente para incorporar, à teoria, os fatos até aqui demonstrados, apresentaremos agora um plot twist, ou seja, uma repentina mudança de direção no enredo da história clínica que protagoniza este capítulo. Poucas semanas após o encontro com referido paciente e sua visão interna de uma nuvem – e após as íntimas gargalhadas do analista com tal ideia –, repentinamente ele próprio encontra-se angustiado no consultório de seu analista, deitado no divã, dizendo: “Acho que quem está com uma nuvem dentro da cabeça, agora, sou eu”. Que fenômeno seria este? De maneira súbita, uma expressão aparentemente inadequada se revela, para o analista, como uma linguagem de êxito16 para expressar a própria experiência emocional. O que o analista viu na nuvem do paciente? Tomando como perspectiva o tempo, aparentemente o analista primeiro disse que entendeu para, depois, de fato entender o que o paciente dizia naquela ocasião. Teria vivido uma inversão no oposto17, como no trabalho dos sonhos em Freud (1900/2019)? Existiria algo de si que o entendia, e do qual se defendeu pela angústia de ser habitado por uma nuvem? Rir teria sido uma atitude de viver o paradoxo do absurdo nebuloso que é ser habitado, eventualmente, por uma nuvem? Ou será que, agora, entendia mesmo algo? Ou simplesmente valia-se da mesma expressão para alcançar um fenômeno radicalmente distinto? Cumulonimbus, um continente de partículas expelidas que são identificadas de maneira projetiva em um invólucro amorfo, carregado de possíveis precipitações de tempestades emocionais. A busca por estabelecer uma hierarquia, por vezes tipicamente freudiana, por outras tipicamente humana, resulta, para o pensamento complexo, na tentativa de transformar um campo de possibilidades em uma seta, dando-lhe um único sentido (e um único destino). De algumas perspectivas, a complexidade tem seu gérmen na teoria freudiana: a inversão no oposto (Freud, 1900/2019), característica do trabalho dos sonhos, bem como a noção de lembranças encobridoras (Freud, 1899/1969, 1901/1969), aponta para um funcionamento inconsciente que não concebe cronologias ou hierarquias, mas oferece expressão aos pensamentos de forma plástica, assim como em múltiplas dinâmicas e camadas. No campo da complexidade, é possível primeiro dizer algo e depois sentir o que foi dito; é possível uma nuvem nascer em uma mente e, com rajadas de vento típicas da identificação projetiva, arrastar-se até outra. Seria incauto definir qual a natureza da nuvem, se é do analista ou do analisando. Conforme Flores (2021), tolera-se o paradoxo: a nuvem é do analista, é do analisando, bem como é, neste instante, já do leitor do presente texto, e de algum modo está entre nós. Aberto tal eixo, um espaço de possibilidades, Bion inaugura o tema das transformações, algo que entendemos ser, até certo ponto, uma continuidade e, ao mesmo tempo, o início de uma ruptura com sua teoria do pensar. A noção de transformações, enquanto conceito, talvez nasça antes do livro que carrega seu nome, Transformações: passagem da aprendizagem para o crescimento (Bion, 1965a/2014). O título já é indicativo de que o livro viria do aprender, como em Aprender com a experiência (Bion, 1962b/2021), mas encontraria uma solução que rumaria disto para outra lógica, a do crescer. Neste livro, que seguiremos chamando apenas de Transformações , Bion conduz sua teoria do pensar para outro patamar, tratando da observação das mudanças que um pensamento pode ter em nossa mente e, de maneira mais específica, de como o espaço ao nosso redor – o qual, como já sabemos, mal pode ser definido nitidamente como interno ou externo –, só pode ser alcançado através de transformações, dado que estamos sempre diante de algo que é, ao mesmo tempo, tangível e intangível. As transformações são esforços parcialmente bem-sucedidos e, portanto, parcialmente frustrados, de alcançar o incognoscível, o âmbito numênico, a coisa-em-si kantiana, ou o que Bion passou a chamar de O, aquilo que está lá mas que, diante de nossa limitação de percepção (e do mistério envolvido em qualquer relação de objeto), jamais será desvendado pelo conhecimento. Em termos epistemológicos, Bion dá, em sua teoria, um lugar privilegiado para a verdade na condição de algo inalcançável, incognoscível. Justamente por ter esta característica, as expressões humanas são esforços de observação, tentativas de agarrar o intangível, que segue mostrando sua faceta misteriosa aos pensadores. Monet, ao pintar um campo de papoulas, encontra a transformação de uma experiência por meio de manchas de tinta. Com sorte e a certa distância do quadro, seremos capazes de identificar, com nossos olhos, a experiência de Monet que se interlaça, de alguma maneira, com a nossa. Quando o paciente diz ter uma nuvem na própria mente, ele pinta com poucas palavras e gestos uma experiência. O analista, como em uma exposição, precisa de uma determinada distância (dias) para encontrar uma invariância – e, até lá, irá rir como uma forma de se defender e mantê-la em seus pensamentos, até achar algo que lhe permita uma conexão com a experiência de seu analisando, conduzindo-os a duas pinturas com características parecidas. É desta forma que Bion extrapola sua teoria das observações para teorias psicanalíticas: existiriam transformações kleinianas, freudianas, etc, ou seja, teorias que encontraram invariâncias sobre fenômenos psíquicos que muitos de nós conseguimos observar. A noção de transformação já vinha sendo visitada pelo autor anteriormente, no livro Elementos de psicanálise (Bion, 1963/2014), quando fala de transformações de elementos-beta em elementos-alfa, ou seja, na possibilidade de mentalizar uma experiência sensorial que é sentida como coisa. Vemos tal transformação quando o paciente espreme seus olhos e busca uma via de encontrar, em uma palavra e busca por entendimento, algo que ele vive internamente. No mesmo livro, Bion (1963/2014), ao se referir ao sistema auditivo, vale-se da noção de transformação “música ↔ ruído”, um fato habitualmente conhecido por nós. Podemos ouvir uma conversa como um ruído que nos incomoda ou, de repente, encontrarmo-nos curiosos querendo escutá-la. O processo capaz de converter ruído em música consiste em uma transformação. Para além disso, Bion considera que a capacidade de estabelecer um contato indireto com O, com o incognoscível, pode interferir na apreensão do espaço e do tempo, resultando em transformações capazes de aumentar as deformações da percepção e a natureza do pensar. Para Bion, primeiramente, há transformações das quais tratamos mais, como as transformações em K (knowledge, conhecimento), a qual é o esforço que estamos fazendo nestas linhas – ao produzirmos um texto para tratar de determinado assunto –, e as transformações em movimento rígido, equivalentes à transferência freudiana, que resultam em uma transposição, o deslocamento de uma experiência de outro espaço-tempo para um novo lugar. A transformação em movimento rígido, no plano cartesiano, resulta em uma mesma forma, deslocada no espaço, que preserva sua estrutura. Também existem transformações mais próximas da disrupção, da deformação e da destrutividade. São as transformações projetivas, que seriam equivalentes ao mecanismo da identificação projetiva (ou seja, a expulsão e manifestação persecutória de um elemento para fora da mente), e as transformações em alucinose, que seriam a maior deformação a que a mente poderia chegar, resultando na fronteira com o colapso psíquico, caracterizada por arrogância, estupidez, avidez e destrutividade em suas mais diversas formas18. Nestes casos, a qualidade do pensamento conecta-se com a onipotência, com a sensação de controle, com a soberba. Ao pensar nas transformações em alucinose e, de modo mais amplo, no funcionamento psicótico, Bion identifica que, quanto mais hiperbólica for uma transformação, ou seja, quanto mais deformações existirem a partir do ponto zero, O, de onde se inicia um determinado processo do aparelho do pensar, maior será a qualidade estática do pensar. No sofrimento psicótico, algo precisa ser estancado, contido, antes que inunde e afogue a capacidade de pensar. No curso das transformações mais psicóticas, Bion considera a reversão de perspectiva como um fenômeno clinicamente importante, que resulta em um congelamento do contínuo processo do pensar. Sandler (2021, p. 849) assim a define: “A origem clínica foi uma observação: a da falsa concordância. Por exemplo: um paciente reage a uma interpretação por meio de uma negativa silenciosa, acompanhada de aceitação – por vezes encomiásticas – dessa mesma interpretação. A força que a intepretação poderia ter fica drenada e sugada”. Reverter a perspectiva significa, portanto, tornar estática uma situação dinâmica. Seria isso que o analista viveu diante da nuvem de seu paciente? Uma falsa concordância? Haveria, afinal, diante do paradoxo da falta de alcance das palavras com a urgência de concordância emocional, uma expressão melhor do que uma concordância antecipada e, portanto, falsa? Afinal, levando-se em consideração a construção de conhecimento científico (e a apreensão dos fenômenos ao nosso redor), não é assim, por vezes, que nos aproximamos das coisas? Novamente Morin (2015, p. 10) nos acompanha e, de sua perspectiva crítica a respeito da evitação da natureza complexa dos fenômenos, permite-nos, mais uma vez, unir fenômenos clínicos e o contato com a teoria: “Gostaria de mostrar que esses erros, ignorâncias, cegueiras e perigos têm um caráter comum resultante de um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender a complexidade do real”. Discursos articulados tornam-se aglomerados sucintos, experiências emocionais tornam-se nuvens de partículas em tensão, a transitividade complexa torna-se a posse de um frame. Se esta solução, por um lado, salva o sujeito do movimento contínuo da vida, das fantasias, do terror eventual da experiência humana, por outro gera sofrimento, já que consiste em um esforço facilmente derrotável. Se olharmos pela perspectiva freudiana, na qual o id sobrepuja as capturas do espaço e do tempo, temos bases instintivas que vencem nosso esforço de controle. Se olharmos de uma perspectiva bioniana, O, a verdade incognoscível, são desmontados os nossos gestos de razão e concordância, com sua dinâmica desconhecida e com seu ressurgimento espontâneo no exato momento em que houver qualquer ilusão de captá-la. Por fim, Bion apresenta, em Transformações , um último tipo de transformação, o qual não caberia no plano cartesiano, em qualquer ponto ou deformação. Seriam as transformações em O, ou seja, um momento de uníssono (at-one-ment) em que o sujeito, ao invés de entrar em contato com O, torna-se O. No lugar de aprender, há crescimento; no lugar de conhecer, há uma experiência ontológica de transformação. Se pensarmos no plano cartesiano, trata-se do local em que os dois eixos se juntam, o ponto zero, um estado em que algo não precisa estar associado a outro algo, como ocorre nos eixos da Teoria do pensar, e, então, a dupla analítica é capaz de se encontrar diante do mesmo ponto da experiência. Esta possibilidade de transformação, em O, para fora do espaço cartesiano, leva Bion a novas formas de pensar sua clínica. O estado de mente sem memória, sem desejo e sem necessidade de entendimento (1965b/2014, 1967/2014) busca uma presença no aqui-e-agora da sessão que permita revelar todas as camadas e movimentos fugazes promovidos pela mente em um encontro analítico. Entre nós, entre as nuvens, entre nós e as nuvens – cesura Há, ainda, um conceito que nos interessa muito para o presente trabalho, apresentado por Bion mais ao fim de sua obra. Uma vez que O configura-se como uma verdade incognoscível (ou seja, não podemos conhecê-la, mas eventualmente tornamo-nos) e que buscamos nos aproximar dela, sem hierarquizarmos qual o caminho certo para encontrá-la, mas trocando com nossos pacientes as transformações que fazemos da experiência emocional que vivemos em uma sessão, então é preciso encontrar um ponto do espaço que privilegie o olhar para os trânsitos, para o movimento infinito de O. Este espaço, o entre, que tolera simultaneamente a continuidade e a ruptura entre estados de mente, Bion denominou de “cesura”, associando-a a um trecho de Freud (1926/1969, p. 162) quando diz “Há muito mais continuidades entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar”. Esta noção de cesura resulta da possibilidade de encontrar trânsitos, continuidades, saltos quânticos no funcionamento mental entre a mente embrionária, a mente primitiva e a mente edípica. Ou, pensando no fragmento clínico apresentado, um trânsito entre um pensamento articulado e uma cumulonimbus. Nas palavras de Bion (1975/2014, p. 49): Reformulando a afirmação de Freud, para minha própria conveniência: Há muito mais continuidade entre quanta19 autonomamente apropriadas e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos fariam acreditar. Então...? Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a contra-transferência, o humor transitivo-intransitivo. Ao fim de sua pesquisa, Flores (2021, pp. 143-144), ao tratar exatamente do mesmo tema, identifica uma passagem oportuna para pensarmos a respeito das evoluções das noções de complexidade em Bion: A ideia de cesura parece elevar um campo de conceitos intersticiais para um novo patamar. Intersticiais porque notamos, ao longo de seu trabalho, que Bion desenha fronteiras conceituais para fundamentar suas observações. Quer seja a barreira de contato (...), ou até mesmo as hifenizações que ligam palavras que dariam outro sentido se soltas, estes espaços de trânsito entre elementos expressam, em abstrações, a dinâmica de uma teoria que Bion, insistentemente, aponta falhar inexoravelmente toda vez que se aproxima da experiência emocional. Bion, mais próximo ao fim de sua obra, passa a empreender um esforço de se transportar para além dos pares antitéticos, para além dos conceitos que pressupõem alternâncias. O resultado é o exercício de, através da imaginação radical, ocupar lugares intersticiais, olhar desde a cesura. A ideia de cesura resolve, em termos epistemológicos, o problema da ruptura com as articulações, vínculos. Troca o dilema entre dois botões por um lugar intersticial que busca, ao máximo, evitar a negação de qualquer parte envolvida na apreensão de um funcionamento complexo. Na dupla seta, ↔, na compreensão espectral dos conceitos, deveríamos estar em um ponto exatamente no meio da reta, sem tender à escolha de um lado, mas observando os trânsitos, as mudanças, as transformações. Parece que estamos diante do pensamento complexo, mas as linhas escritas até aqui infelizmente pouco nos aproximam dele. São expressões em K, conhecimento, de uma experiência inalcançável, em sua complexidade, pela condição espacial da palavra. A organização espacial de um texto não nos aproxima da experiência psíquica. São alternâncias de pensamento dentro de uma estreita linearidade, com infinitos pensamentos (alguns pensados por nós, a maioria ainda não) escondidos nos pontos e nas vírgulas até aqui redigidas. Gostaríamos que as palavras pudessem levar quem as lê a um encontro com a fugacidade dos pensamentos, no entanto, isto é impossível. A mente move-se mais rápido e em mais camadas do que as palavras, do que os olhos, do que a boca contraída de um paciente ou as gargalhadas silenciosas são capazes de alcançar. As palavras interrompem o pavor gerado pela infinitude e são, inclusive, uma proteção contra a dinâmica insana que corre por baixo de nossa capacidade de apreensão, linearmente associativa e espacialmente tridimensional, denominada por Freud de processo secundário. Pressupor que a complexidade pode ser exprimida em linhas consiste em uma inevitável cegueira. Nas palavras de Morin (2015, p. 14): Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixaram cegos. Ao longo de inúmeras mudanças de estilo, Bion buscou resolver o problema da falta de alcance da linguagem para expressar a experiência psíquica. Escrita biográfica, poética, psicanalítica, matemática, diálogos imaginários, comunicações inquietantes. Esboçou a grade de pensamentos, em uma tentativa de organizar de maneira espacial como os pensamentos não-pensados e o pensador podem se encontrar, mas o instrumento é imóvel. Se por um lado nos inquietamos diante da imobilidade da grade, logo recordamos que quem está do outro lado é um pensador com pensamentos, e que somos nós que devemos dar movimentos ao imóvel apresentado por Bion. Morin (2015, p. 6) acompanha-nos no desamparo e na impotência diante da complexidade, fazendo das linhas e palavras o único alcance possível para estados complexos: (...) a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo (um dos principais aspectos do pensamento simplificador); este isola o que separa, e oculta tudo o que religa. Neste sentido, o pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas ele sabe desde o começo que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma onisciência. Ele faz suas as palavras de Adorno: ‘a totalidade é a não verdade’. Ele implica o reconhecimento de um princípio de incompletude e de incerteza. Mas traz também em seu princípio o reconhecimento dos laços entre as entidades que nosso pensamento deve necessariamente distinguir, mas não isolar umas das outras. Nosso tour de force para alcançar a nuvem Espremamos os olhos, agora, na tentativa de identificar, a partir da nuvem de palavras acima, quais os possíveis vértices de observação do fragmento intersubjetivo referidos desde o início do texto. Não buscamos aqui, na conclusão, afirmar algo acerca do fenômeno – uma nuvem na cabeça –, mas esboçar hipóteses, desenhar vértices desta experiência, construir um campo de complexidades. Se partirmos da perspectiva da Teoria do Pensar, podemos, por exemplo, conjecturar que o paciente depositou na mente do analista uma intriga feita de duas partes clivadas: uma expressão de insight acompanhada de uma imagem de imprecisão, resultado de uma identificação projetiva que levou o analista à própria análise, em busca de digerir tal processo. O riso e a memória persistente são os efeitos contratransferenciais deste evento, a partir da mente do analista. Podemos lançar outras hipóteses sobre o mesmo fenômeno, levando-se em consideração que há um pensador e pensamentos em busca deste. A nuvem formada na mente do paciente pode ter sido originada de falas do analista, as quais se converteram nesta imagem, o que foi possível pelo aparelho de pensar de alguém cuja parte psicótica da personalidade era expressiva. A própria ideia de nuvem pode ser vista como expressão simbólica, o resultado de um longo trabalho da função α, capaz de converter em imagem onírica uma experiência emocional, da mesma forma que também pode ser vista como a pré-concepção, pela interpretação do analista, de algo que poderia ter sido mais investigado ao invés de cair em súbita concordância. Há, ainda, a possibilidade de estarmos tratando de duas ou mais nuvens, fenômenos distintos em cada mente e que, por ocasião do encontro, parecem se referir a um ponto comum. A partir da concepção de Transformações , é possível pensar que há um fenômeno incognoscível para analista e paciente, definido como nuvem, o qual permitiu que ambos estivessem em contato e pudessem ter vivido um encontro. Podemos igualmente pensar que a nuvem foi mera coadjuvante de um encontro no qual estava em jogo se duas pessoas seriam capazes de sustentar uma conversa, daí a resposta rápida do analista em confirmar a existência de uma equivalência interna, mesmo sem saber o que estava dizendo. A partir da noção de transformações, a assim nomeada nuvem do paciente, bem como todas as interpretações que fizemos acima, são transformações sobre um elemento incognoscível que apenas tangenciamos. A partir de seu ponto de vista, o paciente nomeia a própria experiência, e o analista, assim como nós agora, escrevendo, produz transformações sobre tal fenômeno, em busca de invariâncias que nos permitam alcançar o fenômeno original mobilizador deste texto. Por fim, a partir da noção de Cesura, podemos entender que, para além de todas as perspectivas anteriores, é importante notarmos que há um elemento em transitória transformação. É neste trânsito que mora o trabalho analítico em que devemos prestar atenção: entre o paciente e sua expressão verbal, há um tour de force feito na escuridão de seus olhos fechados; entre sua comunicação e a nuvem da mente do analista, há um trânsito de elementos que percorrem tal espaço intangível; entre o fatídico evento e o divã do analista em questão, há inúmeras transformações feitas de risadas silenciosas e intrigas mentais; entre este longo evento e a escrita do presente trabalho, houve, também, um tour de force em busca de transpor, em tantas linhas, um breve insight – uma nuvem! NOTAS 1 Este artigo foi extraído da tese de doutorado de Davi Berciano Flores, atualmente em curso sob orientação da Profª Drª Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Psicólogo e psicanalista. Professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e da especialização em psicanálise da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), membro do LIPSIC e do GBPSF. 3 Psicanalista. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e coordenadora do LIPSIC. 4 A expressão hipótese definitória é utilizada por Bion (1963/2014) como um dos elementos de sua Grade, especificamente a primeira casa do eixo referente aos usos do pensar. A expressão tem um valor próximo do senso comum para o leitor não habituado à obra do autor, bem como um sentido mais específico para os leitores mais familiarizados com os usos da Grade. De forma rápida, podemos definir hipótese definitória como uma primeira ideia com potencialidade para todas as possibilidades (López Corvo, 2008, p. 183). Trata-se, em outros termos, de um ponto de partida para uma investigação, definindo um campo de busca (Symington & Symington, 1999, p. 54). 5 Os dados apresentados foram devidamente alterados e ficcionalizados, bem como foram omitidos detalhes que pudessem permitir a identificação do paciente. Optamos por apresentar apenas a primeira parte do fragmento clínico na primeira pessoa do singular. A proposta desta apresentação consiste em priorizar os fatos identificados na relação da dupla analítica, a partir do que denominamos “fragmento intersubjetivo”, ou seja, aquilo que mobiliza a mente do analista a articular elementos clínicos com aspectos teóricos a partir de sua visão pessoal e transitiva (Ribeiro, Flores & Ramos, 2022). 6 Esta observação aproxima-nos da noção de pré-concepção na obra de Bion (1962/2022), que corresponde à noção de pensamentos vazios em Kant. Consiste em um “estado incipiente” e traduz o “status de um estado expectante”, no qual há concepções (moldes, sondas) que buscam realizações, como no modelo inato do bebê que nasce com uma pré-concepção do seio, ou seja, um estado expectante, um molde, um pensamento vazio em busca de uma realização (Sandler, 2021, p. 859). 7 Dentre os textos que poderíamos citar, destacamos Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (Klein, 1946/1991), no qual a autora apresenta a noção de identificação projetiva, que se tornará um conceito importante dentro do movimento kleiniano. Na obra de Klein, a identificação projetiva é vista como um mecanismo de defesa, em que partes do self do bebê, em sua primitividade, são expulsas e depositadas dentro do corpo da mãe. Elevada a um conceito na obra de outros autores – incluindo Bion –, a identificação projetiva torna-se uma via de comunicação, na qual elementos projetados para fora do self do bebê (e do paciente) podem ser digeridos pela mãe (e pelo psicanalista) para então serem reintrojetados de forma mais digerida e, portanto, tolerável. 8 Bion retoma a ideia freudiana, apresentada em Interpretação dos sonhos (1900/2019): a consciência é um órgão de apreensão psíquica (Bion, 1962b/2021). 9 A noção de númeno, oriunda da obra de Kant, diz respeito ao “intuível para além do fenômeno que não pode ser concebido”. Corresponde ainda à “coisa-em-si, a realidade absoluta da qual não temos conhecimento empírico ou sensível, mas que podemos alcançar somente pela via da intuição.” (López Corvo, 2008, p. 238). 10 Podemos pensar que o âmbito numênico é justamente o que não conseguimos captar das coisas, aquilo que não é perceptível, mas que supomos estar lá. Levar isto em consideração diz mais de uma concepção de objeto de investigação, bem como da capacidade de alcance do conhecimento científico. Quando pensamos em características psicóticas de uma metodologia de investigação, estamos nos referindo ao fato de que há textos/obras que privilegiam mais o âmbito numênico, reconhecem-no, enquanto outras construções teóricas consideram menos este campo como algo que compõe o modelo teórico. Neste sentido, há metodologias que são mais mutiladoras da complexidade e outras menos. 11 Aplicativo de localização via GPS para carros, que indica caminhos através dos mapas para chegar a um destino. 12 Freud (1909/2013) aproxima-se da mesma ideia ao tratar, no campo da linguagem, de deformações por elipse. Nestas, palavras são escandidas da frase, de modo que o entendimento de algo pode ocorrer com extensão de representação. Era assim que uma única palavra poderia ser evitada ou dita de forma ritualística pelo Homem dos Ratos, evocando uma ideia sem necessariamente acessá-la. No caso deste paciente, o conjunto de palavras pode regredir para a ação contida na frase, reduzindo a articulação de pensamento “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise” para a ação “desviar meu caminho da análise”, abandonando o campo das ideias e convertendo-se em uma descarga motora que as palavras poderiam conter. 13 Em um momento mais avançado de sua obra, Bion (1976a/2014) vale-se do termo “evidências”, que pode servir tanto como leitura de seu paradigma epistemológico quanto de seus futuros constructos voltados a uma psicanálise predominantemente ontológica. 14 Invariância surge como conceito na obra de Bion somente em Transformações (1965a/2014), tratando-se de um conceito matemático do século XIX, depois aplicado em outras ciências práticas, como a física, a química, a teoria musical e, por fim, a psicanálise de Bion. A noção de invariância indica que, entre dois fenômenos, algo permanece inalterado, ainda que sejam de naturezas distintas. Deste modo, é possível depreender que, entre eles, há algo que nos permite associá-los em alguma perspectiva. 15 Nas palavras de Bion (1976b/2014, p. 125): “A cesura que nos levaria a acreditar; o futuro que nos levaria a acreditar; ou o passado que nos levaria a acreditar – isso depende da direção em que você está viajando e do que você vê”. A questão sobre a direção que tomamos para observar um fenômeno é tema recorrente na obra de Bion, e cada vez mais premente à medida que ela avança. A noção de cesura, citada neste trecho, será apresentada mais adiante. 16 Language of achievement, traduzido como “linguagem de êxito” ou “linguagem de consecução”, consiste em uma noção de Bion que busca dar nome à busca por interpretações e expressões que tenham “durabilidade e extensão”, tendo efetividade na realidade psíquica e material de um paciente. (Sandler, 2021, p. 508). 17 Freud (1900/2019) denominava a “inversão no oposto” como um dos artifícios realizados pelo trabalho do sonho para permitir que o conteúdo desconhecido da inconsciência acessasse o estado de vigília, de modo que pudesse aparecer em conteúdo manifesto. Inverter no oposto resulta em alterar a ordem cronológica dos fatos, bem como outras lógicas que indicam um caminho capaz de, plasticamente, ser invertido de forma onírica. Um bom exemplo deste fenômeno psíquico é observado por Freud (1909/2015) quando se refere aos ataques histéricos, em que, por vezes, a paciente por ele observada iniciava seu ataque expressando o fim de uma cena narrativa, encerrando o ataque na posição de início da mesma narrativa. O arc de cercle, por exemplo, consiste em um arco do corpo oposto ao do coito, resultando em defesas psíquicas para dissimular os reais fatos, simbolicamente encobertos pelas defesas psíquicas. 18 Não à toa encontramos, nas transformações em alucinose, algo que se aproxima muito da crítica que Morin (2015, p. 15) faz às tentativas de eliminar a complexidade da apreensão da realidade, permitindo-nos “(...) compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes”. 19 Unidade de medida da física, comum às teorias quânticas. REFERÊNCIAS Referências Bion, W.R. (1953). Notas sobre a teoria da esquizofrenia. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 27-38). Rio de Janeiro: Imago, 2022. Bion, W.R. (1957). A diferenciação entre a personalidade psicótica e não-psicótica. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 45-62). Rio de Janeiro: Imago, 2022. Bion, W.R. (1959). Ataques contra os vínculos. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 87-100). 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- Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um autor
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2020 na revista Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (Rio de Janeiro) e está disponível no link: https://doi.org/10.1590/1809-44142020001007 . Sua relevância é evidenciada pelo fato de ser leitura obrigatória para a prova de ingresso na Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo. Resumo: Considerando que Thomas Ogden é um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea transmatricial (FIGUEIREDO; COELHO JÚN IOR, 2018), o artigo apresenta a passagem e transformação do conceito de identificação projetiva (KLEIN, 1946) para o de terceiro analítico (OGDEN, 1994) por meio da análise e discussão de publicações do autor, em que faz articulações tanto com conceitos de Winnicott, quanto de Bion. Para Ogden, os conceitos são metáforas que nomeiam diferentes aspectos do funcionamento mental, e as transformações conceituais estariam, então, nos pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso diverso das expressões. Por ora, estou interessado nos pensamentos selvagens que surgem e sobre os quais é impossível rastrear, de imediato, a quem pertencem ou qual sua genealogia particular. (Bion, 1977). Acredito que, em psicanálise, fazemos bem ao permitir certa inexatidão nas ideias e nas palavras. (Ogden, 2013). Nos últimos anos, venho pesquisando as transformações que ocorrem nos conceitos psicanalíticos, especialmente no que se refere à identificação projetiva 1 e seu desdobramento na ideia de terceiro analítico. Assim como o processo de análise é uma sonda que expande o próprio campo investigado (BION, 1970/2007), a teoria psicanalítica também está em constante expansão, trazendo novos desdobramentos conceituais, frutos de uma psicanálise viva, compreendida como uma obra aberta. Podemos pensar que, enquanto a invariante da psicanálise reside no reconhecimento da existência do inconsciente, há hoje inúmeras variantes, cabendo ao psicanalista a tarefa de identificar o próprio acervo teórico para construir um fio condutor dentro do vasto universo da psicanálise contemporânea. A intenção deste texto é justamente essa: expor um fio de Ariadne 2 , de modo a tecer uma trama teórica própria, dentro de inúmeros recortes possíveis, buscando aprofundar o conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden. Para tanto, utilizo a compreensão das matrizes psicanalíticas de Figueiredo e Coelho Júnior (2018), no livro Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: matrizes e modelos em psicanálise. Faço essa escolha, pois considero o recorte do universo teórico psicanalítico proposto pelo autores um organizador para a leitura e compreensão das múltiplas intersecções teóricas e clínicas que encontramos hoje. O pensamento transmatricial de Thomas Ogden Figueiredo e Coelho Júnior (2018) postulam duas grandes matrizes para a psicanálise: a freudo-kleiniana e a ferencziana. As matrizes são formas de adoecimento 3 , e a cada uma corresponderá uma estratégia de cura. A primeira matriz, freudo-kleiniana, tem como característica seu centramento nas angústias e nas inúmeras defesas erigidas para dar conta destas, sendo que os adoecimentos ocorrem quando as defesas não são efetivas. A segunda matriz, ferencziana, considera que há dores e sofrimento psíquico que ultrapassam as capacidades ativas do psiquismo, deixando este em um estado de morte ou quase morte a morte dentro. A partir da matriz freudo-kleiniana, temos os adoecimentos por ativação e, da matriz ferencziana, os adoecimentos por passivação. Os autores consideram que Bion é um representante da matriz freudo-kleiniana e Winnicott, da ferencziana, sendo que ambos estão presentes nas elaborações nomeadas como transmatriciais . Muito presentes na psicanálise contemporânea, tratam-se de “atravessamentos de paradigmas” 4 , resultando em articulações criativas. O pensamento de Thomas Ogden encontra-se, justamente, na intersecção entre Bion e Winnicott, tornando então esse autor um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea transmatricial, entre outros, como André Green, Antonino Ferro, René Roussillon, Christopher Bollas e Anne Alvarez (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018). Saliento que as matrizes são organizadores teóricos e clínicos, cabendo dentro dessas delimitações, sempre parciais, intersecção, tais como o fato de Melanie Klein ter sido paciente de Ferenczi. Penso que é inescapável nos interessarmos pelas teorias que habitam a mente de nossos analistas, conscientemente e, o mais importante, inconscientemente. Nesse sentido, há uma construção teórica na psicanálise marcada pelas intensidades das transferências e contratransferências, passível apenas de conjecturas. Destaco um comentário de Freud a Ferenczi (1908-1911) em uma das várias cartas trocadas entre eles, na qual Freud considera que não se deve fazer teorias, mas elas devem cair de improviso em sua casa, como hóspedes que não foram convidados, enquanto você está ocupado examinando detalhes. Penso ser este um excelente estado de mente sugerido por Freud: andarmos um pouco distraídos, em estado de atenção flutuante, e encontrarmos o que não estávamos procurando um pensamento psicanalítico em busca de um autor 5 ? Talvez a coesão conceitual extrema não se encaixe nesse pesquisador em estado de atenção flutuante, que está, também, imerso nas questões e demandas do cotidiano da clínica. A teoria, assim concebo, é apenas uma aproximação possível da experiência clínica, não abarca a totalidade da experiência, é sempre parcial, provisória e histórica. Em vários momentos da sua obra, Bion (1962, 1965, 1970) adverte que a experiência em si é incognoscível temos contato apenas com as transformações dela. Cada teórico da psicanálise ilumina e narra uma faceta da experiência clínica, dentro de um determinado paradigma teórico; nesse sentido, o diálogo e as ressonâncias entre autores são fundamentais no vasto universo da psicanálise contemporânea. Tendo o diálogo e as ressonâncias como norte, Coelho Júnior (2019) escreve um artigo com o significativo título: De Ogen a Ferenczi: a constituição de um pensamento clínico contemporâneo/From Ogden to Ferenczi - the constitution of a contemporary clinical thought . O autor inverte a temporalidade a que estamos acostumados, sugerindo que, no a posteriori das construções teóricas psicanalíticas, podemos encontrar conexões e ressignificações, tanto no sentido da progressão temporal, como no sentido inverso, dentro das inúmeras intertextualidades (PAZ, 1984) possíveis. Faz então uma espécie de revitalização das possíveis conexões com o legado da obra de Ferenczi, do qual Ogden parece ter usufruído na construção do seu pensamento, provavelmente por meio dos textos de Balint e Winnicott. Podemos dizer que Ferenczi ficou por décadas na latência da história da psicanálise, mas produzindo efeitos em seus sucessores, sendo os mais evidentes, Balint e Winnicott. Mas há também os efeitos silenciosos e não explicitados na obra de Melanie Klein 6 . Penso ser relevante dimensionarmos a presença do pensamento ferencziano na psicanálise contemporânea o enfant terrible da psicanálise, cujas ideias começam a ser compreendidas e retomadas nos últimos anos, era, de fato, um clínico genial e ousado, que teve a coragem de escrever sobre a afetação recíproca e inconsciente entre analista e paciente. Nas vizinhanças do pensamento expresso acima, encontramos o texto de Rocha Barros e Rocha Barros: É importante levar em conta que mesmo os textos considerados clássicos adquirem novas conotações à medida que forem lidos ao longo dos anos. É frequente que um texto recente lance uma nova luz sobre artigos clássicos. Os textos sofrem transformações, através daquilo que Octavio Paz chamou intertextualidade. Os textos de diversas épocas interagem entre si produzindo novos sentidos ou, concomitantemente, apagando sentidos que se tornaram anacrônicos. (ROCHA BARROS; ROCHA BARROS, 2018, p. 15). Corroborando o mesmo pensamento, Ogden (2010) escreve que não somente as contribuições anteriores afetam as posteriores, seguindo uma ordem cronológica, mas que a leitura de autores contemporâneos altera a nossa leitura de textos clássicos da psicanálise. Ao revisitarmos Ferenczi, podemos encontrar o que estava lá, mas não estava ideias que ainda não podiam ser pensadas, mas, ainda assim, faziam-se presentes no texto para um leitor no futuro, no tempo do a posteriori , encontrando novos sentidos e ressignificando textos clássicos 7 . Se compreendemos o inconsciente, nosso campo de observação, como imanência e não como oráculo (OGDEN, 2010), podemos pensar que as teorias são formas de capturar um sentido, uma metáfora conceitual, como expressa Ogden (2016). Na condução de um processo de análise, os sentidos que captamos são sempre momentâneos e parciais, devendo ser abandonados para que novos possam emergir a cada sessão. Afinal, por que as teorias psicanalíticas seriam diferentes do seu objeto de estudo, o inconsciente? Feita essa breve contextualização da matriz transmatricial do pensamento de Ogden, apresento a seguir o conceito de identificação projetiva a partir dos textos do autor. Importante lembrar que o conceito de identificação projetiva pertence à matriz freudo-kleiniana, e tem interessantes desdobramentos na obra de Ogden, dos quais destaco alguns neste texto. Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden Em entrevista a Luca Di Donna, em 2013 (publicada em 2016), Ogden fala acerca de uma possível linha de desenvolvimento ao longo da sua obra 8 uma questão difícil para um autor que escreveu acerca de tantos temas diferentes. Ogden já havia se perguntado sobre essa linha de desenvolvimento nos seus textos; a resposta dada ao entrevistador pauta a investigação deste artigo. Ogden (2013/2016) relata que aquilo que primeiramente o intrigou foi como duas pessoas pensam, questão que já aparece nos seus artigos iniciais: On projective identification (1979), sendo republicado em 2012 no livro Projective identification: the fate of a concept. No seu primeiro livro, intitulado Projective identification and psychotherapeutic technique , de 1982, desenvolve mais amplamente as ideias que estão condensadas no artigo, trazendo várias vinhetas clínicas. Tem sido marcante em sua obra a habilidade de narrar os detalhes da experiência emocional vivida na sessão analítica, e de forma imagética, em especial, como duas mentes pensam juntas. Ogden conduz o leitor à intimidade da sala de análise, fazendo com que a leitura seja, em si, uma experiência transformadora 9 . Na entrevista de 2013, Ogden diz que raramente usa o termo identificação projetiva , pois cada um tem uma definição e uma compreensão do conceito. Prefere, então, descrever o fenômeno: trata-se da mãe e seu bebê criando uma terceira mente, sendo que a experiência emocional é transformada na vivência do terceiro. Aqui, temos a passagem do conceito de identificação projetiva para o conceito de terceiro; ou seja, como duas pessoas pensam a partir de uma terceira mente que se constitui no encontro. Ogden afirma “[…] o conceito kleiniano de identificação projetiva é um passo monumental na ampliação do entendimento analítico da natureza e das formas da tensão dialética subjacente à criação do sujeito” (OGDEN, 1996, p. 7). Ogden inicia o artigo de 1979 destacando que a identificação projetiva é um fenômeno que ocorre tanto na esfera intrapsíquica, quanto na esfera das relações interpessoais; ou seja, já na primeira frase do texto, deixa clara sua compreensão intersubjetiva do conceito. Trata-se, na perspectiva do autor, de um tipo de defesa, um modo de comunicação, uma forma primitiva de relação de objeto e o caminho para uma mudança psicológica. Nos textos clássicos de Klein, a identificação projetiva é compreendida como defesa e como forma primitiva de relação de objeto; já Bion a concebe como modo de comunicação e um caminho para uma mudança psicológica podemos dizer que, a partir dessa expressão, começa a aparecer a marca autoral de Ogden 10 . As transformações conceituais estão nesses pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso das expressões. Destaco que esse texto foi escrito há quarenta anos (OGDEN, 1979), momento no qual a compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando era um tema pouco abordado, talvez de difícil aproximação, como ainda é atualmente. A liberdade de pensamento do autor permite que ele faça seus “atravessamentos de paradigmas” em uma época na qual isso pouco acontecia. Movido por suas experiências clínicas com esquizofrênicos, Ogden busca uma interlocução com textos e autores 11 nos quais encontra um sentido 12 para o que experenciava com esses pacientes. Seus dois primeiros livros dão testemunho dessa trajetória de apropriação e apresentação de autores ingleses poucos conhecidos nos Estados Unidos: Klein, Winnicott, Bion, Balint, entre outros 13 . Retomando, destaco algumas ideias presentes no artigo de 1979, no qual há várias conexões interessantes, apresentadas de forma condensada. Ogden faz articulações da identificação projetiva tanto com conceitos de Winnicott, quanto com conceitos de Bion. A partir de Winnicott, mesmo que esse autor pouco se refira ao conceito de identificação projetiva, Ogden escreve que se trata de uma forma transicional de relacionamento, constituindo um tipo primitivo de relação objetal, um modo básico de ser com o objeto ainda não separado. Em outras palavras, aloca de forma surpreendente o conceito kleiniano na teoria de Winnicott. Já no que se refere a Bion, Ogden (1979/2012) destaca que o autor compreende o conceito como uma interação interpessoal, aproximando a experiência da identificação projetiva da ideia de um pensamento sem pensador, um pensamento em busca de um pensador: ser um continente é, pois, pensar um pensamento ainda não pensado. Afirma ainda que, na perspectiva bioniana, quando não há uma mente continente para a identificação projetiva, isso provoca um impacto desorganizador, tanto na relação mãe-bebê, como entre analista-paciente. Além de Klein, Winnicott e Bion, no artigo de 1979, cita Rosenfeld, Balint, Searles, Grotstein, Robert Langs, entre outros reflexo da sua atitude investigativa e compromissada com os fenômenos clínicos que estava investigando. Ogden aloca o conceito de identificação projetiva fora dos limites dos autores kleinianos, e vai além, ao falar das implicações técnicas do conceito. Ogden (1979/2012) aborda um tema ainda hoje delicado: o analista é um ser humano, com passado, repressões, conflitos, medos e dificuldades psicológicas próprias 14 . Em sua concepção, a principal ferramenta do analista é sua habilidade em entender seus próprios sentimentos e, também, o que está acontecendo entre ele e o paciente. Para tanto, necessita ter competência de formular de maneira clara e precisa sua compreensão, usando palavras que tenham um efeito terapêutico, afinadas com o tempo do paciente, o timing da interpretação. Futuros textos de Ogden se debruçam sobre a questão da interpretação 15 , ou, como ele nomeia, do diálogo analítico 16 . Ainda no texto de 1979, Ogden destaca que falhas técnicas frequentemente são dificuldades de processar as identificações projetivas do paciente. No seu livro sobre o tema, Projective identification and psychotherapeutic technique (1982/1992), três anos após a publicação do artigo, ao descrever uma das maneiras pelas quais a identificação projetiva pode se apresentar, usa em vários momentos a palavra inglesa enactment. Trata-se de um fenômeno clínico que, na década de 1980, transformou-se em um novo conceito . Em artigo anterior, faço uma reflexão de como a descrição do enactment está presente na compreensão que Ogden tem da identificação projetiva, embora, nesse momento, ele tenha usado a palavra e não o conceito, pois este ainda não havia sido nomeado 17 : Se nós imaginarmos por um momento que o paciente é ambos, o diretor e um dos atores principais em uma atuação ( enactment ) interpessoal de uma relação objetal interna; e que o terapeuta é um ator não intencional e não consciente no mesmo drama, então a identificação projetiva é o processo no qual o analista dirige uma peça para um papel particular. Nessa analogia é bom manter em mente que o terapeuta não se voluntariou para encenar e, somente retrospectivamente, entende que ele está desempenhando um papel na atuação ( enactment ) de um aspecto do mundo interno do paciente. (OGDEN, 1982/1992, p. 4). Ogden (1982/1992) faz crer, então, que o posterior conceito de enactment pode estar amalgamado à identificação projetiva são fenômenos psíquicos interpessoais na situação analítica que se mesclam, sendo difícil delimitar uma fronteira nítida entre ambos. Mas, até onde pude averiguar, ele não faz uso de enactment como conceito em suas publicações posteriores. O que intenciono destacar nesta discussão é a dificuldade e a complexidade ao definirmos fronteiras conceituais; talvez seja um esforço contínuo, necessário, parcial e sempre inacabado. Prosseguindo, o intuito é explicitar algumas formulações presentes no artigo de 1979, no primeiro livro publicado em 1982 e no texto no qual formula o conceito de terceiro analítico, de 1996, tendo como fio condutor a transformação conceitual ocorrida. Ou seja, como os textos iniciais apresentam, embrionariamente, ideias que vão sendo transformadas e nomeadas como conceitos em artigos posteriores 18 . Destaco a compreensão de Ogden de que a identificação projetiva é um evento interpessoal, pavimentando o caminho para a construção do conceito de terceiro analítico. Essa maneira, evidentemente intersubjetiva, de entender a identificação projetiva já está presente em outros autores, principalmente Bion. No livro Os sujeitos da psicanálise (1994/1996) , do qual faz parte o artigo O terceiro analítico, Ogden inicia assim o capítulo seis: Neste capítulo, apresentarei algumas reflexões sobre o processo da identificação projetiva como uma forma de terceiridade intersubjetiva. Descreverei, em particular, a inter-relação de subjugação mútua e reconhecimento mútuo, que considero fundamental para esse evento psicológico-interpessoal (OGDEN, 1996, p. 93). Quase vinte anos se passaram, e, como autor psicanalítico e clínico, com muito mais experiência e desenvoltura em relação à originalidade do seu pensamento, Ogden postula o que aparecia nos textos iniciais como potencialidade, descrevendo também o fenômeno sob uma nova perspectiva: a do terceiro subjugador, apontando para a transformação da dupla analítica o processo que vai da subjugação ao reconhecimento. Ogden compreende que as duas pessoas envolvidas tanto a que projeta, como a que recebe a projeção sofrem distorção e negação das suas subjetividades. O terceiro analítico subjugador, portanto, altera as subjetividades envolvidas se o processo analítico for bem sucedido, haverá uma transformação de ambas, levando à criação de algo que é maior que a soma dos dois participantes. Escreve Ogden: “Na identificação projetiva, analista e analisando são limitados e enriquecidos; cada um é sufocado e vitalizado” (OGDEN, 1996, p. 97). É por meio do reconhecimento do outro que nos tornamos auto reflexivamente humanos. Quando a vitalização e o reconhecimento não são possíveis, há um aprisionamento ao terceiro subjugador, e o processo analítico paralisa. O artigo (Ogden, 1994/1996) em que postula o conceito de terceiro analítico foi escrito em comemoração ao septuagésimo-quinto aniversário do The International Journal of Psychoanalysis. Talvez devido a esse marco histórico, Ogden tenha iniciado o texto afirmando que já não é mais possível pensar analista e analisando como sujeitos separados, sendo então o movimento dialético entre as duas subjetividades um fato clínico importante. A partir da postulação de Winnicott de que não existe um bebê sem a mãe, considera que analista-analisando também formam uma unidade que coexiste em tensão dialética. O autor compreende a dialética da seguinte forma: “A dialética é um processo no qual elementos opostos se criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo” (OGDEN, 1996, p. 12). A gravura de Escher (1946/2006), Bond of union 19 , parece ser uma imagem exitosa da unidade dialética analista-analisando: A gravura evidencia a permeabilidade entre as mentes podemos pensar que o terceiro é a gravura na sua totalidade, a cena do encontro analítico. As bolas que circulam a dupla parecem ser uma boa representação dos objetos analíticos, que são descritos por Ogden, no texto de 1994, por meio da apresentação detalhada de uma situação clínica: a carta roubada 20 . O objeto analítico 21 é justamente a carta que representa a realidade psíquica do terceiro analítico; ou seja, o objeto analítico está no espaço potencial entre analista e analisando, apreendido e criado pela rêverie do analista 22 . O conceito de rêverie , originalmente de Bion (1962), passa a ser a maneira como o analista apreende os objetos analíticos, uma criação, uma manifestação do sonho da vigília 23 do terceiro analítico. Ogden (1994/1996) escreve que a experiência intersubjetiva do terceiro é apreendida por meio das rêveries. Se nos inspirarmos na expressão paradoxal de Winnicott, de que a mãe é descoberta e encontrada pelo bebê, podemos pensar que a rêverie é criada e encontrada pelo terceiro analítico. Explicando mais detidamente o conceito de rêverie , retomo algumas ideias expressas em artigo anteriormente escrito: a rêverie como o próprio sentido da palavra revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a rêverie ; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional à comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de rêverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e íntimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a rêverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerado pelo encontro de duas mentes, do analista e do analisando (OGDEN, 2013). Dizendo de outra maneira, a rêverie é a maneira como é criado e encontrado o objeto analítico durante a sessão, uma criação do terceiro analítico. Mas, afinal, como podemos compreender o conceito de identificação projetiva hoje? Ogden considera “a identificação projetiva uma dimensão de toda a intersubjetividade, às vezes como qualidade predominante da experiência, outras somente como um sutil pano de fundo” (OGDEN, 1996, p. 94). Após a postulação do terceiro analítico, encontramos poucas referências à identificação projetiva nos textos de Ogden posteriores a 1994. O terceiro e o campo analítico, alguns apontamentos Voltando à entrevista com Luca Di Donna (2013/2016), encontramos outra resposta de Ogden, além da citada no início, esclarecedora de uma questão significativa no que se refere a dois conceitos intersubjetivos contemporâneos relacionados: o terceiro analítico e o conceito de campo analítico. Afinal, no que diferem ou se assemelham? Cabe lembrar que o conceito de campo analítico foi postulado pelo casal Baranger (1961-1962/2010) 24 na década de sessenta, e internacionalizado na psicanálise por Antonino Ferro na década de noventa e nos anos dois mil. Trata-se de considerar o encontro das duas subjetividades, analista e analisando, em constante interação, sendo então gerados tanto novos pensamentos como, também, erguidas defesas inconscientes, os denominados baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em complexa interação. Estudiosos da obra de Melanie Klein, os Baranger estavam imersos no conceito de identificação projetiva, o que nos leva a pensar que a compreensão da situação analítica como um campo bipessoal também seja um desdobramento do extenso conhecimento que esses autores tinham da obra de Klein, sendo difícil dimensionar essas intersecções teóricas. Katz (2017) apresenta o desenvolvimento do conceito de campo em três ondas: a primeira baseada no trabalho do casal Baranger, denominada “modelo mitopoético”; a segunda, a partir dos trabalhos de Antonino Ferro, o “modelo onírico”; e a terceira, baseada no trabalho de psicanalistas americanos, o “modelo plasmático” 25 . A autora salienta que a ideia de campo surgiu em diferentes continentes em épocas próximas e de forma relativamente independente, o que faz lembrar a ideia de um pensamento psicanalítico em busca de autores 26 . Antonino Ferro, na década de noventa, faz a junção do modelo mitopoético de campo psicanalítico do casal Baranger com o modelo do funcionamento mental de Bion, dando início à segunda onda conceitual: o modelo onírico. Acrescentam-se a essa segunda onda os trabalhos de Civitarese, que, além de compreender a sessão analítica como tendo qualidades oníricas, considera a sessão como um campo do brincar (KATZ, 2017). Voltando à resposta de Ogden quanto às diferenças entre o terceiro analítico e o campo analítico (OGDEN, 2016, p. 176), observamos que ele usa os dois conceitos, dependendo de qual aspecto da situação analítica está se referindo. Considera que os conceitos são metáforas que nomeiam e destacam diferentes aspectos do funcionamento mental. A metáfora do terceiro analítico, enfatiza a criação de uma terceira mente, irredutível à soma de duas mentes. O campo analítico enfatiza as forças criadas pela experiência consciente e inconsciente da dupla; podemos dizer que tem um caráter espacial. Ambos se sobrepõem, não existindo uma clara distinção entre eles; ou seja, devemos facultar certa imprecisão aos conceitos, segundo o nosso autor. Ogden (2013/2016) tende a usar o conceito de campo analítico vinculado a questões que envolvem o setting ; e o de terceiro analítico vinculado a rêverie ; ou seja, o modo como esse fenômeno expressa uma produção do terceiro, e não uma criação exclusiva do analista ou do paciente, como já dito. Afirma, porém, que, em pouco tempo, ambas as metáforas, terceiro analítico e campo analítico, tendem a se tornar obsoletas, e outras terão de ser inventadas. À guisa de conclusão Retomando o início deste artigo, a teoria psicanalítica, assim como a análise, é uma sonda que expande o próprio campo que investiga (BION, 1970/2007), uma obra aberta. Seguindo essa ideia, as teorias psicanalíticas tendem a se expandir, cabendo ao analista a tarefa, cada vez mais complexa, de construir uma trama conceitual própria, e que faça sentido e sustente a sua experiência clínica a cada momento. Ponderando sempre a circularidade que existe entre teoria e clínica, em outras palavras, os conceitos surgem da experiência clínica e retornam para a clínica, em um processo transformacional e dialético. Considerando a ideia de que os pensamentos não têm proprietário, mas surgem justamente pela contínua interação entre as pessoas, e são referidos a partir de seus autores, podemos conjecturar que os conceitos são criados, descobertos e nomeados por diferentes autores, em diferentes épocas, e no a posteriori de diversos textos, em complexa intertextualidade (PAZ, 1984). Um autor, no campo da psicanálise, talvez seja aquele que tem a habilidade de captar, conceitualizar e narrar fenômenos clínicos e, além disso, articulá-los com os paradigmas teóricos existentes, criando novas tramas conceituais, novos atravessamentos de paradigmas. Neste artigo, me detive a analisar em alguns textos de Thomas Ogden a transformação do conceito de identificação projetiva em terceiro analítico. Como já dito, é nas sutilezas do texto que podemos encontrar esses deslizamentos de sentidos que favorecem a construção de novos conceitos com pregnância clínica 27 . Ogden (2010, 2013, 2016) escreve em vários momentos que a psicanálise precisa ser inventada a cada paciente, ou seja, como analistas, estamos reconstruindo a cada sessão, de forma viva, nossa trama teórica, nosso fio de Ariadne. Como estudiosos e pesquisadores da psicanálise, cabe a nós historicizar e articular os conceitos, atravessando paradigmas com rigor e ética, nesse universo transmatricial criativo da psicanálise contemporânea. NOTAS 1 Segundo Rocha Barros e Rocha Barros (2018), os conceitos de identificação projetiva e de continência estão entre os cinco considerados mais importantes para a clínica psicanalítica contemporânea. 2 “O conhecido mito do Fio de Ariadne ou mais conhecido como Labirinto do Minotauro narra a trajetória de Teseu, um herói que salvou a cidade de Creta do terrível minotauro, criatura nascida da união de Zeus com a mulher do rei da cidade, Minos. Assim, o rei constrói um labirinto para aprisionar a criatura, mas só conseguia através do sacrifício de sete moças e sete rapazes a cada sete anos. Ariadne, filha do rei Minos, se apaixonou por Teseu, filho de Egeu rei de Atenas, resolvendo ajudá-lo a matar o monstro. Assim, em sua jornada ao interior do labirinto, entrega uma bola de linha dourada para Teseu, bola que ajudaria a entrar no labirinto sem se perder. Assim foi feito: Teseu encontra e enfrenta a criatura derrotando-a com uma espada mágica entregue por Ariadne e retornando ao início do labirinto. Ao fugir da perdição do labirinto, Teseu vê a verdade quando descobre que, através do cordão, o ponto de partida era a chegada!” (Disponível em: https://vidapsiquicablog.wordpress.com. Acesso em: 30 out. 2018). 3 “[...] adoecimentos psíquicos podem ser universalmente pensados como interrupções nos ‘processos de saúde’[...]” (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018, p. 9). 4 Expressão utilizada por Figueiredo (2009). 5 Chuster escreve sobre serendipidade: “O termo Serendipidade (Serendipity, em inglês) foi criado em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, no livro Travels and adventures of three princes of Serendip, para significar algo encontrado de forma agradavelmente inesperada, e que acrescenta substância à nossa sabedoria. Trata-se para o autor de uma experiência transformadora. Somos outros, depois do achado” (CHUSTER, 2018, no prelo). 6 A influência do pensamento de Ferenczi na obra de Melanie Klein é um campo de pesquisa que vem se abrindo recentemente. Klein foi sua paciente, no entanto, devido aos problemas políticos institucionais da época, não era recomendado citá-lo. Diferentemente de Karl Abraham, seu segundo analista, que pode ser referido livremente. 7 Ogden publicou um livro com vários artigos que são leituras criativas de textos clássicos, Leituras Criativas. Ensaios sobre obras analíticas seminais (2014). 8 A obra de Thomas Ogden abarca artigos publicados de 1974 a 2018. 9 A ideia do terceiro sujeito criado na experiência de ler está presente no primeiro capítulo do livro Os sujeitos da psicanálise (OGDEN, 1994). 10 Uma característica dos textos de Ogden é que ele usa o termo psicológico com certa frequência, especificamente no trecho referido: mudança psicológica. 11 Podemos conjecturar que o fato de predominar, na psicanálise americana, a psicologia do ego de Hartman, fez com que Ogden buscasse os horizontes ingleses da psicanálise, continuando seus estudos na clínica Tavistock, em Londres. 12 Podemos pensar no sentido como uma verdade; verdade compreendida a partir de Bion (a verdade emocional como o alimento primordial da mente), ou seja, também buscamos, nos textos que escolhemos para ler, um sentido para a experiência clínica. 13 Ogden faz essa apropriação e apresentação desses autores para os americanos, principalmente nos seus primeiros livros: Projective identification and psychotherapeutic technique (1982) e The matrix of the mind: object relations and psychoanalytic dialogue (1986). 14 Sendo que a análise e a supervisão do analista o habilitam, mas não o isentam, da sua humanidade; muito pelo contrário, é a humanidade do analista que o torna analista. 15 “The transference is a topic of conversation, which at times is very helpful in understanding something of what it is that is preventing the patient from ‘speaking his mind’. I don’t find that the term interpretation well describes how I speak to patients. I think the phrase ‘talking with the patient’ better captures the feeling of the conversations I have with patients than does the phrase ‘making an interpretation’” (OGDEN, 2016, p. 171). 16 O autor cria formulações técnicas sofisticadas, como a expressão “falar-como-se-estivesse-sonhando” (Talking-as-dreaming, 2007). 17 O enactment foi postulado na década de 1980, sendo que o artigo de Theodore Jacobs é considerado um marco na aparição do conceito: On counter-transference enactments (1986). 18 O primeiro artigo de Ogden foi publicado em 1974, aos 28 anos. Como escritor psicanalítico, ele tem uma carreira de 44 anos e inúmeros artigos publicados. Os livros são compostos dos artigos publicados, com alguns poucos acréscimos e diferenças. 19 Laço de uni ã o , em inglês. 20 Devido à extensão da situação clínica descrita por Ogden, remeto o leitor interessado ao texto. 21 Objeto analítico é um conceito que aparece na obra de Bion (1962, 1963) e na obra de Green (1975). Neste texto, apresento apenas a compreensão de Ogden (1994/1996, p. 71): “[...] mas como um evento que reflete o fato de que um novo sujeito (o terceiro-analítico) estava sendo produzido pelo (entre) Sr. L e mim, o que resultou na criação do envelope como um ‘objeto analítico’ (Bion, 1962, Green, 1975).” E, também: “Essa terceira subjetividade, o terceiro-analítico intersubjetivo (o ‘objeto analítico’ de Green [1975]), é produto de uma dialética única produzida por entre as subjetividades separadas do analista e do analisando dentro do setting analítico” (Ogden, 1994/1996, p. 60). 22 A rêverie também pode ser verbalizada pelo paciente, a rêverie é criada e descoberta pelo terceiro analítico. 23 Bion (1962) considera que há o sonho da noite e o sonho da vigília, que é o pensamento onírico da vigília. 24 A influência de Kurt Lewin (1951) e Merleau-Ponty (1945) foi fundamental para o casal Baranger (CHURCHER, 2010). Em um trabalho posterior, Madeleine Baranger (2005) se refere à influência que teve os trabalhos de Bion sobre o funcionamento dos supostos básicos de grupo, contemporâneo ao artigo seminal de 1961-1962. 25 A terceira onda é estruturada a partir da American Ego Psychology. Remeto o leitor interessado ao texto de S. Montana Katz (2017) para maiores esclarecimentos sobre a terceira onda. 26 Ideia também presente no texto de Tamburrino (2016, p. 41). 27 Conceitos que têm grande utilidade clínica. REFERÊNCIAS BARANGER, M. La teoría del campo. In: LEWKOWICZ, S.; FLECHNER, S. (orgs.). Verdad, realidad y el psicoanalista : contribuciones latinoamericanas al psicoanálisis. Asociación Psicoanalítica Internacional. Londres: IPA, 2005, p. 49-71. BARANGER, M.; BARANGER, W. A situação analítica como um campo dinâmico (1961-1962). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV São Paulo, SP: Escuta, 2010. BION, R. W. Learning from experience (1962). London: Karnac, 1991. 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ESCHER, M. C. Bond of union (1946). In: M. C. Escher: gravuras e desenhos Paisagem, 2006. FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar São Paulo: Escuta, 2009. FIGUEIREDO, L. C.; COELHO JUNIOR, N. E. Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura São Paulo: Blucher, 2018. FREUD, S.; FERENCZI, S. Correspondência Freud e Ferenczi. (1908-1911) Rio de Janeiro: Imago, 1994. JACOBS, T. On couter-transference enactments. In : Enactment: toward a new approach to the therapeutic relationship London: Jason Aronson, 1986. KATZ, S. M. The third model of contemporary psychoanalytic field. In: KATZ, S.; CASSORLA, R.; CIVITARESE, G (eds.). Advances in contemporary psychoanalytic field theory London; New York: Routledge, 2017, p. 139-160. OGDEN, T. H. Esta arte da psicanálise : sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Porto Alegre: Artmed, 2010. OGDEN, T. H. Leituras criativas : ensaios sobre obras analíticas seminais. São Paulo: Escuta, 2014. OGDEN, T. H. 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- As problemáticas na diferenciação entre mães e filhas: um estudo de caso
Marina J. Abud da Silva; Marina F. R. Ribeiro; Daina Bittar Resumo: O presente trabalho visa investigar as dinâmicas psicológicas das relações entre mães e filhas, utilizando como base a perspectiva psicanalítica. Mais especificamente, buscou-se compreender as problemáticas existentes quando há um grau elevado de indiferenciação entre a menina e sua mãe. Para isso, realizou-se uma articulação entre um estudo de caso e conceitos da psicanálise que fundamentam as cenas clínicas apresentadas. O estudo de caso concretizou-se a partir de um atendimento psicológico de uma criança que apresentava importantes sofrimentos oriundos de uma dificuldade de separação da figura materna. Assim, pretende-se fornecer uma melhor compreensão a respeito das vicissitudes de uma relação simbiótica com a mãe e as consequências de tal para a constituição da vida psíquica da mulher. Palavras chave: psicanálise; mãe; filha; mulher; feminilidade Link de acesso ao texto: https://www.revistas.usp.br/estic/article/view/158126/158895
- O momento estético como potencialidade de vida e de futuro
Artigo escrito por Janderson Farias Silvestre Ramos (1) e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (2). Resumo: Este artigo é uma reflexão teórica acerca de algumas potencialidades do momento estético: este se configura, a um só tempo, como refúgio das intempéries do presente, como possibilidade de fortalecimento dos laços do indivíduo com a vida e como abertura para o futuro. A relação do pianista inglês James Rhodes com a música clássica, conforme narrada por ele em sua autobiografia, é apresentada como expressão de tais potencialidades. Em nossa argumentação, descrevemos o momento estético como momento de afrouxamento das fronteiras do self, que atualiza, até certo ponto, a relação primordial do bebê com o objeto materno. Enfatizamos os limites do momento estético, já que este não substitui a necessidade do encontro humano, mas indicamos que ele pode se apresentar como uma espécie de lugar de espera suportável que mantém aberto o horizonte do encontro. Palavras-chave : Momento estético, psicanálise, futuro, música A vida do pianista inglês James Rhodes, conforme narrada na autobiografia a Instrumental: memórias de música, medicação e loucura , parece uma verdadeira odisséia. Como Ulisses, saindo de Tróia após a guerra, tentando voltar à Ítaca, seu lar, Rhodes também parece buscarum tipo de retorno. No entanto, o lar para o qual ele busca retornar nãoé um lugar físico, mas ao seu eu infantil, inteiro, antes de começar aser estuprado1 aos seis anos de idade pelo professor de educação físicada escola. A experiência concreta de horror, o estupro, durou cinco longos e desesperadores anos, mas internamente o horror permaneceuem Rhodes (além de graves consequências físicas, que levaram, entre outras coisas, à necessidade de cirurgias na coluna), como uma guerra constante, como um Ulisses que saiu de Tróia mas que levou a guerra consigo. Rhodes expressa essa sensação de guerra interior de diversos modos ao longo do livro, como: “Estou exausto o tempo inteiro. É uma espécie de Eu tóxico, corrosivo, difuso, penetrante, negativo, tudo deruim” (Rhodes, 2014/2017, p. 8). Ou: “Sou movido por cem mil formas 711 diferentes de terror” (p. 49). Rhodes começa seu livro dizendo que a música “literalmente” salvou sua vida: “Ela [a música] provê companhia quando não se tem ninguém, compreensão quando se está confuso, consolo onde há aflição e uma energia pura e não contaminada onde há um vazio de devastação e fadiga” (p. xii). No entanto, poucas páginas adiante, diz se sentir um “fracassado de um doente mental” (p. xviii). Com isto, ficamos sabendo, já de saída, que seu livro não pretende vender uma salvação utópica. Não se trata de afirmar algum poder milagroso que afugentaria permanentemente todos os demônios. Avançando ainda algumas poucas páginas, encontramos Rhodes pluralizando as causas de sua salvação, indicando que, além da música, as pessoas, os bons encontros, o sustentaram no caminho. Ele afirma, a respeito de seu melhor amigo, seu empresário, sua mãe e sua namorada: “Essas pessoas são minha espinha dorsal (...), elas são as forças de luz, o norte da minha vida, o motivo mais forte possível de eu ter permanecido vivo (isso mesmo, permanecido vivo) durante os tempos sombrios” (p. 3). A ênfase de Rhodes no fato de ter “permanecido vivo”, somado ao uso da palavra “literalmente”, no prelúdio, nos indica a que tipo de salvação Rhodes está se referindo. Inicialmente uma salvação literal, da morte física, visto que o pianista muitas vezes esteve à beira da morte por suicídio. E, depois, pequenas inscrições de vida em suas áreas internas mortas. Rhodes narra a experiência arrebatadora que teve com a música clássica. Com sete anos de idade, encontrou uma fita cassete com uma gravação ao vivo da Chacona , de Sebastian Bach, transcrita para piano por Ferruccio Busoni; escutou em seu gravador Sony, e, de repente, sentiu algo extraordinário. O pianista narra que enquanto era estuprado, “viajava” para se proteger. Sentia-se fora de seu corpo, vagando no teto, ou até mesmo além, atravessando portas, paredes, distante de onde a cena horrenda estava acontecendo. Isto permaneceu, na vida adulta, como um tipo de mecanismo de defesa: “na hora em que um sentimento ou uma situação se tornar insuportável, eu não estou mais lá” (p. 28), diz ele. Ao ouvir pela primeira vez a Chacona de Bach-Busoni, o menino viu-se também em uma espécie de viagem, mas, desta vez (...) não para voar perto do teto e me afastar da dor física do que acontecia comigo; ao contrário, voo para mais dentro de mim. A sensação é como se eu estivesse passando muito frio e, de repente, entrasse num edredon ultraquente e hipnoticamente confortável, tendo embaixo de mim um daqueles colchões de três mil libras, projeto da NASA. Eu nunca, nunca havia experimentado algo assim. (p. 36) O autor prossegue, dizendo: “Eu não sabia que raios estava acontecendo, mas literalmente não conseguia me mexer” (p. 36). A partir de então, a peça de Bach-Busoni, transforma-se, para o pequeno Rhodes, em seu local seguro. Toda vez que se sentia ansioso ele “mergulhava dentro dela como se fosse uma espécie de labirinto musical e cava vagando por ela, perdido e feliz” (p. 37). A poetisa portuguesa Matilde Campilho, em uma entrevista concedida a Eric Nepoceno,2 relata uma experiência (resguardadas as devidas peculiaridades) semelhante à de Rhodes. Ela conta uma situação em que visitando um museu em Londres, foi impactada por uma obra de Jackson Pollock. Conta que seus joelhos fraquejaram ao se ver diante da obra: “Foi uma bofetada de beleza e de espanto”. Podemos dizer que tanto Rhodes quanto Campilho viveram momentos estéticos. Na definição de Berenson, o momento estético é aquele instante fugidio, tão rápido ao ponto de ser atemporal, quando o espectador está irmanado com a obra de arte no momento em que a observa visualmente; ou quando vê qualquer coisa que pessoalmente considere como sendo artística (...). Ele não é mais o seu self corrente, e o quadro de um edifício, estátua, paisagem ou qualquer vivência estética não está mais fora de si mesmo. os dois tornam-se uma única entidade. (Berenson, 1950, s.p, apud Milner, 1952/1987, p. 103) Christopher Bollas (1987/2015) descreve os momentos estéticos como encontros com o espírito do objeto, momentos em que há um reconheci- mento silencioso que foge a qualquer representação; há “uma cesura no tempo, quando o sujeito se sente acolhido em simetria e solidão pelo espírito do objeto” (p. 66). O encontro com esse objeto gera em nós um sentimento de gratidão, como se a nós fosse concedida uma dádiva. Sentimos como se fossemos escolhidos pelo destino para vivenciar esse momento único. Em sua entrevista, Matilde Campilho prossegue, dizendo que mesmo que fosse criança, sentiu que aquela experiência teve a função de salvação, ainda que fosse apenas naqueles cinco ou dez minutos: “Eu acho que a arte faz isso, salva momentos”, ela afirma. O encontro com a arte, vivida como momento estético, pode, de fato, salvar um momento da vida? É isto que aconteceu com Rhodes? De momento a momento a música salvou sua vida inteira? Deixemos, por ora, essas questões em suspenso. Momento estético e objeto transformacional Bollas relaciona o momento estético a seu conceito de objeto transformacional. Ele utiliza a expressão objeto transformacional para descrever o objeto primário a partir de uma perspectiva intersubjetiva, enfatizando a experiência vivida pelo bebê do encontro com o objeto. O objeto primário seria reconhecido pelo bebê não como um objeto de representação, mas como um processo que ele identifica com as múltiplas transformações do self : Este conceito de mãe sendo vivenciada como uma transformação é sustentada em diversos aspectos. Em primeiro lugar, ela assume a função de objeto transformacional porque modifica constantemente o ambiente do bebê para ir ao encontro das necessidades dele. Não há nenhuma ilusão operando na identificação que o bebê faz da mãe com as transformações do ser por meio do conhecimento simbiótico; isto é um fato, pois na realidade ela transforma o mundo dele. (1987/2015, p. 51) Esta descrição de Bollas remetenos a um trecho da música Uma canção e só , entoada pelo cantor e compositor Lenine (2011): Desde de que eu me encanto, sigo a voz do vento,Já faz tanto tempo, canto, intento.A cantoria que me levaria a qualquer lugar,A melodia que transformaria a quem escutar, assim num piscar. Embora Lenine, enquanto músico, aluda aqui à busca de uma canção, referindo-se a algo próprio de seu universo artístico, esta busca não é privativa dos músicos nem mesmo dos artistas de modo geral. Na visão de Bolla, todos nós buscamos experiências transformacionais; nossa melodia, digamos, pois não se trata aqui de experiências artísticas, e sim estéticas . De acordo com Bollas, essas experiências teriam raiz no encontro inter- subjetivo com o objeto primário que nos transmite certa estética. Somos transformados, inicialmente, pela estética materna, pelo seu modo de ser e de se relacionar. Vivenciamos nosso primeiro grande momento estético, portanto, quando estamos dentro do outro, na estética do outro, sendo transformados por esse outro que ainda nem sabemos da existência. Temos notícias desse outro a partir das transformações que ocorrem gradualmente em nosso próprio ser. Podemos dizer, portanto, que os versos de Lenine ecoam algo de um momento da infância primeva. Um momento em que realmente escutamos uma melodia que nos transformou, assim num piscar. Nas palavras de Bollas (1987/2015): “A dor da fome, um momento de vazio, é transformada pelo leite da mãe em uma experiência de plenitude. Esta é uma transformação fundamental: vazio, agonia e raiva se tornam plenitude e contentamento” (p. 68). Procuramos mergulhar no quadro, na música, na paisagem, na voz da pessoa amada ou em seu abraço, tal como um dia estivemos mergulhados na estética materna. Nesta perspectiva, os momentos estéticos são, portanto, momentos transformacionais. Em um livro posterior, falando sobre os sonhos, Bollas (1992/1998) afirma que estar num sonho é “uma contínua reminiscência de estar no mundo materno quando se era de algum modo uma fi gura receptiva dentro de um ambiente compreensivo ” (p. 5; itálicos nosso). E diz ainda: “O sonho parece ser uma memória estrutural do inconsciente do bebê, uma relação objeto de pessoa dentro do processo do inconsciente do outro ” (p. 5; itálicos nosso). O sonho, então, é uma constante atualização da relação primordial com o primeiro objeto transformacional. Ou seja, o que definiria uma vivência transformacional é a existência do par fi gura receptiva/ambiente compreensivo . O par fi gura receptiva/ambiente compreensivo está subjacente aos processos transformacionais, pois esse par que se inicia na relação mãe-bebê e que se transforma na estrutura onírica, se desloca também para os objetos estético-culturais. Assim como o ego cria o sonho, recriando a situação transformacional primária (mãe-bebê), a cultura criou todo um aparato de objetos culturais que são ambientes compreensivos potenciais para os quais o sujeito pode se entregar como figura receptiva. Desse modo, a relação do indivíduo com esses objetos serve como uma espécie de evocação do holding materno. A esse respeito, Bollas (1987/2015) afirma que o momento estético é uma “experiência de holding que promove a memória psicossomática do holding ambiental” (pp. 73-74), configurando-se como um “registro pré-verbal e essencialmente pré-representativo da presença materna” (p. 74). Nesse sentido, embora não seja possível dizer que o momento estético substitui a presença materna, podemos pensar que esses momentos são potencialmente propiciadores de elementos de cuidado presentes originalmente na figura materna. Sharon Chirban (2000) é uma autora que apoia esse ponto de vista. Ela estabelece uma relação entre os momentos de rebaixamento das fronteiras do self , e o relacionamento primitivo mãe-bebê, que seria marcado pela indiferenciação, pela unidade. Desse modo, sendo derivados da união primeva, os momentos estéticos são definidos por Chirban como experiências de unidade. A autora argumenta que essas experiências impulsionam a integração e expansão do self (tal como a experiência de indiferenciação primitiva mãe-bebê). Para compreender essas afirmações, nos reportemos à relação mãe-bebê para depois retornarmos à questão do momento estético. A unidade com a mãe impulsiona a relação com o outro, na medida em que ela apresenta o mundo ao bebê em pequenas doses que ele pode suportar, oferecendo-lhe abrigo do mundo turbulento (mundo interno e externo), deste modo o bebê pode conhecer o mundo a partir do seu próprio gesto, de maneira que o mundo adquire gradativamente sentidos pessoais. Inversamente, a ausência da unidade coloca o bebê diante da amplitude esmagadora do mundo, decorrendo daí as angústias impensáveis das quais Winnicott ( 1963/2005) nos fala. Seguindo essa lógica, podemos dizer que se as experiências de imersão nos objetos, tais como as experiências de Rhodes e Campilho, refletem, em certo nível, a experiência de unidade primitiva com a mãe, elas levam então à individuação e à capacidade de estabelecer relações íntimas sem perder-se no outro, pois quando o indivíduo “se perde” no objeto e encontra nele partes suas, o objeto ca “pessoalizado”. Isto impulsiona o indivíduo na direção do mundo: dos encontros pessoais, dos objetos, em suma, na direção do futuro. O momento estético e os futuros Christopher Bollas afirma que estamos continuamente alternando de estados de self complexo para estados de self simples, e vice-versa. O self simples é o self que está imerso na experiência, que a vive como um personagem, como quando estamos no sonho, isto é, quando somos uma figura receptiva em um ambiente compreensivo. O self complexo é o self que medita, que reflete. A este respeito Bollas (1992/1998) descreve os estágios da experiência do self . Vejamos: Eu uso o objeto. Quando pego um livro, vou a um concerto ou telefono para um amigo, eu seleciono o objeto de minha escolha. Eu sou influído pelo objeto. No momento em que uso o objeto, sua particularidade específica (sua integridade) acaba por me transformar: pode ser a Oitava Sinfonia de Bruckner me sensibilizando, uma novela que contenha associações evocativas ou um amigo me persuadindo. Eu fico perdido em minha experiência do self. A distinção entre o sujeito que usa o objeto para realizar seu desejo e o sujeito que é tocado pela ação do objeto não é mais possível. O sujeito está no interior da terceira área de experiência self. O estado anterior de seu self e a simples integridade do objeto estão ambos “destruídos” na síntese da experiência do efeito mútuo. Eu observo o self como um objeto. Emergindo de sua própria experiência do self, o sujeito reflete sobre onde esteve. Este é o lugar do self complexo. (Bollas, 1992/1998, p. 19; itálicos do autor). O terceiro estágio é o lugar do self simples, o quarto é o do self complexo. O principal objetivo do self complexo é “objetivar da melhor maneira possível onde alguém esteve ou o significado de suas ações” (p. 6). Estamos sempre oscilando entre a posição de observadores objetivos e a condição de figura receptiva dentro de um ambiente compreensivo. Nestes últimos estados retornamos à não integração, somos “ilhas espalhadas de potenciais organizados dirigindo-se para o ser” (p. 6). James Rhodes (2014/2017) narra a experiência de imersão na Chacona de Bach-Busoni e, ao longo do livro, imersões em diversas outras peças musicais que foi conhecendo ao longo do tempo. Em certa ocasião, por exemplo, estando internado em um hospital psiquiátrico, conta que um amigo lhe levou escondido dentro de uma embalagem vazia de shampoo (os visitantes não podiam levar qualquer presente, exceto produtos de higiene), um iPod repleto de música, o que lhe propiciou a seguinte experiência: Eis que me encontro debaixo das cobertas. Fone de ouvido bem apertado. Meia- -noite. Escuro, silêncio total. E eu apertei o play e ouvi uma peça de Bach que ainda não tinha ouvido. E isso me levou a um lugar de tamanha magnificência, entrega, esperança, beleza e espaço infinito, que foi como tocar a face de Deus. Juro que tive algumas vezes uma espécie de epifania. A peça era o Adágio, de Bach-Marcello (...). Glenn Gould estava tocando isso no seu Steinway, e conseguiu há quarenta anos viajar mais trezentos anos até o passado, fazendo-me saber que as coisas não só iriam ficar bem, como também iriam ficar absolutamente sensacionais. A sensação era como se eu tivesse sido plugado a um soquete elétrico. (...). Aquilo me arrasou e liberou algum tipo de delicadeza interior que não via a luz do dia havia trinta anos. (p. 133; itálico no original) Arriscamos dizer que nesse momento Rhodes está no terceiro estágio da experiência do self descrito por Bollas. O lugar do self simples. No entanto, o trajeto de Rhodes na música clássica não é feito apenas de experiências de imersão nas peças, mas também de um trabalho de reflexão sobre essas experiências, sobre o campo comercial ligado à música e sobre os compositores das peças. Desse modo, cada um dos capítulos do livro é iniciado com uma breve biografia de algum compositor. A experiência de Rhodes com a música, portanto, está muito além do impacto advindo dela. Se expande para o compartilhamento de sua experiência (na própria publicação do livro e nos concertos que realiza) e para a identificação com os diversos compositores e suas histórias trágicas. A começar por Bach, órfão aos dez anos, sofrendo abusos na escola, tendo perdido 11 (!) filhos e a esposa. Passando por Beethoven (que emergiu de uma família alcoolista onde se praticava violência doméstica, que morre surdo e infeliz), Ravel (que carregava o trauma de ter servido na Primeira Guerra Mundial e ter sofrido danos cerebrais severos em função de uma colisão de automóveis), Brahms (que, segundo Rhodes, vivia em uma família tão desestruturada que, ainda criança, precisou tocar em bordéis para ganhar dinheiro), Schumann (que tentou se matar lançando-se no rio Reno e, ao não conseguir, internou-se voluntariamente em um hospital, onde morreu dois anos depois), entre outros. A excitação com a qual Rhodes narra essas histórias, nos faz recordar de um trecho de uma carta da poetisa Florbela Espanca, enviada à sua amiga Julia Alves em 1916, na qual ela diz o seguinte: A única coisa que consola os tristes é a tristeza, não te parece? A alegria irrita, e eu hoje tendo no regaço a bíblia dum grande desgraçado, tive mais uma vez a prova disto, porque o livro consolou-me. Chama-se o desgraçado Silva Pinto; chama-se o livro Neste vale de lágrimas, conheces o desgraçado? Conheces o livro? É belo e consolador; lê-lo é evocar saudosamente todas as relíquias de esperança de um passado morto. Como o compreendi e como tão da alma o sinto. (Dal Farra, 2002, p. 213; itálicos no original) Parece que por meio das biografias dos compositores Rhodes também consola-se. Suas tragédias ressoam a sua própria tragédia. Por outro lado, ele admira a potência desses autores, o potencial de criar mesmo em meio à desolação e, por vezes, a partir dela. Em Bach, por exemplo, seu grande ídolo, exalta a capacidade de seguir adiante e viver da maneira mais criativa que consegue, mesmo em meio a toda tristeza, e de ter deixado um legado que Rhodes considera estar além da compreensão da maioria dos humanos. Rhodes transita, portanto, entre momentos estéticos (momentos de self simples) e momentos de reflexão sobre a experiência e sobre si mesmo, utilizando-se das peças e de todo o universo musical que a circunda, para pensar sobre si mesmo e caminhar na direção do futuro. Por meio das biografias de compositores mortos há séculos, Rhodes parece, assim como Florbela, evocar relíquias de esperança de um passado morto. Mas não apenas saudosamente, visto que os compositores com os quais se identifica, e todo o universo da música clássica, parecem lhe dar força para, no presente e no futuro, encontrar e criar novas relíquias (tais como seus concertos e seu livro), forjadas por dor e esperança, que podem ser compartilhadas com outros. Ou seja, os estados de imersão nas peças musicais propiciam não apenas experiências de êxtase, mas incrementam a esperança e o movem para o futuro. Neste ínterim, para pensar esse movimento de Rhodes, recorremos nova- mente a Bollas. Ele afirma que da mesma maneira que possuímos memórias, pode-se dizer que possuímos futuros. Ele nos lembra que na teoria econômica, fala-se em investir no futuro. Semelhantemente investimos psiquicamente no futuro a partir do uso que fazemos dos objetos do presente. Os objetos atuais estão “impregnados de futuros”, nos diz o autor. Igualmente, assim como reprimimos memórias, é possível haver uma repressão dos futuros, já que uma pessoa que passou por experiências muito dolorosas pode ter seus objetos impregnados de futuros dolorosos: “Não há, então, nenhum desejo de evocar futuros , uma vez que a pessoa não deseja evocar memórias dolorosas” (Bollas, 1989/1992, p. 58). No entanto, nas palavras de Bollas, “se tudo decorrer bem, uma criança desenvolverá interesses apaixonados pelos objetos, muitos dos quais projetam a criança no futuro” (p. 49). Assim, uma criança pode se imaginar nadando, outra tocando piano, jogando futebol etc. É por meio desse interesse apaixonado por determinados objetos, que a criança se move para o futuro. Esse é um processo que permanece ao longo de toda a vida, de maneira que todos nós, ao utilizarmos objetos do presente, estamos nos movimentando para o futuro. Ao projetar nos objetos as nossas próprias disposições, constituímos “as primeiras formações do caminho do desejo” (p. 50). Isso é bastante claro na história de James Rhodes. Desde que iniciou o contato com a música clássica, ele sonhou em ser também um concertista tal como os grandes músicos que escutava. Desse modo, as músicas tornaram-se para ele não apenas um lugar de refúgio da atrocidade que sofria, mas uma promessa de dias e encontros melhores, o que se depreende de uma afirmação sua, quando narra a sensação que teve após apresentar o seu primeiro concerto: “(...) eu compreendi que todas aquelas fantasias sobre dar concertos que eu tinha na infância, que me mantiveram vivo e resguardado na minha mente , eram precisas. De fato, é algo que tem esse poder” (Rhodes, 2017, p. 114; itálicos nosso). Durante todo o seu relato autobiográfico James Rhodes afirma algumas vezes que a música o salvou ou que a vida o manteve vivo. No entanto, no epílogo de sua autobiografia, ao falar sobre o momento otimista em que se encontra, ele adverte, de maneira honesta, que não faz ideia se esse momento durará muito tempo: “Já estive em situações em que me sentia sólido, confiável, bom e forte, e tudo foi pro espaço” (p. 245). De fato, acompanhamos muitas dessas situações ao longo do livro. Momentos em que um raio de esperança surgia para logo ser coberto pela neblina (várias internações psiquiátricas, tentativas de suicídio, reincidência na automutilação e no uso abusivo de álcool e drogas etc.). Com base nisso, poderíamos, com certa razão, adentrar pelo caminho do ceticismo e duvidar da solidez da melhora de Rhodes. Poderíamos apostar que em não muito tempo ele iniciaria novamente uma descida a uma espécie de abismo (e é mesmo bem possível que isso tenha acontecido após a escrita do livro, visto que esse foi lançado há mais de seis anos). No entanto, se tomarmos apenas essa via estaríamos, como diz o ditado, “lançando fora água da banheira com o bebê dentro”, pois apesar das constantes recaídas do pianista, parece-nos inegável que muitos momentos de sua vida foram salvos pela música e pelas pessoas de seu entorno. Fato inegável também é que à despeito da violência atroz que sofreu durante anos a fio, hoje James Rhodes é um homem de 46 anos, exímio pianista que realiza concertos, escreve artigos, concede entrevistas etc. Não sabemos de fato onde e como ele estará em um ano ou dois, ou mesmo em um dia ou dois (e quem sabe como cada um de nós estará?), mas sabemos que inúmeras pessoas que sofreram atrocidades semelhantes às que ele sofreu sucumbiram ao suicídio ou estão há décadas enclausuradas em níveis extremos de loucura. Como negar, então, que, de alguma maneira, a música, se não o salvou, ao menos teve um papel importante na sua sustentação até aqui, isto é, um papel fundamental (ao lado dos amigos, da família, dos terapeutas) em mantê-lo vivo? Esta reflexão leva-nos à seguinte pergunta: como podemos compreender ou dimensionar o potencial da música (ou da arte em geral) nesse processo de manutenção da vida? No tópico seguinte recorreremos a alguns autores na tentativa de esboçar uma compreensão. Momento estético e progressão na direção da vida A respeito da experiência primitiva de unidade que se reflete nos posteriores momentos estéticos, Chirban (2000) marca uma diferença entre experiências de unidade progressiva e fantasias de unidade regressiva . No primeiro caso trata-se de uma experiência íntima que impulsiona à abertura, à expansão, à relação objetal. No segundo, estamos diante da fuga da realidade, do enclausuramento. O momento estético se situaria no primeiro campo, o da progressão. Progressivo aqui é entendido como movimento em direção à vida, à integração e diferenciação egoica. Regressivo, por outro lado, é compreendido como afastamento das relações, desligamento, movimento em direção à morte psíquica.3 A fim de embasar essa compreensão a respeito de progressão e regressão, recorremos a algumas afirmações de Abraham, Freud e Winnicott. Vejamos. Já em 1924, Abraham (1924/1970b) referia-se ao estágio mais primitivo de desenvolvimento psicossexual como sendo pré-ambivalente e apontava a tendência regressiva melancólica em direção a esse estágio. Se essa regressão radical for efetuada, o resultado pode ser o suicídio (Santos e Migliavacca, 2020). Muitos anos antes, Abraham (1911/1970a) indicava que a tendência do melancólico ao afastamento seria uma expressão da negação da vida. Ou seja, Abraham equalizava regressão e afastamento da vida. Freud (1923/2013), no contexto da segunda teoria pulsional, argumenta que cada etapa do desenvolvimento psicossexual é marcada por um progresso da ligação da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. Assim, nas fases mais primitivas haveria uma preponderância da pulsão de morte, enquanto ao longo do desenvolvimento a fusão pulsional levaria a um incremento de pulsão de vida. A regressão a estágios mais primitivos do desenvolvimento levaria a uma desfusão pulsional e, portanto, a um incremento da pulsão de morte. Vemos então, em Freud e Abraham, a concepção de progressão como movimento para a vida, e de regressão como movimento para a morte. Também em Winnicott encontramos a ideia de progressão em direção à vida, embora sobre bases bastante diferentes de Freud, uma vez que a teorização do autor inglês não se assenta sobre o conflito pulsional (pulsão de vida x pulsão de morte). Em “O bebê como organização em marcha”, Winnicott (1957/1979) nos fala da presença de uma centelha vital nos bebês, uma tendência inata para a vida. Tendência que precisa ser sustentada pelo ambiente. Winnicott refere-se a mães que perdem o prazer do cuidado por acreditarem-se responsáveis pela vivacidade de seus bebês, certificando-se continuamente que estão vivos, ou fazendo “malabarismos” para animá-los quando os veem rabugentos ou taciturnos. Ou seja, essas mães obstaculizam a marcha/progresso natural das crianças na direção da vida. A essas crianças “nunca é permitido sequer, nos primeiros tempos, que quem simplesmente deitadas e entregues às suas divagações. Perdem assim muito e pode-lhes fugir a sensação de que elas próprias querem viver” (p. 30). Esta citação winnicottiana remete-nos a uma descrição, feita por Sara Nettleton, de uma criança que explora criativamente o mundo, enriquecendo seu mundo interno por meio dessa exploração: Imaginemos que um bebê está deitado em seu berço, sozinho e em estado de calmo devaneio. Sua mãe aparece, sorri, diz olá, e pendura, no suporte do berço, um brinquedo móvel vermelho, o qual se move em um padrão aleatório. A atenção do bebê é imediatamente atraída para isso e vários elementos se juntam: a chegada familiar e reconfortante da mãe, um novo objeto inesperado em seu campo de visão, uma cor vermelha estimulante, o movimento imprevisível e a experiência prazerosa de sua própria resposta física, enquanto seu corpo expressa surpresa e excitação. O ponto importante aqui é que vários aspectos dessa nova experiência se inscrevem no inconsciente e ganham significado, não porque são recalcados, mas porque são recebidos por razões criativas. No inconsciente do bebê cada um dos elementos individuais irá se vincular a um conjunto formado por experiências anteriores. Com cada novo evento, esses conjuntos se expandem e fomentam o desejo de uma excitação prazerosa. O bebê então procurará mais do mesmo em seu ambiente exterior — o reaparecimento da mãe, outras coisas que são vermelhas ou que se movem de certa maneira, e assim por diante. (Nettleton, 2018, p. 36) Estabelecendo um diálogo entre a concepção winnicottiana a respeito da marcha da criança na direção da vida e a descrição de Nettleton sobre a exploração criativa dos objetos, podemos afirmar que a marcha (progressão) natural do bebê é, ao mesmo tempo, movimento para a vida e para os objetos. Movimentos indissociáveis. Este é o significado de progressão que queremos aqui acentuar. Muitas das divagações do bebê a que Winnicott se refere na citação acima podem ser explorações do objeto tal como Nettleton descreve. As divagações podem ser estados de imersão nos objetos em estado de self simples, como se o bebê estivesse continuamente vivenciando momentos estéticos. Essa afirmação é corroborada por Marion Milner (1952/1987), que afirma que o momento estético, momento de suspensão do tempo e das fronteiras sujeito-objeto, é uma experiência corriqueira da infância. Em suas palavras, “a arte fornece um método, durante a vida adulta, para reproduzir estados de mente que fazem parte da experiência diária de uma infância sadia” (p. 103). Podemos afirmar, então, que quando o bebê se entrega ao objeto em estado de self simples ele está progredindo na direção da vida. Por derivação, podemos conjeturar que um movimento semelhante acontece na entrega do indivíduo a um objeto estético na vida posterior, tal como nas experiências de Rhodes. Os momentos estéticos que ele vivenciava o sustentaram, não permitindo que ele sucumbisse, sob pressão da violência que sofria, à regressão absoluta da pulsão de morte e fortaleceram seus laços com a vida. Esta é uma afirmação também corroborada por Chirban (2000), que argumenta que o afrouxamento das fronteiras do self numa experiência de unidade com o outro (em suma, o momento estético, o terceiro estágio da experiência do self , como descreve Bollas), resulta, após a experiência, em um self mais integrado e aprimorado por uma vitalidade aumentada. Como compreender essa afirmação? O que significa fortalecer os laços com a vida? Em seu texto “A localização da experiência cultural”, Winnicott (1971/ 1975) refere que embora os psicanalistas tenham se debruçado sobre a definição de saúde , entendendo-a como ausência de defesas rígidas, pouco se fez no sentido de compreender uma questão mais básica, isto é, o problema de saber o que é vida, independente de saúde ou doença. Para Winnicott, essa resposta não pode ser encontrada na experiência instintual; não é a satisfação instintual que fará o indivíduo sentir que a vida vale a pena ser vivida, de modo que afirma que o analista pode curar o paciente (cura entendida como diminuição das defesas) sem nunca saber o que é que permite que o paciente continue vivendo. A ausência de doença, ele afirma, é saúde, não vida. Boraks (2008) segue o questionamento winnicottiano sobre o que é estar vivo, definindo “estar vivo”, como uma capacidade . Ela destaca que, para Winnicott, o sentir-se vivo se assenta, inicialmente, no corpo. O corpo é o lugar privilegiado a partir do qual podemos alçar voo na direção de todas as outras experiências. É o lugar onde iniciamos a vida “a partir do que nos é conhecido, do que é nosso e do que vivemos primeiramente de modo sensorial” (p. 113). O destino dessa vitalidade inicial, assentada no corpo, depende da presença de um ambiente capaz de acolher o bebê nos estados excitados e sustentá-lo nos momentos tranquilos. É dos cuidados maternos, destaca Boraks, emergindo da vitalidade emocional e corporal (não intrusiva) da mãe, que o corpo do bebê poderá emergir como sede do estar vivo. A capacidade de estar vivo depende, portanto, da presença do outro. É a sustentação do outro que possibilitará a oscilação entre estados excitados e tranquilos sem que o sujeito tema despedaçar-se. Assim, a capacidade de estar vivo, para Winnicott, inclui a capacidade de alternância entre estados de ser. Inclui a capacidade de desintegrar-se e retornar à integração. Inclui mesmo a capacidade de abandonar momentaneamente o impulso fundamental para existir: “Pode-se dizer, assim, que estar vivo é ter e manter a esperança de recuperar a integração quando sentimos que a perdemos” (Boraks, 2008, p. 121). A autora prossegue: Mais especificamente e dependendo do grau de integração alcançado, a capacidade de estar vivo liga-se à possibilidade de manter opostos em jogo, de trans- formar em fonte de inspiração os nossos horrores, nossas confusões e nossos conflitos, além de criar com eles um jogo que permita um novo lugar frente a nós mesmos e ao mundo. (p. 121; itálico nosso) Parece-nos que o que James Rhodes realiza é exatamente transformar em inspiração seus horrores, confusões e conflitos. Seu primeiro disco, por exemplo, carrega um título absolutamente autobiográfico: Razor blades, Little Pills e Big Pianos (Lâminas de barbear, pequenos comprimidos e grandes pianos ). O próprio livro é fruto de uma inspiração desse tipo, além de um programa de TV na Channel 4, James Rhodes: Notes from the inside, no qual o pianista foi a um hospital psiquiátrico conversar com os internos e tocar uma música específica para cada paciente. É forçoso nos questionarmos, no entanto, se Rhodes teve a presença do ambiente compreensivo que Boraks assinala, e se foi então esse ambiente que permitiu a transformação do horror em inspiração. Em sua autobiografia encontramos pouquíssimas referências à sua família nos seus primeiros anos. Ele comenta, entretanto, que antes dos abusos se iniciarem ele era uma criança reservada, mas que já gostava de música, dança e tinha uma imaginação bem fértil, estando “livre de muitas bobagens com as quais os adultos parecem viver sobrecarregados” (Rhodes, 2014/2017, p. 12), o que talvez nos dê alguma indicação de um ambiente razoavelmente acolhedor. Por outro lado, em um boletim de ocorrência policial escrito em 2010, Chere Hunter, a diretora da escola fundamental de Rhodes, diz que ele implorou mais de uma vez para não ser mandado ao ginásio (para as aulas extracurriculares de boxe, nas quais o abuso acontecia). Ela alega ter conversado com a mãe do menino sobre isso, que comentou que havia percebido que o filho tinha se tornado mais arredio em casa, que não estava sendo “ele mesmo”. Apesar disso, Chere pontua que não se recorda de os pais terem cancelado a atividade. De fato, mais adiante, Rhodes conta que os abusos pararam apenas aos 11 anos de idade, quando ele mudou de escola. A própria diretora diz que embora pensasse que algum tipo de castigo físico estivesse sendo aplicado, jamais imaginou que fosse algo de caráter sexual. Não temos intenção de agir como juízes dos pais de Rhodes ou da diretora, o que evidentemente não é o nosso papel. Queremos apenas indicar que onde houve uma falha do ambiente em protegê-lo, a música o acudiu. É claro que a música não pode substituir o cuidado parental, muito menos apagar a violência que Rhodes sofreu, e a prova cabal disso é a tempestade emocional com a qual ele conviveu (e talvez ainda conviva) durante toda a vida. Contudo, como já indicamos algumas páginas acima, a música serviu-lhe de sustentação para que ele não caísse em abismos de morte sem fim. A partir disso retornemos à questão sobre os laços com a vida, expandindo-a agora para além da presença parental, inserindo a experiência cultural (tal como a relação com a música). Winnicott (1971/1975) afirma que o espaço potencial, espaço existente entre as áreas subjetivas e objetivas da experiência, pode ou não tornar-se uma área vital da vida psíquica do indivíduo. Podemos dizer, desse modo, que o espaço potencial é o lugar onde a vida acontece. É o lugar de criação, do brincar, em que o indivíduo passa da pura existência para o viver propriamente. O lugar da exploração criativa dos objetos, a saber, da marcha em direção à vida: (...) para o bebê (se a mãe puder proporcionar as condições corretas), todo e qualquer pormenor de sua vida constitui exemplo do viver criativo. Todo objeto é um objeto “descoberto”. Dada a oportunidade, o bebê começa a viver criativamente e a utilizar objetos reais para neles e com eles ser criativo. Se o bebê não receber essa oportunidade, então não existirá área em que possa brincar, ou ter experiência cultural, disso decorrendo que não existirão vínculos com a herança cultural, nem contribuição para o fundo cultural. (p. 161; itálicos nosso) Algumas conclusões podem ser depreendidas dessa citação de Winnicott.Em primeiro lugar, se tudo corre bem, os objetos encontrados adquirem sentidos pessoais, o que significa dizer que “estar vivo” passa a fazer sentido.O sentido de estar vivo, portanto, é encontrado com os objetos, entre os objetos, na movimentação psíquica entre as imersões nos objetos (em estado 725 de self simples) e o retorno produtivo, isto é, enquanto self complexo (Bollas, 1992/1998). Em segundo lugar, é preciso destacar a relação entre o sentido deestar vivo e a experiência cultural. É utilizando a herança cultural que cadaum pode viver criativamente. No mesmo texto, Winnicott (1971/1975) afirma que “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição” (p. 158). A originalidade no campo cultural advém do uso criativo das obras culturais, que são expressões vivas de transformações produtivas vivenciadas por inúmeras pessoas ao longo do tempo. É assim que a centelha vital (Winnicott, 1957/ 1979) pode se tornar uma grande lareira, fortalecendo os laços do indivíduo com a vida. Basta um pequeno passo associativo para reconhecermos aqui o uso feito por James Rhodes da música e seus compositores. Considerações finais O poeta Charles Bukowski (2007/2015), no poema Um final plausível , diz o seguinte: deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir ou você cansou de ficar bêbado e a erva não funciona mais, e não me refiro a passarpara o haxixe ou cocaína, eu me refiro a um lugar para ir além da morte que está esperando ou do amor que não funcionamais. deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir além de um aparelho de TV ou um filme ou comprar um jornal ou ler um romance. é não ter esse lugar para onde ir que cria as pessoas agora nos hospícios e os suicídio. (p. 175) Para Rhodes, durante muito tempo esse lugar foi a música. Ele encontra nesse objeto estético um lugar seguro, que é, ao mesmo tempo, inquietante e acolhedor. A música se torna um lugar de vida e uma espécie de lugar de espera suportável,4 um lugar que permite a manutenção de um horizonte aberto no qual se vislumbre a possibilidade do encontro, e que possa se contrapor à repressão dos futuros. Pensamos que não é excessivo enfatizar novamente que não pretendemos fazer uma ode a um suposto poder milagroso da música e dos momentos estéticos em geral. Queremos apenas indicar que enquanto lugar de espera e promessa de futuro, os momentos estéticos devem ter sido degraus na escadaria pelo qual Rhodes passou (e ainda passa) para chegar a bons encontros humanos, aos quais ele mesmo se refere com muita gratidão. Notas *1 Universidade de Santo Amaro – UNISA (São Paulo, SP, Brasil). *2 Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Brasil) (1)Usamos aqui diretamente a palavra estupro, em vez de expressões como abuso ou violência sexual, para tentar preservar a força do próprio relato de Rhodes. O pianista não hesita em escancarar a violência atroz que sofreu. Ele diz, por exemplo: “Fui usado, fodido, quebrado, me fizeram de brinquedo e me estupraram desde os seis anos de idade. Repetidas vezes, durante anos e anos”. (Rhodes, 2014/2017, p. 10). (2) Link da entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mexr5UgYW60&t=389s (3) Deixamos de lado, nesta discussão, a regressão enquanto fator terapêutico, dimensão discutida por Winnicott (1954/2000) e Balint (1968/1993). Ideia que também está presente em Freud, como mostra Balint: “(...) aprendemos com Freud que, clinicamente, a regressão pode ter quatro funções: a) como mecanismo de defesa, b) como fator da patogênese, c) como uma potente forma de resistência e d) como fator essencial da terapia analítica” (p. 118). Para o objetivo deste artigo chamamos atenção apenas para regressão enquanto afastamento da vida, em contraposição à progressão. (4) Agradecemos ao nosso colega Péricles Machado Jr. pela sugestão desta metáfora tão pertinente. Referências Abraham, K. (1970a). Notas sobre as investigações e o tratamento psico-analítico da Psicose Maníaco-Depressiva e Estados Afins. In Teoria psicanalítica da libido (pp. 32-50) . Imago. (Trabalho original publicado em 1911). Abraham (1970b). Breve estudo do desenvolvimento da libido. In Teoria psicanalítica da libido (pp.161-173) . Imago. (Trabalho original publicado em 1924). Balint (1993). A falha básica . Artmed. (Trabalho original publicado em 1968). Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano. Imago. (Trabalho original publicado em 1989). Bollas, C. (1998). Sendo um personagem . Revinter. (Trabalho original publicado em 1992). Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado. Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). Boraks (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanal. 42 (1), 112-123. Bukowski, C. (2015). Um final plausível. In As pessoas parecem flores finalmente. L&PM. (Trabalho original publicado em 20072).Chirban, S. (2000). Oneness experience: looking through multiple lenses. Journal of Applied Psychoanalytic Studies , 2 (3), 247-264Dal Farra, M. L. (2002). Florbela, a inconstitucional. In F. Espanca (2002), Afinado desconcerto: contos, cartas e diário . Iluminuras Freud, S. (2013). O eu e o id. In Sigmund Freud Obras completas: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (pp. 13-75). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923). Lenine (2011). Chão [CD Recording]: Casa 9, Universal Music. Milner, M. (1987). O papel da ilusão na formação dos símbolos. In A loucura suprimida do homem são (pp. 89-117). Imago. (Trabalho original publicado em 1952). Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução . Escuta. Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. 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Resumos (The aesthetic moment as a potentiality for life and the future) This paper is a theoretical re ection on some potentialities of the aesthetic moment: this is con gured, at the same time, as a refuge from the storms of the present, as a possibility to strengthen the individual’s ties with life, and as an opening to the future. The English pianist James Rhodes’s relationship with classical music, as narrated by him in his autobiography, is presented as an expression of such poten- tialities. During its argumentation, the text describes the aesthetic moment as a moment of loosening of the boundaries of the self, which updates, to a certain extent, the infant’s primordial relationship with the maternal object. The article emphasizes the limits of the aesthetic moment, as it does not replace the need for human interac- tion, while indicating its potential as a kind of bearable waiting place which keeps the horizon of the encounter open. Key words : Aesthetic moment, psychoanalysis, future, music(Le moment esthétique comme potentialité de vie et de l’avenir) (Le moment esthétique comme potentialité de vie et de l’avenir) Cet article est une ré exion théorique sur certaines potentialités du moment esthétique: celui-ci se con gure, à la fois, comme un refuge contre les tempêtes du présent, comme une possibilité de renforcer les liens de l’individu avec la vie, et comme une ouverture vers l’avenir. La relation du pianiste anglais James Rhodes avec la musique classique, telle qu’il la raconte dans son autobiographie, est présentée comme une expression de ces potentialités. Au cours de l’argumentation, le texte décrit le moment esthétique comme un moment de relâchement des frontières du soi, qui actualise, dans une certaine mesure, la relation primordiale du nour- risson avec l’objet maternel. L’article souligne les limites du moment esthétique, car il ne remplace pas le besoin de la rencontre humaine, tout en indiquant son potentiel comme une sorte de lieu d’attente supportable qui maintient ouvert l’horizon de la rencontre. Mots clés : Moment esthétique, psychanalyse, futur, musique (El momento estético como potencial de vida y futuro) Este artículo es una re exión teórica sobre algunas potencialidades del momento estético: se con gura, al mismo tiempo, como refugio de las tormentas del presente, como posibilidad de fortalecer los lazos del individuo con la vida y como apertura al futuro. La relación del pianista inglés James Rhodes con la música clásica, narrada por él en su autobiografía, se presenta como una expresión de tales potencialidades. En nuestro argumento, describimos el momento estético como un momento de a ojar los límites del yo, que actualiza, hasta cierto punto, la relación primordial del bebé con el objeto materno. Destacamos los límites del momento estético, ya que éste no sustituye a la necesidad del encuentro humano, pero indicamos que puede presentarse como una especie de lugar de espera soportable que mantiene abierto el horizonte del encuentro. Palabras-clave : Momento estético, psicoanálisis, futuro, música
- Sobre reciprocidade e mutualidade no conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden
Marina F. R. Ribeiro (...) Os dois inconscientes ajudar-se-iam mutuamente dessa maneira: até mesmo o "curador21" recebe algo de apaziguador daquele que ele cura, e vice-versa. (Ferenczi, 1932) Considerando que o conhecimento em ciências humanas é uma construção coletiva,22 podemos encontrar os pensamentos psicanalíticos em busca de autores possíveis além das fronteiras narcísicas dos proprietários de um conceito ou de uma teoria, levando em conta uma rede teórico-clinica intrincada e complexa e a cada momento da história da psicanálise. Os pensamentos não tem proprietários, mas surgem justamente pela continua interação entre as pessoas,23 sendo referidos a partir de seus autores. Dessa forma, os conceitos são criados, descobertos e nomeados em diferentes épocas e a posteriori de diversos textos, em complexa intertextualidade. No campo da psicanálise, um autor necessita ter habilidade de captar, conceitualizar e narrar fenômenos clínicos de modo a articulá-los com os paradigmas teóricos existentes, criando, novas tramas conceituais e expandindo a teoria e a técnica psicanalíticas. E, pois, fundamental para a psicanálise contemporânea a capacidade de historicizar e articular os conceitos, atravessando paradigmas24 com rigor e ética. Tenório Lima (2019), ao se referir ao livro A ética da terminologia, de Charles Sanders Peirce (1907), destaca a importância de se considerar e nomear os desenvolvimentos conceituais numa área de criação científica, pois essa atitude é expressão de gratidão e ética cientifica. Além disso, considerar essas transformações conceituais e técnicas favorece uma expansão e oferece consistência a psicanálise denominada contemporânea. Este texto parte de uma experiência de leitura em estado de atenção flutuante, na qual surge uma indagação. Ao reler o artigo de apresentação do conceito de terceiro analítico, ao final do capitulo, Ogden (1996, p. 90) apresenta a seguinte ideia entre parênteses: "Analista e analisando não estão envolvidos num processo democrático de analise mutua". No mesmo parágrafo escreve: "(...) o terceiro analítico é uma construção assimétrica, pois é produzido no contexto do setting analítico, que e for- temente definido pela relação entre os papeis de analista e analisando". A partir dessas duas frases, podemos construir outra: o terceiro analítico é uma construção produzida pela ética do setting analítico, no qual encontramos processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade, que são descritos detalhadamente nos casos clínicos apresentados por Ogden e em vários de seus textos como fenômenos produzidos pelo terceiro analítico. O termo assimetria, assim compreendo, refere-se a responsabilidade ética do analista na condução do processo analítico, sendo que podemos considerar, também, que ha uma simetria entre a mente do analista e a do analisando na sessão, no sentido de que a dupla esta imersa nas mesmas emoções no setting analítico. Em outras palavra5, o funcionamento mental do analista e do analisando na sala de analise estão em continua interação e são campos de observação para o analista, importante instrumento técnico na condução de uma análise. E, além disso, outro aspecto assimétrico á a formação25 do analista, uma espécie de treino e disciplina para entrar em contato com estados regredidos da mente e submergir destes com compreensões do funcionamento psíquico inconsciente do paciente e de si mesmo, e, também, ser capaz de formular uma construção e/ou uma interpretação a partir dessa experiência. Bion (1992) usou uma metáfora que penso ser pertinente ao considerarmos a responsabilidade assimétrica do analista: o analista esta no campo de batalha, assim como o paciente; pode matar ou morrer mas o analista tem a responsabilidade do comando, precisa manter a sua capacidade de pensar. Lembremos que Freud (1913) usou a metáfora do jogo de xadrez para se referir a situação analítica. Bion considera o paciente o nosso melhor colega, a única pessoa que estaria de posse da própria verdade emocional. A partir desse breve comentário de Ogden entre parênteses, citado acima, este texto evolui; tendo a intenção de construir desdobramentos para um pensamento ainda sem espaço no corpo do texto, mas que precisava estar presente, um pensamento expresso na negativa, talvez porque positivá-lo levantaria novas questões. Um pensamento que abriria uma ferida na história da psicanálise, especificamente o experimento da análise mutua e seu relato no Diário clinico (1933). No referido texto, Ogden (1996) estava apresentando pela primeira vez o conceito de terceiro analítico; seria muito delicado qualquer aproximação que pudesse gerar uma compreensão equivocada. Tentando trazer uma nova mirada sobre o que é mutuo ou reciproco entre analista e analisando, é importante considerar o aprisionamento negativo que imediatamente nos invade ao nos depararmos com a expressão "análise mutua". Mutualidade vem de "mutuo", que vem do latim mutuus, que significa reciproco, feito em troca; qualidade ou caráter do que e mutuo, reciprocidade. A expressão "processos assimétricos de reciprocidade entre analista e analisando" e menos saturada e possibilita outras conexões e pensamentos, seguiremos com ela. No livro Autenticidad y reciprocidad. Un dialogo con Ferenczi (2017) encontramos no prólogo de Bolognini o reconhecimento de que muitos conceitos teóricos e clínicos da psicanálise contemporânea advém dos textos de Ferenczi, que parte considerável da teoria e da técnica atual nascem do laboratório ferencziano. Mas como Ogden e Ferenczi se conectam? O que se segue ira apresentar algumas possíveis reverberações, presenças indiretas, sutis, do laboratório ferencziano no pensamento de Ogden, especificamente a questão da reciprocidade no conceito de terceiro analítico. Penso ser relevante dimensionarmos a presença do pensamento ferencziano na psicanálise contemporânea, o enfant terrible da psicanálise, cujas ideias começam a ser compreendidas e retomadas nos últimos anos. Ele era, de fato, um clinico genial, ousado e intuitivo, que teve a coragem de escrever sobre a afetação reciproca e inconsciente entre analista e paciente. Podemos dizer que Ferenczi ficou por décadas na latência da história da psicanálise, mas produzindo efeitos em seus sucessores, sendo os mais evidentes nos textos de Balint e Winnicott. Mas há também os efeitos silenciosos e não explicitados na obra de Melanie Klein. A influência do pensamento de Ferenczi na clinica de Klein e na postulação de seus conceitos é um campo de pesquisa ainda a ser mais bem desenvolvido. Klein foi sua paciente por alguns anos; no entanto, devido aos problemas políticos institucionais da época (a partir de 1930), nao era recomendado citar os textos de Ferenczi; diferentemente de Karl Abraham, seu segundo analista, que pode ser referido livremente. Nesse sentido, há uma construção teórica na psicanálise marcada pelas intensas paixões, amor e ódio no campo das transferências e contratransferências, a partir de diferentes gerações de analistas. Podemos refletir sobre a história da psicanálise a partir dessas forças transferenciais e contratransferências e seus efeitos na construção teórica da psicanálise, considerando que são conjecturas. Ogden (2010) escreve que não só as contribuições anteriores afetam as posteriores, seguindo uma ordem cronológica, mas também a leitura de autores contemporâneos altera a nossa leitura de textos clássicos da psicanálise. Ao revisitarmos Ferenczi, podemos encontrar o que estava lá, mas não estava, ideias que ainda não podiam ser pensadas, mas, ainda assim, se faziam presentes no texto para um leitor no futuro, no tempo do a posteriori, encontrando novos sentidos e ressignificando textos clássicos. Nessa direção, Coelho Junior (2019) escreve um artigo com o significativo titulo: De Ogden a Ferenczi: a constituição de um pensamento clínico contemporâneo/From Ogden to Ferenczi - the constitution of a contemporary clinical thought. O autor inverte a temporalidade a que estamos acostumados, sugerindo que, no a posteriori das construções teóricas psicanalíticas, podemos encontrar conexões e ressignificações, tanto no sentido da progressão temporal como no sentido inverso, dentro das inúmeras intertextualidades (Paz, 1984) possíveis. Faz então uma espécie de revitalização das possíveis conexões com o Iegado da obra de Ferenczi, do qual Ogden parece ter usufruído na construção do seu pensamento, provavelmente por meio dos textos de Balint e Winnicott. Sigo na mesma direção sugerida por Ogden (2010), um leitor no futuro buscando as ressonâncias do pensamento de Melanie Klein, autora estudada por Ogden, no que se refere especificamente ao conceito de identificação projetiva e seus aspectos de mutua afetação entre analista e analisando. O pensamento de Thomas Ogden encontra-se na interseção entre Bion e Winnicott, tomando então esse autor um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea, um autor transmatricial.26 Além das possíveis conexões com Klein, fiquei intrigada se Bion teria tido algum acesso as obras de Ferenczi. Bion fez sua formação psicanalítica justamente no período em que os textos de Ferenczi sofreram um tipo de desmentido pelas instituições psicanalíticas (Kupermann, 2019). Em um primeiro momento, não encontrei nenhuma conexão, a não ser o fato de que Bion fez sua análise de formação com Klein por 8 anos (1945-1953,27) lembrando, novamente, que Klein tinha sido paciente de Ferenczi por alguns anos. Para o leitor que não esta familiarizado com a sua obra, Bion considera o funcionamento tanto da mente do anaIista como do analisando na sessão em complexa interação. O conceito de Bion de transformação implica tanto as transformações do analisando como as do analista na sala de análise, transformações reciprocas, concomitantes e assimétricas. Surpreendentemente, encontrei uma nota introdutória escrita pelo organizador da coletânea de artigos de Ferenczi, John Rickman, no livro Further contributions to the theory and technique of psycho-analysis (1926), na qual ele escreve sobre a importância dos trabalhos de Ferenczi. John Rickman foi o primeiro analista de Bion (1937-193928), posteriormente um colega, também psiquiatra, durante a Segunda Guerra Mundial, e um interlocutor próximo. Trabalhou com Bion com grupos de soldados traumatizados de guerra, momento no qual Bion desenvolveu suas teorias sobre grupos. Rickman foi analisando de Freud (1920), de Ferenczi (1928) e de Klein (1934-1941),29 posteriormente foi aluno, tradutor e organizador da coletânea dos textos de Ferenczi (Rickman, 1957; King, 2003). Como organizador de uma coletânea, que não seguia uma cronologia, foram textos específicos escolhidos por Rickman; ou seja, seleção possível apenas para alguém que conhecia muito bem os trabalhos de Ferenczi, e, dessa forma, provavelmente algo do legado do laboratório ferencziano tenha sido transmitido a Bion por ele e por Melanie Klein conexões a serem mais bem desenvolvidas em outros trabalhos. Apresento a seguir uma analise textual da transformação do conceito de identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico. Considerando que parte da expansão da psicanálise contemporânea provem desses sutis deslizamentos teóricos (Cintra & Ribeiro, 2018). Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico Em entrevista a Luca Di Donna, em 2013 (publicada em 2016), Ogden fala acerca de uma possível linha de desenvolvimento ao longo da sua obra,30 uma questão difícil para um autor que escreveu acerca de tantos temas diferentes. Ogden (2013) relata que aquilo que primeiramente o intrigou foi como duas pessoas pensam; questão que já aparece nos seus artigos iniciais: On projective identification (1979), sendo republicado em 2012 no livro Projective identification: the fate of a concept. No seu primeiro livro, intitulado Projective identification and psychotherapeutic technique, de 1982, desenvolve mais amplamente as ideias que estão condensadas no artigo, trazendo várias vinhetas clinicas. Tendo sido marcante em sua obra a habilidade de narrar os detalhes da experiência emocional vivida na sessão analítica, e de forma imagética, em especial, como duas mentes pensam juntas. Ogden conduz o leitor a intimidade da sala de analise, fazendo com que a leitura seja, em si, uma experiência transformadora.31 Na entrevista de 2013, Ogden diz que raramente usa o termo identificação projetiva, pois cada um tem uma definição e uma compreensão do conceito. Prefere, então, descrever o fenômeno: trata-se da mãe e seu bebê criando uma terceira mente, sendo que a experiência emocional é transformada na vivência do terceiro. Aqui, temos a passagem do conceito de identificação projetiva para o conceito de terceiro; ou seja, como duas pessoas pensam a partir de uma terceira mente que se constitui no encontro. Ogden afirma: [...] o conceito kleiniano de identificação projetiva é um passo monumental na ampliação do entendimento analítico da natureza e das formas da tensão dialética subjacente a criação do sujeito. (Ogden, 1996, p. 7) Ogden inicia o artigo de 1979 destacando que a identificação projetiva é um fenômeno que ocorre tanto na esfera intrapsíquica quanto na esfera das relações interpessoais; ou seja, já na primeira frase do texto, ele deixa claro sua compreensão intersubjetiva do conceito. Trata-se, na perspectiva do autor, de um tipo de defesa, um modo de comunicação, uma forma primitiva de relação de objeto e o caminho para uma mudança psicológica. Nos textos clássicos de Klein, a identificação projetiva é compreendida como defesa e como forma primitiva de relação de objeto; já Bion a concebe como modo de comunicação e um caminho para uma mudança psicológica. Podemos dizer que, a partir dessa expressão, começa a aparecer a marca autoral de Ogden.32 As transformações conceituais estão nesses pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso das expressões, como dito anteriormente. Destaco que esse texto foi escrito há 40 anos (Ogden, 1979), momento no qual a compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando era um tema pouco abordado, talvez de difícil aproximação, como ainda é atualmente. A liberdade de pensamento do autor permite que ele faça seus "atravessamentos de paradigmas" em uma época em que isso pouco acontecia. Movido por suas experiências clínicas com esquizofrênicos, Ogden busca uma interlocução com textos e autores33 nos quais encontra um sentido34 para o que experenciava com esses pacientes. Seus dois primeiros livros dão testemunho dessa trajetória de apropriação e apresentação de autores ingleses poucos conhecidos Estados Unidos: Klein, Winnicott, Bion, Balint, entre outros.35 Retomando, destaco algumas ideias presentes no artigo de 1979, no qual há varias conexões interessantes, apresentadas de forma condensada. Ogden faz articulações da identificação projetiva tanto com conceitos Winnicott quanto com conceitos e Bion. A partir de Winnicott, mesmo que esse autor pouco se refira ao conceito e identificação projetiva, Ogden escreve que se trata de uma forma transicional de relacionamento, constituindo um tipo primitivo de relação objetal, um modo básico de ser com o objeto ainda não separado. Em outras palavras, aloca de forma surpreendente o conceito kleiniano na teoria de Winnicott. Já no que se refere a Bion, Ogden (1979) destaca que o autor compreende o conceito como uma interação interpessoal, aproximando a experiência da identificação projetiva da ideia de um pensamento sem pensador, um pensamento em busca de um pensador: ser um continente e, pois, pensar um pensamento ainda não pensado. Afirma ainda que, na perspectiva bioniana, quando não há uma mente continente para a identificação projetiva, isso provoca um impacto desorganizador, tanto na relação mãe-bebê, como entre analista-paciente. Além de Klein, Winnicott e Bion, no artigo de 1979, Ogden cita Rosenfeld, Balint, Searles, Grotstein, Robert Langs, entre outros, reflexo da sua atitude investigativa e compromissada com os fenômenos clínicos que estava investigando. Ogden aloca o conceito de identificação projetiva fora dos limites dos autores kleinianos, e vai além, ao falar das implicações técnicas do conceito. Ogden (1979) aborda um tema ainda hoje delicado, justamente a mesma questão apresentada no Diário clínico de Ferenczi (1933): o analista é um ser humano, com passado, repressões, conflitos, medos e dificuldades psicológicas próprias.36 (...) Mas os pacientes recusam a falsa doçura do mestre irritado em seu foro intimo (...) E acaba-se finalmente por indagar: não será natural, e também oportuno, ser francamente um ser humano dotado de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que quer dizer: abandonar toda a "técnica" e mostrar-se sem disfarces, tal como se exige do paciente.(1932, p. 132) Para Ogden, quase 60 anos depois, a principal ferramenta do analista e sua habilidade em entender seus próprios sentimentos e, também, o que esta acontecendo entre ele e o paciente; ou seja, não é abandonar a técnica, mas é tomar a sinceridade e a verdade emocional elementos pertinentes a técnica. Para tanto, o analista necessita ter competência de formular de maneira clara e precisa sua compreensão, usando palavras que tenham um efeito terapêutico, afinadas com o tempo do paciente, o timing da interpretação. Futuros textos de Ogden se debruçam sobre a questão da interpretação,37ou, como ele nomeia, do dialogo analítico.38 Prosseguindo, destaco a compreensão de Ogden de que a identificação projetiva é um evento interpessoal, pavimentando o caminho para a construção do conceito de terceiro analítico. Essa maneira, evidentemente intersubjetiva, de entender a identificação projetiva já esta presente em outros autores, principalmente em Bion. O artigo (Ogden, 1994) em que postula o conceito de terceiro analítico foi escrito em comemoração ao septuagésimo-quinto aniversário do The International Journal of Psychoanalysis. Talvez devido a esse marco histórico, Ogden tenha iniciado o texto afirmando que já não e mais possível pensar analista e analisando como sujeitos separados, sendo então o movimento dialético entre as duas subjetividades um fato clinico importante. Questão essa que já intrigava Ferenczi no Diário clínico: É como se duas metades da alma se completassem para formar uma unidade. Os sentimentos do analista entrelaçam-se com as ideias do analisado e as ideias do analista (imagens de representações) com os sentimentos do analisado. Desse modo, as imagens que de outro modo permaneceriam sem vida tomam-se episódios, e as tempestades emocionais, sem conteúdo, enchem-se de um conteúdo representativo. (Ferenczi, 1932, p. 45) Ogden considera que analista-analisando também formam uma unidade que coexiste em tensão dialética. O autor compreende a dialética da seguinte forma: A dialética é um processo no qual elementos opostos se criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo. (Ogden, 1996, p. 12) Imagens de representações, como Ferenczi escreve (citado antes) lembra-nos o conceito de rêverie. Tempestades emocionais sem conteúdo evocam o conceito de elemento-beta; a experiência em estado bruto que por meio das imagens (imagens de representações), as rêveries do analista podem se transformar em algo com conteúdo representativo e dessa forma, podem ser narradas pelo analista. Impressionante Ferenczi descrever esse processo psíquico em 1932, uma intuição clinica genial, mas ainda sem conceitos, ou com conceitos pouco consistentes. O conceito rêverie é originalmente de Bion (1962), passa a ser a maneira como o analista apreende os objetos analíticos, uma criação, uma manifestação do sonho da vigília do terceiro analítico. Ogden (1994) escreve que a experiência intersubjetiva do terceiro é apreendida por meio das rêveries. Se nos inspirarmos na expressão paradoxal de Winnicott, de que a mãe é descoberta e encontrada pelo bebê, podemos pensar que a rêverie é criada e encontrada pelo terceiro analítico. Para apresentar brevemente o conceito de rêverie, retomo algumas ideias expressas em artigo (Ribeiro, 2019) anteriormente escrito: a rêverie, como o próprio sentido da palavra revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a rêverie; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional a comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de rêverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e intimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a rêverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerados pelo encontro de duas mentes: do analista e do analisando (Ogden, 2013). Dizendo de outra maneira, a rêverie é a maneira como é criado e encontrado o objeto analítico durante a sessão, uma criação do terceiro analítico. Em um artigo posterior ao de 1994, Ogden descreve o terceiro analítico da seguinte forma: Embora não possamos prever a natureza da experiência emocional que será gerada no trabalho com uma pessoa que nos consulta, nossa meta como analistas é quase a mesma com todo paciente: a criação de condições nas quais o analisando (com a participação do analista) possa ser mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados e interrompidos. Embora possa parecer que o analista inicialmente é usado pelo paciente para sonhar os sonhos não sonhados do paciente "por procuração", os sonhos do analista (seu devaneios na situação analítica) não são desde o princípio nem exclusivamente seus nem do paciente, e sim os sonhos de um terceiro sujeito inconsciente que é ambos e nenhum deles, paciente e analista. (Ogden, 2010, p. 23) Algo que é de ambos e de nenhum deles, algo que é experienciado por ambos de maneiras diferentes, algo mutuo, processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade entre analista e analisando. Um leitor no futuro A reflexão feita aqui não diz respeito a análise mutua, como relatada por Ferenczi, mas a processos assimétricos de mutualidade e reciprocidade presentes no conceito de terceiro analítico, compreendido como uma transformação do conceito de identificação projetiva. É como se Ogden tivesse colocado o conceito de identificação projetiva em um microscópio potente - a capacidade de observação do analista - e tivesse observado fenômenos sutis e sofisticados envolvendo a dupla analítica e a formação de um terceiro sujeito inconsciente. Para finalizar, faço uma conjectura: será que esses fenômenos sutis do funcionamento do analista e do analisando na sessão, formando uma outra unidade, um terceiro, foram intuídos por Ferenczi no seu Diário clínico? Conjecturo que sim. Retomando a ideia de Ogden (2010) relatada acima, de que um leitor no futuro ira encontrar em um texto clássico o que estava lá, mas não estava, estava como uma potencialidade do pensamento. 0 Diário clínico é um texto no qual encontramos varias intuições de Ferenczi, mas ainda sem conceitos, ou seja, uma intuição cega. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, a intuição precisa se associar a um conceito para que exista um pensamento39 (Bion, 1970). Podemos dizer que foram precisos quase 60 anos, vários textos sobre contratransferência, identificação projetiva, contraidentificação projetiva, inúmeras discussões e desmentidos nas instituições psicanalíticas para que chegássemos ao conceito de terceiro analítico, entre outros.40 O que é experienciado de forma mutua e reciproca entre analista e analisando passa a fazer parte da técnica, e o mais importante, um instrumento de observação analítica potente e transformador para a dupla analista e analisando. Agora temos a intuição de Ferenczi no Diário Clínico (1933) associada ao conceito de terceiro analítico de Ogden (1996); ou seja, um pensamento clínico sofisticado para um leitor no futuro, nós! -------------------- Notas: 20. Algumas ideias presentes neste texto também se encontram no artigo Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um auto, (Ribeiro, 2020). Este texto foi produzido no âmbito do LIPSIC - Laboratório interinstitucional de Pesquisa em Psicanalise Contemporânea (IPUSP e PUCSP). 21. No texto de Ferencz! esta a palavra em inglês: healer. 22. "Lembro a concepção de Gadamer de que o modelo para o método de produção de conhecimento em Ciências Humanas e o dialogo, do qual participam os interlocutores em pé de igualdade, ou seja, sem que qualquer um deles tenha controle do intercâmbio. O conhecimento e construção coletiva (Mandelbaum, 2019, p. 99). 23. ideia de inspiração na obra de Bion, os pensamentos antecedem o pensador. Como escreveu Borges (1923/2007): Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstancia de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator". 24. Atravessamento de paradigmas é uma expressão de Figueiredo, LC. (2009). 25. A formação do analista, que consiste no tripé analise, supervisão e conhecimento teórico. Destaco a importância da analise do analista durante a formação analítica e, também, posteriormente, na condução de suas análises; questão cara a Freud e Ferenczi em vários textos. 26. Figueiredo e Coelho Junior (2018) postulam duas grandes matrizes para a psicanálise: a freudo-kleiniana e a ferencziana. As matrizes são formas de adoecimento, e a cada uma correspondera uma estratégia de cura. Ogden e considerado um autor transmatricial, pois seu trabalho parte de um estudo aprofundado tanto da obra de Winnicott, representante da matriz ferencziana, como da obra de Bion, representante da matriz freudo-kleiniana. 27. Bleandonu, G. (1993, p. 98). 28. Bleandonu, G. (1993, p. 55). 29. Bleandonu, G. (1993, p. 55). 30. A obra de Thomas Ogden abarca artigos publicados de 1974 a 2018. 31. A ideia do terceiro sujeito criado na experiência de ler esta presente no primeiro capitulo do livro Os sujeitos da psicanálise (Ogden, 1996). 32. Uma característica dos textos de Ogden e que ele usa o termo psicológico com certa frequência, especificamente no trecho referido: mudança psicológica. 33. Podemos conjecturar que o fato de predominar na psicanálise americana a psicologia do ego de Hartman fez com que Ogden buscasse os horizontes ingleses da psicanálise, continuando seus estudos na clinica Tavistock, em Londres. 34. Podemos pensar no sentido como uma verdade; verdade compreendida a partir de Bion (a verdade emocional como o alimento primordial da mente); ou seja, também buscamos, nos textos que escolhemos para ler, um sentido para a experiência clinica. 35. Ogden faz essa apropriação e apresentação desses autores para os americanos, principalmente nos meus primeiros livros: Projective identification and psychotherapeutic technique (1982) e The matrix of the mind: object relations and psychoanalytic dialogue (1986). 36. Sendo que a analise e a supervisão do analista o habilitam mas não o isentam da sua humanidade, muito pelo contrário, é a humanidade do analista que torna analista. 37. The transference is a topic of conversation, which at times is very helpful in understanding something of what it is that Is preventing the patient from 'speaking his mind'. I don't find that the term interpretation well describes how I speak to patients. I think the phrase 'talking with the patient better captures the feeling of the conversation I have with patients than does the phrase 'making an interpretation (Ogden, 2016, p/171) 38. O autor cria formulações técnicas sofisticadas, como a expressão "falar como se estivesse sonhando (Talking as dreaming, 2007). 39. Bion se inspirou na ideia kantiana de que a intuição sem conceito é cega, e o conceito sem intuição é vazio. 40. Cabe lembrar também do conceito de campo analítico: postulado pelo casal Baranger (1961- 1962/2010) na década de 1960, e internacionalizado na psicanálise por Antonino Ferro na década de 1990 e nos anos 2000. Trata-se de considerar o encontro das duas subjetividades, analista e analisando, em constante interação, sendo então gerados tanto novos pensamentos como, também, erguidas defesas inconscientes, os denominados baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em complexa interação. Estudiosos da obra de Melanie Klein, os Baranger estavam imersos no conceito de identificação projetiva; o que nos leva a pensar que a compreensão da situação analítica como um campo bi pessoal também seja um desdobramento do extenso conhecimento que esses autores tinham da obra de Klein, sendo difícil dimensionar essas intersecções teóricas. Referencias: BARANGER, M.; BARANGER, W. (1961-1962). A situação analítica como um campo dinâmico. Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanalise XXW. São Paulo: Escuta, 2010. BION, R. W. (1962) Learningfrom experience. London: Karnac, 1991. ___ . (1965) Transformation. London: Karnac, 2014. (The complete works of W.R. Bion). ___ . (1970) Attention and interpretation. London: Karnac, 2014. (The complete works of W.R. Bion). ___ . Conversando com Bion - Quatro Discussões com W. R. Bion - Bion em Nova Iorque e em Siio Paulo (Trad. Sandler, P.) Rio de Janeiro: Imago, 1992. BORGES, L. J. (1923). Primeira poesia. (Trad. 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- Águas paradas, um rio que corre. A linguagem das tormentas
Péricles Pinheiro Machado Jr. Marina Ferreira da Rosa Ribeiro São Paulo Resumo: Neste ensaio autoral, a experiência de descobrir e habitar uma linguagem inusitada e aberta a ressonâncias emocionais na clínica psicanalítica é apresentada em diferentes camadas textuais. O estilo da prosa poética convida à experiência de aproximação com a alteridade, emulando-se no próprio ato da leitura o objeto que se apresenta analiticamente como uma linguagem de reconhecimento. Palavras-chave: linguagem, realidade psíquica, intuição, turbulência emocional Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreiteza da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem nal. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. (João Guimarães Rosa) 1 O artigo é parte integral da tese de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. Junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp) sob orientação de Marina F. R. Ribeiro, realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecemos ao colega Arnaldo Chuster pela leitura atenciosa e comentários. 2 Membro liado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp) e pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Doutorando pela Universidade de São Paulo (usp), mestre em Psicologia Social pela usp & Birkbeck College, University of London. 3 Professora Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic) e membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Diante do Grande sertão: veredas , obra-prima de Guimarães Rosa (1967/2001), fiquei desconcertado. Profundamente desconcertado. Levava comigo as veredas na mochila, caminho à faculdade ou ao trabalho. Pegava aos poucos, parágrafo por parágrafo, linha por linha, palavra por palavra. Perdia-me na rudeza do sertão, que conhecia por cicatriz e desconhecia por falta de confiança. Andava com ele, caminhava pelas ruas de asfalto, calçadas de pedras portuguesas. Inquieto e em dúvida, não realizava o que lia. Parecia-me sempre um dialeto estranho, como provei certa vez no Museu da Rainha Sofia enquanto escutava um grupo de amigos que seguia na mesma parede de uma exposição. Comentavam as obras, falavam alto e eloquentemente. Sons diferentes do que eu estava acostumado. Não conseguia detectar a língua em que se comunicavam. Soava melodiosa, erudita, elegante, com tonalidades térreas, colorações antigas, rosa-chá. Captava aqui um acento, ali um monossílabo, a língua revirada tocando a boca por dentro. Flagrava-me imitando-os em silêncio. Via-me aflito em descompasso, um passo atrás do grupo de amigos. Invejei a tranquilidade, desejei gritar: socorro! Os sons incomodavam e atraíam, a curiosidade perturbava meu passeio pelo museu e me mobilizava a segui-los como um agente secreto, desejoso de decodificação e sossego. A certo ponto, um dos amigos lê em voz alta o pequeno texto acerca de um quadro. Pois retomam a prosa entre si e, então, levo um susto! Agora eu os compreendia! De repente, sem pensar e sem saber o ocorrido, eu os ouvia com clareza. Mergulhei na linguagem, respirava embaixo d’água! Era peculiar e inusitado o idioma, mas eu sabia perfeitamente bem o que estavam dizendo. As frases tornaram-se conversa e experimentei uma certeza de pertencimento. O que era aquilo? Como é que aquelas palavras de duvidosas passaram a precisas? Atrevo-me a lhes perguntar em espanhol aventureiro que idioma era aquele, ao que ouço da mulher a réplica: A estraña linguaxe que falamos chamáse galego . Segui distraído a contemplar a exposição, encantado com o súbito domínio de uma língua que até então eu ignorava. Meus já não tão desconhecidos companheiros de passeio prosseguiam proseando e eu, desconcertado e curioso, procurei me manter acompanhado por esse idioma estrangeiro que não conseguiria reproduzir, mas que se tornara pouco mais familiar. Temia perdê-los. Os sons dispersos e fonemas fragmentados de súbito organizaram-se em minha mente. Fato selecionado, de um fundo obscuro emerge a linguagem como figura que teima a desaparecer sempre que tento capturar. O estranhamento do dialeto, assim como o grande sertão, resultava a meu ver do hábito de buscar o conhecido, o aprendido, o já estruturado naquilo que em verdade é uma situação nova. Na leitura desse grande sertão, perseverei em desalento, captando aqui e ali a familiaridade das palavras que em minha mente mantinham-se em descompasso, em desencaixe, um constante solavanco de carro de boi trilhando por uma estrada de terra coberta de pedregulhos. Parte da viagem fiz nas páginas do livro, parte em uma viagem a Goiás com amigos da faculdade, o livro na bagagem. Numa caminhada à cachoeira das Carioquinhas em São Jorge, Guimarães veio comigo e deitei-me sobre uma pedra, solitário sob o sol quente, lendo sempre atentamente e me perdendo em suas potentes paisagens verbais. Como era possível aquele idioma? Soava natural e persistentemente inusitado. Via-me enganado, perseguindo trilhas que resultavam em rodeios. Desalento, solidão. Teimo. Seguia no empenho, e enfim despreocupei quando menos esperava. Que seja como quiser, não sou eu autor, mas ouvinte leitor, já demais encantado para desistir da vereda. Eis que do alto da pedra, acompanho Riobaldo em cavalgada com seus camaradas após uma noite de acampamento chegar ao alto do chapadão. O horizonte de repente explode! A amplitude ganha vista, o céu se revela inquestionavelmente azul, a relva quente do serrado com suas canelas-de-ema queimadas, caliandras secas, chuveirinhos em flor, pés de arnica aromáticos forram o solo e contornam o caminho dos amigos sobre seus cavalos. Daquele ponto em diante, a leitura do Grande sertão tornou-se fluida, inquietantemente íntima a despeito do constante vacilar das palavras do autor, o esvirar do redemunho, a vibrante ressemantização dos vocábulos que buscam sem cerimônia morada e correspondência, hospedagem e transição no pensamento do leitor. As palavras mutantes tocam e cumprem sua função, não carecem explicação ou entendimento, nem permanência nem dicionário. Elas são e vão embora. Uma amiga poetisa, versada na plasticidade das composições afetivas da língua portuguesa e um tanto afeita à mística, ao me presentear com os imensos sertões pelos quais fui devorado durante meses de leitura, disse-me que a travessia da obra de Guimarães Rosa era uma experiência alquímica. O viajante leitor, para atravessar o sertão, tornava-se relva, cavalo e vento, passeava-se Riobaldo, camuflava-se Diadorim, terrorizava-se Hermógenes, soprava-se o diabo brincalhante por entre as letras na rua, era penetrado pela brisa escura e ríspida, atormentado com o fascínio da rítmica doce, sincopada, incômoda e escapante da cartogra a da alma descuidadamente esculpida pelo autor em sua máquina de escrever. A alquimia consiste em efetuar uma transformação na matéria e no espírito, uma experiência não só emocional, mas fundamentalmente existencial. Em vez de traduzir para o conhecido, o leitor analisando mergulha em sua própria tormenta, convidado a reconhecer em sua vivência aquilo que ressoa misterioso e busca linguagem para habitar. Quando isso pode ser realizado de modo transiente, a travessia ocasiona-se em mundo vivo, cardinal, reconhecimento do solo do destino e do transeunte. Seu reverso é a desolação, linguagem de sobrevivência , os pontos fixos, o domínio da solidão, o adiamento do ser. Águas paradas do entendimento Traduzir o trabalho da psicanálise em linguagem compartilhada é tarefa difícil, como decerto somos testemunhas de próprio punho ou ao lado de analistas autores, cada um a seu modo, companheiros de jornada. Tentar traduzir o ser que eclode a cada sessão de análise é missão virtualmente impossível e que não nos compete, não por falta de ânimo, mas pela densidade inominável e inalcançável da realidade psíquica intuída furtivamente na espessura das palavras e emoções complexas, o que requereria a voz imaginária de infinitas bocas pronunciando versos em diversas línguas simultâneas e infinitos ouvidos para escutar e elaborar sensivelmente cada som e cada cor. Quando desavisada ou ingenuamente ensaiamos exprimir a pura intensidade desses instantes fugidios que nos visitam em análise, produzimos cacofonias incompreensíveis, relatos selvagens vertiginosos, restando-nos uma linguagem deteriorada e fragmentária. Nessa clave, o analista se desconcerta, o analisando titubeia, buscando apanhar no ar as palavras como objetos flutuantes para conter as emoções que transbordam em minúsculos pontos – poeira que se espalha pela sala de análise e ameaça a dupla com a aridez do sertão. Reconhecendo o impossível, buscamos o razoável e parte da elaboração de uma linguagem de reconhecimento em análise consiste em um recíproco alfabetizar-se, cada qual contribuindo com suas letras e sua disposição para produzir formas de comunicação exitosa que possam ser compartilhadas ao longo da travessia. Recorremos por vezes à literatura, à poesia, à música, ao cinema como formulações verbais, sonoras e imagéticas disponíveis para expressar aspectos evanescentes da realidade psíquica, uma necessidade já anunciada desde o texto seminal de Freud (1900/2001) que encontrou no mito de Édipo uma Linguagem de Alcance (Bion, 1970) apropriada para nos aproximar do campo infinito de experiências humanas que jamais se esgotam em sua potência para brotar pensamentos e produzir sentidos. Linguagem alguma é capaz de encerrar a magnitude da natureza ontológica, das vivências mutáveis e significados incessantes que germinam do solo desconhecido, desabrocham, florescem e fenecem sem que tenhamos qualquer ação ou forma de apreensão que se pretenda definitiva. Pegamos as trilhas de Guimarães Rosa a partir do chão conhecido. Não é de se estranhar que o leitor, ao adentrar as veredas do autor, tome o rumo da linguagem comum para fazer a passada do texto. São os hábitos que nos tornam familiar o diálogo cultural, pois aprendemos desde pequenos que para estabelecer relações com o ambiente que não dependam predominantemente da ação do corpo e da solidão da mente é necessário linguagem. Construímos nosso lugar no mundo e tornamos público nosso pensamento com o verbo recebido do seio. É preciso algum domínio da linguagem para haver comunicação com os outros, uma conquista lenta e sempre incerta pois língua se apoia no sistema convencional de símbolos heterônomos (Chuster, 2018) que nos precedem e são passe de entrada, ainda que não correspondam àquilo que no íntimo busca expressão. Algo fica de fora. A vida vivida penetra o espaço analítico distraidamente e lá se expande em busca de outros sentidos. O estranhamento do ser tão grande se dá justamente no encontro das águas, entre as correntes de pensamento e emoção que nos moram e aquelas que descobrimos na voz do outro. Soam coisas conhecidas que no processo de transcrição do idioma autoral para o idioma do leitor falham e escorregam. Oscilamos entre reconhecer e desconfiar, na experiência analítica, daquilo que se revela no contato com o outro na forma de emoções brutas, uma vez que o “‘desconhecido’ na vida real assume tanto formas infinitas como definidas, limitadas apenas pelas necessidades e oportunidades de cada pessoa” (Sandler, 2013, p. 104). Insistimos por vezes penosamente em buscar significados – isso eu conheço, eu sei o que é, quer dizer tal coisa. Mas o sossego é breve, não dá refrigério. Apela ao entendimento por correspondência, pelo valor de face da palavra. Entender é hábito mais insidioso do que podemos notar quando cremos falar a mesma língua. No contato com o plenamente estrangeiro por vezes abrimos mão das tentativas de entendimento por mera desistência, a exemplo do turista que viaja ao Japão e se encontra com um sistema de representações verbais para as quais não tem contrapartida evidente em português. Tentamos não a penetração no idioma desconhecido e sim um modo de tradução preferencialmente conciso e suficientemente confiável que resolva o problema. Mas quando estamos no mesmo sistema linguístico, a ânsia por entendimento alcança sua meta com agilidade instantânea, cavalo a galope, e se impõe sobre o verbo a partir dos signi ficados disponíveis para a palavra pretérita . Um equívoco? Nos solavancos de Grande sertão: veredas , caso o leitor conceda algum espaço para tolerar o não entendimento na manipulação da linguagem forjada e constantemente subvertida por Guimarães Rosa, o corpo per- corre imaginativamente as trilhas de Riobaldo e no lugar de entendimento pode-se ensaiar uma escuta sensível, um passeio a cavalo em que o trote, o chicote, o vento, os mosquitos e resvalos de plantas nas barras das calças podem ser alcançados como um caminho sonoro que se percorre distraídamente e que vai marcando ressonâncias afetivas vividamente intuídas, ainda que não possam ser reproduzidas a um terceiro se para tanto se recorre ao conjunto de letras que sinaliza cada ponto do trajeto no papel e no piso. O entendimento dá lugar a uma linguagem compartilhada que se tece à medida que insurge: vamos gerundivamente nos percebendo em movimento a cada passo com aqueles sons e imagens que nos comovem e nos afligem. Ainda que os motes sejam duvidosos, algo preciso nos alcança. Quem já passeou pelo grande sertão muito provavelmente sabe a que me refiro. Comunicamo-nos em segredo, portanto! Cabe a cada um confiar no texto emocional que se forma e desforma ao longo da travessia, que é compartilhada com uma certeza dolorosa pois verdadeira e não passível de reprodução. O texto emocional é descoberta e abandono, é vivência e esquecimento. É assim que experimento a linguagem no trabalho de análise e é assim que compreendo o que Bion (1970) procura nos chamar a atenção quanto às vicissitudes de memória, desejo e, sobretudo, entendimento. A linguagem quando arrogada como certeza reduz-se a um sistema de convenções de prateleira em que as palavras são tomadas por seu significado pretérito, o sentido do establishment . Isso é parte da vida cotidiana, é o preço que se paga pela dependência que temos do grupo como suporte imprescindível para a sobrevivência. E é uma característica da experiência psicossocial que tenhamos um vocabulário sistematizado em dicionários coletivos para dar nomes aos bois. Acontece que os bois que se revoltam no seio das emoções de cada pessoa não são passíveis de negociação como commodities , embora usualmente tomemos o atalho da simplificação ao aceitarmos o sistema de linguagem não como “a mídia pela qual a experiência é trazida à vida no processo de ser falada ou escrita” (Ogden, 2004, p. 201), mas como um repertório de objetos enganosamente fixos, signos saturados que marcam uma suposta correspondência estável entre o mundo animado e o mundo inanimado, o particular e o público, o singular e o universal. Essa diferença – que pode parecer sutil devido ao fato de que para ser enunciada esbarra justamente nos mesmos costumes de fala e na voracidade do entendimento – encontra-se nos vestígios do que em sua origem foi uma emoção: fragmentos de estranha civilização. No primeiro dos seminários de Nova York, Bion nos conta: Nossa linguagem, excessivamente desnaturada, ficou como se fosse uma moeda cujo valor apagou-se, tantas vezes submetida a atritos; ficou indistinguível de outras. “Estou terrivelmente assustado”, diz o paciente. Que tal? Terrivelmente assustado. Essas palavras são lugar-comum. Entretanto, fico alerta quando ouço a palavra “terrivelmente”; penso que está muito gasta. Está um tempo terrível; isto é terrível; aquilo é terrível. Falar essa palavra não significa mais nada. Quando o paciente se torna consciente da atenção do analista, descobre um modo ainda mais secreto de dizer “terrivelmente assustado” – talvez até um “modo psicanalítico”. (1980/2020, p. 25) Tal desnaturação da palavra equivale, a meu ver, à noção que pode ser comum ao analisando – e, por vezes, também ao analista – de que vida é coisa dada, é história mal contada que bastaria ser recontada e refabulada tanto quanto o necessário para se buscar em algum lugar do conhecido a chave que solucionaria em definitivo o mistério do sofrimento psíquico, a dor persistente que cala por palavras rasuradas e impulsiona via repetição a angústia do ser. O ponto que quero destacar não é propriamente a dinâmica pulsional ou a elaboração das resistências, o que extrapola o propósito deste ensaio, mas algo que se observa em análise como um esforço para engendrar a impressão de que a vida psíquica seria estática e controlável, fenômeno que ocorre sob a égide da alucinose em suas diversas expressões (Bion, 1965). É preciso desconfiar das palavras do senso comum quando o que buscamos no trabalho de análise é o senso singular, o particular de cada existência que por miúdos e breves momentos na amplidão de uma vida desdobra-se sob o testemunho do analista e se oferece para reconhecimento. No senso comum, as águas paradas que persistem pelo entendimento são o modo como os seres humanos nos acostumamos a criar ilusões de nexo que nos permitem aprender e domar as forças da natureza. E é uma necessidade de contenção dos excessos a que somos ininterruptamente submetidos pela realidade não sensorial que extrapola qualquer possibilidade de compreensão em palavras derivadas dos sentidos, da experiência senso- rial (Bion, 1970). Usamos o recurso simbólico dos conceitos para articular pensamentos operativos e estabelecer relações entre fatos que de outro modo permaneceriam desarticulados e incompreensíveis. A linguagem, assim como as convenções e regras sociais, como expressão do esforço empreendido pelo grupo humano para “preservar sua coerência e identidade” apoia-se em símbolos cujo significado “presume-se estar subjacente a uma conjunção constante pública, e não privada a um único indivíduo” (Bion, 1970, p. 63). Constituem o modo imprescindível de expressão social que nos localiza em relação ao outro e nos abre possibilidades de encontro e esclarecimento quando as condições são favoráveis, isto é, quando a linguagem pode evoluir de uma forma de ação para um modo de comunicação em que “a descoberta da verdade dos próprios sentimentos ou pensamentos, ou dos sentimentos e pensamentos do outro” são almejados (Meltzer, 1997). Mas são igualmente passíveis de juízos precipitados e insuficientes para designar aquilo que se passa no ambiente íntimo, na realidade psíquica que é sempre fluxo e ímpeto, corrente e tormenta, ritmo e som. A persistência do entendimento constitui um fator de tolerância à dor psíquica, na medida em que uma pessoa procura nas explicações conhecidas a cura para um sofrimento cujos elementos mais fundamentais lhe são desconhecidos. Sabemos que as formações defensivas do inconsciente existem para deixar de fora ou eliminar da percepção aquilo que não pode ser admitido no plano consciente. Portanto, não é a aquisição de respostas generalizantes ou o remanejamento de explicações racionais que efetuarão modificações significativas na maneira como uma pessoa dá conta de lidar com o desconhecido. Desesperados para encontrar soluções para o sofrimento, alguns analisandos chegam-nos por vezes com data de vencimento pré-anunciada e os vemos buscando incessantemente em símbolos fornecidos pelo consumo palavras e conhecimentos importados para designar aquilo que é da ordem inexorável da existência. Recordo-me de uma pessoa que logo após um insight em análise, decide encerrar o trabalho com receio de que um esclarecimento embrionariamente vislumbrado num instante pudesse, no momento seguinte, tornar-se questionamento e desassossegar o investimento feito ao longo de alguns meses. Despede-se, agradece contente, embrulha o pensamento em um jornal e segue seu rumo, deixando na sala um desconcerto solitário. É uma marca do nosso tempo a pressa do entendimento, excitação e agilidade que paradoxalmente nos dá notícias de um estado mental de paralisia e passividade, formas de desamparo, afetos desgarrados em busca de linguagem para habitar: São remanescentes, salvos de um naufrágio: o naufrágio do pensamento. Alguém quer nos contar algo, mas com frequência aquilo com que esse alguém tem de lidar não passa de remanescentes de um discurso articulado. A primeira coisa com a qual nos defrontamos são remanescentes de uma cultura ou civilização. Tentamos alcançar o máximo, segundo aquilo que conhecemos, em consequência, vigilância e lógica; tentamos nos apossar de todas as nossas aptidões, de toda nossa experiência, para fazer um trabalho de psicanálise. Mas será esse o estado de mente que tem o poder de contatar um estado de mente diverso? (Bion, 1980/2020, p. 35) A linguagem de sobrevivência (Machado Jr. & Ribeiro, 2019), despojada da potência de alcançar sentidos íntimos, equivale mimeticamente a uma transação burocrática que persevera pela manutenção de um entendimento meramente explicativo, um acordo com seus próprios cavalheiros para solucionar problemas e adiar tanto quanto possível o reconhecimento das paixões. Como então podemos no cotidiano artesanal, poético da relação analítica recuperar os sentidos naufragados, desertificados na poeira do grande sertão, e torná-los articuláveis e reconhecíveis como expressão mais verdadeira da experiência de ser? O que será que possibilita superar a linguagem de sobrevivência e adentrar um campo vicejante de uma linguagem de reconhecimento em que a potência de cada pessoa encontra possibilidades de realização e expressão? A disposição para as tormentas Vou pegar novamente emprestadas coisas minhas, mas depois devolvo. Iniciava análise com Pérsio Nogueira, pouco tempo se passava e seguia subindo a ladeira da Alameda Casa Branca até chegar a sua casa, lugar de trabalho. Tocar a campainha já era um estranhamento, pois lembrava ter sido informado para entrar sem bater. Era de verdade? Aguardava na cadeira do hall , depois entrava na sala que em minha memória era revestida de papel-de-parede cor-de-rosa. Que choque aquele pano de fundo para uma figura que eu supunha sisuda e atrevida. Sentado na poltrona ou deitado no divã à sua frente, eu falava copiosamente com voz de autoridade, pois conhecia de quem me tratava em se tratando de coisas minhas. Enquanto ele ouvia pacientemente, eu o pressentia com braveza e exigência. Apaziguava minha ansiedade com um tom de voz plácido que eu ouvia sair de minha garganta como um registro de fita cassete, ensaiado por repetições ao longo dos anos e desmagnetizado por persistência solitária num toca-fitas velho. Estava lá eu, tranquilo. Assustadoramente tranquilo. Mas benzadeus, nada que esse homem diz faz sentido! Falo uma coisa, ele responde outra? Pergunto de abobrinha, ele responde de chicória. Ouvia o Pérsio dirigindo-se vivamente ao nosso encontro enquanto eu desbotava com desencontro. Hoje sei, mas não na ocasião. Acreditei que se tratava de besteira minha, pois conhecia bem cada palavra pronunciada e ao buscar reorganizá-las em meus pensamentos cava tonto e surdo. Descia a ladeira de volta pra casa desolado e triste, com um sentimento de falta grave que eu tentava articular racionalmente com os recursos de que dispunha. Certa vez, cheguei decidido a desistir, sentei-me no divã e tirei os sapatos. Ele aponta a cena e eu desaponto com explicação: faço por cuidado para não sujar o tecido. Aliás, digo ao ilustre senhor em confissão de reverência que eu sentia que precisava aprender uma língua nova para conseguir me comunicar com ele. Ao que ouço com toque de bom humor impiedoso que porquanto tentasse resolver problemas pelos outros, arrumaria tantos mais para mim mesmo. Desconcerto? Nesse instante hesitava apavorado diante do que num primeiro vislumbre se traduziu como constrangimento . Como era possível que de um pequeno gesto se abrisse tamanho penhasco? Um momento de indecisão, uma fronteira avistada em que o cavalo refreia e tomba. Desconfiei, tomado de medo. Prosseguia ou partia? Sou arrebatado de uma tensão densa e vívida. De um lado, a tristeza solitária, linguagem de sobrevivência que servia para amparar quedas e remendar joelhos ralados, remédio conhecido e vencido que na falta de coisa melhor poderia seguir entoando explicações, deixando a dor pra depois. De outro, uma fresta pela qual se insinua uma voz que embora titubeante, temerosa está bem ao alcance. O que num ponto fez-se precipitar como constrangimento, daquele ângulo inusitado se apresentava sem cerimônia quando notei em mim mesmo: era reconhecimento . Decidi segurar a mão esticada em minha direção, retomei o cavalo e prosseguimos a travessia conversando diariamente e aproveitando cada momento do sertão como uma descoberta intraduzível e nítida, até que o tempo irrompeu com a extrema curva do caminho extremo. A linguagem de reconhecimento emerge nos momentos de tormenta, habita-nos nas fronteiras entre o conhecido e o a descobrir, apenas para depois submergir e aguardar outras águas e companheiros de viagem. Um rio que corre Realizamos aproximações com o objeto psicanalítico (Bion, 1962) a partir daquilo que nos ressoa significativo e verdadeiro, o testemunho e a contribuição de como cada analista apreende, elabora e concebe o exercício da função analítica na intimidade da clínica. Como atividade autobiográfica (Scappaticci, 2018), a análise é uma situação de abertura ao infinito de vivências que dependem de condições suficientes para serem reconhecidas, transformadas e aproveitadas para crescimento. A experiência em sua qualidade criativa e tempestiva convoca a comunicação no horizonte da esperança de ser alcançada por um semelhante aberto a recebê-la e compreendê-la dentro do possível. Penso que tais condições podem ser concebidas como expressões radicais da alteridade marcadas por cesuras eu/outro, finito/infinito, pré-verbal/pós-verbal, apenas para nomear algumas (Bion, 1977/2014b). O potencial criativo do par analítico (e da comunidade psicanalítica) demanda um contínuo trabalho de comunhão e transcendência nas fronteiras da alteridade, e de sensibilidade à natureza desconhecida da realidade que encontra em cada pessoa possibilidades únicas de captação e expressão. Nas fronteiras, uma área de turbulências se forma como no encontro de rios cujas origens e extensões não estão ao alcance da vista, mas nos mobilizam pela densidade da confluência. Da aridez do grande sertão somos inunda- dos pelo vigor emocional do desconhecido evocado pela presença do outro. Podemos nos tornar cientes e atentos a esse fenômeno, ou fazer um esforço para evitar a ciência desse contato. Aproveitar o momento de perturbação é uma escolha da dupla, assim como sua evasão. Em ressonância com a intuição de Freud e Klein, bem como o pensamento de Kant, Platão e Berkeley, Bion aponta que “uma cortina de ilusões nos separa da realidade”, uma cortina necessária e sem a qual estaríamos condenados à loucura da pura intensidade não sensorial que extrapola a capacidade humana de contenção e conhecimento, “salvo por conjectura” (1965, p. 147). Uma vez que a linguagem comum se organiza a partir de convenções simbólicas públicas – os símbolos heterônomos –, a vivência privada nos momentos de tormenta torna-se incomunicável ou demasiadamente es- treita em suas possibilidades expressivas, isto é, de se tornar uma comunicação que possa ser atinada pelo outro, preservando os elementos fundamentais do que se pretende expressar. Algo importante é intuído e represado, mas se esboça em palavras rasuradas, uma linguagem de sobrevivência ao modo de formulações vazias de sentido e plenas de vestígios de desamparo. O analisando pode suspeitar que é o carreador de um defeito que o impede de se desenvolver, tornando-se alheio àquilo que desconfia ser incapaz de acolher e modificar em si próprio. Diante da fragilidade para abrigar aquilo que é da ordem do inédito desconhecido, objetivado na presença do analista, o desentendimento e a desolação operam como forma de adiar o reconhecimento tanto do sofrimento emocional, como do potencial criativo do encontro analítico. “A desesperança é a perda da fala”, conta-nos Jean-Claude Rolland. E “a esperança nasce e renasce com a liberdade à enunciação. Lampejo do dizer, graças ao qual a coisa enfim se revela – ‘palha no celeiro, pedregulho no buraco’. Suspensão da insignificância” (2017, p. 16). Ao examinar a área das experiências não sensoriais como uma das interfaces fundamentais do ser humano aberto ao contínuo processo de constituição psíquica, Gilberto Safra discute as imagens da potência desmesurada como figurações da dimensão mítica do divino “resultantes de um profundo anseio de ser, que pode se manifestar como desejo do outro”. O analista é tomado como um referencial importante, porque necessário, da possibilidade de realização do potencial criativo, uma esperança de ser temperada pelo sentimento infantil e terrorífico de tudo ser : A perspectiva frequentemente observada é aquela na qual o outro representa uma possibilidade de ser que a pessoa crê ainda não ter alcançado. Há no desejo do outro não só a repetição de experiências do passado, mas também um anseio de futuro de si mesmo. (2013, p. 98) À medida que o vértice analítico se instala, o diálogo com o analista proporciona contraste a fragmentos da experiência do analisando até então desconhecidos ou impedidos. A presença e a sensibilidade de observação do analista, seu estado de atenção aberta à realidade que não se revela sensorialmente, mas que depende de um espaço negativo para penetrar, ocupar, ganhar dimensões reconhecíveis (Bion, 1970) coloca em marcha uma experiência de si que emerge na linguagem como expressão criativa da dupla. Mas o negativo como espaço aberto para receber aquilo que emana do encontro com o outro é potencialmente sentido como um lugar perigoso, um corpo estranho com objetos incógnitos e ansiados. O espaço interno receptivo que emerge na travessia do grande sertão pode despertar o sentimento de perigo iminente, um desvelamento convidativo que se expressa na linguagem em formulações oblíquas, palavras insaturadas que se dispõem ao intrigante. Pérsio Nogueira nos recorda ser característico do humano a busca de orientação no caos, uma angústia fundamental de interpretar o inusual, o inesperado a partir daquilo que se apropria como formas familiares: Parece ser uma característica essencial do ser humano ou, mais restritivamente, da mente humana, reagir com forte angústia à desordem no plano existencial e ao imaginário e sentido de infinito que a acompanham. Um sentido de ordem e de finitude (limite) parece ser fundamental e urgente ao aplacamento dessa angústia – espaços abertos parecem não ser do agrado da “natureza” do mundo mental, que continuamente parece estar em busca de se encarcerar no âmbito e limite de suas próprias respostas. (1993, p. 18) Espaços abertos preenchidos apressadamente constituem formas de obturação do pensamento verbal e modos de evitar contato com a realidade não sensorial e o senso de infinito que caracterizam a intuição do incógnito. Nas tormentas, a dupla se torna habitante de uma fronteira muito fecunda entre o conhecido e o desconhecido para o qual não temos referenciais pretéritos. É a percepção da fresta que conduz à interioridade do corpo, à concepção de um espaço para ser habitado e que se manifesta verbalmente como uma linguagem porosa e potencialmente poética. Inicialmente essa fresta é experimentada como um rasgo, encontrado distraidamente em um dia qualquer de análise. Não há solenidade que a antecipe ou possibilite sua previsão: somos pegos de surpresa, instigados pela estranha familiaridade dos sons e imagens evocados no diálogo analítico. Nesse ponto, a intuição nos põe em contato direto com vislumbres da realidade de uma forma extremamente inquietante, seja pelo temor de que o inusitado possa ameaçar os limites da razão, seja pelo aspecto numinoso e fascinante despertado por essas experiências. Há, como observa Bion (1970), um aumento da tensão quando o par analítico se aproxima do pensamento novo e desconhecido – o momento em que as fronteiras se tornam assustadoramente fluidas e a experiência de alteridade é vivida como uma vigorosa e misteriosa abertura. Ao emergir sem ser convocado, o pensamento novo carreia uma clareza inesquecível e fugaz que em seguida esvanece. Não podemos recapturar o que nossa intuição apreende nesses breves desvelamentos, mas temos a certeza de uma presença verdadeira. Havendo a nação, lampejos dessa experiência podem às vezes ser comunicados em poéticas e breves formulações verbais oblíquas, como ressemantizações de palavras inusitadas e formas estéticas singulares ao par analítico concebidas nos passos da vereda e colhidas no instante do redemunho – “o lugar em que o ser surge numa língua” (Rolland, 2017, p. 87). Na leitura do Grande sertão (Rosa, 1967/2001), a mudança de um estado de mente dominado pelo anseio desesperador de se possuir uma linguagem – o terrível Hermógenes que tudo devora – para o tornar-se a linguagem – um quem sabe Diadorim – sobrevém figurativamente na passagem do alto do chapadão, quando o horizonte se descortina e a leitura adquire um elemento de profundidade e amplidão inconfundíveis. Respiramos embaixo d’água, uma linguagem para habitar e pela qual sermos habitados. Na experiência analítica, o pensamento novo que revela um aspecto importante conquanto desprezado ou ignorado pelo analisando (ou grupo de referência) insurge desses pequenos e ordinários fragmentos da vida cotidiana que marcam as passadas do nosso grande sertão. São os pés de arnica adormecidos pelo sol, os galhos secos que balançam os movimentos da carroça, “a mobília do sonho” (Bion, 1957/1967, p. 51) que o analisando arrasta consigo para dentro da sala de análise como marcas obliteradas de sua história, que se reapresentam na sessão como supostas bobagens facilmente negligenciáveis pela dupla. O fato em si observado e apontado pelo analista – a exemplo do gesto de tirar os sapatos para se deitar ao divã – não tem qualquer significado específico do ponto de vista etiológico, mas serve de brecha para que o pensamento novo penetre a linguagem habitada pela dupla. O analisando pode eventualmente reconhecer naquele instante a pujante realidade da comunhão com um outro capaz de intuir o que lhe diz respeito e não lhe é conhecido, mas para o qual ambos temos evidências (Bion, 1976/2014a). O titubear do analista, caso não esteja familiarizado com a violenta corrente de emoções que inunda o espaço formado pela dupla, pode desaguar precipitadamente em forma de reasseguramento, a exemplo de falas que visam a tranquilizar o analisando ou talvez o próprio analista. Nesse aspecto, a volta abrupta ao conhecido, o apelo à memória e o desejo de entendimento matizado pela linguagem de sobrevivência turvam a experiência e, aí sim, um constrangimento pode se afirmar e ganhar consistência, uma vez que o retorno ao pretérito evoca o sentimento de desamparo justamente onde a esperança do novo começa a brotar. A tensão requer ser sustentada corajosamente para que a dupla efetue a travessia. Onde no cotidiano comum se experimenta uma urgência de ordem ainda que artificiosa, conforme destaca Pérsio Nogueira (1993), abre-se a possibilidade de uma vivência emocional de descobrimento do inusitado e surpreendentemente franco. Em circunstâncias favoráveis, a experiência de contato humano pode ser vivida como um momento estético singular, uma linguagem de reconhecimento que se organiza por breves lampejos de palavras e depois se despede. Muitas emoções podem passar pelos interstícios de formulações concebidas pela dupla, pois servem ao reconhecimento do solo emocional e não se fixam a coisa alguma. Tornam-se objetos insaturados que como cantis do sertanejo colhem água, arrefecem a sede e esvaziam. Não há última palavra. Restam os versos inquietantes de Vanessa Corrêa (2021), companheira psicanalista e poetisa audaciosa que habita águas profundas e sonha ter pernas para caminhar pelos sertões da cidade: era uma vez o que era ninguém sabe no coração da floresta uma fogueira quem viu de longe foi embora com diagnósticos apressados quem chegou perto morreu queimado Aguas tranquilas, un río que corre: el lenguaje de las tormentas Resumen: En este ensayo de autor, la experiencia de descubrir y habitar un lenguaje inusual abierto a resonancias emocionales en la práctica clínica psicoanalítica se presenta en diferentes capas textuales. El estilo de la prosa poética invita a la experiencia de aproximación con la alteridad, emulando en el acto mismo de leer el objeto que se presenta analíticamente como un lenguaje de reconocimiento. Palabras clave: lenguaje, realidad psíquica, intuición, turbulencia emocional Still waters, a river that runs: the language of the tempests Abstract: In this authorial essay, the experience of discovering and inhabiting an unusual language open to emotional resonances in the psychoanalytic clinical practice is presented in different textual layers. The poetic prose style invites the experience of approximation with otherness, emulating in the very act of reading the object that presents itself analytically as a language of recognition. Keywords: language, psychic reality, intuition, emotional turbulence Des eaux calmes, une rivière qui coule: le langage des tempêtes Résumé: Dans cet essai d’auteur, l’expérience de découvrir et d’habiter un langage inhabituel ouvert aux résonances émotionnelles dans la clinique psychanalytique est présentée dans différentes couches textuelles. Le style de la prose poétique invite à l’expérience du rapprochement avec l’altérité, émulant dans l’acte même de lire l’objet qui se présente analytiquement comme un langage de reconnaissance. Mots-clés: langage, réalité psychique, intuition, turbulence émotionnelle Referências Bion, W. R. (1962). Learning from experience . Karnac. Bion, W. R. (1965). Transformations . Karnac. Bion, W. R. (1967). Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 43-64). Karnac. (Trabalho original publicado em 1957) Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation . Karnac.Bion, W. R. (2014a). Evidence. In W. R. Bion, The complete works of W. R. Bion (Vol. 9, pp. 128-135). Karnac. (Trabalho original publicado em 1976) Bion, W. R. (2014b). Caesura. In W. R. Bion, The complete works of W. R. Bion (Vol. 9, pp. 33-49). Karnac. (Trabalho original publicado em 1977) Bion, W. R. (2020). Bion em Nova York e São Paulo (P. C. Sandler, Trad.). Blucher. (Trabalho original publicado em 1980) Chuster, A. (2018). Simetria e objeto psicanalítico . Desa ando paradigmas com W. R. Bion . Trio Studio. Corrêa, V. (2021). As histórias infantis como elas são de verdade. In V. Corrêa, na_casa_da_poesia . https://bit.ly/3ARMapH Freud, S. (2001). A interpretação dos sonhos (W. I. Oliveira, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1900) Machado Jr., P. P. & Ribeiro, M. F. R. (2019). A linguagem perdida das gruas. Revista Brasileira de Psicanálise , 53 (3), 69-74. Meltzer, D. (1997). Concerning signs and symbols. British Journal of Psychotherapy , 14 (2), 175-181. Nogueira, P. O. (1993). Uma trajetória analítica . Dimensão.Ogden, T. H. (2004). Reverie and interpretation. Sensing something human . Rowman & Little eld. Rolland, J.-C. (2017). Antes de ser aquele que fala (P. S. Souza Jr., Trad.). Blucher. Rosa, J. G. (2001). Grande sertão: veredas (19.a ed.). Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1967) Safra, G. (2013). 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- A poética do luto: reflexão a partir do conceito de objeto transformacional
Amanda Christina Victoria de Andrade Melani - Universidade de São Paulo Marina Ferreira da Rosa Ribeiro - Universidade de São Paulo Janderson Farias Silvestre dos Santos - Universidade de São Paulo RESUMO Partindo do conceito de objeto transformacional formulado por Christopher Bollas, discutimos o potencial transformador dos encontros estéticos. Apresentamos algumas reflexões sobre uma experiência clínica vivida com uma paciente atravessando um luto, e destacamos a marcante habilidade dela em se utilizar de músicas, imagens e metáforas para dizer de sua experiência emocional. A partir desta experiência clínica temos por objetivo, neste artigo, refletir a respeito da potência transformacional dos objetos estéticos no contexto analítico, que parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente. Por fim, fazemos alguns apontamentos sobre a importância do encontro analítico, na relação de transferência-contratransferência, para o potencial de transformação dos encontros estéticos vividos nas sessões de análise. Palavras-chave: luto; clínica psicanalítica; arte. THE POETICS OF MOURNING: REFLECTION FROM THE CONCEPT OF TRANSFORMATIONAL OBJECT ABSTRACT Starting from the concept of transformational object formulated by Christopher Bollas, we discuss the transformative potential of aesthetic encounters. We present some reflections on a clinical experience lived with a patient going through mourning, and highlight her remarkable ability to use music, images and metaphors to tell about her emotional experience. Based on this clinical experience, we aim, in this article, to reflect on the transformational power of aesthetic objects in the analytical context, which seem to have an important role in the process of elaborating the mourning of this patient. Finally, we make some notes on the importance of the analytical encounter, in the transference-countertransference relationship, for the potential for transformation of the aesthetic encounters experienced in the analysis sessions. Keywords: mourning; psychoanalytic clinic; art. LA POÉTICA DEL DUELO: REFLEXIÓN DESDE EL CONCEPTO DE OBJETO TRANSFORMACIONAL RESUMEN Partiendo del concepto de objeto transformador formulado por Christopher Bollas, discutimos el potencial transformador de los encuentros estéticos. Presentamos algunas reflexiones sobre una experiencia clínica vivida con una paciente en duelo, y destacamos su notable capacidad para usar música, imágenes y metáforas para contar su experiencia emocional. A partir de esta experiencia clínica pretendemos, en este artículo, reflexionar sobre el poder transformador de los objetos estéticos en el contexto analítico, que parecen tener un papel importante en el proceso de duelo de esta paciente. Finalmente, tomamos algunas notas sobre la importancia del encuentro analítico, en la relación transferencia-contratransferencia, para el potencial de transformación de los encuentros estéticos experimentados en las sesiones de análisis. Palabras clave: duelo; clínica psicoanalítica; arte. INTRODUÇÃO Há uma dimensão estética presente em todo encontro analítico, na medida em que o trabalho clínico se dá num campo de afetações mútuas que ocorrem primordialmente pela via sensível, antes de (e se) alcançarem o intelecto. Grande parte da potência transformacional do encontro clínico reside precisamente na disponibilidade do analista para ser afetado e, muitas vezes, perturbado pelo analisando. No entanto, no tratamento de alguns pacientes que apresentam uma relação particular com algum objeto artístico em especial, a dimensão estética do trabalho psicanalítico torna-se ainda mais evidente, já que, nestes casos, o encontro estético do paciente com o objeto transforma-se numa pauta compartilhada com o analista. É o caso da paciente que apresentamos neste artigo, que atravessava uma experiência de luto, e na qual o uso de músicas e imagens metafóricas é particularmente profícuo, abrindo ricas possibilidades de transformação. Antes de adentrarmos na questão da elaboração do luto, apresentaremos em breves linhas o conceito de objeto transformacional, cunhado pelo psicanalista Christopher Bollas (1987/2015), conceito que servirá de base para as reflexões posteriores. Em seguida, refletiremos sobre o uso e a importância das músicas e metáforas no processo elaborativo da paciente. Ao longo deste artigo, enfatizamos a relação da paciente com a música, a fim de mostrar a importância dos recursos artísticos na elaboração de suas experiências emocionais. Evidentemente, tratam-se de recortes do processo analítico e, ao escolher trilhar este caminho, inevitavelmente deixamos de enfatizar outros tantos aspectos do processo de atravessamento da dolorosa experiência de luto. Um destes aspectos é a própria relação de transferência-contratransferência. Assim, ao fim, faremos alguns breves assinalamentos sobre este ponto. Visto que este artigo objetiva refletir teoricamente a respeito de um fenômeno que emergiu espontaneamente na prática clínica psicanalítica, ele se baseia no método psicanalítico, que é definido por Freud (1923/1996) como um método de tratamento e investigação, consistindo numa atitude de atenção uniformemente flutuante (por parte do analista) e associação livre (por parte do paciente). Este tipo de pesquisa implica, por parte do analista-pesquisador, “uma atitude passiva de se deixar impregnar pelo outro, tanto corporal quanto espiritualmente, para depois destilar, das marcas desse encontro os ingredientes necessários à formulação do conhecimento buscado” (Naffah Neto & Cintra, 2012, p. 42). Quanto aos objetivos, este trabalho pode ser definido como um estudo exploratório, na medida em que objetiva “proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses“ (Gehardt & Silveira, 2009, p. 35). Nas palavras de Gil (2008): “as pesquisas exploratórias têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores” (p. 27). O OBJETO TRANSFORMACIONAL E O MOMENTO ESTÉTICO O conceito de objeto transformacional, cunhado pelo psicanalista Christopher Bollas (1987/2015), descreve o objeto primário a partir de uma perspectiva intersubjetiva, enfatizando a experiência vivida pelo bebê do encontro com este objeto. Para ele, o encontro primevo do bebê com a mãe é, antes de tudo, um encontro estético, de maneira que a relação do bebê com a mãe como objeto transformacional configura a primeira estética humana. Esse encontro entre o bebê e o objeto transformacional é, para Bollas, um momento estético. A mãe é percebida no início não como um objeto de representação, mas como um processo que o bebê identifica com as múltiplas transformações do self . Nas palavras de Bollas: “A dor da fome, um momento de vazio, é transformada pelo leite da mãe em uma experiência de plenitude. Esta é uma transformação fundamental: vazio, agonia e raiva se tornam plenitude e contentamento” (p. 68). Ao longo de toda nossa vida buscamos experiências como essa, que possam nos proporcionar transformação. Procuramos mergulhar no quadro, na música, na paisagem, na voz da pessoa amada ou em seu abraço, tal como um dia estivemos mergulhados na estética materna. Os encontros estéticos são, então, encontros transformacionais. É importante enfatizar, no entanto, que o momento estético não diz respeito a uma simples revivência da experiência com o objeto primário, como se o indivíduo estivesse fixado num encontro passado, mas sim a uma experiência com um objeto que, tal como o objeto materno, ressoa o idioma pessoal1 do indivíduo, permitindo-lhe apropriar-se de partes suas e de sua experiência emocional antes desconhecidas de si mesmo. Nas palavras de Bollas: É um prazer da subjetividade (jouissance) descobrir os meios de ser ‘sonhado’ até alcançar a realidade; é uma alegria verdadeira o encontrar de um objeto que contém uma experiência que é para nós transformacional, à medida que produz uma metamorfose de uma estrutura latente profunda para uma expressão superficial (1992/1998, p. 39, itálico do autor). O momento estético, portanto, é uma experiência que aponta para o futuro, para uma expansão e transformação da subjetividade. Este momento, segundo Bollas (1987/2015), pode ser pensado como a vivência de uma comunicação profunda e singular entre o sujeito e o objeto, em um encontro fusional que leva o indivíduo a experimentar a estranha sensação de estar sendo contido pelo objeto (como, por exemplo, um objeto artístico), que dá forma às suas angústias, desejos e medos. Assim, no encontro estético, vivenciamos uma espécie de cisão no tempo que nos arrebata e mobiliza aspectos muito íntimos, de modo a sairmos transformados deste encontro: No momento estético, quando uma pessoa se envolve em uma profunda ressonância subjetiva com um objeto, a cultura encarna nas artes vários equivalentes simbólicos dessa busca pela transformação. Na procura por uma profunda experiência subjetiva com um objeto, o artista nos lembra e nos fornece exemplos de experiência de memórias egóicas de transformação (Bollas, 1987/2015, p. 63-64). Assim, nos momentos de imersão, em que o sujeito é tomado pela obra, seja ela uma pintura, uma música ou uma produção literária, por exemplo, constituem-se ocasiões de grande densidade emocional e destituídas de palavras, que, segundo Bollas, atuam como “uma forma de déjà vu, é uma memória existencial: lembrança não representacional, transmitida por meio de uma sensação misteriosa” (1987/2015, p. 67). Logo, podemos pensar o encontro estético não como uma vivência passiva, mas como uma experiência de transformação do self . Neste artigo, tomando como ponto de partida a experiência vivida com uma paciente atravessando um luto, refletimos sobre a potência transformacional do encontro estético no contexto analítico, particularmente em pacientes que se utilizam de músicas, filmes, imagens ou metáforas, a fim de dizer de sua experiência emocional. Assim, a vinculação do sujeito a este objeto, mediada pela analista na relação transferencial-contratransferencial, pode ser experimentada como uma comunicação profunda que o leva a re-experienciar uma relação objetal transformacional, operando significativas transformações do self . O LUTO Adriana2 procurou a clínica-escola após a morte do marido, que ocorrera poucos meses antes do início dos atendimentos. Segundo ela, estava sendo muito difícil e doloroso aceitar essa perda, que se deu de modo inesperado em consequência de algumas complicações de saúde. Em seu relato emocionado, Adriana revelou o sentimento de não ter perdido apenas seu marido, mas também seu melhor amigo, já que estavam juntos há muitos anos e tinham um relacionamento de muita intimidade. Assim, ela diz que depois da perda o seu mundo parecia estar em “preto e branco”, apontando ter uma grande dificuldade em cumprir as obrigações do dia a dia e em seu trabalho. Ela destacou também a dificuldade que sentia frente à responsabilidade de criar os filhos sozinha, um menino e uma menina iniciando a adolescência. Apesar disso, Adriana reforçava que os filhos eram sua razão para seguir em frente, de modo a trazer um pouco do colorido para os seus dias. Nesse sentido, nas primeiras sessões, Adriana dizia se sentir deslocada, vivendo em um mundo que não parecia seu, tal como uma realidade virtual ou um sonho. Ela acrescentava ainda que se sentia incompreendida pelas pessoas que não lhe pareciam entender ou não estavam dispostas a ouvir sobre sua dor. Assim, a desorganização interna e externa provocada pela morte do marido fazia transparecer em sua fala uma sensação de não-pertencimento. É possível pensar que o caos interior decorrente da perda do marido parecia dificultar o restabelecimento de laços com o mundo externo, pois este lhe parecia hostil, tal como apontado por ela no início dos atendimentos. Assim, para além da perda concreta do objeto de amor, soma-se uma perda interior advinda da fantasia inconsciente de que o seu mundo interno parece correr perigo de desmoronar. Isto coaduna-se com a hipótese apontada por Klein (1940/1996), segundo a qual o luto é uma atualização da posição depressiva infantil, uma vez que o sujeito acredita ter perdido seus objetos internos “bons”, ao mesmo tempo em que tem a impressão de que seus objetos internos “maus” se tornaram dominantes. Nas palavras de Klein (1940/1996), “assim como a criança pequena que passa pela posição depressiva está lutando, na sua mente inconsciente, para estabelecer e integrar seu mundo interno, a pessoa de luto também sofre a dor de restabelecê- lo e reintegrá-lo” (p. 397). Ao longo das primeiras sessões, as falas de Adriana eram marcadas por essa sensação de desorganização interna, ao mesmo tempo em que a sensação de incompreensão das pessoas ao seu redor, no que se referia à sua tristeza, era percebida por ela como grande hostilidade. Isto se assemelha à experiência de luto da Sr. A, descrita por Klein (1940/1996): (...) ficou claro que a indiferença assustadora das pessoas era um reflexo de seus objetos internos, que na sua mente tinham se transformado numa multidão de objetos “maus” persecutórios. O mundo externo parecia artificial e irreal, pois a verdadeira confiança na bondade interna desaparecera temporariamente (p. 404). Embora na fala de Adriana comparecesse essa percepção hostil do mundo, era possível perceber em seu discurso a preservação de objetos internos bons, especialmente quando se referia aos filhos. Nesse sentido, é a partir deste contexto, muitas vezes ambíguo, que podemos pensar o movimento da experiência de elaboração desta paciente. Esse movimento ambíguo, com avanços e retrocessos, é próprio da experiência de luto. Mesmo no luto normal o indivíduo apresenta processos psíquicos próximos a uma experiência melancólica, engendrando uma identificação maciça com o objeto perdido, como maneira de negar a perda, de modo que há um desânimo profundamente penoso e a diminuição do interesse pelo mundo. Como observa Steiner (1994), o enlutado procura “apossar-se do objeto e retê-lo e um dos modos pelos quais o faz (...) é através da identificação com o objeto” (p. 68). Steiner (1994) propõe dividir a posição depressiva em duas fases. A primeira seria a fase de medo da perda do objeto e a segunda a fase de reconhecimento da perda, isto é, a verdadeira vivência da experiência da perda. Essas duas fases são atualizadas nas perdas posteriores, correspondendo às fases do trabalho de luto. Na fase inicial o indivíduo tenta negar a realidade da perda por meio de uma maciça identificação projetiva, esvanecendo a separação entre sujeito e objeto e abandonando todo o tipo de interesse que não tenha relação com o objeto perdido. Quando o indivíduo ultrapassa essa fase, podendo enfrentar a realidade, a desolação de seu mundo interno, isto é, podendo viver a experiência da perda, permitindo que o objeto morra, “a identificação projetiva é revertida e partes do self antes atribuídos ao objeto são revertidos ao ego” (Steiner, 1994, p. 68). Steiner destaca que, de certa forma, essa ideia já está presente em “Luto e melancolia”, quando Freud (1917/ 1996) refere-se ao fato de que, no luto normal, o confronto com o veredicto da realidade de que o objeto não existe mais leva a um gradual desligamento da libido desse objeto e o reinvestimento em outros. Esse é um processo que proporciona um enriquecimento egóico. No luto normal, portanto, é possível a ultrapassagem do caos interior e o restabelecimento de laços com o mundo externo. Nos relatos de sua história conjugal, Adriana compartilha com a analista experiências felizes que viveu com o marido, dizendo sentir falta de poder conversar com ele, ou apenas poder dividir os momentos do dia a dia com alguém. Contou também que costumava escutar músicas junto com o marido, porém, depois de sua morte, passou por um período em que preferiu “ficar em silêncio”. Segundo ela, a música os conectava, como se os diferentes álbuns contassem partes de sua história juntos, de modo que cada canção representaria um “pedaço” deles mesmos. Assim, escutá-las novamente implicaria no reencontro com sua própria história e com a falta do marido. Podemos conjecturar, seguindo a proposição de Steiner (1994) a respeito das duas fases da posição depressiva, que Adriana ainda estava vivendo a experiência de identificação projetiva maciça com o marido, experiência que o autor sugere que faz parte da primeira fase do luto e da posição depressiva. Deste modo, escutar sozinha as músicas que antes compartilhava com o companheiro talvez fosse confrontar-se com o vazio, enfrentar a perda, o fato de que seu parceiro não estava mais ali para viver com ela aqueles momentos de intimidade. Escutar música com o marido os conectava. Agora viver sozinha essa experiência, era dar-se conta da desconexão. A MÚSICA COMO OBJETO TRANSFORMACIONAL Logo nos primeiros atendimentos, alguns meses depois da perda, Adriana contou sobre o seu processo de ouvir músicas novamente. Ela relata, assim, uma sensação, em certo momento, de ser “chamada” pelos discos do marido, como se pedissem para ser ouvidos por ela. Ao se reencontrar com essas músicas, a paciente fala sobre uma experiência de identificação, em que as letras pareciam expressar com precisão os seus sentimentos frente ao luto. A partir disso, ela passa a recitar diversos versos de músicas ao longo das sessões, de modo a se comunicar por meio delas. ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM PSICOLOGIA Em uma das sessões, Adriana fala sobre sua experiência de solidão após a morte do marido, descrita por ela como uma sensação de estar só mesmo no meio da multidão. Neste momento, ela relembra a música “Metade”3, de Adriana Calcanhotto, e cita um dos versos, apontando se sentir “exatamente desse jeito”. A paciente conta ter se identificado com o trecho “Eu não moro mais em mim”, de forma que este verso parecia ser capaz de expressar sua experiência emocional, conferindo-lhe sentido. Ao se encontrar com a ideia de não morar mais em si mesma, ela revela se sentir desabitada, descrevendo uma sensação de vazio, em que não conseguia se reconhecer nela mesma, pois nada parecia ter restado de si depois da perda do marido. Retomando a proposta de Klein (1940/1996), no luto, a perda de um objeto bom externo provocaria uma fantasia inconsciente de perda dos objetos bons internos, de modo que o mundo interno do sujeito enlutado, em suas ansiedades persecutórias, pareceria correr risco de desintegração. Ao afirmar que não mora mais em si mesma, a paciente pode dizer do vazio provocado pela perda de seus objetos bons internos, que parecem não lhe fazer mais morada, após a morte de seu marido. Expandindo a análise da música para além do trecho citado por Adriana, é possível pensar que a questão da perda parece estar muito presente e evidente, quando, no decorrer da letra, é apontada a possibilidade de perder o chão, as palavras, a hora, o freio e as chaves de casa. Deste modo, são apresentadas na música ideias cujo campo semântico é capaz de aludir tanto a uma perda concreta, tal como a perda das chaves de casa, mas que também é acompanhada pela perda de objetos internos, simbolizada, por exemplo, na ideia de perda do chão, sugerindo uma profunda desorganização do sujeito. Logo, a música como um todo parece dizer de um processo muito semelhante à experiência de luto, em que há uma profunda desorganização interna e externa com a perda do objeto de amor. Ainda pensando no restante da letra da música em questão, os trechos “Estou em milhares de cacos” ou “Eu estou ao meio” parecem representar esses sentimentos caóticos. No luto, o indivíduo se defronta com uma nova realidade, que parece perder o sentido na ausência daquele que se foi, ao mesmo tempo em que uma espécie de caos interior se instaura. Na perspectiva trazida por Klein (1940/1996), com a perda da pessoa amada, o sujeito enlutado acredita ter perdido também seus objetos “bons” internos, e, com isso, tem a impressão de estar dominado por objetos “maus”, que ameaçam a integridade do mundo interno. A ideia de um risco de desintegração parece estar contida nas imagens da música, com a possibilidade de se estar em cacos ou cindido ao meio. Assim, a partir do trecho “Onde será que você está agora?”, também presente nesta música, é possível pensar na busca pelo objeto de amor perdido, durante o processo de elaboração do luto, na perspectiva de reinstalação deste objeto dentro de si. Ao mesmo tempo, este questionamento pode dizer também da procura deste sujeito por si mesmo, que depois da perda se torna um outro, transformado pela experiência. Vale destacar também, que, na música de Calcanhotto, o trecho “Eu deixo a porta aberta” parece apresentar uma possibilidade ou abertura para a elaboração deste caos. Nesse contexto, é importante destacar o fato de que a paciente trouxe essa música diversas vezes para as sessões, retomando sempre o trecho “Eu não moro mais em mim”. Ao fazer esta retomada, em outro momento na sua experiência de elaboração do luto, Adriana traz uma nova ideia, e aponta que sente que não mora mais em si, pois agora se percebia como outra, ou seja, sentia que não era mais a mesma, desde a perda de seu marido. A imagem trazida pela música, portanto, não dizia mais da experiência de sentir-se desabitada, mas traz a possibilidade de um (re)encontro consigo mesma, agora transformada no processo de reconstrução de seu mundo interno. Assim, Adriana tem a experiência de não morar mais em si, pois seu mundo interior, que fora destruído em sua fantasia com a perda do marido, agora pode ser restaurado pelo processo de introjeção não só do objeto de amor perdido, mas de reinstalação de todos os seus objetos “bons” internos. Logo, por meio da experiência de encontro com a música, a paciente pode pensar suas feridas e dar um passo na elaboração de sua perda. A partir deste encontro estético, é possível pensar no caráter transformacional da música em questão. Ao escutá-la, a paciente se identifica com um dos versos, e afirma que “era exatamente isso que sentia”, ou seja, diz de um encontro fusional, entre o ego e o objeto, da sensação de estar sendo contida pela letra da canção. Ao trazer este verso para a sessão, e partilhá-lo com a analista, Adriana parece experimentar uma sensação de transformação, com a mobilização de aspectos muito íntimos de sua subjetividade. Pensando no conceito de objeto transformacional, proposto por Bollas (1987/2015), o encontro estético com a música em questão parece caracterizar um processo que altera a experiência do self , transformando o mundo interno e externo da paciente. Além disso, em outra sessão, Adriana contou que, em um determinado momento daquela semana, enquanto escutava rádio distraidamente, ouvira a música “Aonde quer que eu vá”4, cantada por Herbert Vianna. No encontro com essa música, a paciente relata uma experiência afetiva intensa, pois percebera que tinha a mesma sensação do cantor, que compôs a referida canção após a morte de sua esposa. Adriana conta que se identifica com a história do cantor, assim como se identifica com os sentimentos cantados por ele, como se Herbert fosse capaz de traduzir em palavras aspectos da sua experiência subjetiva que ela mesma não tinha sido capaz de nomear até então. Aqui também Adriana tem um verdadeiro encontro estético com essa música, na qual re-experienciaria sua relação com um objeto transformacional, a partir da fusão do ego com o objeto estético. Como proposto por Bollas, na ocasião destes momentos. É comum que o indivíduo sinta uma profunda concordância subjetiva com um objeto (uma pintura, um poema, uma melodia ou sinfonia ou uma paisagem natural) e vivencie uma fusão misteriosa com o objeto, evento que evoca outra vez um estado do ego que prevalecia na vida psíquica precoce (1987/2015, p. 52). Assim, Adriana cita o trecho “Aonde quer que eu vá/Levo você no olhar”, e diz que sentia a presença do marido dentro de si, e não apenas nos objetos que lhe pertenciam. Deste modo, Adriana afirma não ser mais apenas uma pessoa, no singular, pois agora sentia que ela mesma era também o marido, levantando a possibilidade de que seu “eu” está dividido com ele. Assim, a paciente destaca o citado trecho, se referindo à ideia de uma ausência presente do marido, ou seja, da possibilidade de que ele viveria em suas lembranças e seria capaz de olhar o mundo pelos olhos dela. Logo, é possível pensar em um importante passo no processo de elaboração do luto, com introjeção do objeto de amor perdido. Segundo Klein (1940/1996): Quando o sofrimento é vivido ao máximo e o desespero atinge seu auge, o indivíduo de luto vê brotar novamente seu amor pelo objeto. Ele sente com mais força que a vida continuará por dentro e por fora, e que o objeto amado perdido pode ser preservado em seu interior (p. 403) . Deste modo, estendendo a análise da música em questão, para além do trecho citado pela paciente, a ideia de que “Não estou ao seu lado/Mas posso sonhar”, ainda presente na letra, traz a possibilidade de preservação do objeto perdido dentro de si. Assim, a morte impossibilita a presença física, mas a habilidade de sonhar permite a manutenção das lembranças do objeto de amor perdido, ao mesmo tempo em que pode pressupor uma abertura para a vivência de novas experiências. Além disso, seguindo na análise da música, no trecho “Meus sonhos vão te buscar/Volta pra mim/Vem pro meu mundo/Eu sempre vou te esperar”, é reforçada a ideia de internalização do objeto, de modo que podemos pensar no “meu mundo”, como o mundo interno da paciente, que passa a abrigar o marido na forma de um objeto interno “bom”. Ademais, retomando a fala de Adriana, depois de sua reflexão sobre a música, a paciente comenta que, apesar de levar a esposa no olhar, Herbert Vianna retomou sua vida e voltou a cantar e compor. A partir disso, Adriana disse ter se identificado com o cantor, pois agora também se percebia capaz de ver um futuro para si, no qual poderá voltar a criar e realizar coisas, para além de cuidar de seus filhos. Assim, a identificação com este objeto artístico parece transcender a obra, e alcançar inclusive seu autor. Encontrar-se com esta música, enquanto um objeto transformacional, parece ter tido um efeito de organização da experiência para esta paciente, oferecendo novos sentidos para a experiência traumática da perda. O seu movimento de elaboração do luto, inclusive, se torna bastante evidente quando pensamos na transformação do estilo das músicas trazidas por ela no decorrer dos atendimentos. As canções abordadas inicialmente, com letras muito intensas e tristes, foram se transformando em músicas mais leves, com palavras de esperança, acompanhando a experiência de elaboração da paciente. Adriana se utiliza das imagens representadas nas letras das músicas para dar sentidos a suas experiências emocionais e, ao mesmo tempo, é transformada no encontro com essas obras. Nesse contexto, sua capacidade expressiva metafórica parece ter um funcionamento semelhante. Durante as sessões, Adriana era capaz de criar imagens para expressar e dar sentido ao vivido, como forma de interpretação do mundo e de si mesma. Assim, a construção de suas metáforas se dava como uma espécie de pintura com palavras, repleta de formas, cores e profundidade, transformando sua experiência subjetiva em uma produção estética. Sua capacidade simbólica, por meio da criação de imagens metafóricas, parece dar forma para aspectos de sua subjetividade difíceis de serem representados. Nesse sentido, em uma das sessões, Adriana disse se sentir em um quadro, em que se via equilibrando-se em uma estreita canoa, em meio às ondas de um mar azul. Segundo ela, não seria possível ver as margens, mas tinha consciência de que elas existiam, em algum lugar, mesmo que não fosse capaz de enxergá-las. Sua descrição é bastante vívida e detalhada, como se, de fato, conseguisse sentir essa experiência enquanto a descrevia. Por meio dessa imagem, a paciente consegue expressar seus sentimentos, comunicando significados e dando sentido às suas vivências. Assim, a criação e descrição dessa pintura imaginária, parece dar conta de representar os sentimentos de ambiguidade de Adriana, naquele momento de sua vida. Se, por um lado, ela se encontrava à deriva no mar, tentando equilibrar- se frente aos desafios decorrentes da perda do marido, por outro, parece ser capaz de pensar na existência de margens, que dão continência para esse sofrimento, bem como dizem da possibilidade de pensar um futuro em terra firme, agora sem o seu companheiro. Essa metáfora, portanto, se mostra muito representativa de seu processo de elaboração do luto, uma vez que, apesar do momento presente de turbulência e sofrimento intenso, decorrentes de sua perda, parecia haver uma perspectiva de abertura para um segundo momento, de reconstrução, em que será possível seguir em frente. Após um ano da perda de seu marido, a ideia de seguir em frente parecia cada vez mais presente no discurso da paciente. Ao falar sobre o seu sentimento de tristeza, Adriana citou o trecho da música “Saindo de Mim”5: “Você foi saindo de mim/Devagar e pra sempre”. A partir desses versos, a paciente apontou que, tal como na ideia apresentada pela música, a tristeza da perda vai saindo dela aos poucos, abrindo espaço para novas experiências. Ao mesmo tempo, porém, ela indica que este movimento de aprender a lidar com a falta do marido acontece devagar e para sempre, assim como nos versos, por ser um processo que vivencia todos os dias, sendo alguns deles mais difíceis do que outros. Ela contou que percebe o luto como um processo que tem o seu próprio tempo, que não é linear e nem cronológico. Logo, a partir das ideias trazidas pelos versos da música citada, Adriana pôde comunicar aspectos importantes de sua subjetividade, se permitindo pensar o movimento na sua experiência de elaboração do luto. A partir desta reflexão, Adriana disse que não entendia a sua tristeza como se fosse um baú, pesado, e impossível de carregar. Nesse sentido, ela contou que se sentia como uma motocicleta, capaz de seguir, percorrer caminhos e resolver problemas, e sua tristeza seria como um carrinho acoplado a esta moto, um sidecar . Adriana acrescenta, então, que uma parte da sua tristeza pelo luto talvez sempre esteja com ela, acoplada à sua motocicleta, mas o conteúdo do sidecar pode mudar com o tempo, ficar mais leve, de modo que não a impediria de seguir adiante. Assim, por meio da criação desta metáfora, Adriana constrói e apresenta uma imagem dinâmica do seu sentimento de tristeza, que se transforma com o tempo, e não mais constitui um peso que a impede de prosseguir. Sua fala, portanto, parece revelar passos muito importantes no sentido da elaboração da perda e da abertura para novas experiências, indicando o processo de transformação desta paciente em seu trabalho de luto. O discurso de Adriana parecia estar preenchido de novas cores e possibilidades, muito diferente de sua fala nas primeiras sessões, que era marcada pela sensação dilacerante de desorganização interna e deslocamento em relação ao mundo. Assim, a metáfora construída pela paciente parece indicar sua transformação no processo de reconstrução de seu mundo interno, com uma abertura para seguir adiante, como proposto por ela. Enquanto a paciente construía esta metáfora, a palavra sidecar parecia ecoar de modo insistente pela mente da analista, provocando uma sensação de estranhamento. Nesse momento, ela tenta se lembrar de onde conhecia este termo, e imediatamente pensa em uma cena do livro “Harry Potter e as relíquias da morte”6. Nela, Harry é transportado no sidecar de uma motocicleta, em um plano de fuga que dá início a sua jornada final contra o vilão Lord Voldemort. Durante essa fuga, a coruja de Harry, símbolo de sua inocência e de sua ligação com o mundo mágico conhecido até então, é morta dentro do sidecar . Assim, mais do que apenas derrotar o vilão, a história nos leva a pensar sobre o amadurecimento de Harry, que se encontra com o desconhecido, enfrenta seus medos e luta bravamente por seus ideais. Nada mais será como antes, e após a batalha, surge um novo Harry, transformado pela experiência. A imagem que surge na mente da analista, em sua ressonância contratransferência, e as reflexões propostas a partir dela, parecem se relacionar com a história da paciente. Na metáfora criada por Adriana, a ideia de seguir adiante, de percorrer novos caminhos, parece indicar que, aos poucos, ela estaria se desocupando da realidade que construíra com o marido, de modo a partir para uma nova jornada de (re)descoberta de si mesma. Esta jornada não é fácil, assim como as batalhas enfrentadas por Harry, mas uma nova Adriana parece surgir desta experiência de elaboração. Bollas (1987/2015) afirma que muitas vezes o analista capta em sua própria subjetividade estados emocionais do paciente em statu nascendi . O autor chega a afirmar que frequentemente o processo de associação livre se dá dentro do analista, de maneira que este deve encontrar maneiras de relatar ao paciente seus processos internos, para “ligar o paciente a algo que ele tenha perdido em si mesmo” (p. 236). Deste modo, diz o autor: (...) os pacientes se beneficiam do enraizamento responsável e confortável do analista na experiência subjetiva. A avaliação do que é verdadeiro no paciente não brota inevitavelmente de uma seleção intelectualizada de temas inconscientes, lida pelo paciente e pelo analista, mas sim de um sentimento mútuo de ter tocado em um detalhe na sessão que dá a ambos uma sensação de convicção apropriada de que o self verdadeiro do paciente foi encontrado e registrado (p. 240-241). Desta forma, à medida que a analista permite-se ser habitada pelos estados emocionais da analisanda, ela pode sonhar o vivido, por meio de fenômenos estéticos, como as referidas associações com o Harry Potter, de maneira que tanto a analista quanto a paciente podem encontrar sentidos para a experiência compartilhada em sessão. A capacidade de metaforização dessa paciente permite transformar experiências emocionais em imagem, ao mesmo tempo em que a imagem criada pela analista parece ser capaz de captar significados que circulavam na fala de Adriana. Os objetos estéticos, portanto, parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente, auxiliando a expressão e a organização de suas experiências emocionais e conferindo novos sentidos ao vivido. Adriana relata a experiência de uma relação muito íntima com as músicas e metáforas trazidas ao longo das sessões, de modo a experimentar a sensação de estar sendo contida por estes objetos. Logo, é possível pensar esses elementos enquanto objetos transformacionais, que possibilitam experiências de transformação do self (Bollas, 1987/2015) . Como proposto por Figueiredo (2014), o sujeito entrega-se a esses objetos, para deles receber cuidados, experimentando seus efeitos de sustentação, continência e reconhecimento. Para o autor, a busca por equivalentes simbólicos para o objeto transformacional seria uma busca por cuidados, na qual o self “ora cria, ora descobre, ora recria objetos sob medida para suas necessidades de constituição, reconstituição e reparação narcísica” (p. 79). Experiência essa muito semelhante a que pode ser observada na relação de Adriana com as músicas. Ademais, o luto, enquanto uma experiência de alta densidade emocional, parece conter em si um potencial criativo. Assim, a dor da perda, que desorienta, que afoga, que dilacera, consegue encontrar voz na arte, que oferece meios para expressar o inominável, aquilo que escapa à razão. Por meio de objetos estéticos, esta dor pode ser pintada, nas diferentes cores da tristeza e da saudade, de modo a dar forma para os mares tempestuosos que podem tomar conta do mundo interno do sujeito enlutado. Assim, por meio de músicas e metáforas, Adriana pode contar, e de certo modo cantar, sua própria história, abrindo a possibilidade de transferir-se para essas obras, levando consigo suas memórias, medos, angústias e representações, de modo a nelas se deixar transformar. Logo, a capacidade de metaforização e de articulação de elementos simbólicos, tão marcante nesta paciente, promove uma abertura para sonhar o vivido, para organizar e refletir sobre sua experiência, na busca de sentido e elaboração para o seu sofrimento. Nesse caso, a elaboração implica encontrar novos sentidos para a vida, agora sem a pessoa que se foi, ou seja, diz da capacidade de pensar uma vida possível após a perda. O ENCONTRO ANALÍTICO COMO ENCONTRO ESTÉTICO As músicas e metáforas trazidas pela paciente foram viabilizadas no campo analítico, em um espaço potencial habitado por ela e pela analista. Deste modo, o processo de transformação não se dá apenas no simples encontro com os objetos estéticos, mas também na oportunidade de falar e refletir sobre eles, endereçando- os a uma presença disponível e continente. O potencial transformador não está apenas no objeto estético, mas também no encontro transferencial- contratransferencial. Assim, Adriana pôde encontrar um lugar de pouso para dar voz e espaço à sua dor, a fim de então pensar suas feridas por meio da linguagem poética. A importância do encontro intersubjetivo para a realização do potencial transformador do encontro estético é enfatizado por Safra (1999), segundo o qual o fenômeno estético só acontece quando uma presença humana devolve ao sujeito a melodia que outrora era emitida “para o espaço sem fim” (p. 35), pois de certo modo é somente neste momento que o sujeito pode ter um contato pessoal, subjetivado, com a realidade. Utilizamos acima a palavra melodia, fazendo referência a uma experiência clínica de Safra (1999). Aqui fazemos uso do termo como metáfora para qualquer aspecto do idioma pessoal do indivíduo, não apenas aquelas ligadas à musicalidade. Safra descreve a experiência com um menino, a quem ele dá o nome de Ricardo, que poderia ser diagnosticado como autista, com o qual somente após anos de análise foi possível estabelecer uma verdadeira comunicação a partir de uma melodia que o pequeno paciente entoava e que Safra começa a repetir. Nesse momento, pela primeira vez o menino o olha nos olhos, bate palmas e emite outra melodia para que Safra repetisse. O autor afirma: “Devolvi-lhe a melodia e, em resposta, ele pulou alegremente pela sala, criou uma outra melodia, e o jogo se repetiu. Estávamos nos comunicando!” (p. 34). No caso de Adriana, as melodias também constituem parte importante de seu idioma. Podemos dizer que o processo de transformação de Adriana se dá não apenas na projeção de partes suas no outro (o objeto artístico-musical), mas também na retomada das partes projetadas, com o auxílio da analista. Quando a analista pôde ressoar o idioma de Adriana, posto nas músicas que ela trazia, então ela pôde encontrar a si mesma nas músicas, reintegrar partes que haviam se perdido junto com o marido, e poder sonhar. Nas palavras de Cintra (2011): “deixar passar o passado e poder sonhar, eis dois critérios freudianos de saúde mental” (p. 5). Esse é, de fato, o percurso realizado por Adriana em seu atravessamento do luto. Segundo Bollas (1987/2015), a mãe atua como um ego suplementar, que permite a continuidade de ser do infante, dando forma a seu mundo interno. Assim, ao satisfazer as necessidades do bebê, ela transformaria seu ambiente exterior e interior, ou seja, a mãe, ainda não identificada como um outro, diferente do eu, é experienciada como um processo de transformação, como um objeto transformacional. Bollas (1987/2015) afirma que, de modo semelhante, o analista deve funcionar como objeto transformacional, na medida em que ele deve executar com o paciente (...) a mesma função da mãe com seu bebê, que não podia falar, mas cujos humores, gestos e necessidades eram expressões de algum tipo que precisavam da percepção materna (...), do acolhimento (uma disposição para lidar com o discurso infantil), da transformação em alguma forma de representação e, possivelmente, de alguma solução (o fim do sofrimento) (p.264, itálicos nossos). Bollas (1987/2015) afirma que cada paciente cria um ambiente a partir de seu idioma, de maneira que o analista é convocado a viver dentro do idioma ambiental do paciente. A este respeito é interessante observar que as músicas citadas e cantadas por Adriana, tão características de seu idioma, pareciam ecoar ao longo das sessões, de modo que suas melodias se mantinham como uma espécie de ruído de fundo nos encontros, habitando a mente da analista. No idioma ambiental do analisando somos usados por ele de modos diferentes e, muitas vezes, não sabemos porque sentimos o que sentimos e mesmo que papel somos destinados a desempenhar. Haveria, em todo processo analítico uma “incerteza inevitável, sempre presente e necessária” (Bollas, 1987/2015, p. 234). Nesse sentido, é emblemático certo momento no decurso do processo analítico de Adriana em que ao fim de uma sessão, ao se despedir, ela comenta não saber o que a analista fazia com todo o “lixo” deixado ali, mas agradecia por recolhê-lo para ela, deixando seu sidecar mais leve. Este comentário é representativo do uso que Adriana faz da analista em seu idioma ambiental e da inevitável e necessária incerteza do processo, pois muitas vezes a analista também não sabe o papel que desempenha e o que faz com o que é “depositado” pelo paciente: A capacidade de suportar e valorizar esta necessária incerteza define uma de nossas mais importantes responsabilidades clínicas com o paciente; e aumenta nossa capacidade de nos perdermos no ambiente em evolução do paciente, possibilitando que ele nos manipule pelo uso da transferência, transformando- nos em uma identidade objetal. Se estivermos seguros de nosso próprio senso de identidade, perdê-lo no espaço clínico é essencial para a descoberta que o paciente faz de si mesmo (p. 234). Na medida em que a analista pôde suportar a experiência de incerteza, ela pôde partilhar a dor, vivida em uníssono, e lançar-se com Adriana nas incertezas das águas do luto, navegadas por meio de músicas e metáforas que parecem funcionar como uma espécie de gramática afetiva para esta paciente, ou, como diria Bollas (1992/1998), como um léxico para o processamento das experiências do self . Assim, é por meio dessas construções estéticas que os sentimentos de Adriana podem ser expressos, ao mesmo tempo em que parecem constituir uma forma de elaboração de sua experiência. Nesse sentido, o luto ganha vida por meio da linguagem poética, criando a possibilidade de delinear novas formas e contornos para a dor. Dentro do contexto de intimidade do setting analítico, as experiências emocionais turbulentas podem ser apreendidas e expressas por meio das imagens criadas pela dupla analítica. Deste modo, o vivido ganha forma, a partir da qual pode ser digerido e transformado em uma narrativa elaborada, e geradora de novos sentidos. A imersão no contato com os objetos estéticos em sessão se dá, então, como uma experiência compartilhada. Assim, é no encontro de subjetividades da sala de análise que a experiência pode ser sonhada em conjunto, favorecendo o processo de transformação. CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência com Adriana permitiu-nos refletir sobre as possibilidades transformacionais dos encontros estéticos tanto no uso das músicas quanto na relação analítica. Pudemos pensar, então, os encontros estéticos no contexto analítico em seu potencial transformacional. Ao cantar e construir imagens metafóricas, compartilhando essa experiência com a analista, ela parece encontrar um lugar de abrigo e cuidado. Assim, Adriana pode habitar e ser habitada por esses objetos. Nas palavras de Figueiredo (2014), “É ‘de dentro’ que o sujeito pode vir a sofrer todos os efeitos deste encontro” (p. 79). Nesta experiência clínica, acompanhamos os efeitos do encontro com as músicas e com a analista, e destacamos a importância da habilidade da paciente de articular elementos estéticos, dando formas e encontrando sentidos para suas experiências emocionais. Para finalizar, assinalamos que além de refletir sobre a potência transformacional das músicas para a paciente, é importante enfatizar o quanto as canções tão caras para Adriana, servem elas mesmas como um tipo de representação plástica da teoria do luto, compreendida na perspectiva das relações de objeto, bem como como representação da dor e da travessia do luto feita pela paciente. Por fim, as músicas também indicaram novos sentidos (ou uma expansão de sentidos) para a analista. REFERÊNCIAS Bollas, C. (2015). A sombra do objeto São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). Bollas, C. (1998). Sendo um personagem . Rio de Janeiro, RJ: Revinter (Trabalho original publicado em 1992). Cintra, E. (2011). Sobre luto e melancolia: Uma reflexão sobre o purificar e o destruir . ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, 29 (1), 23-40. Figueiredo, L. C. (2014). Cuidado, saúde e cultura – Trabalhos psíquicos e criatividade na situação de analisante . São Paulo, SP: Escuta. Freud, S. (1996). Luto e melancolia . In Freud, S. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (pp. 245-265. Vol. XIV; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917). Freud, S. (1996). O ego e o id. In Freud, S. O ego e o id e outros trabalhos (pp. 15-87. Vol. XIX; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923). Gehrardt, T. E., & Silveira, D. T. (2009). Métodos de pesquisa. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS. Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo, SP: Atlas. (Trabalho original publicado em 1999). Klein, M. (1996). O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In Klein, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (pp. 385-412, Vol. I, Obras completas de Melanie Klein). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1940). Naffah Neto, A., & Cintra, E. M. U. (2012). A pesquisa psicanalítica: A arte de lidar com o paradoxo. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, 30 (1), 33-50. Safra, G. (1999). A face estética do self . São Paulo, SP: Unimarco. Steiner, J. (1994). O equilíbrio entre as posições esquizo-paranóide e depressiva . In Anderson, R. (Org.). Conferências clínicas sobre Klein e Bion (pp. 60-72). Rio de Janeiro, RJ: Imago. CONFLITOS DE INTERESSES Não há conflitos de interesses. SOBRE OS AUTORES Amanda Christina Victoria de Andrade Melani é graduanda em Psicologia no Instituto de psicologia da USP. Membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).E-mail: amanda.melani@usp.br https://orcid.org/0000-0003-2449-3420 Marina Ferreira da Rosa Ribeiro é psicanalista. Professora Dra. do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).E-mail: marinaribeiro@usp.br https://orcid.org/0000-0002-1601-4744 Janderson Farias Silvestre dos Santos é psicólogo. Doutorando e mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, na linha de pesquisa “Investigações em Psicanálise”. Membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC). E-mail: jandersonsilvestre@usp.br https://orcid.org/0000-0001-6318-9347 Notas: 1 Podemos pensar no idioma como uma forma primordial, como um traço formal primevo que só pode se articular e se fazer expressar pela recepção de conteúdos do mundo externo que são continuamente oferecidos, inicialmente, pelas figuras parentais. Bollas relaciona o idioma ao Id, dizendo: “A teoria do id foi um primeiro e crucial passo para conceituar essa importante estrutura psíquica (itness), algo próprio que está no nosso cerne, algo que dirige a consciência: uma figuração da personalidade que conjura objetos específicos para desfazer seu código por tais objetivações. Acima de tudo nossa itness, ou nosso idioma pessoal é o nosso mistério. Nós pensamos, sonhamos, abstraímos, selecionamos objetos antes de sabermos por que e mesmo quando sabemos tão pouco” (Bollas, 1992/1998, p. 37). 2 Nome fictício. Destacamos aqui que a escolha do nome Adriana faz referência à cantora Adriana Calcanhotto, que dá voz à música “Metade”. O verso desta canção, tão fundamental para a experiência de elaboração desta paciente, parece ser capaz representá-la. Assim, a Adriana, paciente, no encontro com as palavras de Adriana, cantora, pode dizer de sua experiência emocional. 3 Calcanhotto, A. (1994). Metade [CD Recording]. Sony Music. Eu perco o chãoEu não acho as palavrasEu ando tão triste . Eu ando pela salaEu perco a horaEu chego no fimEu deixo a porta abertaEu não moro mais em mim Eu perco as chaves de casa Eu perco o freio . Estou em milhares de cacos Eu estou ao meioOnde seráQue você está agora? 4 Vianna, H. (2000). Aonde quer que eu vá [CD Recording]. EMI. Olhos fechadosPra te encontrarNão estou ao seu lado Mas posso sonharAonde quer que eu váLevo você no olharAonde quer que eu váAonde quer que eu váNão sei bem certoSe é só ilusãoSe é você já pertoSe é intuiçãoE aonde quer que eu váLevo você no olharAonde quer que eu váAonde quer que eu váLonge daquiLonge de tudoMeus sonhos vão te buscarVolta pra mimVem pro meu mundoEu sempre vou te esperarLarará! Lararára! 5 Lins, I. (1979). Saindo de mim [LP]. EMI. Você foi saindo de mim Com palavras tão levesDe uma forma tão branda De quem partiu alegreVocê foi saindo de mim Com sorriso impuneComo se toda faca não tivesse Dois gumes Você foi saindo de mim Devagar e pra sempre De uma forma sincera Definitivamente Você foi saindo de mim Por todos os meus poros E ainda está saindo Nas vezes em que choro 6 Rowling J. K. (2007). Harry Potter e as relíquias da morte . São Paulo, SP: Rocco. ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM PSICOLOGIA Londrina, v. 11, n. 3 supl, p. 80-99, dez. 2020
- “Vai passar!”: O lugar da esperança na constituição subjetiva e no encontro analítico
Que nome dar à Esperança? Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida. No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante. Precisa-se dar outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra significa sobretudo espera. A esperança é já. Deve haver uma palavra que signifique o que quero dizer. Clarice Lispector Iniciamos com as palavras de Clarice Lispector que colocam a esperança no instante e que, tal qual substância preciosa, pode, correndo através de tudo, garantir, atingir, dar sustentação para o que se quer alcançar. Não está no futuro porque não é mero otimismo a olhar para frente, mas esperança profunda, densa, enraizada nos recursos anímicos, distinta da expectativa. Tão valiosa, que pertence à ordem do indizível, do inefável, ao mesmo tempo que é sustentação para o que se vai alcançar. Clarice dá um estatuto especial e distinto do esperar (será que espera é aqui equivalente a estado subjetivo?), sugere que a esperança se enraíza no profundo, na seiva que alimenta e é potência. Que nome dar, qual o significado possível para a esperança nessa dimensão tão constituinte do ser? Este é o clamor de Clarice. É em consonância com esse mesmo lugar tão fundamental dado à esperança no coração da vida e do acontecer humano, que seguiremos em nossa reflexão: Assim como a inserção da psique no corpo, a relação com a realidade e a integração, estes que seriam processos iniciais do desenvolvimento segundo Winnicott (1945, p.274) não são naturais, mas sim conquistas alcançadas a partir do encontro com o outro; a esperança não é algo com que se nasce. Ela é tecida no amor dos começos, advém de um encontro singular com o objeto primário. Ela é mais-além, não coincide com estado de ânimo - é algo da ordem essencial para a constituição psíquica e para a capacidade de crer, capaz de conduzir à confiabilidade pessoal assim como à crença em geral. Refletir sobre a esperança deve, portanto, conduzir-nos não para sentidos (rasos) de expectativa ou otimismo: não se trata de um sentimento ou de sensação. Esperar, como ressalta Ferraz (2019, p.110), é ontológico. Não é o esperar das superfícies a que se refere (e repudia) Clarice. Estar de posse da esperança, nessa dimensão constituinte do vir a ser do indivíduo, inaugura este como criador de si e do mundo-como um ser da ação. Tem assim um início e é iniciador de mundos, seguindo ainda o pensamento de Ferraz (2019, p.106). Lembramo-nos aqui de Winnicott que afirmava que “o mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento” (1988/1990, p.130). Devo aqui ressaltar que o presente texto muito se nutre do pensamento de Winnicott (embora não apenas dele); mas convido o leitor a iniciarmos com suas contribuições apoiadas no texto de Ferraz (2019) “A espera e o gesto: um olhar sobre a importância da esperança e sua psicopatologia a partir da obra de D.W.Winnicott”. Assim, retornemos a refletir sobre a ação: esta, no pensamento winnicottiano, tem relação não com o mero fazer, mas com o gesto, o qual funda o sentimento de que a vida vale a pena assim como a capacidade de estar vivo. Esperança e criatividade são dois pilares constituintes da subjetividade e são indissociáveis, tendo sua origem no encontro com o objeto primário: a mãe que vai ao encontro da necessidade de seu filho de modo a tornar real o que ele está pronto para criar. A partir desse começo, o infante pode vivenciar a experiência de tornar-se real, e seguir sustentado pela esperança: algo que move e movimenta, que ,caso se perca ou nem se tenha, resta ao ser, “sub-viver” à margem da vida, resta-lhe o adoecimento severo ou mesmo uma experiência de morte. A esperança como pilar fundante do “esperar” (aqui esperar só ganha espessura vital se ancorado na esperança), enquanto potência de vida, oferta abertura à espontaneidade que emerge do self verdadeiro. Se o gesto espontâneo, como diz Winnicott, é o self verdadeiro em ação (1988/1960, p. 135), este inaugura, seguindo ainda Ferraz, “a capacidade do indivíduo de esperançar” (2019, p.113). Quando acordamos, levantamos não apenas para o dia, mas para a vida, para a difícil tarefa de existir, para o enfrentamento dos desafios que o viver nos impõe e, é fundamentalmente a esperança que é motor, âncora e, simultaneamente, ponto de partida para cada amanhecer. No outro extremo, caso ocorra o desencontro do indivíduo (em seu início) com o ambiente ou no decorrer de sua infância; assistimos a uma dimensão catastrófica, a um fracasso de entrada na vida na medida em que se extravia ou nem se constitui a capacidade de “esperar” a partir do registro ontológico. Em sintonia com o que vem sendo apresentado até agora, acompanhamos as reflexões de Luís Cláudio Figueiredo (2003) em seu texto “O paciente sem esperança e a recusa da utopia”. Também este autor reconhece a esperança como condição imprescindível “ao bom funcionamento mental e que opera em planos profundos e inconscientes do psiquismo” (2003, p.160). Reconhecemos, portanto o mesmo status de fator estruturante e ontológico assinalados acima: a esperança como essencial na constituição da subjetividade. Destaco aqui a proposição de. Figueiredo de inserir um pensamento sobre a esperança na direção de um discurso metapsicológico, entretanto não dissociável da fenomenologia da clínica. De modo semelhante ao já discorrido, Figueiredo não pretende pensar a esperança como estado subjetivo, mas como “um princípio” decorrente de um encontro especial com o objeto primordial. Recorrendo a vários autores em seu texto, destacamos Ernst Bloch (1952-9) e seu livro intitulado “O princípio da esperança” – daqui Figueiredo ressalta a diferença entre a esperança como “estado subjetivo” e a Esperança a que Bloch dá um estatuto antropológico universal (1954). A partir daí, Figueiredo considerará a Esperança (esta que deveríamos manter como maiúscula) como um princípio fundamental na estruturação do aparelho psíquico. A esperança é proteção essencial, sustentação para o confronto com os percalços da vida e enfrentamento das tarefas do existir. O caráter protetivo da esperança é assim ressaltado por Figueiredo (2003): “A esperança cria uma defesa contra a queda no nada, nada de objeto, nada de relação e nada de self, funcionando então como a base para a reestruturação do psiquismo” (p.167). Retornando à esperança como princípio, esta diz respeito à expectativa de continuidade do ser e do self; uma continuidade não mecânica, não mesmificante. Possibilita, ao contrário; “a transformação e o encontro feliz do objeto e do si mesmo exatamente onde e quando eles precisavam se encontrar” (FIGUEIREDO, 2003, p. 171). A esperança possibilita trânsitos, liberta das paralisias que dominam os adoecimentos psíquicos, desde as anacrônicas formas do viver até o não-viver. E, se pensarmos que a saúde constitui o trânsito entre os vários estados do ser; a esperança é motor, tem função estruturante de dimensão primordial para a abertura a novos caminhos e enfrentamentos do existir. Aqueles que se estruturaram nas terras sólidas da esperança são capazes de “sonhar com uma vida melhor”, o que , segundo Ernest Bloch (1954) , constitui condição universal da condição humana. Aqui, como ressalta Figueiredo, embora o futuro esteja aí implicado, “não se trata de uma vivência ou fantasia de um tempo futuro, mas de uma abertura para ele, sobre o qual uma vivência temporal pode de fato se assentar sem, contudo, com ela se confundir” (p.160). Portanto, reafirmamos a esperança em sua espessura: esperança-abertura, esperança-fertilidade, esperança-fé; enfim, como já foi falado, como condição imprescindível para o bom funcionamento do aparelho mental e para a saúde psíquica. Esperança e sentido para a vida estão intrinsecamente ligados. As condições para a instalação de uma esperança fundamental dependem da alternância entre ausências e presenças, idas e vindas bem dosadas; o objeto primário não pode exceder em intrusões ou ausências, o que lançará o indivíduo a um funcionamento sob a forma de cisão, esta, por sua vez, evocadora de desesperança e andanças em terras movediças, barcos à deriva, naufrágios, instabilidade e extrema fragilidade frente aos desafios impostos pela vida. A desesperança congênita Quarta-feira de Cinzas Porque não mais espero retornar Porque não espero Porque não espero retornar A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto Não mais me empenho no empenho de tais coisas (Por que abriria a velha águia suas asas?) Por que lamentaria eu, afinal, O esvaído poder do reino trivial? ... T.S. Elliot E quando a esperança não se instala? Winnicott supõe uma falha grave na comunicação mãe-bebê que “aborta” o que seria a matriz básica da possibilidade de ter fé; em suma, da constituição da esperança. Consonante com o pensamento de Figueiredo ocorre nesses casos uma violenta ausência do princípio de esperança e daí constatamos uma série de adoecimentos. Destacamos os pacientes descritos por Winnicott em “O Medo do colapso” (1963), quando uma brutal desesperança associa-se a um medo da catástrofe lançado no futuro, entretanto já acontecido precocemente. Mas ainda os pacientes falso self , esquizoides, os narcisistas, os borderline e outros: aqui nos referindo a adoecimentos severos frutos da quase total ausência da Esperança. Entretanto, sempre que notícias de desesperança (provenientes de inícios marcados por alguma dimensão de desencontro com os objetos primários) nos chegam, ficamos também vulneráveis a paralisias e expectativas traumáticas. No texto de 1949 “Recordações do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade”, Winnicott apresenta o que ele denomina de desesperança congênita, assim como discorre sobre trauma precoce: “Pode-se ressaltar que o mais importante é o trauma representado pela necessidade de reagir. A reação neste estágio do desenvolvimento humano significa uma perda temporária de identidade. Isto faz surgir um sentimento extremo de insegurança e forma a base para uma expectativa de ulteriores exemplos de perda de continuidade do self e mesmo uma desesperança congênita (mas não herdada) com relação à conquista de uma vida pessoal’ (p.326) A desesperança congênita resulta de um fracasso de uma experiência extremamente precoce de mutualidade, esta capaz de constituir uma crença na confiabilidade, assim como a crença em: crença em Deus, na vida, no outro, na natureza humana. O indivíduo fica sujeito a uma base de uma desesperança congênita (mas não herdada), a qual o desacredita à consecução de uma vida pessoal. Figueiredo (2003, p.165) afirma que na desesperança congênita, algo do indivíduo foi desfalcado quando ainda não o pôde ter e usufruir e destaca esse conceito como mais adequado para o entendimento da esperança ou de sua falta como princípio de funcionamento psíquico. Assim como na desilusão precoce, descrita em texto homônimo de Winnicott (1949), o trauma primitivo está na base da vacilação extrema da Esperança ou mesmo de sua não instalação. Entendemos como trauma “aquilo contra o que o indivíduo não possui defesa organizada; daí advém um estado de confusão, numa reorganização das defesas primitivas” (1949, p.206). Vale ressaltar a noção paradoxal de desesperança congênita, mas não herdada, portanto adquirida: instalou-se num momento muito primitivo da vida, próximo ao nascimento ou mesmo no nascimento; entretanto, proveniente das condições ambientais. Já a desilusão precoce, noção próxima à mencionada acima, também provém de trauma precoce, mas num momento posterior à desesperança congênita. São situações que demandam uma regressão terapêutica, para que assim se constitua, como Figueiredo afirma, uma “esperança genuína ” (2003, p.166). Isso requer, entretanto, que um solo-forração de confiabilidade seja tecido ali onde as terras do porvir foram devastadas pelos traumas precoces. Aqui, adentramos nas questões técnico-éticas que envolvem o ser e o fazer do psicanalista na direção da tessitura da esperança, considerando esta essencial na oferta de impulsões vitais ao indivíduo, especialmente quando este se apresenta refém de experiências de quase-morte. “Vai passar”: o analista como sustentador da esperança do paciente desesperançado A afirmativa a partir da qual conduziremos uma reflexão de como se dará o trabalho clínico nessas situações é: “o paciente precisa do suporte da esperança do analista”, como destaca Ferraz (2019, p.110). Este autor acrescenta que isso precisa acontecer “enquanto (o paciente) só consegue esperar que em algum momento seu gesto espontâneo que o liga às raízes da criatividade primária, fonte da vida e do sentir-se vivo, possa acontecer sem que o mesmo se sinta no perigo de ser ultrajado” (p.109). Podemos pensar que o analista que se apropria de seus recursos psíquicos e é capaz trabalhar de modo suficientemente bom, precisa que (o princípio) Esperança nutra-o e o sustente tanto em seu ofício como em seu viver. Aqui lembramos as palavras de Winnicott: “é preciso que haja no analista uma crença na natureza humana e nos processos de desenvolvimento para que algum trabalho possa ser feito, e isto é rapidamente percebido pelo paciente” (1954-5, p.478). De posse dessa Esperança na natureza humana, que aqui Winnicott nomeia “crença”, o analista poderá sustentar o “vai passar” – uma expressão (tal qual a madeleine de Proust que convoca a aberturas e disseminações inconscientes) que remete ao ecoar da voz materna, da mãe que pôde assegurar à criança (no âmbito da ilusão constituinte) que nada iria lhe acontecer, que o mal que a invadia iria ceder espaço a uma bem-aventurança. O “vai passar” dirigido pelo analista ao paciente desesperançado nutre com brotos de esperança- mesmo que não precise ser verbalizado- os caminhos, por vezes árduos, que precisarão ser atravessados. Aqui situamo-nos numa direção clínica paradoxal: Podemos mesmo enunciar essa expressão-acalanto, mas de posse do reconhecimento do terror que habita o paciente. Figueiredo (p.167-168) destaca no texto que estamos acompanhando, a extrema importância de transmitir a segurança de que todas as manifestações de desesperança congênita encontrarão sustentação no setting e na pessoa do analista. Figueiredo afirma: “não se trata de combater a desesperança congênita com discursos otimistas e ‘esperançosos’, ilusórios ou evasivos, mas ao contrário, com a corajosa determinação de encarar e falar abertamente do mais difícil e menos esperançoso” (p.168). Lembramo-nos ainda da fala de um paciente a Winnicott (1960): “A única vez em que senti esperança foi quando você me disse que não podia ver esperança alguma, e você continuou a análise” (p.139). Esse reconhecimento-testemunho do sofrimento do paciente é o manejo adequado e necessário: o pior manejo seria “desmentir” a dor e sua desesperança. De posse dessa comunicação, que pode ser direta ou silenciosa, comunicação da verdade do que se assiste, podemos inclusive anunciar com todas as letras: “vai passar”. Esse é o paradoxo: poder dizer e simultaneamente sermos testemunhos da extrema dor. Não é um mero dizer, discurso otimista, mas a evocação da palavra materna de modo a temporalizar a dor que se apresenta como dor sem fim. O “vai passar” pode ser o modo de temporalizar o presente eterno de agonia, tanto da criança quanto do paciente adoecido, instalando uma linha sustentadora de início, meio e fim - de passado, presente e futuro. Winnicott também nos ensina isso com o jogo da espátula (1979/1957) assim como, a partir desta fundamental experiência, devemos conceber que cada sessão precisa de um tempo capaz de possibilitar que o paciente saia abrigado e apto a sustentar o intervalo (sem o analista) até o próximo encontro. O tempo, se não é só tempo-passado com seus grilhões paralisantes, se não é só presente sem perspectiva de caminhar, se não é só futuro quando corremos o risco de voos e devaneios sem pouso; constitui abrigo: sustenta-nos na esperança, na capacidade de esperar. E, enquanto analistas, precisamos cuidar/sustentar a esperança que se esvai no desespero do paciente. Um paciente com pânico vivencia sua crise de angústia como um morrer para sempre: é um mal infinito. Como afirma Winnicott: “Inerente a esse sentimento de desamparo é a natureza intolerável de se experimentar algo que não se sabe quando terminará” (1949, p.327). Entretanto, a crise dura alguns minutos, ele, como outros com outras modalidades de adoecimento recebem o “vai passar”, que pode ser que de nada adiante. De qualquer forma, insistamos, sejamos o outro-guardião da esperança - a evocação do materno cuidador. Uma das funções analíticas é de testemunho, de reconhecimento da dor e de oferta da esperança, desde que venha sob a forma de palavra viva e encarnada, guiada pelo princípio esperança do próprio analista. Um encontro entre o terror e a esperança “A análise exige, no mínimo, que busquemos juntos” Pontalis Por mais estranho que pareça, penso ocasionalmente que às vezes é mais fácil atender aqueles que chegam nos mostrando de modo explícita sua dor aguda, suas chagas abertas, sua vulnerabilidade: uma visível e temida ameaça de desmanchar-se em pedaços; a agonia fazendo sua aparição. Anestesiados ou lançando gritos lancinantes, seus pedidos de ajuda, mais que isso, de salvação, impregnam nosso corpo, as paredes, o quarto-consultório, lugar que abriga as mensagens que anseiam por serem decifradas. Dão-nos um tipo de trabalho, (porque não esquivemo-nos desta verdade), mas nos envolvem em furacão de dores e silêncios ardentes que obrigam que nossa loucura pessoal seja ativada, colocando-nos em posição de quem é convocado ao cuidado de sobreviventes de catástrofes. Mas, em outros casos, a calmaria oculta o perigo do mar. Inesperadamente somos arrastados por correntes, pegos em desespero por tormentas e ondas gigantescas, ali onde tudo parecia mansidão. É assim quando atendo Andréa, 70 anos, extremamente intelectualizada, organizada em torno da invulnerabilidade (engessada animicamente) de tal modo que mal posso avistar alguma dor mais severa, apenas o dia a dia: “o fazer análise para se conhecer e ter insights”. É algo que não me faz sentido, mas que a abriga de ameaças de deslizar da casca para o núcleo, este que precisa manter-se indecifrável. Fala com todas as letras que gosta de sua independência, não gosta de depender e eu desconfio que, oculta-se sob a superfície das palavras, uma fragilidade, solo instável, algo muito amolecido que se agarramos desastradamente pode esfacelar-se. Não anseio por sua dependência, mas toureio faz 5 anos para que não se assuste, porque um susto subjaz à tamanha rigidez – um íntimo frágil e delicado. Falo de sua delicadeza que é o atalho possível para comunicar que vislumbro sua fragilidade. Venho assim nesse tempo juntas tal qual Shererazade contando histórias para que não seja assassinada a possibilidade de encontro. Muitas vezes faltam-me fábulas, então escorrem águas turvas, paradas e sem vida –parece então, num extremo de desvitalização vivido pela dupla - que nada acontece. Nessas horas, ambas habitamos o nada. E a sensação de que não estou fazendo nada me invade. Gosta de assistir documentários sobre animais e me conta de uma veterinária especialista em tartarugas. Chega uma para ser cuidada, tem o casco rachado, profundamente ferida. Conta-me com assombro que com o casco aberto avista-se o pulmão da tartaruga. Compartilho de seu assombro, sem deixar de expressar num esgar de aflição e dizer em espanto: “que horror!” Pois é mesmo aterrorizante! Depois da sessão, lembro-me de uma paciente de Winnicott (1963, p.225) que, independente, se tornou em sonho, extremamente dependente. Sonha que tinha uma tartaruga com o casco mole, de modo que estava desprotegida e podia sofrer. Mata então a tartaruga para salvá-la do sofrimento intolerável que poderia ter. Desde sempre esse caso de Winnicott me impressionara: como conceber a existência de uma tartaruga sem casco? Que impensável! Que algo próximo da agonia primitiva! E que horror o pulmão revelado! Essa transparência aterrorizadora: essa ameaça de chegar ao núcleo inviolável do ser! Minha paciente me comunica sua necessidade de chegar a sua vulnerabilidade, mas que a deixa numa relação de dependência tão temida. No programa de TV, a veterinária consegue colocar num buraco do casco, que não conseguira emendar por completo, um pedaço desenhado numa impressora 3D. Minha paciente comunica assim também sua esperança de cura. Mas fico com isso, com todas essas associações e sonhos (dela, entretanto, por mim sonhados), me sinto aprisionada numa relação em que o mais vulnerável se protege de mil roupagens, cascas e cascos para não ser alcançado. Tocar nela é como esbarrar no pulmão: o respirar que mantém o ser vivo. Aguardo assim novos encontros, guardo em mim o que me viera como lembrança e compreensão: ficam como restos diurnos e espero que num sonho a dois algo mais próximo do essencial delicado seja alcançado. Andréa interrompe a análise. Brinco que vou buscá-la, caso não volte, luto por ela, talvez movida por comunicação tão sensível ao se aproximar do tempo de despedida. Saio de férias, antes ela já fora e quase me esqueço de minha “brincadeira” de reivindicá-la ao reencontro. Sou então surpreendida por seu chamado: quer conversar, assim, ela retorna. O casco ferido, a prótese 3D sustentou nosso vínculo e brotos de esperança a trouxeram de volta. Sem Esperança ela não voltaria, sem Esperança o pulmão exposto a levaria à morte. ...Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada está morto. O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera. Adélia Prado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOCH, E. The Principle Hope . Trad N. Plaice, St. Plaice e P.Knight. Boston: MIT Press, 1995 (1952-9). ELLIOT, T.S. Poemas selecionados. Trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. FERRAZ, R.J.F. A espera e o gesto: um olhar sobre a importância da esperança e sua psicopatologia a partir da obra de D.W.Winnicott. 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Dra. do IPUSP, professora do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica.
- The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed
Marina Ferreira da Rosa Ribeiro University of São Paulo, Psychology Institute, São Paulo Brazil ABSTRACT This article promotes a dialogue some of Bion’s concepts and those of post-Bionian psychoanalysts (Ogden, Ferro, Rocha Barros and Chuster), looking in particular at psychoanalytic intuition, reverie and the alpha function. How can we think about the connection between reverie and intuition? Could the analyst’s state of reverie have at its centre – before and beyond the sensuous, in the infra- and ultra-sensuous – the analyst’s capacity for intuition? The paper presents a disturbing experience of an analyst in her consulting room, looking at how the concepts work in the clinical material. The clinical material sustains the hypothesis that reverie is an evolution of psychoanalytic intuition, and that intuition occurs between caesuras, which is supported by Bion’s proposal of no memory, no desire, no prior understanding, that is, negative capacity. I suggest that somebody here should, instead of writing a book called “The interpretation of Dreams”, write a book called “The interpretation of facts”, translating them into dream language – not just as a perverse exercise, but in order to get a two-way traffic. (Bion 1977/2014, 262–263) When a concept is cited by several authors and present in a significant number of texts, we can say that it was a successful way of naming a clinical phenomenon in a given moment in the history of psychoanalysis. Reverie seems to be one of these concepts of contemporary post-Bionian psychoanalysis that has long been establishing this unanticipated destiny. Based on an understanding that psychoanalysis is a “pre-conception”1 in search of realization (Bion 1962), we can reflect that each written text is a possible realization at a given moment out of an intertextuality. Taking this into account, all we have is the experience, both in a session and in writing a psychoanalytic text; a mind producing effects on another mind, a text producing effects on other texts, containment and contained, reverie and the alpha function, a mental intercourse that promotes transformations and openings of new fields of inquiry. This text proposes to present, approximate and dialogue with some concepts, namely, psychoanalytic intuition, reverie and alpha function, in the work of Bion and, also, in the texts of post-Bionian psychoanalysts. For this purpose, I start by presenting a disturbing experience of the analyst in the consulting room, and continue by carrying out a metaphorizing exercise of approximation of the concepts with the clinical material. These are concepts and theories that will later be compared with new clinical experiences in a movement of constant return, expansion and creation – a dialogue that is intended to be open and complex. The understanding is momentary, provisional and always escapes us, because in the exact moment that we understand and are capable of narrating an analytic experience, the experience itself is already gone, it already belongs to the past, even if it is recent; the transformation has already occurred, the narrative become saturated, the text already been written, coming alive again for a future reader. The epigraph of this article is the inspiration for the reflection presented here. After all, what does Bion mean with interpretation of facts? Translating them into the language of dreams? I proceed with these inquiries, keeping in mind that Bion commented in several seminars and supervisions that he only asked his analysands questions in order to continually expand the field of investigation. The theoretical-clinical reflection presented below has the same intention: to expand the theoretical field being investigated, without resolute intentions. Walking in a dead man’s shoes2 When meeting Antônio for the first time, without any prior knowledge about him, I am uncomfortably focused on his shoes and think: these are the shoes of a dead man, how can someone walk in the shoes of a dead man? I find myself having almost a hallucinatory experience – the shoes produce the effect of a magnetic field from which I do not manage to distract my eyes and thoughts: I see death and I am paralysed. He starts to speak, I am divided, watching what is said and the intense feeling of death in which I am immersed, without understanding absolutely anything of what is happen- ing, being dragged by the disturbing experience. At the end of our meeting, Antônio distantly and briefly reports the facts of his life that needed to be dreamt together, facts that were contained and condensed in the image of a dead man’s shoes, a pictorial representation by which I was suddenly abducted when I met him. His only daughter had been born with several malformations, had gone through surgical interventions and had lived only a few years. Antônio came to me one year after the girl’s death, or after his own psychic near-death; he was walking in the shoes of a dead man, devitalized, a dead man who is still alive. His need for analysis manifested itself expressively, however, for other reasons: he was not able to find a place of financial and professional recognition. The profession – life – showed itself with an unparalleled brutality, and there he was, a man walking with death chained to his feet. And, in the same room, the analyst, attempting to dream the brutality of the facts of his life. In the vignette presented, the disturbing image that emerges in the analyst’s mind – the shoes of a dead man – emerges from the state of reverie,3 a state of loving receptivity, of hospitality, an opening to be inhabited by the other. Reverie also implies an imaginative capacity of the analyst’s mind, a capacity to dream the brutality of reality: a daughter born with malformations who passed away after only a few years. The receptivity of the reverie state appears to be, at first, a disorganizing state for the analyst. The analyst is abducted by the experience, completely adrift, pulled by the pictorial image4 that is similar to a magnetic field of sorts that exerts a force of attraction from which it is impossible to escape – the analyst can merely recognize it and observe how the session will unfold a posteriori. At this point, the analyst’s act of faith5 referred to by Bion (1970) is fundamental, so that some sense will emerge from this chaotic and disruptive state. Bion did not seem to be concerned with conceptual differentiations, which are uncertain and imprecise. Let us say that psychoanalytic concepts and people should be allowed a certain imprecision. Any resemblance to the emanations of the unconscious? The unconscious presents itself through shadows, beams of darkness, blurry and imprecise images. Ogden (1997/2013, 157) states that he believes “we do well in psychoanalysis to allow words and ideas a certain slippage”. Exactitude and precision are illusions of the conscience and of rational thought; the analyst works with impressions, approximations, with shadows and dim lights. The light of theory should not overshadow the enigmas of clinical experience, but favour the analyst’s mental capacity to navigate through uncertain, imprecise and volatile emotions. About this Bion (1992a/2014, 210) writes: I do in any case feel doubts about the value of a logical theory to represent the realizations of psychoanalysis. I think the “logical” theory and the “illogicalities” of the psychoanalytic experience should be permitted to coexist until the observed disharmony is resolved by “evolution”. This text does not intend to elect one vertex of understanding at the cost of another, or to attempt to solve the illogicality of theories, but to promote an exercise of conceptual and clinical reflection that aims to purify the technical tools of the analysts, their theoretical matrixes, to use the expression of Figueiredo (2020).6 Ogden (2016, 5) writes that even when theories are absent from the conscious thoughts of the analyst, as they ought to be during a session, they constitute a matrix, a psychic context, a metaphorizing containment. The analyst’s theory is part of their own unconscious collection; it needs to be embodied and forgotten, just like the technical exercises of a musician. Theories tune the analyst’s ability to observe, just as musicians tune their instruments. The analyst’s mind is their work instrument, which goes out of tune throughout the consultations, throughout what is lived in the office and also in one’s private life. The theoretical elucidation exercise would be one of the ways for the analyst to tune their instrument when not in session, and reflect about what happened in it using concepts in order to understand the encounter with the patient that already forms part of the past. In this manner, they put the theory and the concepts to work in preparation for tomorrow’s session, tuning their work instrument, their mind and their capacity for observation. I think that the theoretical containment of the analyst is an exercise that is conducted as a form of preparation for a session that is yet to occur. It is, also, a way of repairing their own mind after the sessions of a working day, or of years of clinical exercise. Thus, theory can play a role of containment for the analyst’s mind, in constant turbulence generated in the consulting room by the disorganizing encounter of two personalities, as Bion (1979) wrote. Starting from this vertex of the theory’s function as a metaphorizing containment for the analyst, I will now reflect on the concept of reverie, starting from Bion and going beyond, referring also to the post-Bionian authors. On reverie and alpha function in Bion and beyond The experience of reverie is always a disorganizing element for an analyst, which one tends to discard, which one is often ashamed of, considering it as inability or technical flaw, as in the clinical situation that inspires this text. And, at the same time, it is the emotional compass for the analyst, if one has the condition and the psychic liberty to con- sider it, being that this is no easy task (Ogden 2013). It is important that we have in mind that Ogden’s understanding of reverie described above is only one, among others, distinct from the original postulated by Bion in 1962. The term reverie gained more diverse and broad meanings in writings of post-Bionian psy- choanalysts such as Thomas Ogden, Antonino Ferro and, in Brazil, Elias and Elisabeth Rocha Barros, and Arnaldo Chuster, among others.7 I consider it a surprising phenomenon that an expression presented in a less evident way by its original author, almost en passant, gains diverse proportions in later texts. I believe this is due to its clinical relevance. The same occurred with the Kleinian concept of projective identification, which appeared discreetly in a text of 1946 “Notes on Some Schizoid Mechanisms”. Klein named this seminal text informally as her article about splits; unexpectedly, projective identification was, posteriorly, the Kleinian concept that generated countless resonances (Cintra and Ribeiro 2018). Considering that these are conjectures, what would have been, actually, the intention of these authors when naming these phenomena? It is impossible to say, but the expansion of the concepts in other psychoanalysts’ texts indicates that a concept’s destiny involves different understandings and apprehensions, as presented in the book Projective Identification: The Fate of a Concept (Spillius and O’Shaughnessy, 2012). The fact is that the concept of reverie has been making history in psychoanalysis, through different vertices of understanding, in the text of several psychoanalysts. The connection I make here between the destination of the concept of projective identification and reverie also has other links, in addition to Bion (1962/2014, 303) himself: The term reverie may be applied to almost any content. I wish to reserve it only for such content as is suffused with love or hate. Using it in this restricted sense reverie is that state of mind which is open to the reception of any “objects” from the loved object and is therefore capable of reception of the infant’s projective identifications whether they are felt by the infant to be good or bad. In short, reverie is a factor of the mother’s alpha-function. This short paragraph in the book Learning from Experience (Bion 1962) is almost all we have about reverie in Bion’s work. In this brief articulation that the author makes, we have two other concepts – projective identification and alpha function – reverie being then an alpha function factor, and, going on via projective identification, we will follow these clues or marks in Bion’s text. Along the same lines, Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) consider that the concept of reverie can be understood as a step in the history of psychoanalysis that is followed by the study of the concept of projective identification. Projective identification marked an intersubjective understanding of the constitution of the subject, which, especially in the light of Bion’s work, was considered a primitive form of communication, and, in addition, supported the understanding of the complexity of the interaction between the analyst’s and analysand’s minds in the session, as developed in previous works (Cintra and Ribeiro 2018; Ribeiro 2020). In other words, there is always communication that happens unconsciously, a question that intrigued Freud (1915) when he wrote about communication between unconsciouses, reverie being a way to capture these pro- cesses, as understood in Bion’s dream theory, briefly presented below. The term reverie appears for the first time in Bion’s works in 1959 when he writes that in psychotic patients we find no capacity for reverie (Sandler 2005). Bion (1962) refers to reverie in a passing way, as already mentioned, and linked to the mother–infant dyad and not directly to the analyst–analysand dyad. In a short note found in previously unseen annotations published in 2014,8 The Complete Works of W.R. Bion, he writes that thoughts are a nuisance and precede thinking, and that reverie is important to the analyst because it produces “thoughts”, that is, the thoughts that will be thought. In the clinical situation presented above, the image/thought that the analyst was seeing the shoes of a dead man was something disturbing and disorganizing, and a posteriori of the session it was possible to reflect that the image represented and condensed the psychic suffering of the patient. The analyst’s capacity for reverie “fabricated” or, better, generated the thought/image, remembering that we first think by images. Following this reference publication, The Complete Works of W.R. Bion (2014), we find a comment from the organizer André Green (2014) referring to the book Cogitations: One of the most enriching parts of these Cogitations must surely be Bion’s conception of the dream work (355). We find here the germ of what the author was later to call the capacity for reverie. What this means is that the dream work constitutes only a small part of this type of activity as found in the dreamer – that this work is a continuous process which also goes on during daytime activity, but remains unobservable (other than in conscious fantasy) except through its lack in the psychotic. The capacity for reverie is merely the visible aspect of a largely unconscious form of thought. Resuming, the image that arises from the analyst’s capacity for reverie is only the visible aspect of a widely unconscious way of thinking; in other words, it refers to the ana lyst’s capacity to make the invisible experience visible, to make apprehensible the dream thinking of the vigil, a diuturnal function of the mind. The reverie is the grasping of the unlistenable and imperceptible of experience, something grasped by the psychoanalytic intuition and transformed by the alpha function into a form, a sensorial image, a reverie. This is the theoretical argument that I am constructing in this text. The oneiric thoughts occur as much while awake as when dreaming during the night. Ferro (2003) expresses his understanding of Bion’s theory of dreams through the follow- ing analogy: during the day, we have a cameraman filming several scenes, captured through the continuous operation of alpha function. During the night we have a meta alpha function that is occupied with directing, organizing the scenes in an oneiric story- line, in a continuous work of metabolizing the emotional experiences. Ogden (2009), from his reading of Bion’s text, realizes that the vigil’s oneiric thoughts are like stars, always present, but only visible in the darkness of the night. According to Ferro (2003), we have two ways of grasping oneiric thought while awake: through the capacity for reverie and through a visual flash. For this author the pictogram is a visual fantasy that syncretizes what is being experienced in the session. The visual flash9 happens when the pictogram is projected to the exterior, outside of the mind, and thus it is “seen” almost in a hallucinatory manner. Figueiredo (2020) understands reverie as a state of receptivity of the analyst’s mind. The author follows Bion’s description of reverie as: “that state of mind which is open to the reception of any ‘objects’ from the loved object” (Bion 1962, 303). Figueiredo (2020, 1996) also makes an interesting connection by bringing together the Freudian concept of constructions in analysis (1937) and Bion’s concept of reverie in a text from 1996, that is, before the discussion about reverie became significant for modern psychoanalysis. The author writes: “What responds to the listening of the unhearable and to the vision of the invisible is the ‘phenomenalizing’ speech” (Figueiredo 1996, 85, translator’s translation). In addition, Figueiredo (2020) highlights Freud’s (1937, 268) analogy at the end of Constructions in Analysis: “But none the less I have not been able to resist the seduction of an analogy. The delusions of patients appear to me to be the equivalents of the construc- tions which we build up in the course of analytic treatment.” In other words, in one of his final texts, Freud wrote about the hallucinatory aspect of the constructions of the analyst. Civitarese (2016b, 298) has also made a comparison between reverie and the near-hal- lucinatory response of the patient to the construction of the analyst, described by Freud (1937) in the same text. In other words, Freud observed that something of the near-hal- lucinatory experience manifests itself in the session, be it in the construction of the analyst, or be it in the response of the patient to this construction. Along the same lines but through a different approach, Bion writes (1967a/2014, 200): The proper state for intuiting psychoanalytic realizations ... can be compared with the states supposed to provide conditions for hallucinations. The hallucinated individual is apparently having sensuous experiences without any background of sensuous reality. The analyst must be able to intuit psychic reality which has no known sensuous realization. ... I do not consider that the hallucinated patient is reporting a realization with a sensuous background; equally I do not consider an interpretation in psychoanalysis derives from facts accessible to sensuous apparatus. How then is one to explain the difference between an hallucination and an interpretation of an intuited psychoanalytic experience? Based on this question raised by Bion, I think that the sensation, in the analyst’s mind, produced by the emotive-sensorial pictogram (Ferro 1995) or the affective pictogram (Rocha Barros, 2000) generated from the state of reverie, is something that has aspects which are close to an experience of hallucination: the analyst “hallucinates” seeing the shoes of a dead man; there is no perceptible sensory support. The experience can only be understood a posteriori – the analyst needs to tolerate this state of disorganization and disorientation, having a kind of psychoanalytic faith that a sense will arise from the experience with hallucinatory aspects, in the session itself, or after several sessions. In other words, it is necessary to tolerate not knowing, involving the negative capability (Bion 1970) of the analyst, a virtuously expectant capability (Chuster 2019). A distinction should be made here regarding the reverie which occurred in the session that can be used to compose an interpretation or narrative construction, and that which is only an apprehension and understanding by the analyst of the patient’s unconscious psychic suffering, which will not be transformed in an interpretation. Reverie as a compass10 for the analytic process is exactly what happened in the session with Antônio; a “hallucinating” image of a dead man’s shoes condenses and reveals the most intimate and intense suffering of the patient. Reverie, in this case, served as a “north” for the analytic process that was beginning. When the reverie is used to compose an interpretation, the image can be revealed directly, although I would say that these situations are rarer, as the image produced by the reverie requires extensive elaboration work on the part of the analyst so that it becomes capable of being narrated for the patient in the form of an interpretation or analytical construction. Contemporarily,11 the term reverie has been used as much to refer to a state of mind of openness to the other, a state without thought, as considered by authors such as Ogden, Ferro and Rocha Barros among others, the product of this mental state, that phenomen- alizes itself based on this state, carrying emotional and/or affective pictograms, exemplified in this case by the shoes of a dead man. This understanding is also present in the unpublished notes by Bion (1968/2014); reverie would be a way of manufacturing a thought, still without a thinker. The thought/image of the shoes of a dead man could only be thought of at the end of the session and, also, after it had ended, at the moment of repairing the analyst’s mind, that is, the container function of the theoretical exercise mentioned at the beginning of this text. Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) understand that the concept of reverie is associated with the intersubjective understanding of the analytical process and the understand- ing of how unconscious processes are captured. I highlight that, according to these authors, reverie happens via projective identification; in other words, projective identification is the Kleinian intuition that there is a pathway that connects the unconscious of two minds and conveys proto-thoughts,12 caught initially as pictographic images (Bion 1992a), affective pictograms (Rocha Barros, 2000a) or emotive-sensorial pictograms (1995).13 Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) bring conceptual specifications that signifcantly corroborate the understanding of reverie: they are the aspects of expressiveness and evocation: We ought to say something more about “expressivity” (109). This term is taken from R.G. Collingwood (1938) and Benedetto Croce (1925/2002), and it refers to an aspect of art that not only aims to describe or represent emotions, but also and principally to transmit them, producing them in the other, or in itself, based on an evocation of a mental representation coloured by emotion. This attribute of producing expressivity in the other seems essential to understanding not only art, but also the affective memory and the function of symbolic forms in psychic life and the process through which projective identifications operate. One of the functions of expressivity is that of activating the imagination. (translator’s translation)14 Based on these aesthetic aspects of expressivity and evocation, taking up again the clinical fragment, when I am captured by the image, all I see is death and I am paralysed. At that moment, the sensorial excess of the waking unconscious scene, the reverie, has an intense expressiveness and evocation (Rocha Barros, 2000b, 2011, 2015, 2019a, 2019b); at this moment a narrative is not possible. The sensation is of a “magnetic field”, something that evokes and calls, like a painting in an art gallery when we are abducted by an image, adrift in the experience, waiting for a moment a posteriori in order to understand what has happened, aware of the fact that this is not always possible. And when it becomes possible to narrate the experience, through a process of metabolization, the narrative is partial and we can only approximate the experience. For Rocha Barros and Rocha Barros (2019b), it is necessary to transform the analyst’s reverie into a symbolic form that can be communicated to the patient. Therefore, it is the beginning of a process of apprehension of a sensorial experience. After an auto-ana- lytic work of reflection on the part of the analyst, it is possible to transform the reverie into something that could be communicated; in other words, the analyst turns the experience of reverie into something that can be thought, and transforms it into a communication that may generate transformations in the analytic pair. This process demands from the analyst a great amount of ability and creativity in the construction of a communication arising from the experience of reverie, and, in addition, of a communication that favours the transformations in the analytic field (Ribeiro 2019). In the clinical situation presented above, reverie favoured the understanding of the patient’s psychic suffering and did not transform itself in an interpretation or construction by the analyst. Chuster (2019, 2020) presents another unique conceptual detailing as discussed in a previous paper (Ribeiro 2019); he understands reverie and the alpha function as vertices of a spectrum. The author shows that the concepts of reverie and alpha function make part of Bion’s contribution to the theory of dreams, as already stated above. Dreaming is a daytime function of the mind to process and metabolize emotional experiences, which has been termed waking dream thinking (a daydream). Reverie is predominantly sensorial, and the alpha function is predominantly symbolic; both are understood as vertices of an infinite spectrum of possibilities. Considering that when we understand a concept in a spectral manner, there is a point on the spectrum at which there is no distinction between one and the other, that is, a point at which we cannot distinguish reverie from alpha function, a point of undecidability. Chuster (2020) also privileges and highlights the term imagination “because it is lin- guistically closer to the term reverie (daydream) used by Bion, and for contemplating more adequately, in my opinion, the question of the caesura between two mental states”, the caesura (Bion 1976, 40) between waking dream thinking and the night dream state. In other words, reverie would be this penumbral state, this twilight of the mind, in which we are partially awake but still dreaming, a state of transition, as described Rocha Barros and Rocha Barros (2019a). Understanding reverie and alpha function as vertices of the same spectrum (Chuster 2018, 2019, 2020) seems to be a conceptual position that expands and specifies the discussion on clinical phenomena. What phenomenalizes in the clinical situation, which has the potential to become a narrative, construction or interpretation, runs the spectrum between predominantly sensorial experiences and predominantly symbolic experiences. We can think of a progression in the spectrum, beginning in the sensorial vertex, the pictographic image, and proceeding to the symbolic vertex, the narrative. The use of reverie in an analyst’s narrative or simply for one’s own understanding of the analytic process, like a compass, is the apex of a complex process of psychic work. In the clinical situation presented, it was possible to understand that the analytic process that was being initiated was a walk through dead lands, dead from the excess of psychic pain, devitalized, and one that required the analyst’s capacity for “dreaming”. However, what is this strange phenomenon of the analyst hallucinating the shoes of a dead man? Without any sensorial support? Below or beyond the sensorial, there is psy- choanalytic intuition. As Bion (1967b) writes, intuition is not sensorial but seems to find some indiscernible support that is not identifiable in the sensorial realm.15 Bion (1992a) writes about infra- and supra-sensual aspects, which means that the amalgamation of intuition and reverie opens up as a question to be addressed, even if briefly. Reverie: an evolution of psychoanalytic intuition? How can we think about the connection between intuition and reverie? Does the reverie state of the analyst’s mind have as its mainstay, beyond and below the sensorial, supra- or infra-sensual (Bion 1992a), the analyst’s capacity for intuition? In other words, psychoanalytic intuition seems to be a primordial factor of the psychoanalytic function of personality (Bion 1962), which does not phenomenalize itself, and which one cannot hear or perceive. This is the necessary ability of the analyst, to see and hear what is not visible to the eyes or audible to the ears, but is visible to the imagination – the analyst’s capacity for reverie sustained by psychoanalytic intuition. Starting from the etymology of the word intuition, according to Zimmerman (2012, 167): the “the word intuition is composed of the etymons ‘in’ (meaning from within) and the Latin verb “tuere” (“to look”, “to see”), and shows that the capacity of intuition consists in the fact that analysts manage to “look within themselves” with a sort of “third eye” that permits them to see beyond what our sense organs can capture”. (translator’s translation) What can be portrayed as psychoanalytic intuition occurs beyond and below any sen- soriality, or, in infra- or supra-sensual ways (Bion 1992a), as stated above. Anxieties have no smell, cannot be seen or touched – they are intuited by the analyst’s mind as described by Bion (1967b). A beam of intense darkness (Bion 1967b) is required in order to intuit in the here and now of the session, to make the invisible of the experience visible. And, from reverie and its imagery construction, the analyst still needs to be able to put the experience of reverie in a narrative, that is, to go towards the most symbolic pole of the function. It should be emphasized that the narrative is partial, uncertain and provisory, merely an approximation of the lived experience, for the experience or the fact itself are unknowable in their entirety. In this way, we have the possible narrative of each session, the emotions that may be contained, revealed, created by words: the shoes of a dead man, of someone alive who treads devitalized, dead psychic terrains, raw facts still not dreamt. Since what becomes a word is saturated and finite, and opens up again to the field of the unsaturated, of emotions that are not yet words, in an endless cycle, in the incessant search for the meaning and truth of experience, in the human search of the possibility of dreaming the enigmatic of the experience. Continuing with this reflection, the image produced by the state of reverie brings the inebriating sensation that we are almost hallucinating, for there is no identifiable sensory support. Reverie is an emotive-sensorial pictogram (Ferro 1995) or an affective pictogram (Rocha Barros 2000a, 2000b), first “hallucinated” by the analyst; however, our hallucination encounters a sense that rescues us from chaos, that is paradoxically both maddening and seminal. Keeping in mind that Freud (1937) made an analogy between the analyst’s constructions and the patient’s delusion, would this be a Freudian intuition? Perhaps it would. And what could favour the analyst’s intuition? Precisely the complex technical proposition of Bion (1967b): the mind of the analyst ought to be in a state of openness to the unknown, a state that implies the opacity of memory, desire and prior understanding. Bion (1967b) understands that memory and desire are derived from sensoriality, and are intensified by it, and they do not seem to favour intuition and reverie, which is why Bion makes this technical suggestion that is still difficult to grasp nowadays. An analogy made by Bion (1970) helps us to understand this methodological proposal. Memory and desire are like a leakage of light that rushes into the process of developing pictures, burning the exposed film. Memory and desire, the past and the future, make it impossible to develop images that can be dreamt in the here and now of the session, in the penumbra of the mind, in the twilight of the state of reverie, a transitionality state (Rocha Barros and Rocha Barros 2019b), revealed in the lived present, the only time of experience. Reflecting on Bion’s (1967b) “Notes on Memory and Desire”, Ogden (2016, 79) writes that it is an article about intuitive thinking in the analytic situation: For me, reverie ... , waking dreaming, is paradigmatic of the clinical experience of intuiting the psychic reality of a moment of an analysis. In order to enter a state of reverie, which in the analytic setting is always in part an intersubjective phenomenon, the analyst must engage in an act of self-renunciation. I mean the act of allowing oneself to become less definitively oneself in order to create a psychological space in which analyst and patient may enter into a shared state of intuiting and being-at-one-with a disturbing psychic reality that the patient, on his own, is unable to bear. I understand reverie as a state of mind, a loving opening to the other, a hospitality, which produces or favours the emergence of a pictographic image. I think that the image that emerges from the reverie is an evolution of the analyst’s intuition – and this is the hypothesis supported in this text. Reverie as a thought/image that up to this point was not thought, and that is favoured by psychoanalytic intuition. Intuition as some- thing non-sensorial, but with infra- and supra-sensuous elements (Bion 1992b/2000), as already said, an essential capacity of the human mind. Taking up the clinical fragment presented, the pictorial image that arises in the session (the shoes of a dead man) has as its support the psychoanalytic intuition and the analyst’s capacity for reverie. In addition, the image also has other meanings: the image becomes the selected fact16 (Bion 1963) of the whole therapeutic process that will unfold itself, a memory for the future of the analysis that is beginning. An analytic process in which the analysand and the analyst will walk through dead lands, devitalized terrains, without contact with emotional truth, in which the pain has not been yet suffered (Bion 1970), the facts were not dreamed, they remain meaningless, without narrative, just a blind and raw pain. Bion (1963/1967b/1992a/2014) proposes the name “selected fact” based on the work of the mathematician Poincaré (Science and Method; 1914). A selected fact would be some- thing that would install a certain order in the complexity of the elements, and in this way, it makes understandable what initially was a disorganized experience. Bion (1967b/ 2014) makes an analogy between the selected fact and an image that is fixed in a kaleidoscope, giving a momentary sense to the disorganized and moving elements, an image that evolves from the session. Britton (1998) will address in the text “The Analyst’s Intuition: Selected Fact or Overvalued Idea?” a discussion that is close, in some aspects, to what I am discussing: the selected fact, in the clinical fragment exposed, a reverie, evolves from the analyst’s capacity for intuition, and initially the sensation is of something hallucinatory. The selected fact guides the analyst in the session and brings them closer to the patient’s psychic reality. However, Britton (1998) problematizes: how to distinguish it from an overvalued idea? It is precisely in the posteriority of the session that we will be able to know if it is an intuition or a hallucination of the analyst. An overvalued idea is a pre-selected fact, and not something that evolves from the experience with the patient in the session. The theories of the analyst may be used as pre-selected facts, over- valued and hallucinated, that may make the analyst impermeable to the disorganized emotions generated by the turbulence of the encounter of two personalities, that of the analysand and that of the analyst. Britton (1998) writes that the emergence of a selected fact involves three transformational sequences: from the paranoid-schizoid to the depressive position; from the non- contained to the contained element; and from pre-conception to conception. The over- valued idea would be a pre-selected fact, that is, the psychic impossibility of the analyst to wait for the emergence of the selected fact, which implies patience and tolerance for not knowing – the negative capability of the analyst’s mind. The pre-selected fact may be the analyst’s attachment to psychoanalytic theory due to the predominance of memory and desire. Britton (1998, 108) concludes: “the problem is that the analyst will be encouraged to believe that his overvalued ideas are the selected fact, as consensual agreement is valued more highly than the truth”. In the clinical fragment, the selected fact is the reverie of a dead man’s shoes. A picto- gram that momentarily organized the emotional turbulence of the encounter with Antônio. Given that the image of the dead man’s shoes favoured the understanding of the patient’s psychic suffering, it did not transform itself into interpretation or construction. Besides, it was not merely a selected fact of this first encounter, it was an iconic pictogram of the entire analytic process that unfolded from that moment onwards. For years, the analysis progressed through dead and devitalized areas that were gradually coming back to life, making it possible for Antônio to have a fulfilling experience with himself and with the people he was connected to. I consider it to be something uncommon that a clinical fragment with these characteristics offers itself in a generous manner for the understanding of these complex mental processes that occur in the emotional turbulence of analytic encounters. It was not possible to highlight any identifiable sensorial support17 – the initial sensation for the analyst was of an image with hallucinatory characteristics, as already stated, and precisely for this reason it remained as a clinical fragment to be theoretically metabolized. Psychoanalytic intuition and reverie: some notes Having the work of Bion as a reference, how can we think of an immediate and intuited knowledge, which has characteristics that can resemble a hallucination, since it presents itself as a vision that does not go through the processes that we are accustomed to vali- date as thought processes (deduction, association, comparison, analysis, observation etc.), but as something that appears as an image, that we see, or better said, that we create in an imaginary way, without identifiable sensory support? The hypothesis that I raise is that intuition happens between caesuras in constant oscil- lation: finite/infinite;18 self/other; formation/deformation; transformations in K/transform- ations in O.19 Considering that, we may also think of the intuition/hallucination caesura,20 a construction that is made succinctly in this text. A caesura is a synapse, a connection, it is the link, as Bion (1977) writes. The term originally refers to a pause in a poem, in the stanza, a space that gives rhythm, that makes a connection, that generates rupture and movement. Bion (1977/2014, 49) writes: Rephrasing Freud’s statement for my own convenience: There is much more continuity between autonomically appropriate quanta and the waves of conscious thought and feeling than the impressive caesura of transference and counter-transference would have us believe. So ... ? Investigate the caesura; not the analyst; not the analysand; not the unconscious; not the conscious; not sanity; not insanity. But the caesura, the link, the synapse, the (counter-transference, the transitive–intransitive mood). We can think of the caesura between different mental states, for example, the twilight when we wake up, at which time we have a dream scene in mind and for a moment there is no differentiation between the scene and the waking world, we have the impression that it was lived, and suddenly we wake up and realize that the scene was experienced in a dream, and quickly evaporates in the light of day. In the caesura between dream and wakefulness, there is connection, there is both continuity and rupture between two mental states. From the understanding that the mind works in a continuous oscillation between mental states, I propose the intuition/hallucination caesura. Intuition is a kind of phenomenon, an enigmatic affectation, which takes place in the caesura; it happens in the oscillation between the undifferentiated area of the mind, still formless, and the differentiated area, evolving into a reverie, and for this reason we can have the impression of a hallucination, as it is an imaginative creation (Chuster 2019, 2020), and therefore a form, which finds meaning only a posteriori. It takes time to know on which side of the caesura we are, hallucination or intuition, as in the clinical fragment of the dead man’s shoes, which initially is lived as a hallucination, and later is realized as a reverie from the analyst’s mind. Intuition can be favoured by the analyst’s discipline of observation in the analytic field. The analytic observation is practised beginning with Bion’s (1965, 1967b) methodological proposal: suspending memory, desire and prior understanding. The experience is per- ceived, first of all, as a raw (beta), enigmatic element (Figueiredo, Ribeiro, and Tamburrino 2011). I think that Bion’s proposal in the 1967 article “Notes on Memory and Desire” may be understood as a caesura in the analytical methodology, that is, as representing as much a continuity of the Freudian proposal of free-floating attention as a rupture, for it summons the intuitive capacity of the analyst, not only their associative and analytic thought, but also their imaginative thought,21 the creative imagination (Chuster 2019), the capacity to be affected by enigmatic experience and to construct a thought: the reverie. Memory (past), desire (future) and prior understanding are opacities that obstruct the analyst’s capacity for intuition and psychoanalytically trained observation. Bion (1992a) writes that intuition operates between opacities and transparencies, that is, in the caesura between opacities and transparencies. Bion (1970)22 makes an analogy that helps us understand this psychic process already referred to in this text: the photographic negative before the digital era. I make a subtly diverse appropriation of this analogy: the negative is a transparent dark film that receives any impressions or, we could say, any enigmatic affectations. The analyst’s mind would require this negative quality, a quality of reception, of hospitality, of containment for any affectation. In the process of development the image, or rather realization,23 achieved through elements that need a period of time in order to produce an effect and a dark room so that the negative affectation can become realized as an image, that is, a beam of intense darkness that needs time and space. There is a unique and complex composition of elements so that the realization of the image may occur. Memory, desire and prior understanding may be the precipitous light that burns the film before the image is developed. The image is created from the affectation in the negative pole of the analyst’s mind, their negative capability, and by the psychoanalytic observation, under the aegis of the alpha transforming function that turns the enigmatic of the experience into a sensorial psychic element that can be thought, the reverie. Psychoanalytically trained observation is the analyst’s discipline in order not to burn the film with their own personal24 equation25 (Bion 1992a). Analysts’ training are their per- sonal analysis and their analytic ethic. From Bion onwards, concepts are understood in a spectral manner; as already said, in this way intuition would have both a pole in the capacity of psychoanalytic observation, and an unconscious pole, in which the alpha function does its work: the transformation of raw emotional experience, the enigmatic of the experience, into a dream-like element, the image produced by reverie, an imaginative thought. In other words, there is a constant transit, absurdly fast, fleeting and always unstable, between the caesura of the finite (con- sciousness, form, area of differentiation of the mind) and the infinite (unconscious, formless, area of undifferentiation of the mind). In the constant oscillation of the various caesuras, intuition emerges like lightning in a blue sky, the enigmatic affectation, inevitably turbulent. Intuition operates in constant transit between the caesura where the analyst’s capacity for reverie/alpha function sustains itself, a capacity to imagine and create psychic elements. In this manner, the psychoanalytic intuition is favoured by the analyst’s trained capacity for observation, the negative capability. In other words, psychoanalytic intuition happens between caesuras, a continuous passage between mental states: non-sensorial/sensorial; finite/infinite; transformations in K/transformations in O; known/unknown; self/other. Apart from considering a continuous oscillation, based on a spectral understanding of the concepts, there is always a point of undecidability, that is, a point in which it is not possible to know which of the two poles of the spectrum we are at. And, perhaps, the point may also be an area, a territory of con- ceptual and phenomenological undifferentiation. To put it in another way, imprecision and undecidability are part of the nuances of the caesuras that constitute the psyche, with their opacities and transparencies. Due to this, we need to put a certain imprecision on to the psychoanalytic concepts; that is, the concepts of intuition, alpha function and reverie are intertwined, a clear differentiation between these concepts being epistemologically unfeasible. If we think from the vertex of Bion’s (1965) theory of transformations, the intuition would be in “O”, at-one-ment with the patient, and the image produced by reverie would be a transformation into “K”, an imaginative thought in search of a thinker. The narrative that can be constructed from the reverie is the analyst’s construction. Returning to Bion, the origin of each and every transformation is unknowable, it is O shared equally, even if in a diverse way, by both analyst and patient in the session: “I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analyst and analysand equally” (Bion 1965/2014, 169). The turbulence generated by the encounter with Antônio – as Bion (1979) writes, the encounter between two personalities is always a “bad job” – quickly evolves through a pictorial representation, a reverie in the analyst’s mind: the image of a dead man’s shoes, which also becomes the session’s selected fact, as explained above. The pictorial image is already a product of a process of transformation, from which we do not have access to the origin. The analyst in a state of negative capability is dragged by the emotional experience, momentarily without sense. The negative capability is the state of mind without memory, desire and prior understanding, a state of receptivity to O, and, also, favouring psychoanalytic intuition. It is necessary to have patience (a paranoid-schizoid state of mind) and faith – the act of faith (Bion 1970) that some sense will emerge in the posteriority of the situation – something that generates a state of security (a depressive state of mind), which provides an evolution in K, an understanding of the patient’s psychic suffering by way of a pictographic image, the reverie. Reverie can be understood as an imaginative capacity of the mind or a thought (Bion 1968/2014), a creative imagination (Chuster 2019) or an imaginative thought; are these all successful nominations and transformations based on the initial postulations by Bion (1959, 1962). From this perspective, we can think of the intuition/hallucination caesura, in that there is a point of undecidability, a moment in which we do not know whether the image that overwhelms us in the session, the reverie – the shoes of a dead man – is a hallucination or whether it is an intuition. By way of conclusion The facts, the experience in itself, what is unknowable, can be partially transformed into dreams, writes Bion in the epigraph of this text. The experience needs to be dreamt by the alpha function, this transforming and meaning-making function. The facts need to be dreamt, “unconscientized” – the other way of interpreting dreams. The dreams are a way of interpreting facts, the transformation of the brutality of life into dream-like elements, which find meaning through images, and afterwards in narratives, the interpretations and constructions of the analyst in the session. Intuition is not sensorial, but it holds some undiscernible support in the sensorial world, hardly identifiable. To use an analogy, we may understand the infra-sensuous and ultra-sen- suous elements referred to by Bion (1992b/2000) as the sounds that are not captured by the human ear, and also we can think of those people who have a “musical ear”, who hear musical notes in a way that few can hear. This is a good metaphor for the analyst: one who captures, through intuition, psychic elements that are inaudible and imperceptible to some, but to those with analytic intuitive ears and a trained capacity of observation it is possible to capture inaudible notes or the imperceptible silence between them. And if we are not hallucinating, we are intuiting psychic elements in a raw state. In conclusion, I believe that psychoanalytic intuition is an enigmatic affectation that occurs fleetingly in the continuous and oscillating transit between different caesuras, and that evolves into an image, a reverie, through creative imagination. The expression creative imagination (Chuster 2019) is successful: an image in action, in movement, a psychic element, a reverie, a thought (Bion 1968/2014) in search of a thinker in the analyst–analysand duo. Succinctly, I understand reverie as an imaginative thought that evolves in the session and occurs in constant oscillation between caesuras starting from the analyst’s capacity for intuition. I end this text with an epigraph from Ogden’s (1997/2013, 157) text Reverie and Interpretation, quoting novelist Henry James (1884), as I believe this to be a successful con- ceptual definition, seized by the mind’s capacity for poiesis, that is, reverie itself: Experience is never limited, and it is never complete; it is an immense sensibility, a kind of huge spider-web of the finest silken threads suspended in the chamber of consciousness, and catching every air-borne particle in its tissue. It is the very atmosphere of the mind; and when the mind is imaginative ... it takes to itself the faintest hints of life ... Notes: CONTACT Marina Ferreira da Rosa Ribeiro marinaribeiro@usp.br University of São Paulo, Psychology Institute, Prof. Mello de Moraes 1721 Bloco F, São Paulo, 05508030 Brazil 1. “Pre-conception, as I have placed it in row D of the Grid, is a term representing a stage in the development of thinking; preconception, in the sense of the analyst’s theoretical preconceptions refers to the use of a theory and so belongs to columns 3 and 4 of the Grid” (Bion 1963/2014, 64). © 2022 Institute of Psychoanalysis 2. This fragment was presented in two scientific meetings online (2020, 2021) available on Youtube: https://www.youtu- be.com/watch?v=jWHTWg-Gu9E and https://www.youtube.com/watch?v=Z01HZE_p8jo. 3. am circumscribing the discussion of the concept of reverie in this article as a pictorial representation, an image. Civi- tarese (2016a) refers to body reveries; however, due to the complexity of this debate, which would justify a separate text, I remain in the field of understanding reverie as a pictogram or ideogram, that is, as postulated by Bion. 4. use the expression pictorial image because it is an image that is “painted” in the mind of the analyst; its origin in Latin is pictōr, painter. In the book Cogitations, Bion (2000) uses the terms ideogram, pictorial representation and pictographic images practically as synonyms. 5. “The act of faith ... Thus he designates an act that is carried out in the realm of science and ought to be distinguished from its usual meaning with religious connotations ... It refers to the necessity of the subject to believe that there is a reality that is not known to them and is out of their reach” (Zimmerman 2004, 78, translator’s translation). 6 .Verbal communication (2020). 7. Bush (2019) published the book The Analyst’s Reveries: Exploration in Bion’s Enigmatic Concept, dedicated to the concept and its diverse understandings in three of the principal post-Bionian authors: Thomas Ogden, Antonino Ferro, and Rocha Barros and Rocha Barros. 8. In the original: “9. Thoughts. Freud on thinking (‘Two Principles’) ‘Thoughts are a nuisance’. Thoughts logically and epistemologically, prior to thinking. 10. Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’” (Bion 1968/2014, 76/77). 9. The visual flash is an expression of Meltzer (1984/2009), and refers to an image that is “seen” externally; in other words, it has a more intense hallucinatory component. What differentiates it from a hallucination is the sense of the image that emerges a posteriori. 10 .Ogden’s (2013) expression.11According to the book From Reverie to Interpretation. Transforming Thought into the Action of Psychoanalysis (Blue and Harrang 2016). 12 .Proto-thought is Bion’s (1948–1951) expression when referring to something that is not yet a thought, but has the potential to be one, an ideogram. 13 .Bearing in mind that discussing the distinction between these terms would require a separate work. 14. Original emphasis. 15 .In the book Cogitations (1992a) Bion uses the terms infra-sensorial and ultra-sensorial – we may make an analogy with ultraviolet rays that are imperceptible to the eye but nevertheless produce effects. 16. “Selected fact: this important concept – inspired by the mathematician Poincaré – refers to a search for a fact that gives coherence, significance and names to facts already known in isolation, but whose interrelations were not yet perceived” (Zimmerman 2004, 86, translator’s translation). 17. The actual shoes of the patient did not have any peculiarity that could have been a sensorial support for the image of the shoes of a dead man. In addition, there was no information about the patient prior to the meeting, which makes this clinical fragment interesting for the approximation of the concepts of intuition and reverie. 18 .Bion proposes the terms finite for conscious and infinite for unconscious. 19 .Later in the text I join intuition with Bion’s (1965) theory of transformations. 20. A suggestion made by Evelise Marra at a scientific encounter (2021). 21 .Imaginative thought is a term that emerged during the writing of this article. 22. Picked up on by Chuster (1996). 23. Realization in the sense of making the invisible visible – I am using the term in a lay manner. Realization is one of Bion’s concepts that has different understandings over the course of his work. 24 .Keeping in mind that, for Bion, countertransference is always unconscious. 25. Traits or characteristics. Translations of summary Intuition psychanalytique et reverie: saisir des faits non encore rêvés. L’auteure de cet article entreprend de faire dialoguer certains concepts de Bion avec ceux émanant de l’œuvre de psychanalystes bio- niens (Ogden, Ferro, Rocha Barros et Chuster), en privilégiant notamment les concepts d’intuition psychanalytique, de reverie et de fonction alpha. Comment pouvons nous penser la relation entre reverie et intuition ? L’état de reverie de l’analyste pourrait-il voir son centre être occupé – avant et au-delà du sensoriel, dans l’infra et l’ultra sensoriel – par la capacité d’intuition de l’analyste ? L’auteure décrit l’expérience troublante d’une analyste dans son cabinet, qui observe comment opèrent les concepts dans le matériel clinique. Le matériel clinique étaye l’hypothèse selon laquelle la reverie est un avatar de l’intuition psychanalytique et que l’intuition se produit entre les césures, comme le soutient Bion avec sa proposition : sans mémoire, sans désir, sans compréhension a priori, autrement dit la capacité négative. Die psychoanalytische Intuition und die Träumerei: Erfassen von noch nicht geträumten Tatsachen. Dieser Artikel stellt einen Dialog zwischen einigen Konzepten Bion‘s und denen post-Bionianischer Psycho- analytiker (Ogden, Ferro, Rocha Barros und Chuster) her, insbesondere über die psychoanalytische Intuition, Träumerei und die Alpha-Funktion. Wie können wir über den Zusammenhang zwischen Träumerei und Intuition nachdenken? Könnte die Intuitionsfähigkeit des Analytikers im Zentrum des träumerischen Zustands des Analytikers - vor und jenseits des Sinnlichen, im Infra- und Ultra- Sinnlichen - stehen? In dieser Arbeit wird eine beunruhigende Erfahrung einer Analytikerin in ihrem Behandlungsraum geschildert, um zu sehen, wie sich die Konzepte im klinischen Material zeigen. Das klinische Material stützt die Hypothese, dass die Träumerei eine Entwicklung der psy- choanalytischen Intuition ist und dass Intuition zwischen Zäsuren auftritt, was unterstützt wird von Bion‘s Vorschlag, keiner Erinnerung, keines Wunsches, keines vorherigen Verstehens, d.h. eine negative Fähigkeit. L’intuizione psicoanalitica e la reverie. Registrare fatti non ancora sognati. Il presente lavoro si propone di far dialogare alcuni concetti sviluppati da Bion con quelli utilizzati dagli psicoanalisti post-bio- niani (Ogden, Ferro, Rocha Barros e Chuster), concentrandosi in particolare sull’intuizione psicoanalitica, sulla reverie e sulla funzione alfa. Come si può pensare il rapporto tra reverie e intuizione? Ha senso immaginare che lo stato di reverie dell’analista abbia al suo centro - prima e al di là della dimensione sensoriale, e dunque nell’infra e nell’ultrasensoriale - la capacità di intuizione dell’ana- lista? L’articolo presenta la disturbante esperienza occorsa a un’analista al lavoro, osservando come i concetti qui in esame siano operanti nel contesto del materiale clinico. Il materiale clinico funge da appoggio all’ipotesi che la reverie costituisca un’evoluzione dell’intuizione psicoanalitica, e che l’intuizione abbia luogo tra cesure - un’idea, questa, supportata dall’invito bioniano a porsi in un assetto psichico senza memoria e desiderio e senza una comprensione precostituita dei fatti: vale a dire, in un assetto di capacità negativa. La intuición psicoanalítica y la reverie: la captación de hechos aun no soñados. Este artículo promueve el diálogo entre algunos conceptos de Bion y aquellos de los psicoanalistas posbionianos (Ogden, Ferro, Rocha Barros y Chuster), con especial atención a la intuición psicoanalítica, a la reverie y a la función alpha. ¿Cómo podemos pensar la conexión entre reverie e intuición? ¿Es posible que el estado de reverie del analista tenga como centro –antes y más allá de lo sensorial, en lo infra y ultra sensorial– la capacidad de intuición del analista? Se presenta una experiencia perturbadora de una analista en su consultorio, en la que se examina cómo funcionan los conceptos en el material clínico. Este material confirma la hipótesis de que la reverie es una evolución de la intuición psicoanalítica y que la intuición ocurre entre cesuras, lo cual se apoya en la propuesta de Bion de sin memoria, ni deseo, ni comprensión previa, es decir, la capacidad negativa. ORCID Marina Ferreira da Rosa Ribeiro http://orcid.org/0000-0002-2278-063X References Bion, R. 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- XXY: o gênero nas malhas da pluralidade
Ivy Semiguem F. de Souza-Carvalho Marina Ferreira Rosa Ribeiro Um corpo corre pela floresta. De relance, vemos braços vigorosamente se mexendo e os pés descalços se movimentando rapidamente pelas folhas no chão. A floresta cerrada nos transporta ao cheiro da terra molhada, das folhas apodrecendo, a sensação fria da neblina. A natureza entra em cena com uma densidade quase palpável. É dela que o corpo corre? Ou é nela que ele se assenta? Nova cena, o corpo agora pode ser reconhecido como pessoa e suas mãos carregam um facão. Algo de violência grita, remete à agressividade, corte, rompimento. Trata-se de uma luta ou de uma fuga? Outra cena, alguém segue atrás. É uma perseguição? Não, espera!... alguém corre junto. Não é um percurso solitário, a pessoa tem companhia em seu frenético movimento. Sim, nenhum trajeto se faz sozinho. Sentimos a corrida, o movimento, o caos. Aos poucos percebemos que a marcha desordenada, alvoroçada e urgente é de um corpo adolescente, púbere, um corpo em fluxo. Tal corrida caótica das primeiras cenas do filme é emblemática deste momento de reveses da sexualidade, período de “confluência de dois rios com águas muito heterogêneas, sem nenhuma certeza de que chegarão a uma mistura harmoniosa. De um lado a pulsão e a fantasia infantil; de outro, o instinto pubertário” (LAPLANCHE, 2015a, p.42). É neste caldo plural entre instinto e pulsão, fantasmas e cultura, que gênero, sexo e sexualidade se entrelaçam, reabrindo enigmas e exigindo novos trabalhos de traduções. A proposta deste capítulo é discutir o complexo caminho da constituição da identidade de gênero, pensando-o em sua relação com o sexo, com a cultura e, principalmente, com o inconsciente. Para tanto, recorremos ao precioso filme XXY (Argentina, 2007), trama que nos convida a entrar na pele de Alex, a pessoa retratada acima, e reviver a estranha familiar pluralidade que pulsa em cada um de nós, em nossa constante ressignificação da sexualidade e identidade. Esta análise será fundamentada de modo determinante nos pressupostos da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, mais especificamente na tese apresentada no texto O gênero, o sexo e o Sexual (2015b), em que o autor retrabalha o conceito de gênero integrando-o à teoria psicanalítica, sem perder de vista o inconsciente e a noção de conflito. Afinado com a discussão sobre gênero desde a década de 70, Laplanche escreve que os gêneros antecedem a diferença de sexos. O gênero é plural, defende o autor, e a pretexto da protagonista, Alex1, propomos refazer essa sinuosa jornada que compreende o processo de gênero e sexuação. O drama, roteirizado e dirigido por Lucía Puenzo, é uma adaptação poética do conto Cinismo, de Sérgio Bizzio. Foi lançado na Argentina em 2007 e em 2008, nos cinemas brasileiros, recebendo inúmeros elogios da crítica. Venceu o Grand Prix da semana de críticas no Festival de Cannes e o prêmio Goy a de melhor filme estrangeiro de língua espanhola, além de ser indicado pela Associação Cronistas Cinematográficos da Argentina a oito prêmios Cóndor de Plata . Tal reação não surpreende, pois, além do elenco de peso formado por grandes nomes do cinema latino-americano (como Ricardo Darín, Inés Efron e César Troncoso), Puenzo coloca em cena uma narrativa dedicada ao polêmico tema da intersexualidade. Sem dúvida, o longa, com sua sensibilidade ímpar, oferece inúmeros fios que podem ser desdobrados nas mais diversas interpretações. A grandeza do filme, inclusive, está no modo sutil como a diretora aborda o sofrimento que todos passam. É cuidadosa em sua abordagem, na medida em que conduz a trama de uma forma empática (sem vilões ou mocinhos) e sem necessariamente nos dar uma resposta, deixando um convite à tradução em aberto. Ou, para aproveitar as palavras de Belo (2011): “criar uma obra é também renovar nossas experiências originárias: emitir uma mensagem para o outro, propor um enigma a ser decifrado” (p.72-73). Assim, qualquer leitura de uma obra é uma possível tradução que funda- mentalmente jogará luz em certos elementos ao mesmo tempo em que se reduzem outros. Neste sentido, o nosso recorte se justifica ao passo que o nosso objetivo, então, não é necessariamente fazer uma análise da história do filme, mas usá-lo a pretexto da teoria, propondo reflexões sobre a singularidade plural de cada um e problematizando a necessidade de encaixar seres humanos em definições inflexíveis. Assim, no que se segue, desdobramos a nossa discussão em três eixos de análises. No primeiro discutimos o filme pela perspectiva das mensagens enigmáticas emitida pelos pais e a pluralidade de gênero que elas comportam. No segundo, a tradução é colocada em destaque e exploramos como o sexo (código binário) e as narrativas que advêm do mito simbólico cultural operam como auxiliares de tradução. Por último, convidamos Butler e Bleichmar para dialogar, pensando a dimensão ética do reconhecimento, questionando a violência e a importância de ser reconhecido como uma vida que importa. Mensagem enigmática e pluralidade de gênero XXY carrega uma atmosfera de mistério. O filme não entrega os fatos de imediato. As imagens passam de relance, insinuando-se, e os diálogos mais aludem do que explicam, funcionando como verdadeiras mensagens enigmáticas a serem decifradas. O trabalho de tradução fica a cargo do espectador, que é impactado pela experiência e mobilizado a pensar. Vê- se um livro sobre a origem dos sexos em uma cena, tartarugas marinhas em outras, assim como uma boneca nua com o sexo marcado com papel no quarto da protagonista. Muitos silêncios. Tudo isso envolto em um tom de segredo e neblina. “Ainda não consegui falar com Kraken” confidencia a mãe da protagonista. “Como não?!”, surpreende-se a personagem recém-chegada. “Mas vou achar uma hora hoje”, promete em um tom aflito. E em seguida o pedido de sigilo: “O Ramiro não falou com ninguém, falou?”, “Não, não se preocupe, ele é muito discreto”. Captura-se a densidade da angústia, a sensação de uma espera, de pudor e expectativa! É nesta trilha dos afetos que vamos, aos poucos, construindo o mosaico do enredo do filme e sintetizando, ao nosso modo, o conflito que subjaz a sua trama. Na história temos Alex (Inés Efron), uma adolescente de 15 anos que rapidamente fisga o telespectador com sua aparência andrógina, com seus olhos extremamente expressivos e com sua personalidade paradoxal. É tão brava e ácida quanto esperta e sagaz. Alex é direta, sem meias palavras. Neste ambiente de nevoeiro no qual sussurros, expectativas subliminares e falta de clareza compõem um cenário de incertezas, as palavras da protagonista cortam o ar e funcionam como uma rajada de vento que clarificam as intenções numa concretude impactante: “Você se masturbou hoje!”, “Você transaria comigo?”, “Gosta de minha casa? (...) Não minta para mim!”, “Você gosta dos seus pais? (...) Não é porque eles são seus pais que você tem que gostar deles”. As suas palavras honestas remetem a uma pessoa corajosa que se coloca ativamente na busca de respostas aos seus enigmas em seu processo de traduzir-se . A história efetivamente começa com a visita dos portenhos, Ramiro (Guillermo Angelelli), de sua esposa, Erika (Carolina Pelleritti), acompanhados de seu filho adolescente Álvaro (Martín Piroyansky) ao lar de Alex, uma casa rústica situada numa pequena cidadezinha litoral uruguaia2. Como esperado, as intenções de tal encontro não são claras. É entre sus- surros que vamos entendendo aos poucos que Ramiro é um cirurgião interessado em corrigir casos de deformidades, sendo que parece especialmente entusiasmado pelo caso de Alex. A responsável por mobilizar tal encontro foi a mãe da protagonista, Sueli (Valeria Bertuccelli). A família é de antigos amigos dela, levando-nos a supor que existe uma expectativa de sua parte em discutir a possibilidade de uma operação para Alex. Na trama Sueli aparenta estar confusa, angustiada e com certa premência em resolver a situação. No entanto, o cenário é extremamente delicado, pois, ao que tudo in- dica, esta não é a posição de Kraken (Ricardo Darín), o pai de Alex. Este, por sua vez, parece veementemente resistir ao discurso médico vigente e normatizador3. À medida que o real propósito da visita vai ficando claro para todos, Kraken não hesita em provocar um desconforto geral ao se posicionar na mesa do jantar: “Não suporto gente arrogante. Saímos de Buenos Aires para nos vermos longe desse tipo de gente, se lembra? Agora parece que estamos sentados com ela na mesma mesa”. Coincidentemente (ou não), ele é um biólogo que trabalha com a preservação de tartarugas marinhas, espécies que, por conta do ambiente hostil, correm sérios perigos de extinção. Assim, se até então o casal estava de acordo sobre a mudança para o Uruguai – um “espaço de refúgio e de asilo ante situações de perseguição e de agressão” (JOHANSSON, 2018, p.104) – para poupar a filha dos preconceitos de terceiros, resistindo especialmente à prescrição médica de “correção” cirúrgica precoce; agora parecem divergir quanto ao o que deve ser feito. Enquanto Kraken ainda deseja esperar a filha crescer e fazer a sua própria escolha, Sueli, por sua vez, apresenta certa urgência em ver uma definição. Talvez por ter descoberto que a filha deixou de tomar remédios da terapia hormonal, que mantêm os efeitos biológicos de feminização, o que implicaria estar “perdendo” a sua menininha. Fica evidente que esses adultos que permeiam Alex também estão confusos e tentando não só ajudá-la a se constituir da melhor forma, mas também precisam dar conta daquilo que a ambiguidade da filha suscita neles, na medida em que reabre os seus próprios enigmas de gêneros. Ao observar este tipo de relação, Laplanche (2015b) afirma que a presença do bebê necessariamente convoca a sexualidade infantil presente nos adultos. Trata-se de uma relação assimétrica, do ponto de vista do Sexual, em que, de um lado, temos um bebê passivo e, do outro, um adulto ativo, clivado, isto é, dotado de um inconsciente sexual. Quer dizer, quando os adultos cuidam do bebê, eles não podem abrir mão de seu inconsciente. Por isso, no seu contato com a criança, diversas mensagens são transmitidas sem que nem eles próprios saibam. A princípio, o diálogo entre adulto e criança se fundamenta no plano do apego. A criança, com sua montagem comportamental inata, busca no corpo do adulto o calor, o alimento e a sobrevivência. O adulto, por sua vez, ao mesmo tempo em que despende os cuidados ternos e autoconservativos ao infante, inevitavelmente inocula a sua sexualidade na criança, propiciando os elementos para sua constituição psíquica. Por exemplo, ao amamentar uma mãe pode viver essa cena de inúmeras formas – pode se sentir gratificada, invadida, preocupada etc. – e as excitações produzidas por essas fantasias são transmitidas ao infante, restando a ele traduzi-las. Assim, o corpo da criança faz um apelo ao infantil dos pais, que, por sua vez, erotizam a criança. Não há amor desprovido de sexualidade. É neste inescapável contexto da sedução originária e do estabelecimento da tópica psíquica que se situam os conteúdos de gênero. De início, pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior4. Isso porque desde quando nascemos, junto com as mensagens de apoio – aquelas que recebemos dos cuidados corporais de limpar, alimentar, amamentar... –, recebemos também atribuições contínuas de mensagens de gênero por meio do socius, isto é, aquela pequena sociedade que permeia o bebê. Mãe, pai, avós, tios, babás, professoras da escolinha, todos eles realizam um conjunto de atos que se prolonga na linguagem e nos comportamentos, compondo uma verdadeira prescrição de gênero. “É uma menina! É um menino!”. Frente a tal constatação se coloca em marcha uma série de prescrições que envolvem desde o nome, o vestuário, as brincadeiras infantis e até a forma de levar a criança no colo. São mensagens contínuas que começam no dia em que nascemos e que aparecem até o último dia de nossas vidas. Desta forma, antes mesmo de a criança ser capaz de se identificar com os adultos em sua volta – por exemplo, “sou um menino como o papai” –, são os adultos que fazem uma “identificação por” ela – “você é um menino como o papai”. Com isso, Laplanche (2015b) reposiciona o pro- cesso de identificação presente na atribuição de gênero, transformando-o completamente ao inverter o seu vetor. Ao invés de pensarmos em “identificação com”, deveríamos pensar em “ser identificado por”, isto é, ser identificado pelo socius da pré-história individual. No entanto, este “bombardeio de mensagens de gênero” direcionado ao infante também não está imune do inconsciente dos pais. Quer dizer, as mensagens de atribuição de gênero não transmitem apenas os desejos e as expectativas conscientes dos cuidadores, mas carregam também o polimórfico perverso, os fantasmas, o resíduo plural composto pelos conteúdos conflitivos de gênero de cada um. Tudo aquilo que os adultos precisaram elaborar e recalcar para dar conta do próprio enigma dos gêneros é revisitado e passível de transmissão. A confusão que os próprios adultos apresentam em relação ao gênero é exemplificada pelas palavras de Dejours (2009): Quando os adultos atribuem um gênero a uma criança, eles mesmos não sa- bem exatamente o que entendem por macho ou fêmea, masculino ou feminino, homem ou mulher. É fácil significar a uma criança que ele é um homem. Mas, o que quer dizer ser um homem para o adulto que pronuncia esta atribuição? Quando um adulto diz a seu filho que ele é um menino, ele diz ao mesmo tempo tudo aquilo que pensa acerca dos meninos e das meninas, mas também todas as dúvidas que têm sobre o que esconde exatamente a noção de identidade de sexo e de gênero. Seguramente podemos afirmar que, por meio desta atribuição de gênero, o adulto, sabendo-o ou não, confronta a criança com tudo o que pode haver de ambíguo na diferença anatômica de sexos e no sexual, e isso por causa de suas próprias ambivalências, incertezas e conflitos internos (DEJOURS, 2009, p. 7). Justificar o que significa “ser um homem” ou “ser uma mulher” não é uma tarefa simples ou neutra, ela é mobilizadora de fantasias. Laplanche elucida essa confusão com o seguinte exemplo: um pai pode dizer conscientemente ao rebento que ele é um menino. Mas pode, inconscientemente, ter desejado uma menina e, mais, ter desejado penetrar uma menina. E estes ruídos não advêm de pais perversos, mas de pais “suficientemente bons”, que diante do corpo do bebê que cuidam, também são assaltados por aquilo que é estrangeiro a si: a sua sexualidade polimórfica perversa, o seu plural. No filme, Alex é tudo. Sua carne corporifica o plural. E, sem diminuir o peso do viés da intersexualidade – que é uma problemática importante5, Alex poderia ser pensada também como uma metáfora deste processo complexo de elaboração da identidade de gênero. Eixo que, em certo sentido, parece ser sustentado pela própria Puenzo ao dizer: “Havia o risco de as pessoas acharem que o filme é sobre uma anomalia. Não é. Essa é uma história de amor adolescente, algo que acontece a todo mundo” (apud ARANTES, 2007). Assim, para a cineasta, seu longa quer situar o tema da “liberdade de escolha no mundo de hoje” e a discussão sobre “a identidade” na fase da adolescência. Para nós, é o plural que grita e salta aos olhos do espectador. Apesar da atribuição consciente advinda dos pais “menino ou menina”, desde o início da vida já recebemos muito mais que dois: é com a multiplicidade do inconsciente que sobrevém, em forma de enigma, do resíduo tradutivo deles, que temos que nos a ver. Neste sentido é curioso que, por mais racional, lógico ou moral que seja o discurso de designação de um gênero dos adultos, no centro da transmissão de gênero encontramos o infantil inconsciente: o corpo da criança passiva que convoca a criança do adulto que, por sua vez, faz ruído nas mensagens de designação de gênero. Agora, se toda criança traz à tona o inconsciente do adulto, sendo que isso inevitavelmente já acontece diante de uma criança biologicamente “normal”, no filme vemos que a situação coloca um desafio maior para os pais (e para a própria Alex). Diante de um corpo ambíguo e pouco definido em termos biológicos, o que vem então à tona? Novamente, o plural! E em sua versão mais anárquica, pois a falta de clareza sobre a anatomia desorganiza as possibilidades de recalcamento. O sexo – como veremos adiante – funciona como um código que ajuda na tradução e recalcamento de tal pluralidade. Ele, juntamente com os auxiliares de tradução culturais, o mito simbólico, ajudam a dar contornos para o conteúdo plural e polimórfico de gênero, recalcando-o. A identidade do gênero é um processo que coincide com os processos de estabelecimento do Eu, fazendo parte do próprio originário. A pluralidade do gênero, portanto, constitui o próprio Sexual, é o próprio enigmático e remete à abertura caótica que nós fazemos de tudo para evitar. No filme, Alex mobiliza pontos do inconsciente dos pais. O que exatamente vai vir na mensagem a partir do que foi mobilizado é uma incógnita, mas podemos antever que há no mínimo duas reações, duas formas de lidar com o enigmático, sendo que o modo do pai não coincide com o da mãe. A princípio ambos concordam, pois, apesar de estarem confusos, foram contra a corrente do discurso social e médico e não lançaram mão de uma cirurgia de antemão. A proposta foi esperar o tempo de elaboração da própria Alex. Uma espera que evidentemente nunca será completamente neutra, uma vez que os adultos, querendo ou não, inconscientemente fazem uma identificação por ela, isto é, projetam inconscientemente elementos de sua sexualidade6, suas expectativas e confusão. Tanto que no filme, apesar de não operarem Alex quando pequena, estes pais não deixam de oferecer, de certa forma, alguns contornos e traduções. Assim, apesar de optarem por nome neutro, que suportaria uma mudança posterior se viesse ser necessário, a reconhecem como filha, pelo pronome feminino. Escolhem temporariamente por ela, até ela ser capaz de escolher por si só. Mas quando Alex, agora já adolescente, deixa de tomar os comprimi- dos, ocorre uma reabertura da situação originária para todos. A solução da mãe frente à angústia do plural é dar um contorno rápido e definitivo: a cirurgia. Pronto. Ufa! Estabelece uma definição, Alex é uma mulher. Solução esta que estaria em conformidade com o desejo da mãe, como foi revelado em um diálogo entre Érica e Alex “Quando éramos pequenas, sua mãe dizia que ela queria ter quatro filhas. Nós a chamávamos de Susanita”. E Alex, sagaz e aguçada com a expectativa implícita nesta mensagem, nem hesita em ironicamente se posicionar: “Parece que a Susanita ficou assustada ao longo do caminho”. O pai, por sua vez, também viu em Alex, uma menina. Dado que se insinua quando Alex lê, em alto e bom tom, a frase do livro “A origem dos sexos”, cujo pai é autor: “Em todos os invertebrados, incluindo os seres humanos, o sexo feminino é primário no sentido evolutivo e embriológico...”. Frase que, sem dúvida, compõe as mensagens enigmáticas com que ela tem que se haver. Entretanto, apesar de seu desejo frente à pluralidade enigmática que retorna na adolescência de Alex, este pai parece tolerar mais o ambíguo, o fluido, sem necessariamente se desorganizar a ponto de antepor uma definição a ela. Suporta manter a dimensão da alteridade interior, a relação com enigma, a relação com o desconhecimento, colocando-se suficientemente em suspenso para o bem da filha. Neste sentido parece que consegue ser “o guardião do enigma”7, na medida em que sua atitude remete à bienveillante neutralité do analista, isto é, “querer o bem do paciente, mas sem pretender jamais conhecê-lo, sem jamais manipular o paciente, mesmo que para seu suposto bem” (LAPLANCHE, 1993, p.80). Ao recusar saber o que é melhor para ela e manipulá-la, o pai oferece condições que permitem recolocar em movimento o processo de tradução e de simbolização. A tradução: do plural ao binário E em meio deste caos de mensagens temos a própria Alex, tentando dar conta de organizar e traduzir a sua identidade de gênero e o seu desejo sexual. É interessante como nessa dimensão intersubjetiva não existem vítimas ou algozes e nem uma solução correta, certeira e pronta, pois tudo se transforma em mensagens enigmáticas, em um a decifrar . Fazer ou não fazer uma operação é uma mensagem a ser elaborada, esconder sua condição do mundo é outra mensagem, assim como aguardar o tempo de se decidir também se transforma em mais uma mensagem. Alex captura tudo isso e precisa fazer uma simbolização própria, estabelecer ligações e atribuir sentidos. “Eu tenho pena dos meus pais” diz ela a Álvaro em um momento de confidência e cumplicidade, “eles estão sempre esperando algo”. É no encontro com Álvaro que se desenrola uma história de descoberta, sexo, amor, que abre possibilidades de novas significações. A princípio Alex se mostra arredia frente à chegada dos estrangeiros, es- conde-se sob a casa, observa-os à distância. A primeira pessoa de quem se aproxima é Álvaro. Um encontro só a dois, na praia, ao entardecer. Neste, acontece um diálogo inusitado, no qual Alex nem se apresenta e inicia a conversa com a temática da masturbação e termina convidando-o a transar com ela. O encontro entre Alex e Álvaro é um encontro de confusão. O enigma que remete a Alex está posto, é externo, explosivo, está revestido na própria carne. Desde à primeira vista o seu corpo plural evoca certa confusão. Álvaro, por sua vez, é o adolescente tímido, com seus inseparáveis fones de ouvido, que segue desenhando quieto, fechado em si. Aparentemente ele não causa confusão, ao contrário, poderia passar despercebido em um ambiente mais ruidoso. O encontro entre os dois parece a junção entre o mar e areia. O mar que remete ao caos, o fluido, a fúria, em contraposição à suposta uniformidade da areia, que, à primeira vista, supõe algo estável no horizonte. Mas que, de outro modo, é também fluida, amórfica, como se o caos estivesse socado em si. São o implosivo e o explosivo. Duas confusões diferentes, mas que não deixam de ser confusão, a da areia e a do mar. O que é genial é que tal encontro não é disruptivo. Apesar do tom de surpresa, Álvaro não a percebe como intrusiva ou repulsiva. Se até então ele havia se limitado a olhá-la com desconfiança, passa a ver sua sinceridade e valentia com certa admiração. Alex parece nos colocar à prova o sexo, desejo e genitalidade. Quer vivenciar e se redescobrir, ou talvez, se descobrir pela primeira vez. Isso porque, segundo Laplanche, para organizar os enigmas plurais de gêneros, a criança recorrerá a alguns recursos de tradução. Um dos recursos será o próprio sexo anatômico, que diz respeito àquele momento, ainda na infância, quando acontece a “descoberta dos sexos”. Antes disso, afirma o autor, a criança reconhece que o mundo se organiza em homens e mulheres, mas apenas no momento da fase fálica, em que “descobre” que os genitais são diferentes, que um dado se articula ao outro, sendo ressignificado. Por isso que Laplanche deixa claro que a identidade de gênero é primeira, ao passo que precede a descoberta do sexo e é, inclusive, organizada por ele. No entanto, a anatomia, da qual se trabalha o gênero, é perceptiva e ilusória, e não biológica. A simbolização das mensagens enigmáticas ocorre no seio de uma rede fantasmática, podendo ser traduzidas em termos de teorias sexuais infantis, como a da castração e as fantasias associadas a ela. Fica evidente que, na teoria de Laplanche, a castração não constitui uma categoria metafísica, não é filogenética ou universal, mas é um código tradutivo, um importante processo secundário. Ela seria a teoria que a criança consegue forjar para responder uma das três questões fundamentais e que todo indivíduo tenta compreender: a sua própria origem, a origem da sexualidade e a origem da diferença sexual: “A teoria da castração quer dar conta desse enigma e está simbolizando um sistema codificado. O código se baseia, por sua vez, na anatomia e funciona como um mito binário, mais ou menos” (LAPLANCHE, 2001, p. 205). Trata-se do primado fálico, que coloca em jogo um código regido pela presença ou ausência no qual se inscreve a diferença entre os sexos. Este código transforma diversidade (pluralidade) em diferença (fálico - não fálico). Logo, se a anatomia é o que impulsiona as fantasias infantis e estas funcionam como código para traduzir, como se estabelece este código em Alex? Afinal, ela teria um código tão enigmático quanto a própria mensagem. Seu corpo não faz parte da lógica binária. Ele carrega o masculino e o feminino juntos, o que nos permite inferir que, ao invés do corpo funcionar como código de tradução, ele poderia vir a potencializar a mensagem. Neste sentido, se a mensagem já é enigmática, pode ser “enigmatizada” ainda mais, sob o risco de seus conteúdos estarem fadados a permanece- rem congelados, sem tradução. Desta forma, sem o auxílio deste importante código tradutivo, resta à nossa protagonista buscar outros possíveis organizadores. E é aí que o complexo de Édipo entra em cena. Acontece que, primeiramente, a castração funciona como um código independente de presença e ausência, e, posteriormente, torna-se parte de enredamento com o complexo de Édipo, ressignificada como castigo ao crime. O complexo de Édipo é, segundo Laplanche, “um ‘esquema narrativo’ que remete a uma teoria da narratividade, submetendo esta a roteiros mais ou menos ricos, populares, flexíveis” (LAPLANCHE, 2015c, p.286). Pertencente ao universo mito simbólico, este processo não estaria ao lado do recalcado, mas do recalcamento, uma vez que sua trama e seus personagens (pai, mãe, filho, homem, mulher) já se relacionam com tudo aquilo que sua pequena sociedade coloca como parâmetro. É no entremeio do enredo edípico que se triangulam as relações, posto que ocorrem as identificações (quem eu quero ser?) e a escolha de objeto (quem eu quero ter?). Aos poucos, a identificação por aquela identificação que no primeiro tempo o bebê recebeu passivamente, conforme foi identificado como menino ou menina pelos pais, transforma-se em identificação a , fruto da atividade tradutiva da própria criança. E as fantasias edípicas auxiliam organizar, em forma e conteúdo, a profusão plural, estabelecendo a sexuação. Estas “novas descobertas” – a identidade sexual e escolha de objeto – são rearticuladas à identidade de gênero (sou menina ou menino), que vinha sendo elaborada no primeiro tempo, atribuindo novos sentidos a ela. Sobre isso, Silvia Bleichmar (2009) afirma que o gênero é organizado a partir do lugar que o sujeito tem instituído no sistema simbólico. Dentro dessas categorias identitárias, a posição sexuada é um importante ele- mento que conjuga e articula o que será e o que não será recalcado. Afinal, toda afirmação identitária – sou mulher, sou brasileiro, sou generoso – opera em forma de um centramento do Eu que, necessariamente, deixa do lado de fora o que se quer excluir. No caso da sexuação, Bleichmar (2009) entende que o núcleo da identidade sexual, que tem relação com a “descoberta dos sexos”, exerce um peso. Ele recolherá certos atributos de gênero, que vão funcionar como contra investimento, em particular, dos desejos homossexuais que foram sepultados a partir do recalcamento dos elementos do “Édipo invertido”8. É certo que os desejos qualificados pelo Eu como “homossexuais” só terão o estatuto estabelecido a posteriori , após terem sido qualificados pelo pré-consciente. Como os desejos se constituem antes da descoberta das diferenças, a relação com os objetos não estará atravessada pelas preocupações que vai assumir a identidade sexuada, de modo que ela irá organizar tanto o Eu quanto a diferença anatômica. Por isso, Bleichmar (2009) exemplifica que, no contexto de pré-sexuação, o garotinho pode sustentar certos desejos pulsionais em direção ao pai sem entrar em contradição com o fato de se reconhecer como menino. No entanto, este mesmo garotinho já não consegue se vestir de mulher sem entrar em conflito com sua identidade de gênero. Não se trata simplesmente do polimorfismo infantil, mas de processos complexos que operam concomitantemente. Agora, ciente destes marcadores – ‘sexo, fantasias e cultura’ – responsáveis por recalcar a pluralidade em torno de uma binaridade dos gêneros, voltamo-nos ao percurso de nossa protagonista e, tentando compreender o desafio identitário que ela se vê às voltas, perguntamo-nos: a quem Alex se identifica (pai ou mãe?) e quem Alex deseja? Mistério que a trama mantém em suspenso até que um dos momentos mais surpreendentes do filme talvez nos dê uma pista: o encontro sexual de Álvaro e Alex. Após um desentendimento entre os dois, Álvaro procura Alex que está chorosa num galpão na parte externa da casa. Rapidamente a suposta tentativa de desculpas se transforma numa cena de sexo, guiada afobada- mente por Alex. O elemento surpresa é quando, no ato, ela vira Álvaro de costas e assume a posição penetrante. E Álvaro, por sua vez, não recua e demonstra sentir prazer na posição penetrada. É um momento de descoberta e experimentação para ambos. A cena é subitamente interrompida quando se dão conta que Kraken, sem querer, testemunha a cena. É algo disruptivo para todos, onde cada um a seu modo tenta dar conta da confusão que o episódio gerou. Alex, se afasta de todos, chora nua em frente ao espelho e se refugia na casa de uma amiga que sabe o seu “segredo”. Dormem juntas, banham- se juntas, mas nada de teor efetivamente sexual acontece. Ficamos em sus- penso, esperando o tempo de Alex para entender como a nova experiência sexual ecoou em sua tradução identitária. Álvaro, por sua vez, se apaixona perdidamente e passa a perseguir Alex, tentando compreender o que realmente ocorreu: “Alex! Me explique algo... Você não ...”, pergunta Álvaro, ainda recuperando o fôlego, após alcançá-la em sua fuga furiosa pela floresta. “Eu sou os dois”, responde Alex aflita. Ele, em tom surpreso: “Não pode ser!”. Ela esbraveja “você vai me dizer agora o que eu posso ser ou não posso ser?”. Confuso ele continua: “Mas você gosta de homens ou mulheres?”. E ela simplesmente diz: “Não sei”. É interessante que, mesmo sendo considerado fisicamente “normal”, Álvaro também tenta organizar, compreender e dar lugar ao seu próprio desejo. Como Alex, ele também está adolescendo, vivendo e arriscando suas primeiras experiências9. “Perdoe pelo o que fiz com você” diz Alex envergonhada ainda neste diálogo na floresta, “Você não me fez nada. Não me machucou. Eu gostei” responde Álvaro. “S rio? Eu também!”. No filme, mesmo vivenciando algo inusitado, ele não recua frente à experiência e, ao contrário, se apaixona pela pluralidade de Alex, a ponto de querer levar o romance adiante, enquanto ela se afasta irritada. Este emaranhado tradutivo que busca assentar a questão identitária “quem eu sou” (mulher ou homem) diante “de quem eu gosto” (mulher ou homem), torna-se especialmente mais complexo quando lembramos que o filme trata de jovens adolescentes, momento em que o instinto sexual urge. Para Laplanche instinto e pulsão coexistem no homem, mas não é uma coexistência tranquila. O instinto é aquilo que é hereditário e adaptativo, que apresenta uma tensão somática inicial, uma ação específica e o objeto de satisfação que leva a um relaxamento duradouro. Está associado às montagens de autoconservação. A pulsão, por outro lado, não é necessariamente adaptativa e o modelo fonte-meta-objeto mal se aplica a ela. Laplanche questiona: por acaso pode-se dizer que o ânus é a fonte da pulsão anal? Ou que a pulsão escopofílica teria fonte na “tensão ocular?”. Economicamente também há diferença entre os modelos, pois, enquanto o instinto busca o alívio, o retorno à homeostase, a pulsão busca a excitação, às vezes, às custas de um esgotamento total do sujeito. Isso por- que o objeto fonte da pulsão é intersubjetivo, é o resto não traduzido dos enigmas, os significantes dessignificados que pulsam incessantemente no inconsciente, sem conhecer o apaziguamento. “Ela [a pulsão sexual infantil] não conhece o apaziguamento pelo objeto adaptado complementar, falta-lhe sempre ligação, ela é ambivalente” (LAPLANCHE, 2015a, p.40). Na adolescência, quando o instinto sexual finalmente chega, correspondendo à maturação genital com sua busca inata pelo complementar – a pessoa do sexo oposto -, ele chega em ruptura com o funcionamento pulsional. Assim, todos os prazeres pré-genitais nos quais se inclui o genital infantil, são na puberdade confrontados com o genital pubertário. Trata-se de modelos heterogêneos que nunca chegam a uma mistura harmoniosa: “O que a psicanálise quer nos ensinar é que, no homem, o sexual de origem intersubjetiva, portanto o pulsional, o sexual adquirido vem, muito estranha- mente, antes do inato. A pulsão vem antes do instinto, a fantasia [fantasme] vem antes da função; e quando o instinto chega, o assento já está ocupado” (LAPLANCHE, 2015a, p.41, grifos do autor). No filme nossos jovens estão diante deste conflito, pulsão mais instinto, pulsão versus instinto. A retradução edípica aqui é a principal tentativa de ligação e apaziguamento, uma tentativa sempre insuficiente. Temos ainda a reação de Kraken diante do testemunho da cena de sexo. Certamente, deparar-se com sua filha num papel penetrante deixa- o confuso, na medida em que provoca os conteúdos enigmáticos deste pai. Desorganiza-o, não por conta de um moralismo, mas principalmente por- que vai de encontro com a construção mito simbólica dos gêneros que a cultura faz: homem-ativo-penetrante, mulher-passiva-penetrada. Kraken pressupõe que se a filha estava “por cima”, logo, isso quer dizer que ela “escolheu” a masculinidade. Curioso que, desde os Três ensaios sobre a sexualidade (1905), as noções freudianas de pulsão, identificação e sexualidade infantil já trabalhavam a disjunção das categorias de sexo, gênero e modalidades de prazer, rompendo com a ideia de dois conjuntos coerentes e fixos (CAFFÉ, 2009). Mas, Kraken, este pai preocupado, não sabe nada disso e, movido pelo seu legítimo desejo de fazer o melhor por sua filha, segue em busca de atribuir sentido para sua nova descoberta. Na mesma noite, ele dirige sozinho ao encontro de uma figura misteriosa. Descobrimos que se tratava de uma pessoa intersexo, a quem não foi dada a chance de escolher por si. Em sua tentativa de tradução, Kraken escuta atentamente o tortuoso caminho de jornada dos gêneros desta pessoa. Descobre que após ter sido submetido à cirurgia pelos pais, ainda na tenra idade, ele cresceu e não se identificou com a atribuição feminina que recebeu. Restou recomeçar na adolescência os procedimentos e as cirurgias para se transformar, agora, em homem. Sua identificação a não correspondeu sua identificação por . Nas entrelinhas desta conversa, Kraken parece querer compreender se, como pai, está sustentando o caminho certo. Será que foi um erro não ter submetido Alex a uma cirurgia? Como aguardar o tempo de ela escolher? Reconhecimento, violência e ética A relação que se estabelece entre Kraken e Alex é sem dúvida o eixo mais sensível e delicado do filme, que apresenta uma beleza ímpar. Enquanto o pai de Álvaro faz a linha dura, normatizadora e intolerante – um pai que por intuir uma possível escolha homossexual no filho, não hesita em dizer a ele que não o admira –, Kraken faz a vez de um pai compreensivo, como dito, o guardião do enigma. Ele tolera desorganizar-se, permite-se repensar seus ideais totalizantes sobre homem e mulher e se dispõe a (re)enfrentar o próprio caos da pluralidade originária, mirando o bem da filha. Neste sentido se mostra aberto para entender questões que até então ignorava, inclusive, repensando a organização do mundo entre feminino e masculino. Interessa a ele permitir o processo, em seu tempo, da própria Alex. O reencontro entre pai e filha, depois do susto da cena de sexo, carrega exatamente este tom de confiança e intimidade. O pai a espera na frente da casa de sua amiga. Em silêncio sentam-se um ao lado do outro. “Você está me olhando diferente?” pergunta ela. “Você já é crescida”, res- ponde ele em tom terno. O olhar cúmplice paira entre ambos e o reconhecimento transborda! Como pontua Péret (2009): “O silêncio, entrecortado apenas pelo barulho do vento (sempre presente) e do mar, é um elemento fundamental no filme. É ele que permite que a comunicação formal e o diálogo sejam substituídos pela cumplicidade silenciosa e implícita entre as personagens.” (p.859). Nada precisa ser dito, desculpado ou explicado. Ele simplesmente está ali com ela e por ela. Por fim, oferece uma carona para casa, mas Alex anuncia que quer caminhar... sozinha. E é respeitada! Nesta caminhada a nossa protagonista passa por um episódio indigesto de violência, algo próximo de um estupro. Alguns rapazes da comunidade em que vivem descobrem o seu “segredo” e a encurralam para ver se isso era verdade. Uma cena intrusiva segue, na qual Alex é violentamente segurada por quatro rapazes e tem sua calça abaixada sem seu consentimento. “Nossa é verdade! Ela tem os dois!”. “Que nojo”, diz um dos rapazes. E o outro: “Nojo nada que legal, será que funciona?” e passa a tocá-la contra a sua vontade. Neste momento, um amigo de Alex aparece e impede que o pior aconteça. Quando o segredo de Alex é descoberto pela comunidade, somos levados a pensar sobre o impacto de seu corpo pelo viés cultural. De acordo com Butler (1993), o sexo de um indivíduo tem fundamental importância e centralidade, visto que ele não seria apenas um atributo de adjetivação, mas uma marca necessária para a humanização. Em suas palavras: “Sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem, ou uma descrição está- tica do que alguém é: ele será uma das normas pelas quais o ‘algum’ torna-se simplesmente viável, que qualifica um corpo para a vida dentro do domínio da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 1993, p. 2). Acontece que o corpo de Alex não é um corpo binário, ele transita entre um eixo e o outro, sem se assentar em um dos polos, mas nossa organização social é. Na binaridade não há lugar de compreensão dos sujeitos que vivem desprezando as normas regulatórias da sociedade, porque o que escapa ao binário rapidamente torna-se ininteligível (LOURO, 2008). Quer dizer, para a sobrevivência, o corpo precisa contar com o que está fora dele, precisa encontrar condições e instituições sociais que o legitimem. A capacidade de sobrevivência de alguém não se sustenta por vias meramente intrapsíquicas, depende também do social e do fato de contar como um corpo que importa. É esta ideia, inclusive, que a própria autora coloca no cerne de sua teoria “se poderia dizer que todo meu trabalho gira ao redor desta questão: o que é o que conta como uma vida? E de que maneira certas normas de gênero restritivas decidem por nós? Que tipo de vida merece ser protegida e que tipo de vida não?” (BUTLER apud BIRULÉS, 2008). Quer dizer, em uma ponta desta lógica temos os corpos que se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade social e, na outra, os corpos que não importam e que são tomados como abjetos. Tais corpos não são inteligíveis, não têm uma existência legítima. Normatizar, materializar, importar... uma cadeia de associação que atribui significados a um pedaço de carne, concedendo (ou não) o direito de um corpo existir. Isso pode ser observado na sequência do filme. Frente ao ocorrido Kraken, furioso, fisicamente avança nos garotos responsáveis por abusar de sua filha. Quer assegurar a sua importância e o seu direito de existir. Nesta busca de justiça, dirige ele até a delegacia. Mas, ali em frente, prestes a entrar na instituição, se percebe de mãos atadas. O que significa entrar? No mínimo todos vão descobrir a condição de sua filha e o que vai acontecer a partir daí? Ela terá apoio legal? O sistema judiciário abarcaria e protegeria seu corpo abjeto? O mesmo acontece quando o pai sugere levá-la a um hospital. Para tanto, novamente está implicado a descoberta de um segredo e os limites do sistema médico. Frente essas dúvidas Kraken recua e volta para casa. O que resta fazer então? Érica angustiada, insiste para Sueli que apresse logo a cirurgia e opere a filha, assim poderá protegê-la e evitar que este tipo de coisa aconteça. Basicamente, encaixá-la rapidamente ao sistema binário e garantir a sua inteligibilidade dentro dos moldes culturais. Por outro lado, a cultura não é uma entidade fixa, ela também tem seus movimentos e segue, vagarosamente, em transformação. Vemos isso, por exemplo, quando pensamos que os parâmetros do que entendemos por perversão vêm sendo redefinidos. Bleichmar (2009) questiona quem ainda hoje poderia considerar de ordem perversa as práticas nas quais um casal, em seu relacionamento amoroso, reúne formas pré-genitais e genitais, ou modos de produção mútua de prazer sob formas não tradicionais? Assim, a autora propõe tirar a perversão de uma questão moral e transpô-la para uma questão ética. Ela diz: “Redefinamos então a perversão como um processo no qual o gozo está implicado a partir da dessubjetivação do outro. Não se trata de transgressão de uma zona, nem do modo de exercício da genitalidade, mas na impossibilidade de articular na cena sexual o encontro com o outro humano” (BLEICHMAR, 2009, p.102). Esta nova definição da autora é generosa posto que a construção da ética transcende a moral. A criança, por sua vez, só poderá incorporar a lei através do amor ético do outro. O sentido ético funciona como uma construção. Para a criança se permitir introjetar a lei, ela tem que viver com o outro essa dimensão ética. Precisa, primeiramente, ser colocada no lugar de sujeito e ser identificada como sujeito pelo outro. Isso transmite mensagens impregnadas de senso de valor: “Você merece os nossos cuidados”, “Sua existência é significativa”, “Você importa”. Receber um lugar valorizado no olhar dos pais, funciona como um “sopro de vida narcísico” que faz frente aos efeitos desagregadores provenientes dos excessos inoculados pelos adultos e coloca o movimento de fechamento do Eu para funcionar. E neste sentido se constrói um senso ético. Como se dissesse “Se o outro for ético comigo, aceito esse modelo de ética e este modelo identitário que ele está me passando”. Isso nos leva aos momentos finais do filme. Em casa, depois do abuso, Alex é abraçada e recebe apoio da mãe, dos amigos e do seu pai guardião. Um diálogo interessante acontece entre eles. Ela acorda e vê o pai sentado ao lado da cama olhando para ela: - O que está fazendo?- Cuidando de você.- Não vai poder cuidar de mim para sempre.Ele concorda com a cabeça e diz:- Até que possa escolher...-O quê?- O que vai querer.Alex se vira na cama pensativa. Olha para cima, suspira e diz: - E se não houver o que escolher?Se entreolham em silêncio. Talvez seja isso. Talvez Alex simplesmente quer ser. Sem remédios e sem cirurgia. É possível que, diante do reconhecimento e da ética exercida por seu meio familiar, Alex queira arriscar sustentar uma tradução de gênero mais flexível e plural, sem necessariamente recorrer a uma solução taxativa delimitadora. Percebemos o quanto as mensagens e o auxílio deste meio são importantes para ela elaborar alguma coisa por si. Tanto que decide prestar queixa, bancando o que isso significa: “que descubram”. Talvez se trate disso, de “descobrir” a pluralidade encoberta, desvelando- a e tentando sustentar outros contornos identitários. O próprio Laplanche (2015b) se interroga se o complexo de castração e a sua lógica fálico-castrado seria mesmo incontornável: “não existem modelos de simbolização, mais flexíveis, mais múltiplos, mais ambivalentes?”10 (2015b, p.171). As- sim, talvez o olhar tolerante dos pais, somada a experiência de aceitação que viveu com Álvaro, deu condições para Alex formular alguma tradução própria. Na despedida chorosa e doída que faz de Álvaro, esse surpreendente “amor de verão” que Alex jamais pensou se apaixonar, ela mostra a ele os seus genitais. Assim, àquilo que até então deveria manter-se obstruído, recalcado e sob segredo, pode ser enxergado e vir à luz. Referências ARANTES, S. "XXY" dá ênfase aos dilemas de amor e sexo. Folha de São Paulo. out. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2410200720.htm BELO, F. O inconsciente como produtor de impossibilidades. In: BELO, F. (Org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2011. BIRULÉS, F. Entrevista con Judith Butler: “El género es extramoral”. Metrópolis, Revista de información y pensamiento urbanos, jun.-set. 2008 BIZZO, S. Cinismo. In: GUSMÁN, L. (Org.) Os outros: antologia de narrativa argentina contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2010. BLEICHMAR, S. La identidade sexual: entre la sexualidade, o el sexo y el género. 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Herculine Barbin, hermafrodita francesa, que viveu toda sua infância e adolescência como mulher, matou-se depois de ser obrigada legalmente a mudar de identidade” (PÉRET, 2009, p. 856-867). Por opção metodológica mantemos neste capítulo o pronome feminino ao se referir a Alex, seguindo a mesma orientação que aparece na composição geral do filme. 2 Johansson (2018) faz uma interessante análise da geografia ficcional do Uruguai, criada pela literatura e cinema argentinos e afirma que, em XXY, a configuração das paisagens das praias, desdobra a potência de corporalidades e formas de vida alternativas: “O olhar da câmera sobre a jovem não pretende interiorizar, mas seguir uma forma, a de um corpo em devir que é exposto como uma imagem de um trajeto desde o interior da casa para o exterior da orla costeira: mar, areia, florestas de praia delineiam um ambiente natural solidário à imagem do corpo da protagonista. A paisagem da praia se configura então como uma superfície material na qual se inscreve o corpo de Alex, uma poderosa imagem liminar detida no tempo da decisão sobre seu gênero” (JOHANSSON, 2018, p. 103). 3 Ainda hoje a meta principal das equipes de saúde que lidam com casos de intersexo é fazer a designação sexual, geralmente conduzida por meio de intervenção cirúrgica e/ou terapia hormonal antes dos 24 meses de idade. Santos e Araújo (2003) criticam que tanto a proposta que enfatiza intervenção precoce ou adiamento da cirurgia, parecem insistirem no “quando” intervir cirurgicamente, adotando, assim, “uma perspectiva de desenvolvimento apoiada exclusivamente na noção de idade cronológica e biológica, minimizando a importância de outras dimensões como aquelas vinculadas aos planos subjetivo, social e cultural” (SANTOS & ARAÚJO, 2003, p.19). 4 Segundo Jô Gondar (2019), Laplanche escreve que “antes da diferença de sexos, a psicanálise admite sem teorizar uma diferença de gêneros. Uma criança recebe a oposição social entre masculino e feminino sem questioná-la. O problema é que a psicanálise, diz Laplanche, também retoma essa oposição sem questioná-la. Essencializa essa oposição, situando-a como uma distinção à qual naturalmente se chega. Pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior. Nesse ponto, Laplanche concorda com Judith Butler, e é surpreendente que tenha dito isso bem antes de qualquer movimento queer” (p. 2-3). 5 De acordo com Fausto-Sterling (2000) estima-se que 1,7 % da população mundial apresenta algumas das variações intersexo, que são caracterizadas como incompatibilidades entre órgãos e cromossomos sexuais, alterações hormonais e, em menor número, ambiguidades sexuais. Como comparação, essa é mais ou menos a porcentagem de pessoas ruivas na população geral. 6 O tema é polêmico, já há relato de pessoas que se propõem criar os filhos de um modo completamente neutro. Negam dizer o sexo da criança, atribuem um nome neutro, evitam tudo aquilo que numa cultura se diz “de menino” ou “de menina”. Tudo isso numa expectativa de criar a criança verdadeiramente livre, deixando-a escolher por si só. Entretanto, pela perspectiva psicanalítica laplancheana isso não se sustenta, pois a inoculação dos fantasmas dos adultos sob forma de enigma, inevitavelmente acontece. Podemos nos perguntar, inclusive, se tais atos não potencializam o enigma, sob o risco de ele se tornar paradoxal. Afinal, retira-se da criança importantes códigos tradutivos que vão auxiliá-las na elaboração da pluralidade originária. 7 No artigo Da transferência: sua provocação pelo analista (1993), Laplanche discorre sobre três dimensões, três funções do analista: o analista como responsável da constância; o analista como piloto do método e acompanhador do processo primário e o analista como guardião do enigma e provocador da transferência. 8 É importante ter em mente que o Édipo infantil é sempre, ao mesmo tempo direto e invertido. Isso porque as identificações são sempre substituições de amor, são, basicamente, interiorizações do objeto perdido. “A identificação com o objeto e não com o rival é indispensável para qualquer abordagem da homossexualidade” (p.41), relembra- nos Laplanche (2015a). E continua “O homossexual (..) identifica-se com o objeto de amor: mãe. E, do mesmo modo, o heterossexual deve ter amado intensamente e com um amor homossexual o pai para se identificar com ele” (LAPLANCHE, 2015a, p.41-42). Assim, as monções positivas e negativas estão sempre presentes em qualquer identificação. 9 No conto Cinismo , o percurso deste personagem foi mais bem explorado, revelando que ele já estava às voltas da descoberta de algum prazer anal via masturbação. 10 A sua defesa é que há uma oposição entre o simbólico pensado como mito único e as simbolizações plurais. Em suas palavras: “Com efeito, se a castração é uma lei culturalmente inculcada, continente em relação ao que constitui o mais profundo dos nossos desejos, nada impede que se indague se ela não estará vinculada a um certo tipo de sociedade ou a certos tipos de sociedade ou mesmo, mais além, a uma sociedade mais radicalmente falseada, uma sociedade androcêntrica, centrada, portanto, no primado da problemática masculina, do falo e de sua supressão” (LAPLANCHE, 1988, p.164).
- A intuição psicanalítica e a reverie: captando fatos ainda não sonhados [1]
Capítulo do livro Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Diálogos Bionianos I. Ed. Blucher Marina F R Ribeiro[2] ...sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos - não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos. (Bion, 1977/1992, 104) Quando um conceito é citado por vários autores e está presente em um número considerável de textos, podemos dizer que foi uma maneira bem-sucedida de nomear um fenômeno clínico em determinado momento da história da psicanálise. A reverie parece ser um dos conceitos da psicanálise contemporânea pós bioniana que vem erigindo esse imprevisto destino. Fundamentado na compreensão de que a psicanálise é uma pré-concepção em busca de realização (Bion, 1962), cada texto escrito é uma realização possível em um determinado momento a partir de uma intertextualidade. Considerando isso, tudo o que temos é a experiência, tanto na sessão, quanto na escrita de um texto psicanalítico: uma mente produzindo efeitos sobre outra mente, um texto produzindo efeitos a partir de outros textos, continente e contido, reverie e função alfa, um intercurso mental promovedor de transformações e aberturas de novos campos de indagações. A proposta deste texto é apresentar, aproximar e dialogar alguns conceitos na obra de Bion e no texto de psicanalistas pós bionianos: intuição psicanalítica, reverie e função alfa. Para tanto, inicio apresentando uma experiência perturbadora do analista na sala de análise, a seguir faço um exercício metaforizante de aproximação dos conceitos com o material clínico. Trata-se de conceitos e teorias que serão posteriormente cotejados com novas experiências clínicas em um movimento de constante retorno, expansão e criação: um diálogo que se pretende aberto e complexo. O conhecimento é momentâneo, provisório e sempre nos escapa, pois no exato momento em que conhecemos e somos capazes de narrar a experiência analítica, a experiência já passou, já pertence a um passado: mesmo que muito recente, a transformação já ocorreu, a narrativa já se tornou saturada, o texto já foi escrito, tornando-se vivo novamente para um leitor no futuro. A epígrafe do texto é a inspiração para a reflexão aqui exposta. Afinal, o que Bion quer dizer com a interpretação dos fatos? Traduzindo-os em linguagem dos sonhos? Sigo por essas indagações, lembrando que Bion comentava em vários de seus seminários e supervisões que ele fazia apenas perguntas aos seus analisandos, de modo a expandir continuamente o campo investigado. A reflexão teórico-clínica apresentada a seguir tem a mesma intenção: expandir o campo teórico investigado, sem intenções resolutivas. Andando com os sapatos de um morto[3] Ao encontrar Antônio pela primeira vez, sem nenhuma informação a seu respeito, fixo-me incomodamente em seus sapatos e penso: são sapatos de um morto. Como alguém pode usar sapatos de um morto? Percebo-me quase em uma experiência alucinatória: os sapatos produzem o efeito de um campo magnético do qual não consigo desviar os olhos e o pensamento. Vejo a morte e estou paralisada. Ele começa a falar, fico dividida, observando o que é dito e a intensa sensação de morte na qual estou imersa, sem compreender absolutamente nada do que está ocorrendo, arrastada pela experiência perturbadora. Aguardo em um silêncio receptivo. Ao final do nosso encontro, Antônio relata de forma distanciada e breve os fatos de sua vida que precisavam ser sonhados. Fatos esses que estavam contidos e condensados na imagem dos sapatos de um morto, representação pictórica pela qual fui subitamente abduzida ao encontrá-lo. Sua única filha nascera com várias malformações, passou por intervenções cirúrgicas e viveu poucos anos. Antônio havia me procurado após um ano da morte da menina ou da sua quase morte psíquica; ele andava com os sapatos de um morto, desvitalizado, um morto ainda vivo. Sua demanda manifesta de análise era expressa, porém, por outras questões: não conseguia encontrar um lugar de reconhecimento profissional e financeiro. A profissão - vida - mostrou-se de uma brutalidade ímpar, e ali estava ele: um homem andando com a morte acorrentada aos seus pés. E, na mesma sala, a analista, tentando sonhar a brutalidade dos fatos de sua vida. Na vinheta apresentada, a imagem perturbadora que emerge na mente da analista - os sapatos de um morto - surge a partir do estado de reverie[4], um estado de receptividade amorosa, de hospitalidade, uma abertura para sermos habitados pelo outro. A reverie também implica a capacidade imaginativa da mente da analista, de sonhar a brutalidade da realidade: uma filha que nascera com malformações e faleceu em poucos anos. A receptividade do estado de reverie parece ser, em um primeiro momento, um estado desorganizador para a analista. A analista é abduzida pela experiência, está totalmente à deriva, é arrastada pela imagem pictórica[5], como um tipo de campo magnético que exerce uma força de atração da qual não é possível escapar, apenas reconhecer e observar o que se desdobrará no a posteriori da sessão. Neste momento, é fundamental o ato de fé[6] do analista, referido por Bion (1970), de que algum sentido irá surgir daquele estado desorganizado e caótico. Bion não parecia estar ocupado com diferenciações conceituais, que são incertas e imprecisas. Digamos que a conceitos psicanalíticos e a pessoas devemos facultar certa imprecisão. Alguma semelhança com as emanações do inconsciente? O inconsciente se apresenta por sombras, fachos de escuridão, imagens pouco nítidas e imprecisas. Ogden (2013, 145) escreve que “...em psicanálise, fazemos bem ao permitir certa inexatidão nas ideias e palavras.”. Exatidão e precisão são ilusões da consciência e do pensamento racional: o analista trabalha com impressões, aproximações, com sombras e luzes tênues. A luz da teoria não deveria ofuscar o enigmático da experiência clínica, mas favorecer a capacidade da mente do analista em transitar por emoções incertas, imprecisas e voláteis. Sobre isso, Bion (1992/2000) escreve: ...De qualquer maneira, sinto dúvidas sobre o valor de uma teoria lógica para representar as “realizações” da psicanálise. Penso que se deveria permitir que a teoria “lógica” e as “ilogicidades” da experiência psicanalítica coexistam até que a “evolução” resolva a desarmonia observada (397). A intenção neste texto não é eleger um vértice de compreensão em detrimento de outro, ou tentar solucionar ilogicidades teóricas, mas promover um exercício de reflexão conceitual e clínico que apure os instrumentos técnicos do analista, suas matrizes teóricas, expressão de Figueiredo (2020)[7]. Ogden (2016, 5) escreve que mesmo a teoria estando ausente dos pensamentos conscientes do analista, e devem mesmo estar durante a sessão, elas constituem uma matriz, um contexto psíquico, um continente metaforizante. A teoria do analista faz parte do seu acervo inconsciente, precisa estar incorporada e esquecida, assim como os exercícios técnicos de um músico. As teorias afinam a capacidade de observação do analista, assim como um músico afina seu instrumento. A mente do analista é seu instrumento de trabalho, que desafina ao longo dos atendimentos, ao longo do que é vivido no consultório e na sua vida privada. O exercício de elucidação teórica seria uma das maneiras de o analista afinar seu instrumento nos momentos em que não está em sessão, e refletir sobre o que nela aconteceu usando conceitos para compreender um encontro com o paciente que já faz parte do passado. Desse modo, trabalha a teoria e os conceitos, preparando-se para a sessão de amanhã, afinando seu instrumento de trabalho, sua própria mente e sua capacidade de observação. Penso que o continente teórico do analista é um exercício conduzido como uma espécie de preparo para a sessão que ainda não aconteceu. Trata-se, também, de uma forma de reparar sua própria mente após as sessões de um dia de trabalho, ou de anos de exercício clínico. A teoria pode exercer, então, uma função de continência para a mente do analista, em constantes turbulências geradas na sala de análise pelo encontro desorganizador de duas personalidades, como escreveu Bion (1979). A partir desse vértice da função da teoria como um continente metaforizante para o analista, faço a seguir uma reflexão sobre o conceito de reverie, a partir e além de Bion, refiro-me aos autores pós-bionianos. Sobre reverie e função alfa a partir e além de Bion A experiência de reverie é sempre um elemento desorganizador para o analista, que ele tende a descartar e muitas vezes se envergonha por considerar uma inabilidade, uma falha técnica, como na situação clínica que inspira este texto. Ao mesmo tempo, é a bússola emocional do analista, se ele tiver a condição e a liberdade psíquica de considerá-la, o que não é tarefa fácil (Ogden, 2013). Importante termos em mente que essa compreensão de Ogden do termo reverie descrita acima é apenas uma, entre outras, distintas do conceito original postulado por Bion em 1962. O termo reverie ganhou sentidos mais amplos e diversos na pena de psicanalistas pós bionianos, tais como Thomas Ogden, Antonino Ferro e no Brasil, o casal Elias e Elisabeth Rocha Barros e Arnaldo Chuster, entre outros autores[8]. Considero um surpreendente fenômeno que uma expressão apresentada de forma pouco evidente pelo seu autor de origem, quase en passant, ganhe proporções diversas em textos posteriores, acredito que devido a sua pregnância clínica. O mesmo ocorreu com o conceito kleiniano de identificação projetiva, que aparece discretamente no texto 1946, “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”. Klein nomeava informalmente esse texto seminal como o seu artigo sobre cisões. Inusitadamente, a identificação projetiva foi, posteriormente, o conceito kleiniano que gerou inúmeras ressonâncias (Cintra e Ribeiro, 2018). Considerando que se trata de conjecturas, qual teria sido, de fato, a intenção de ambos os autores ao nomear esses fenômenos? Impossível dizer, mas a expansão deles no texto de outros psicanalistas indica que o destino de um conceito comporta diferentes compreensões e apreensões, como apresentando no livro Projective identification: A fate of concept (2012). O fato é que o conceito de reverie vem fazendo história na psicanálise, por meio de diferentes vértices de compreensão, no texto de diversos psicanalistas. A conexão que faço aqui entre o destino do conceito de identificação projetiva e a reverie tem também outras ligações, além do explicitado pelo próprio Bion (1962/2014). A saber: O termo reverie aplica-se a todos os conteúdos. Reservo-o entanto apenas àquele que se infunde de amor ou ódio. Nesse sentido estrito, a reverie é estado mental aberto a receber quaisquer “objetos” do objeto amado e, portanto, acolher as identificações projetivas do bebê, se boas ou más. Em suma, a reverie é fator da função alfa da mãe (303). Esse pequeno parágrafo no livro Aprender com a experiência (Bion, 1962) é quase tudo que temos sobre reverie na obra de Bion. Nessa breve articulação que o autor escreve, temos dois outros conceitos: identificação projetiva e a função alfa. Sendo a reverie um fator da função alfa que acontece via identificação projetiva, seguiremos esses indícios no texto de Bion. Também nessa direção, Rocha Barros (2019a), considera que o conceito de reverie pode ser compreendido como um passo na história da psicanálise que se segue ao estudo da identificação projetiva. A identificação projetiva marcou uma compreensão intersubjetiva da constituição do sujeito, que, principalmente a partir da obra de Bion, foi considerada uma forma primitiva de comunicação.Além disso, corroborou à compreensão da complexidade da interação entre as mentes do analista e do analisando na sessão, como desenvolvido em trabalhos anteriores (Cintra e Ribeiro, 2018, Ribeiro, 2020). Em outras palavras, há sempre uma comunicação que acontece de forma inconsciente, questão que intrigava Freud (1915) quando escreveu sobre a comunicação entre inconscientes, sendo a reverie uma forma de captar esses processos, compreensão feita a partir da teoria dos sonhos de Bion, apresentada brevemente a seguir. O termo reverie aparece pela primeira vez na obra de Bion em 1959, quando escreve que em pacientes psicóticos não encontrou capacidade para reverie. (Sandler, 2005). Bion (1962) se refere à reverie de forma passageira, como já dito acima, e ligada à díade mãe-bebê, e não diretamente à díade analista-analisando. Em uma pequena nota encontrada em publicações inéditas de Bion de 2014[9], The complete works of W.R. Bion, o autor escreve que os pensamentos são perturbadores e antecedem o pensar, sendo que a reverie é importante para o analista, pois é ela que fabrica os ‘pensamentos’ que ainda serão pensados. Na situação clínica apresentada acima, o pensamento de que a analista estava vendo os sapatos de um morto foi algo perturbador e desorganizador. Contudo, no a posteriori da sessão foi possível refletir que a imagem representava e condensava o sofrimento psíquico do paciente. A capacidade de reverie da analista ‘fabricou’ ou, melhor, gerou o pensamento/imagem (lembrando que pensamos primeiramente por imagens). Seguindo essa publicação de referência, The complete works of W.R. Bion (2014), encontramos um comentário do organizador André Green (2014)se referindo ao livro Cogitações: Uma das partes mais enriquecedoras dessas Cogitações deve, certamente, ser a concepção de Bion do trabalho dos sonhos. Encontramos aqui o germe que o autor mais tarde chamou de capacidade para reverie. Isso significa que o trabalho dos sonhos constitui apenas uma pequena parte deste tipo de atividade encontrada no sonhador. Este trabalho é um contínuo processo que se mantém durante a atividade diurna, mas permanece inobservável (exceto na fantasia consciente), exceto por sua ausência no psicótico. A capacidade de reverie é apenas o aspecto visível de uma forma de pensamento amplamente inconsciente[10]. (355) Retomando, a imagem que surge a partir da capacidade de reverie do analista é apenas o aspecto visível de uma forma de pensamento amplamente inconsciente. Em outras palavras, refere-se à capacidade do analista de tornar visível o invisível da experiência, de tornar apreensível o pensamento onírico da vigília, função diuturna da mente. A reverie é a captação do inaudível e do imperceptível da experiência. Algo é captado pela intuição psicanalítica e transformado pela função alfa em uma forma, uma imagem sensorial: a reverie. Essa é a argumentação teórica que estou construindo neste texto. Os pensamentos oníricos ocorrem tanto na vigília, quanto no sonho da noite. Ferro (2003) expressa sua compreensão da teoria dos sonhos de Bion por meio da seguinte analogia: durante o dia, temos um cameraman filmando diversas cenas, captadas por meio do funcionamento contínuo da função alfa. Durante a noite, temos uma meta função alfa que faz o trabalho de direção, organizando as cenas em um enredo onírico, em um trabalho contínuo de metabolização das experiências emocionais. Ogden (2009), a partir da sua leitura do texto de Bion, compreende que os pensamentos oníricos da vigília são como as estrelas, sempre presentes, mas visíveis apenas na escuridão da noite. Segundo Antonino Ferro (2003), temos duas maneiras de captar o pensamento onírico da vigília: pela capacidade de reverie e pelo flash visual. Para esse autor, o pictograma é uma fantasia visual que sincretiza o que é experienciado na sessão. O flash visual[11] é a projeção do pictograma para o exterior, para fora da mente, assim ele é ‘visto’ quase que de forma alucinatória. Figueiredo (2020) compreende a reverie como um estado de receptividade da mente do analista. O autor acompanha a descrição de Bion: “...é um estado mental aberto a receber quaisquer “objetos” do objeto amado… (Bion, 1962, 303). Figueiredo (2020,1996) também faz uma interessante conexão ao aproximar o conceito freudiano de construção em análise (1937), ao conceito de reverie de Bion, em um texto de 1996, ou seja, antes que a discussão sobre a reverie se tornasse significativa na psicanálise contemporânea. Escreve o autor: “O que responde à escuta do inaudível e à visão do invisível é a fala ‘fenomenalizadora’” (Figueiredo, 1996, 85). Além disso, Figueiredo (2020) destaca a analogia feita por Freud (1937,343) ao final do texto Construções em análise: “Deixe-me seduzir por uma analogia. Os delírios dos doentes se apresentam, para mim, como equivalentes às construções que fazemos nos tratamentos analíticos, …”. Em outras palavras, Freud escreveu em um dos seus últimos textos sobre o aspecto alucinatório das construções do analista. Civitarese (2016a, 298) também fará um paralelo entre a reverie e a resposta quase alucinatória do paciente à construção do analista, descrita por Freud (1937) no mesmo texto. Desse modo, Freud observou que algo de uma experiência quase alucinatória se manifesta na sessão, seja na construção do analista, seja na resposta do paciente a essa construção. Nessa direção, mas por outros caminhos, Bion escreve (1967a/1994): O estado adequado para intuir realizações analíticas (...) pode comparar-se aos estados que supostamente propiciam condições para haja alucinações. O indivíduo que alucina aparentemente está tendo experiência sensorial sem nenhum substrato da realidade sensorial. É necessário que o analista seja capaz de intuir uma realidade psíquica que não tenha nenhuma realização sensorial conhecida. (...). Não penso que o paciente ao alucinar esteja comunicando uma realização que tenha substrato sensorial; não julgo, igualmente, que a interpretação feita em análise se origine em fatos acessíveis ao aparelho sensorial. Como explicar, então, a diferença entre uma alucinação e uma interpretação de uma experiência analítica intuída? (183) A partir dessa questão levantada por Bion, penso que a sensação, na mente do analista, produzida pelo pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1995) ou pictograma afetivo (Rocha Barros, 2000b) gerado do estado de reverie, tem aspectos que se aproximam de uma experiência de alucinação: a analista ‘alucinava’ ao ver os sapatos de um morto, não há nenhum apoio sensório perceptível. A experiência só é compreensível a posteriori, o analista precisa tolerar esse estado de desorganização e desorientação, tendo um tipo de fé psicanalítica de que um sentido surgirá daquela experiência com aspectos alucinatórios, na própria sessão, ou depois de muitas sessões. Portanto, é preciso tolerar não saber, trata-se da capacidade negativa (Bion, 1970) do analista, uma capacidade virtuosamente expectante (Chuster, 2019). Cabe aqui uma distinção entre a reverie ocorrida na sessão que pode ser usada para compor uma interpretação ou construção narrativa e aquela que é apenas uma apreensão e compreensão por parte do analista do sofrimento psíquico inconsciente do paciente, sendo que essa não se transformará em uma interpretação. A reverie como uma bússola[12] para o processo analítico é justamente o que ocorreu na sessão com Antônio: a imagem ‘alucinada’ dos sapatos de um morto condensa e revela o mais íntimo e intenso sofrimento do paciente. A reverie, nesse caso, serviu como um norte para o processo analítico que estava iniciando. Quando a reverie é usada para compor uma interpretação, a imagem tanto pode ser revelada diretamente, diria que essas situações são mais raras, como a imagem produzida exige um extenso trabalho de elaboração por parte do analista para que se torne narrável para o paciente na forma de uma interpretação ou construção analítica. Contemporaneamente[13], o termo reverie tem sido usado tanto como um estado mental de abertura ao outro, um estado sem pensamento, quanto como produto desse estado mental (Ogden, Ferro, Rocha Barros entre outros), o que se fenomenaliza a partir desse estado, como os pictogramas emocionais e/ou afetivos, exemplificados aqui com os sapatos de um morto. Essa compreensão também está presente nas notas inéditas de Bion (1968/2014) supracitadas, a reverie seria uma forma de fabricar um pensamento, ainda sem pensador. O pensamento/imagem dos sapatos de um morto puderam ser pensados apenas no final da sessão e, também, após o seu término, no momento de reparação da mente da analista, ou seja, a função continente do exercício teórico, referida no início deste texto. O casal Rocha Barros (2019a) compreende que o conceito de reverie está associado à compreensão intersubjetiva do processo analítico e ao entendimento de como são captados os processos inconscientes. Destaco que, para os autores, a reverie acontece via identificação projetiva, que é a intuição kleiniana de que há uma via que conecta o inconsciente de duas mentes e veicula proto-pensamentos[14], captados primeiramente como imagens pictográficas (Bion, 1992), pictogramas afetivos (Rocha Barros, 2000) ou pictogramas emotivo-sensorial (Ferro, 1995)[15]. Os Rocha Barros (2019a) trazem uma especificação conceitual que corrobora de forma significativa com a compreensão da reverie: são os aspectos de expressividade e evocação: Deveríamos dizer algo mais a respeito de ‘expressividade’. Esse termo vem de R.G. Collingwood (1938) e Benedetto Croce (1925/2002), e se refere a um aspecto da arte que não só pretende descrever ou representar emoções, mas principalmente transmiti-las, produzindo-as no outro, ou em si próprio, baseado na evocação de uma representação mental colorida de emoção. Esse atributo de produzir emoção no outro da expressividade nos parece essencial para entender não apenas a arte, como também a memória afetiva e a função das formas simbólicas na vida psíquica e o processo por meio do qual atuam as identificações projetivas. Uma das funções da expressividade é a de ativar a imaginação[16]. (109) A partir desses aspectos estéticos de expressividade e evocação, retomando o fragmento clínico, quando sou capturada pela imagem, só vejo a morte e estou paralisada. Nesse instante, o excesso sensorial da cena onírica da vigília, a reverie, tem uma intensa expressividade e evocação (Rocha Barros, 2000b, 2011, 2015, 2019, 2019a), neste momento não é possível uma narrativa. A sensação é de um ‘campo magnético’, algo que evoca e convoca, assim como uma pintura em uma galeria de arte na qual somos abduzidos pela imagem, ficando à deriva da experiência, aguardando o tempo do a posteriori para compreender o que aconteceu, cientes de que nem sempre isso é possível. Quando se torna possível narrar a experiência, por meio de um processo de metabolização, a narrativa é parcial, podemos apenas fazer uma aproximação da experiência. Para o casal Rocha Barros (2019), é necessário transformar a reverie do analista em uma forma simbólica passível de ser comunicada ao paciente. Trata-se, pois, do início de um processo de apreensão de uma experiência sensorial. Após um trabalho de reflexão auto analítica, por parte do analista, é possível transformar a reverie em algo passível de comunicação: o analista torna a experiência da reverie algo possível de ser pensado, transforma-a em uma comunicação que pode ser geradora de transformações da dupla analítica. Esse processo exige do analista uma grande habilidade e criatividade na construção de uma comunicação advinda da experiência da reverie e, além disso, uma comunicação que favoreça as transformações do campo analítico (Ribeiro, 2019). Na situação clínica apresentada, a reverie favoreceu a compreensão do sofrimento psíquico do paciente, não se transformou em uma interpretação ou construção da analista. Chuster (2019, 2020) apresenta outro detalhamento conceitual singular, conforme abordado em texto anterior (Ribeiro, 2019), compreende a reverie e a função alfa como vértices de um espectro. O autor expõe que os conceitos de reverie e função alfa fazem parte da contribuição de Bion para a teoria dos sonhos, como já exposto aqui. O sonho é uma função diuturna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais, o que foi denominado como pensamento onírico da vigília (day-dream). A reverie é predominantemente sensorial, e a função alfa é predominantemente simbólica: ambas são compreendidas como vértices de um espectro de infinitas possibilidades. Considerando que quando compreendemos um conceito de forma espectral há um ponto do espectro no qual não há uma distinção entre um e outro, isto é, um ponto no qual não conseguimos distinguir a reverie da função alfa, um ponto de indecibilidade. Arnaldo Chuster (2020, 40) também privilegia e destaca o termo imaginação “...por ser mais próximo linguisticamente do termo reverie (devaneio) usado por Bion, e por contemplar mais adequadamente, em meu entender, a questão da cesura entre dois estados mentais.” A cesura (Bion, 1976)[17] entre o pensamento onírico da vigília e o estado do sonho da noite. Em outras palavras, a reverie seria esse estado de penumbra, esse lusco fusco da mente, no qual estamos parcialmente acordados, mas ainda sonhando, um estado de transicionalidade, como descreve o casal Rocha Barros (2019a). Compreender a reverie/função alfa como vértices de um mesmo espectro (Chuster, 2018, 2019, 2020) parece ser uma posição conceitual que expande e especifica a discussão dos fenômenos clínicos. O que se fenomenaliza na situação clínica, que tem o potencial de se tornar uma narrativa, construção ou interpretação, percorre o espectro entre experiências predominantemente sensoriais e experiências predominantemente simbólicas. Podemos pensar em uma progressão no espectro, iniciando no vértice sensorial, a imagem pictográfica, e seguindo para o vértice simbólico, a narrativa. O uso da reverie em uma narrativa do analista ou simplesmente para a sua compreensão do processo analítico, como uma bússola, é o ápice de um complexo processo de trabalho psíquico. Na situação clínica apresentada foi possível compreender que o processo analítico iniciado tratava-se de um caminhar por terrenos mortos, mortos pelo excesso de dor psíquica, desvitalizados, e que necessitavam da capacidade de ‘ensonhamento’ da analista. No entanto, que estranho fenômeno é esse da analista alucinar os sapatos de um morto? Sem nenhum apoio sensório? Aquém ou além do sensorial, temos a intuição psicanalítica. Conforme Bion escreve (1967), a intuição não é sensória, mas parece encontrar algum apoio indiscernível e não identificável no mundo sensório[18]. Bion (1992) escreve sobre aspectos infra e supra sensoriais, ou seja, o amálgama intuição e reverie se abre como uma questão a ser pensada, ainda que brevemente. Reverie: uma evolução da intuição psicanalítica? Como podemos pensar a conexão entre intuição e reverie? Será que o estado de reverie da mente do analista tem como esteio, além e aquém do sensorial, supra ou infra sensorial (Bion, 1992), a capacidade de intuição do analista? Em outras palavras, a intuição psicanalítica parece ser um fator primordial da função psicanalítica da personalidade (Bion, 1962), aquilo que não se fenomenaliza, o inaudível e o imperceptível. Essa é a habilidade necessária ao analista, ver e escutar o que não é visível aos olhos e ouvidos, mas é visível pela imaginação, a capacidade de reverie do analista sustentada pela intuição psicanalítica. Partindo da etimologia da palavra intuição, segundo Zimerman (2012, 167), temos: a “palavra intuição é composta dos étimos in (com o significado de dentro de) + o verbo latino tuere (= olhar, enxergar), e denota que essa capacidade de intuição consiste no fato de o analista conseguir ‘olhar para dentro de si’, numa espécie de ‘terceiro olho’, que lhe permita enxergar além daquilo que nossos órgãos dos sentidos captam”. Aquilo que pode ser retratado a partir da intuição psicanalítica, ocorre além e aquém de qualquer sensorialidade, ou de forma infra e supra sensorial (Bion, 1992), como já dito. As angústias não têm cheiro, não são visíveis, não podem ser tocadas, são intuídas pela mente do analista, como escreve Bion (1967). Precisamos de um facho de intensa escuridão (Bion, 1967) para intuir no aqui e agora da sessão, tornar visível o invisível da experiência. E, a partir da reverie e sua construção imagética, o analista ainda precisa ser capaz de colocar em uma narrativa a experiência da reverie, isto é, ir em direção ao polo mais simbólico da função. Ressaltando que a narrativa é parcial, precária e provisória, apenas uma aproximação do vivido, pois a experiência ou o fato em si é incognoscível na sua totalidade. Dessa maneira, temos a narrativa possível de cada sessão, as emoções que podem ser contidas, reveladas, criadas pelas palavras: os sapatos de um morto, de alguém vivo que pisa sob terrenos psíquicos desvitalizados, mortos, fatos brutos ainda não sonhados. Sendo que aquilo que se torna palavra é saturado e finito, e abre-se novamente para o campo do insaturado, das emoções que ainda não são palavras, em um ciclo sem fim, na procura incessante do sentido e da verdade da experiência, na busca humana da possibilidade de sonhar o enigmático da experiência. Continuando a reflexão, a imagem produzida pelo estado de reverie traz a inebriante sensação de que estamos quase alucinando, pois não há nenhum apoio sensório identificável. A reverie é um pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1995) ou pictograma afetivo (Rocha Barros, 2001) primeiramente ‘alucinado’ pelo analista. No entanto, nossa alucinação encontra um sentido que nos resgata do caos, que é paradoxalmente enlouquecedor e seminal. Lembrando que Freud (1937) fez uma analogia entre as construções do analista e o delírio dos pacientes. Será essa uma intuição freudiana? Talvez. E o que será que pode favorecer a intuição do analista? Justamente a complexa proposição técnica de Bion (1967): a mente do analista deveria estar em um estado de abertura para o desconhecido, estado esse que implica na opacidade de memória, desejo e compreensão prévia. Bion (1967) compreende que memória e desejo são derivados da sensorialidade, intensificados por esta, e não parecem favorecer intuição e reverie, motivo pelo qual Bion faz essa sugestão técnica de difícil compreensão ainda hoje. Uma analogia feita por Bion (1970) nos auxilia a compreender essa proposta metodológica. Memória e desejo são como a luz que entra precipitada no processo de revelação de imagens e queimam o filme. Memória e desejo, passado e futuro, impossibilitam que na penumbra da mente, no lusco fusco do estado de reverie, um estado de transicionalidade (Rocha Barros, 2019), revelem-se imagens que possam ser sonhadas no aqui e agora da sessão, no presente vivido, único tempo da experiência. Ao refletir sobre o texto de Bion (1967) Notas sobre memória e desejo, Ogden (2016, 79) escreve que se trata de um artigo sobre o pensamento intuitivo na situação analítica: Para mim, a reverie (...), o sonho diurno, é paradigmático da experiência clínica de intuir a realidade psíquica de um momento de análise. Para entrar em um estado de reverie, que no cenário analítico é sempre, e em parte, um fenômeno intersubjetivo, o analista deve se engajar em um ato de auto renúncia. Refiro-me ao ato de permitir-se tornar-se menos definitivamente si mesmo, a fim de criar um espaço psicológico no qual analista e paciente possam entrar em um estado compartilhado de intuição, e de estar em uníssono em uma realidade psíquica perturbadora, que o paciente sozinho é incapaz de suportar[19]. Compreendo a reverie como um estado de mente, uma abertura amorosa ao outro, uma hospitalidade, que produz ou favorece a emergência de uma imagem pictográfica. Penso que a imagem que surge é uma evolução da intuição do analista, essa é a hipótese sustentada neste texto. A reverie como um pensamento/imagem que ainda não foi pensada, e que é favorecido pela intuição psicanalítica. A intuição como algo não sensorial, mas com elementos infra e supra sensoriais (Bion, 1992/2000), como já dito, uma capacidade fundamental da mente humana. Retomando o fragmento clínico apresentado, a imagem pictórica que surge na sessão (os sapatos de um morto) tem como esteio a intuição psicanalítica e a capacidade de reverie da analista. Além disso, a imagem também tem outros sentidos: passa a ser o fato selecionado[20] (Bion, 1963) de todo o processo terapêutico que se desdobrará; uma memória para o futuro da análise que se inicia. Um processo analítico no qual analisando e analista andarão por terrenos mortos, terrenos desvitalizados, sem contato com a verdade emocional, nos quais a dor ainda não foi sofrida (Bion, 1970), os fatos não foram sonhados, permanecem sem sentido, sem narrativa, apenas uma dor cega e bruta. Bion (1963/1967/1992/2014) propõe a denominação 'fato selecionado' baseada na obra do matemático Poincaré (Science and Method, 1914). Um fato selecionado colocaria uma certa ordem na complexidade dos elementos, tornando apreensível aquilo que inicialmente era uma experiência desorganizada. Bion (1967/2014) faz uma analogia do fato selecionado com uma imagem que se fixa em um caleidoscópio, atribuindo um sentido momentâneo aos elementos desorganizados e em movimento; uma imagem que evolui a partir da sessão. Britton[21] (1998) irá abordar no texto The analyst’s intuition: selected fact or overvalued idea? uma discussão que se aproxima, em alguns aspectos, do que estou discorrendo: o fato selecionado, no fragmento clínico exposto, uma reverie, evolui a partir da capacidade de intuição da analista, e inicialmente, a sensação é de algo alucinatório. O fato selecionado orienta o analista na sessão e o coloca próximo da realidade psíquica do paciente. No entanto, Britton (1998) problematiza: como distingui-lo de uma ideia supervalorizada? Justamente na posterioridade da sessão é que poderemos saber se é uma intuição ou uma alucinação do analista. A ideia supervalorizada é um fato pré-selecionado, e não algo que evolui da experiência com o paciente na sessão. As teorias do analista podem ser usadas como fatos pré-selecionados, supervalorizados e alucinados, que podem tornar o analista impermeável às emoções desorganizadoras geradas pela turbulência do encontro de duas personalidades, a do analisando e a do analista. Britton (1998) escreve que a emergência de um fato selecionado envolve três sequências transformacionais: da posição esquizoparanóide para a depressiva; do elemento não contido para o contido; e da pré-concepção à concepção. A ideia supervalorizada seria um fato pré-selecionado, ou seja, a impossibilidade psíquica do analista de aguardar a emergência do fato selecionado, que implica em paciência e tolerância ao não saber, a capacidade negativa da mente do analista. O fato pré-selecionado seria o apego do analista à teoria psicanalítica pela predominância de memória e desejo. Britton (1998, p.108) conclui: “...o problema é que o analista será encorajado a acreditar que suas ideias supervalorizadas são o fato selecionado, pois o acordo consensual é mais valorizado do que a verdade.” [22] No fragmento clínico, o fato selecionado é a reverie dos sapatos de um morto. Um pictograma que organizou momentaneamente a turbulência emocional do encontro com Antônio. A imagem dos sapatos de um morto favoreceu a compreensão do sofrimento psíquico do paciente, não se transformou em uma interpretação ou construção. E, não foi apenas um fato selecionado desse primeiro encontro, foi um pictograma ícone de todo o processo analítico que se desdobrou a partir daquele momento. Por anos a análise caminhou por áreas psíquicas mortas e desvitalizadas que voltaram gradativamente à vida, possibilitando a Antônio uma experiência realizadora consigo mesmo e com as pessoas às quais ele estava vinculado. Considero incomum um fragmento clínico com essas características, que se oferecem de forma generosa para uma compreensão desses complexos processos mentais que ocorrem na turbulência emocional dos encontros analíticos. Nenhum apoio sensório identificável pôde ser destacado[23]. A sensação inicial para a analista era de uma imagem com características alucinatórias, como já dito, e justamente por isso permaneceu como um fragmento clínico a ser metabolizado teoricamente. A intuição psicanalítica e a reverie, alguns apontamentos Podemos pensar, tendo como referência a obra de Bion, em um conhecimento imediato, intuído[24], semelhante a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento - dedução, associação, comparação, análise, constatação etc - mas algo que aparece como uma imagem, criada de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável. A hipótese que levanto é de que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito[25]; eu/outro; o formar/desformar, as transformações em K/ as transformações em O[26]. Sendo que também podemos pensar a cesura intuição/alucinação[27], construção que faço sucintamente neste texto. Cesura é sinapse, é conexão, é o vínculo, escreve Bion (1977). O termo originalmente se refere a um espaço no poema, na estrofe, que promove ritmo, criaconexão, ruptura e movimento. Bion (1977/1981) escreve: Reformulando a afirmação de Freud, para minha própria conveniência: Há muito mais continuidade entre quanta autonomamente apropriadas e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos fariam acreditar. Então...? Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans) - ferência, o humor transitivo-intransitivo. (p.10) Podemos pensar na cesura entre diferentes estados mentais. Por exemplo, o lusco fusco ao acordarmos, momento no qual temos uma cena onírica em mente e por um instante não há diferenciação entre a cena e o mundo da vigília. Temos a impressão de que aquilo foi vivido, e subitamente acordamos e percebemos que a cena foi experienciada em um sonho que rapidamente se evapora na luz do dia. Na cesura entre o sonho e a vigília, há conexão, há continuidade e há ruptura entre dois estados mentais. A partir da compreensão que a mente funciona em uma oscilação contínua entre estados mentais, proponho a cesura intuição/alucinação. A intuição é um fenômeno, uma afetação enigmática[28], que emerge entre cesuras. Acontece na oscilação entre a área indiferenciada da mente, ainda sem forma, e a área diferenciada, evoluindo para uma reverie. Por esse motivo, podemos ter a impressão de uma alucinação, pois é uma criação imaginativa (Chuster, 2019, 2020), portanto uma forma que encontra sentido apenas no a posteriori. Precisamos do tempo para saber de qual lado da cesura estamos, se da alucinação ou da intuição, como no fragmento clínico dos sapatos de um morto, que inicialmente é vivido como uma alucinação, mas, posteriormente, realiza-se como uma reverie a partir da intuição da analista. A intuição pode ser favorecida pela disciplina de observação do analista no campo analítico. A observação analítica é treinada a partir da proposta metodológica de Bion (1965;1967): sem memória, sem desejo, e sem compreensão prévia. A experiência é percebida, primeiramente, como um elemento bruto (beta), enigmático (Figueiredo, Ribeiro e Tamburrino, 2011). Penso que a proposta de Bion no artigo de 1967, Notas sobre memória e desejo, pode ser compreendida como uma cesura na metodologia analítica. Representa tanto uma continuidade da proposta freudiana da atenção flutuante como uma ruptura, pois convoca a capacidade intuitiva do analista, o seu pensamento associativo, analítico e imaginativo[29]: a imaginação criadora (Chuster, 2019), a capacidade de ser afetado pelo enigmático da experiência e construir um pensamento, a reverie. Memória (passado), desejo (futuro) e compreensão prévia são opacidades que obstruem a capacidade de intuição do analista e a observação psicanaliticamente treinada. Bion (1992, p.324) escreve que a intuição opera entre opacidades e transparências, ou seja, na cesura entre esses dois elementos. Bion (1970)[30] faz uma analogia que nos ajuda a compreender esse processo psíquico, já referida neste texto: os negativos da fotografia antes da época digital. Faço uma apropriação sutilmente diversa dessa analogia: o negativo é uma película transparente escura que recebe quaisquer impressões, ou poderíamos dizer, afetações enigmáticas. A mente do analista precisaria ter essa qualidade negativa, uma qualidade de recepção, de hospitalidade, de continência a qualquer afetação. No processo de revelação, ou melhor, de realização[31]da imagem, feito por elementos que precisam de um período para produzirem efeito e uma sala escura para que a afetação do negativo se realize, há uma composição complexa e única de elementos. Memória, desejo e compreensão prévia podem ser a luz precipitada que queima o filme antes da realização da imagem. A imagem é criada a partir da afetação no polo negativo da mente do analista, sua capacidade negativa, e pela observação psicanalítica, sob a égide da função transformadora alfa que torna o enigmático da experiência em um elemento psíquico sensório passível de ser pensado, a reverie. A observação psicanaliticamente treinada é a disciplina do analista para não queimar o filme com a sua equação pessoal (Bion, 1992)[32]. O treinamento do analista é sua análise pessoal e sua ética analítica. A partir de Bion, os conceitos são compreendidos de forma espectral. Dessa forma, a intuição teria tanto um polo na capacidade de observação psicanalítica, como um polo inconsciente, no qual a função alfa trabalha: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie, um pensamento imaginativo. Em outras palavras, há um trânsito constante, absurdamente rápido, fugaz, e sempre instável, entre a cesura do finito (consciência, forma, área de diferenciação da mente) e do infinito (inconsciente, sem forma, área de indiferenciação da mente). Na oscilação constante das diversas cesuras, a intuição emerge como um raio em céu azul, a afetação enigmática, inevitavelmente turbulenta. A intuição opera em um trânsito constante entre cesuras, na qual a capacidade de reverie/função alfa do analista se sustenta, uma capacidade imaginativa e de criação de elementos psíquicos. Dessa forma, a intuição psicanalítica é favorecida pela capacidade treinada de observação do analista, sua capacidade negativa. Em outras palavras, a intuição psicanalítica acontece entre cesuras, a passagem contínua entre estados mentais: o não-sensorial/sensorial; finito/infinito; transformações em K/transformações em O; conhecido/desconhecido; eu/outro. Além de considerarmos uma contínua oscilação, a partir de uma compreensão espectral dos conceitos, há sempre um ponto de indecibilidade, ou seja, um ponto no qual não é possível saber em qual dos dois polos do espectro estamos. E, talvez, o ponto possa ser, também, uma área, um território de indiferenciação conceitual e fenomenológico. A imprecisão e a indecibilidade fazem parte das nuances das cesuras constitutivas do psíquico, com suas opacidades e transparências. Devido a isso, precisamos facultar uma certa imprecisão aos conceitos psicanalíticos. Os conceitos de intuição, função alfa e reverie estão imbricados, sendo epistemologicamente inviável uma diferenciação nítida entre eles. Se pensarmos sob o vértice da teoria das transformações de Bion (1965), a intuição seria estar em ‘O’, em uníssono com o paciente, e a imagem produzida pela reverie seria uma transformação em ‘K’, um pensamento imaginativo em busca de um pensador. A narrativa que pode ser construída a partir da reverie é a construção do analista. Retomando Bion, a origem de toda e qualquer transformação é incognoscível, é O compartilhado igualmente, mesmo que de forma diversa, pelo paciente e pelo analista na sessão: “...postulo que O em qualquer situação analítica está disponível para transformação por analista e analisando igualmente.” [33] (Bion 1965/2014, p. 169). A turbulência gerada pelo encontro com Antônio - o encontro entre duas personalidades é sempre um mau negócio, como escreve Bion (1979) - rapidamente evolui por meio de uma representação pictórica, uma reverie na mente da analista: a imagem dos sapatos de um morto, que também passa a ser um fato selecionado da sessão, como explicitado acima. A imagem pictórica já é o produto de um processo de transformação, do qual não temos acesso à origem. A analista em estado de capacidade negativa é arrastada pela experiência emocional, momentaneamente sem sentido. A capacidade negativa é o estado de mente sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia, estado receptivo a O, e, também, favorecedor da intuição psicanalítica. É preciso ter paciência (estado de mente esquizopananoide) e fé (Bion, 1970) de que algum sentido emergirá na posterioridade da situação, algo que gere um estado de segurança (estado de mente depressivo), que propicie uma evolução em K, um conhecimento do sofrimento psíquico do paciente por meio de uma imagem pictográfica, a reverie. As compreensões de reverie como a capacidade imaginativa da mente (Bion, 1968/2014), uma imaginação criadora (Chuster, 2019), ou um pensamento imaginativo, são nomeações e transformações bem-sucedidas a partir das primeiras postulações de Bion (1959, 1962). Sob essa perspectiva, podemos pensar na cesura intuição/alucinação, sendo que há um ponto de indecibilidade, um momento que não sabemos se aquela imagem que nos arrebata na sessão, a reverie – os sapatos de um morto - é uma alucinação ou intuição. À guisa de uma conclusão Os fatos, a experiência em si, aquilo que é incognoscível, pode ser transformado parcialmente em sonhos, escreve Bion na epígrafe deste texto. A experiência precisa ser sonhada pela função alfa, essa função transformadora e criadora de sentido. Os fatos precisam ser sonhados, ‘inconscientizados’, a outra via da interpretação dos sonhos. Os sonhos são uma forma de interpretar os fatos, uma transformação da brutalidade da vida em elementos oníricos, que encontram um sentido por meio de imagens e posteriormente narrativas, as interpretações e construções do analista na sessão. A intuição não é sensória, mas tem algum apoio indiscernível e dificilmente identificável no mundo sensório. Fazendo uma analogia, podemos compreender os elementos infra sensorial e ultra sensorial, referidos por Bion (1992/2000), como as sonoridades que não são captadas pelo ouvido humano. Podemos também pensar naquelas pessoas que têm ‘ouvido musical’ e escutam notas musicais que poucos escutam. Essa é uma boa metáfora para o analista: aquele que capta, por meio da intuição, elementos psíquicos inaudíveis e imperceptíveis para alguns. Para os que têm ouvido analítico intuitivo e capacidade de observação treinada, é possível captar notas inaudíveis ou o silêncio imperceptível entre as notas. E, se não estamos alucinando, estamos intuindo elementos psíquicos em estado bruto. Concluindo, penso que a intuição psicanalítica seja uma afetação enigmática que ocorre de forma fugaz no trânsito contínuo e oscilante entre diferentes cesuras, e que evolui para uma imagem, a reverie, por meio de uma imaginação criadora. A expressão imaginação criadora (Chuster, 2019) é exitosa: uma imagem em ação, em movimento, um elemento psíquico, uma reverie, um pensamento (Bion, 1968/2014) em busca de um pensador na dupla analista-analisando. Sucintamente, compreendo a reverie como um pensamento imaginativo que evolui na sessão a partir da capacidade de intuição do analista que ocorre na oscilação constante entre cesuras. Termino este capítulo com a epígrafe do texto de Thomas Ogden (2013) Reverie e Interpretação, citando o poeta Henry James (1884), pois acredito ser esta uma definição conceitual muito bem-sucedida, apreendida pela capacidade de poiesis da mente, ou seja, a reverie por si mesma: A experiência nunca é limitada, e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, um tipo enorme de teia de aranha de finíssimos fios de seda suspensos na câmara da consciência, capturando todas as partículas voláteis do ar em seu tecido. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa (...) capta os mais tênues sinais de vida (...) (146). Notas [1] Esse texto foi originalmente publicado em inglês: The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed, The International Journal of Psychoanalysis, 103:6, 929-947 DOI: 10.1080/00207578.2022.2084402. Agradecemos a autorização do IJP para a publicação da versão em português neste livro. [2] Psicanalista, Professora Doutora do IPUSP, orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Psicologia Clínica do IPUSP. Coordenadora do LipSic (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea), autora de diversos livros e artigos. https://www.lipsicpsicanalise.com/; https://www.marinarribeiro.com. [3] Esse fragmento clínico foi apresentado em duas reuniões científicas on-line (2020, 2021) disponíveis no youtube nos links: https://www.youtube.com/watch?v=jWHTWg-Gu9E e https://www.youtube.com/watch?v=Z01HZE_p8jo. [4] Estou circunscrevendo a discussão do conceito de reverie neste artigo como uma representação pictórica, uma imagem. Civitarese (2016) refere-se às reveries corporais, devido à complexidade desse debate, que justificaria um texto a parte, permaneço do campo da compreensão da reverie como um pictograma ou ideograma, ou seja, como foi postulado por Bion. [5] Uso a expressão imagem pictórica, pois é uma imagem que é ‘pintada’ na mente do analista, sua origem latina é pictōre, pintor. Bion (2000) no livro Cogitações usa os termos: ideograma, representação pictórica ou imagens pictográficas praticamente como sinônimos. [6] “Ato de fé: ...Assim, ele designa um ato que se realiza no domínio da ciência e que deve ser diferenciado do significado habitual de conotação religiosa. (...). Refere-se à necessidade de o sujeito acreditar que há uma realidade que ele não sabe o que é e que não está a seu alcance. ” (Zimerman, 2004, 78). [7] Comunicação oral (2020). [8] Fred Bush (2019) publicou um livro, The analyst's reveries. Exploration in Bion’s enigmatic concept, dedicado ao conceito e suas diversas compreensões em três principais autores pós bionianos: Thomas Ogden, Antonino Ferro e o casal Rocha Barros. [9] No original: ‘Thoughts are a nuisance’. Thoughts logically and epistemologically, prior to thinking. 10. Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’. [10] No original: “One of the most enriching parts of these Cogitations must surely be Bion’s conception of the dream work. We find here the germ of what the author was later to call the capacity for reverie. What this means is that the dream work constitutes only a small part of this type of activity as found in the dreamer – that this work is a continuous process which also goes on during daytime activity, but remains unobservable (other than in conscious fantasy) except through its lack in the psychotic. The capacity for reverie is merely the visible aspect of a largely unconscious form of thought.” (355) [11] O flash visual é uma expressão de Meltzer (1984/2009). Refere-se a uma imagem que é “vista” externamente, ou seja, que tem um componente alucinatório mais intenso. O que a diferencia de uma alucinação é que o sentido da imagem emerge a posteriori. [12] Expressão de Ogden (2013). [13] Conforme o livro From Reverie to Interpretation. Transforming Thought into the Action of Psychoanalysis (Blue & Harrang, 2016). [14] Proto-pensamentos é uma expressão adotada por Bion (1948-1951) ao se referir a algo que ainda não é um pensamento, mas tem a potencialidade de ser, um ideograma. [15] Considerando que a distinção entre esses termos exigiria um outro trabalho. [16] Itálicos dos autores. [17] “Bion - inspirado em Freud - utilizou esse termo em seus estudos sobre a continuidade que existe entre a vida pré-natal e a pós-natal (...). Assim, a palavra cesura também designa, na obra de Bion, uma espécie de ponte que, na situação analítica, representa a passagem de um estado mental para outro (...)”. (Zimerman, 2004, 79). O conceito de cesura será abordado adiante no texto. [18] Bion no livro Cogitações (1992) usa os termos infra sensorial e ultra sensorial, podemos fazer uma analogia com os raios ultravioletas que são imperceptíveis aos olhos, mas que produzem efeitos. [19] No original: “For me, reverie (…), waking dreaming, is paradigmatic of the clinical experience of intuiting the psychic reality of a moment of an analysis. In order to enter a state of reverie, which in the analytic setting is always in part an intersubjective phenomenon (Ogden, 1994a), the analyst must engage in an act of self-renunciation. I mean the act of allowing oneself to become less definitively oneself in order to create a psychological space in which analyst and patient may enter into a shared state of intuiting and being-at-one-with a disturbing psychic reality that the patient, on his own, is unable to bear.” (Tradução livre) [20] “Fato selecionado: este importante conceito - inspirado no matemático Poincaré - se refere à busca de um fato que dê coerência, significado e nomeação a fatos já conhecidos isoladamente, mas cuja inter-relação ainda não foi percebida, …” (Zimerman, 2004, 86) [21] This chapter is based on a paper written jointly with John Steiner (Britton and Steiner, 1994). [22] No original: “…the problem is that the analyst will be encouraged to believe that his overvalued ideas are the selected fact, as consensual agreement is valued more highly than the truth.” Tradução nossa. [23] Os sapatos concretos do paciente não tinham nenhuma peculiaridade que pudesse ser um apoio sensório para a imagem dos sapatos de um morto. Além disso, não havia nenhuma informação sobre o paciente anterior ao encontro, o que torna esse fragmento clínico interessante para uma aproximação com os conceitos de intuição e reverie. [24] Com relação à localização na obra de Bion do termo intuição, ele aparece no livro Transformações (1965), na conferência ministrada em 1965 em Londres intitulada Memória e Desejo, no pequeno, porém notável texto de 1968, Notas sobre memória e desejo, nos Comentários ao livro Estudos Psicanalíticos Revisados (1967), nos Seminários em Los Angeles (1968) e nos primeiros capítulos de Atenção e Interpretação (1970), e, também no livro Cogitações (1992). [25] Bion sugere os termos finito para consciente e infinito para inconsciente. [26] A frente no texto articulo a intuição com a teoria das transformações de Bion (1965). [27] Sugestão feita por Evelise Marra em reunião científica (2021). [28] Expressão de Luís Cláudio Figueiredo (2021), comunicação oral. [29] Pensamento imaginativo foi uma denominação que surgiu ao longo da escrita deste artigo. [30] Retomada por Chuster (1996). [31] Realização no sentido de tornar visível o invisível, estou usando o termo de forma laica. Realização é um conceito de Bion que tem diferentes compreensões ao longo da obra. [32] Lembrando que para Bion a contratransferência é sempre inconsciente. [33] No original: “I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analyst and analysand equally.” Tradução nossa. Referências Bibliográficas Bion, R. Wilfred (1948-1951). Experiences in groups. The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books, 2014. Bion, R. Wilfred. 1959. 'Attacks on linking", in The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books, 2014 Bion, R. Wilfred (1962). Learning from experience. 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- Posfácio: O texto que ainda não foi escrito e aquilo que ainda não foi vivido
...temos às vezes a sensação de que um pensamento foi dito, não substituído por índices verbais, mas incorporado às palavras e por elas tornado possível, e há enfim um poder das palavras, pois que operando umas contra as outras são atraídas, visitadas a distância pelo pensamento, como as marés pela lua, ... (Merleau-Ponty, 1960/1980, p. 145) Se ao apresentar a capacidade negativa Bion (1977/2019) propõe pensarmos na sessão de amanhã, ou em um evento que ainda não ocorreu (Bion, 1965/2014), penso ser também necessária uma capacidade negativa diante do texto em via de se escrever. É preciso sustentar a sensação de que nada foi escrito antes, mesmo existindo livros que testemunham o contrário, e de que tudo aquilo que julgávamos saber, de repente, pudesse desaparecer. Então, novamente, nos tornamos crianças diante da imensidão do mar, encantados com toda aquela grandeza e assustados com a nossa pequenez. E, se o tempo, o sem pressa de que nos fala Bion (1977/2019), puder ser tolerado, surgirá, talvez, o prazer da sensação de que somos novos num mundo nunca antes visto. O que nos conduz é a curiosidade de tocar a água, a espuma, o ímpeto de mergulhar no movimento único de cada onda, a entrega e abertura a uma experiência acerca da qual ainda nada sabemos. Assim comecei a leitura deste livro - por Bion, imersa em capacidade negativa ou, como escrevem os autores, em uma capacidade virtuosamente expectante. E usufruindo da liberdade e do privilégio daqueles que chegam ao fim de um percurso traçado com maestria por outros, permito-me uma escrita mais livre, um ensaio psicanalítico inspirado nos ecos gerados na leitura e no diálogo com o texto, com as presenças de pensamentos nele contidas e reveladas. Seguindo a sugestão de Bion (1977/2019), de dizer “do nosso jeito” [1], sigo com a inspiração, já antes delineada, de uma criança pequena que vê o mar pela primeira vez: não há memória, não há desejo, não há necessidade de compreensão, apenas a abertura à experiência surpreendentemente nova. E como seria difícil para uma criança descrever o que viveu no dia seguinte... Provavelmente, ela teria ficado imersa em sensações ainda sem palavras. Será que um adulto teria capacidade de elaborar uma narrativa comunicável acerca dessa experiência tão sensorialmente marcante? Será essa a função psicanalítica da personalidade[2]? A capacidade humana de transformar as experiências emocionais, inicialmente em estado bruto (não sensório) em uma imagem sensória, e, posteriormente, ser capaz de transmutar essa imagem em palavras, na busca pela verdade e pelo sentido daquilo que é vivido. Habitamos um mundo linguageiro - mesmo considerando que as palavras são apenas uma aproximação e uma revelação parcial da experiência, é o que temos, e isso não é pouco. Bion (1977/2019) diz: “...falamos através de uma linguagem que está relacionada com experiências que são sensíveis, que você pode experimentar com seus sentidos. Mas o que estamos lidando aqui é uma outra questão.” Bion parece se referir ao fato de que o analista está diante do desafio de lidar com o não sensorial, a outra questão, como ele diz: a ansiedade não tem cheiro, não tem cor, não pode ser tocada, não tem forma, etc. O elemento não sensorial é captado pela intuição psicanalítica - o terceiro olho da mente, a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente[3]. Além disso, lidamos com o sensorial, com aquilo que pôde ser transformado em um pictograma pela reverie/função alfa[4]. E, também, precisamos nos defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens; e de gerar imagens a partir das interpretações ou construções[5], em uma circularidade que favorece a intimidade com a nossa própria mente e a de outros. Bion (1977/2019) nos fala de jogos infantis, de transformar em palavras uma imagem visual. Compreendo a imagem visual como uma construção imagética onírica, uma captação do pensamento onírico da vigília, por meio de um pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1996) ou afetivo (Rocha Barros e Rocha Barros, 2016) da experiência. Em outras palavras, trata-se de uma primeira forma de organização da experiência emocional, o pictograma, ou como Bion descreve: uma representação pictórica ou sensorial. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo, em 1965 (publicado como texto em 1967), nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: Nevertheless, as analysts we do know – and I think it is borne in on us more and more as experience builds up – that we really do deal with something; that the psychoanalytic experience, however sceptical we may be, is really an emotional experience and it really exists, even if we shall never know or be in a position to give even an approximately correct description of what takes place. For this reason, I think – and find it most useful to do so – of any clinical description as being by nature of a pictorial representation, or, shall we say, a sensuous representation (because I am thinking of what takes place in an analytic situation).I transform that situation into visual images and then a further transformation into verbal formulations, such as those with which we are familiar here. (Bion, 1965/2014, p.10) Não obstante, como analistas nós sabemos - e acho que isso fica cada vez mais claro, à medida que a experiência se amplia - que realmente nós lidamos com algo; que a experiência psicanalítica, por mais cépticos que possamos ser, é realmente uma experiência emocional e existe de verdade, mesmo que a gente nunca saiba ou esteja em uma posição de dar sequer uma descrição aproximadamente correta daquilo que acontece. Por esta razão, eu penso - e acho que é mais útil fazê-lo – em qualquer descrição clínica como sendo da natureza de uma representação pictórica, ou, digamos, uma representação sensorial (porque estou pensando naquilo que acontece em uma situação analítica). Eu transformo essa situação em imagens visuais e então uma outra transformação em formulações verbais, como aquelas com as quais estamos familiarizados aqui. (Tradução livre) Transformar em palavras é, pois, o jogo da plasticidade da língua, da narrativa, que contém e revela a experiência como um conhecimento (K). São jogos infantis, diz Bion (1977/2019), ousadamente, para uma plateia de analistas britânicos. Estaria ele sugerindo que o analista precisaria se abrir para a liberdade do infantil (do inconsciente) brincando com imagens que se transformam em palavras? E com palavras que se transformam em imagens? Além de transitarmos por esse já complexo campo sensorial, precisamos, ainda, captar o não sensorial pela intuição psicanalítica, o terceiro olho. Os autores deste livro compreendem que, quando Bion (1977/2019) fala de ‘direção’, refere-se a consciente e inconsciente. Seguindo esse pensamento, penso que se trata do ‘jogo’ da visão binocular, da oscilação entre as duas posições, esquizoparanóide e depressiva, as duas formas de apreensão do mundo descritas por Melanie Klein[6]. Situando as imagens em um gradiente, de modo a acompanhar o que este livro propõe, temos: o paciente que arranha os pulsos, o relógio que gera um edema, cicatrizes consideráveis nos pulsos e, por fim, o paciente que tenta o suicídio. Pequenas ondas em um mar calmo, seguidas de aumento gradativo da turbulência (ansiedade) gerando ondas cada vez maiores, até o tsunami da tentativa de suicídio. Tanto as imagens quanto as narrativas percorrem o espectro esquizoparanóide e depressivo, parte psicótica e parte não psicótica da personalidade, inconsciente e consciente. Gradientes de comunicação entre mentes: “O paciente conseguiu fazer uma comunicação violenta desse tipo porque é a única maneira de penetrar nas mentes das pessoas em torno dele” (Bion, 1977/2019). Uma mente em busca da mente de outra pessoa, alguém que possa conter e construir um sentido para o sofrimento, tornar a dor pensável, sofrer a dor (Bion, 1970), por meio da continência e da capacidade imaginativa. Retomando uma analogia feita por Chuster (1996, p.19): “Memória e desejo são como intrusão de luz num filme dentro de uma máquina fotográfica, destroem o valor do que pode ser retratado psicanaliticamente”. Precisamos de um quarto escuro, um facho de intensa escuridão para que as imagens se revelem gradativamente. Se precipitarmos o processo, por intolerância ao tempo necessário, a necessária paciência de se manter no escuro para que a imagem surja, o pensamento se perde. Memória e desejo compreendidos como fachos precipitados de luz que queimam o filme, impossibilitam que as imagens sejam reveladas na escuridão, a partir do estado regressivo da mente do analista e do analisando, como também da capacidade de reverie/função alfa. Chuster relata em vários textos que a proposta de Bion na publicação de 1967 - sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão - é uma ampliação da proposta freudiana da atenção flutuante. Tenho a mesma impressão, de que Bion colocou a atenção flutuante em uma microscopia, descrevendo minuciosamente a intensa disciplina necessária ao trabalho do analista. Receber o paciente sempre como se fosse a primeira vez requer um esforço no sentido de nos mantermos em um estado infantil (inconsciente) de descoberta e abertura ao mundo, como se nada conhecêssemos antes (memória e passado) e nem depois (desejo e futuro). É algo tão inédito como conhecer o mar com olhos de criança. A questão do tempo abre outra instigante discussão: qual é o tempo daquilo que é vivido na sessão? O tempo da sessão, o aqui e agora, é o tempo do vivido, o ‘presente radical[7]’, sem memória e sem desejo, no qual passado e futuro são intencionalidades (Merleau-Ponty, 1945/1971). Em outras palavras, memória e desejo geram compreensões lógicas, fazem parte de uma racionalidade. O tempo retalhado em passado, presente e futuro é o tempo dos processos conscientes. O ‘presente radical’, como estamos sugerindo, é o tempo dos processos inconscientes, contém as intencionalidades do passado e do futuro. A experiência da sessão de hoje é tudo o que temos, a criança diante da imensidão do mar, o tempo das transformações, o tempo do vivido. A potencialidade da intuição e sua evolução em um pictograma, uma representação sensorial e, posteriormente, em uma narrativa, acontecem no aqui e agora da sessão. O tempo dividido em passado, presente e futuro é nivelado. O tempo vivido é o tempo do ‘presente radical’ da sessão, lugar onde mora a expectação da intuição, da capacidade negativa e da possibilidade de tornar visível o invisível da experiência. Em outros termos, de tornar sensório o não sensório da intuição psicanalítica, de transformar em um pictograma a experiência, e transformar o pictograma em uma narrativa de êxito. No entanto, durante essa longa trajetória de transformações, que pode durar instantes, podemos ter interferência de memória e de desejo, obstrução que pode se dar, inclusive, por meio das próprias teorias psicanalíticas quando usadas de forma inadequada ou defensiva pelo analista. Antonino Ferro, acompanhando Bion na sua crítica ao uso indevido das teorias, escreve que estas podem se tornar como um avental de chumbo quando o analista tem receio das radiações emocionais presentes na sala de análise. Um analista angustiado ou cansado busca as teorias como bóias ‘salva psiquismos’, como proteção que o impossibilita de flutuar e ser arrastado pelas águas turbulentas das emoções que circulam no campo analítico. Se lermos tratados sobre o mar, sobre a sensação de estarmos imersos em águas calmas e mornas, ou frias e turbulentas, isso em quase nada servirá para nos aproximarmos da experiência desse encontro. Assim se dá com a mãe que gesta seu bebê: em quase nada lhe servem os manuais, os cursos, as instruções dos médicos e enfermeiros, ou até mesmo um primeiro filho - o encontro com o bebê que está sendo gestado será único. Por que com um paciente seria diferente? A teoria precisa estar incorporada na mente do analista, para que, na sessão, ele possa esquecê-la, e estar à deriva na experiência emocional com aquele paciente, naquele encontro único. Bion (1977/2019) nos adverte que o procedimento sugerido, sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão, é possível para o analista que já foi analisado; ou seja, a experiência de entrar em análise, assim como se entra no mar, não é passível de substituição por uma compreensão teórica do que é o mar, um entendimento racional do que é o inconsciente. Porém, quando usadas de forma adequada, as teorias psicanalíticas podem ser compreendidas como exercícios técnicos de um pianista - é preciso ter a técnica incorporada com maestria, e esquecida sem indulgência, condição para interpretar. Nesse sentido, qual seria a interpretação possível? Se a psicanálise é uma profissão impossível, como escreveu Freud (1925/1980), o que seria o possível de cada sessão? Ou como conseguimos transformar em palavras a imagem que emerge no encontro, o pictograma, e como podemos nos tornar capazes de narrar a experiência que evolui na dupla analista e analisando? Precisamos fazer uma interpretação que o paciente veja[8], escreve Bion. Construir uma narrativa que o paciente veja: a imagem se faz palavra, a palavra gera novas imagens; o contínuo formar e desformar da experiência. O paciente vê o que o analista interpreta, o analista vê o que o paciente ainda não pode sonhar, aquilo que ainda não se transformou em um pictograma, necessitando, pois, da capacidade transformadora da reverie/função alfa do analista. Bion (1977/2019) diz: “Se a interpretação for correta, então o paciente pode ‘ver’ ”. Chuster apresenta um detalhamento conceitual importante, parcialmente diverso de outros autores[9]: compreende a reverie e a função alfa como pólos de um espectro. Para o autor, os conceitos de reverie e função alfa fazem parte da contribuição de Bion para a teoria dos sonhos. O sonho é uma função diuturna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais, o que foi denominado como pensamento onírico da vigília (day-dream). Seguindo a descrição de Bion, Chuster compreende que a reverie diz respeito à díade mãe-bebê e a função alfa, à díade analista-analisando. A reverie é predominantemente sensorial, e a função alfa é predominantemente simbólica; ambas são compreendidas como pólos de um espectro de infinitas possibilidades. Chuster enfatiza a ideia de Bion sobre a função alfa ser uma expressão epistemologicamente mais adequada para a observação da complexidade da vida mental, pois permite ampliações e aplicações detalhadas em vários níveis da experiência humana. Retomando, o analista sonha a sessão por meio de sua função onírica alfa (Bion, 1992/2000), que é uma função transformadora da experiência em estado bruto: o elemento beta. Em espanhol, temos o expressivo termo ‘ensoñación’, um estado de ‘ensonhamento’, de transformar em sonho a experiência vivida. Bion sugere algo que revela o sentido inverso da proposta freudiana, sem abrir mão do que Freud postula (tornar consciente o inconsciente); propõe que precisamos tornar inconsciente o vivido. A reverie e a função onírica alfa são constitutivas da capacidade de ‘ensonhamento’ da experiência vivida em estado bruto. Antonino Ferro (2017) expressa de forma simples e poética o que seria uma análise: como nós, estando juntos, podemos metabolizar a brutalidade da realidade (p.153). Essa metabolização da brutalidade da experiência se dá pela função psicanalítica da personalidade e sua capacidade imaginativa, é o que constrói o sentido, na busca humana incessante pela verdade e pelo conhecimento de si (K) e do tornar-se (O). Esse processo acontece por meio da transformação constante da experiência emocional, que primeiramente se apresenta em estado bruto: o enigmático do elemento beta[10] que é transformado, pela função onírica alfa, em uma imagem onírica e, posteriormente, em uma narrativa. Bion (1992/2000) escreve que o elemento alfa pode ser processado em forma narrativa, necessitando ter essa qualidade para ser compartilhado; utiliza-se então das expressões “forma narrativa” e “qualidade narrativa” (p.158). Sobre a função da palavra na sala de análise, a narrativa do analista que pode ser ‘vista’ pelo paciente, acompanhando a epígrafe de Merleau-Ponty (1960/1980) que inspira este ensaio, Chuster (2018, p.76) escreve: .... Assim, na análise a palavra não é simplesmente uma abstração, mas um estado específico da linguagem derivado de transformações. A potência intrínseca da palavra, deriva, portanto, da capacidade de integração da reverie/função alfa, e daí pode ser veículo do pensamento que atesta o encontro das mentes. Trata-se, pois, de uma narrativa visitada e habitada pelo pensamento e pelo encontro entre as mentes. Nesse sentido, a linguagem é como um ser que contém vestígios da presença do pensamento; ou seja, linguagem é criação. Será essa a linguagem do homem de êxito[11] expressa por Bion? O analista não precisa ser um poeta ou escritor, mas precisa ter essa habilidade para a sessão de amanhã, precisa ter essa capacidade negativa como característica para aguardar que algo evolua, no presente ‘radical’ da sessão, e se torne um fato selecionado[12] a ser narrado. Bion (1977/2019) diz que a capacidade negativa seria uma característica da mente do analista, e não um estado de mente do analista. Uma característica de habitar e ser habitado por outras mentes? Uma abertura infantil (inconsciente) para a experiência: a sessão de amanhã, aquilo que ainda não foi vivido. Mia Couto (2012, p.101) escreve: “O segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades”; e construirmos uma narrativa inédita e transformadora, poiesis[13], a palavra visitada à distância pelo pensamento, como as marés pela lua (Merleau-Ponty, 1980), o infinito da linguagem como sustenta Chuster em vários textos. Por último, gostaria de destacar uma instigante aproximação feita pelos autores do livro da capacidade negativa com o termo ‘serendipidade’, que significa algo encontrado de forma agradavelmente inesperada. Nessa direção, da serendipidade, Freud dirige a Ferenczi (1993) um comentário em uma das várias cartas trocadas entre eles (1908-1914): não se deve fazer teorias - elas devem cair de improviso em sua casa, como hóspedes que não foram convidados, enquanto você está ocupado examinando detalhes. Penso ser esse um excelente estado de mente sugerido por Freud e expandido por Bion: andarmos um pouco distraídos, em estado de atenção flutuante e de capacidade negativa, uma capacidade virtuosamente expectante, de modo a encontrarmos o que não estávamos procurando. E essa descoberta nos torna outros, nos transforma. Se a criança que fomos um dia, diante da extraordinária experiência de ver o mar pela primeira vez, permanecer vitalizada em nós, com sua capacidade negativa viva[14], torna-se possível a experiência de que somos novos no mundo e podemos ver algo nunca antes visto: um paciente pela primeira vez, a nós mesmos pela primeira vez. Considerando esse breve ensaio psicanalítico realizado - o trem da partida é o mesmo da chegada, posso agora nomeá-lo: la mer, la mère et l'inconscient. [15] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BION, R. W. (1977/2019) Capacidade Negativa. In Capacidade Negativa. O caminho da luz. (trad. Anie Stümer) São Paulo, SP: Ed. Zagodoni. BION, R. W. (1970/2014). Attention and interpretation. The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books. BION, R. W. (1965/2014). Memory and desire, 1965. The complete works of W.R.Bion. London: Karnac Books. Ed. Chris Mawson, Volume VI. BION, R. W. (1992/2000). Cogitações (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. CHUSTER, A. & colaboradores (2011). O objeto psicanalítico. Fundamentos de uma mudança de paradigma na psicanálise. Porto Alegre: Ed. do autor. CHUSTER, A. (2018). Simetria e objeto psicanalítico. Desafiando Paradigmas com W.R.Bion. Rio de Janeiro: Edição do autor. CHUSTER, A. (2019). Bion e Laplanche: Função Alfa e Função Tradutiva Um encontro que celebra a psicanálise. In Diálogos Psicanalíticos. Bion e Laplanche: do afeto ao pensamento. (Org. Rocha Barros, A. & Candi, T.). São Paulo: Ed. Escuta. CINTRA, E.M.U & RIBEIRO, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP. Ed. Zagodoni. COUTO, M. (2012). E se Obama fosse africano? Ensaios. São Paulo, SP: Editora Companhia das Letras. COUTO, M. (2012a). O fio das missangas. São Paulo, SP: Editora Companhia das Letras. FERRO, A. (1996). Antonino Ferro em São Paulo. Seminários. M. O. de A. F. França & M. Petricciani (Orgs.). Acervo Psicanalítico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. FERRO, A. & Nicoli, L. (2017) Pensamientos de un psicoanalista irreverente. Portugal: Ed. Gradiva. FIGUEIREDO, L.C., RIBEIRO, M., & TAMBURRINO, G. (2011). Bion em nove lições. Lendo transformações. São Paulo, SP: Escuta. FREUD, S. (1915/2010). O inconsciente. Obras completas. Volume 12. (trad. Paulo César de Souza). São Paulo, SP. Ed. Companhia das Letras. FREUD, S. (1925/1980). Prefácio a juventude desorientada, de Aichhorn. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (vol. XIX.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. FREUD, S. & FERENCZI, S. (1908-1914). The correspondence of Sigmund Freud and Sándor Ferenczi. Volume I. (Translated by Peter T. Hoffer). The Belknap Press of Harvard University Press. 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The function of evocation in the working-through of the countertransference; projective identification, reverie, and the expressive function of the mind. Reflections inspired by Bion`s work. The W.R. Bion tradition. Edited by Howard Levine and Giuseppe Civitarese. London: Karnak. NOTAS [1] “Procuraremos dizer do nosso “jeito” aquilo que Bion traz de seu pensamento, tecendo ideias que poderão se acrescentar às ideias do leitor que por sua vez, poderá criar seu próprio texto. ” Citação deste livro, sigo por esse caminho sugerido, buscando criar um ensaio psicanalítico. [2] Remeto o leitor interessado ao texto: Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico. A narrativa do analista e a do escritor. (Ribeiro, M.F.R., 2019). [3] “É muito digno de nota que o Ics de um indivíduo possa, contornando o Cs, reagir ao Ics de outro. Esse fato merece investigação mais aprofundada, em especial para saber se a atividade pré-consciente é aí excluída, mas como descrição é algo incontestável.” (Freud, 1915/ 2010, p.136). [4] Acompanho a forma específica como Chuster escreve e compreende a reverie/função alfa, como polos de um espectro que vai do mais sensorial (a reverie) para o mais simbólico (a função alfa). [5] “O trabalho do analista passou a ser visto como algo que não pode ser descrito simplesmente pela interpretação. Tornou-se necessário valorizar o potencial da experiência emocional e seus significados para o desenvolvimento do pensamento em si. Deste modo, o processo analítico passou a usar mais construções e descrições para lidar com a complexidade dos processos mentais. O processo de “sonhar” (função-alfa) o material da sessão tornou-se central no trabalho analítico” (Chuster e colaboradores, 2011, p.29). [6] Por que Klein? Cintra & Ribeiro, 2018. [7] Sugiro a expressão ‘presente radical’ inspirada no uso que Chuster faz do conceito de imaginação radical de Castoriadis em vários textos. Uma imaginação originária, um tempo originário. É claro que isso exige uma discussão mais extensa que foge ao escopo deste ensaio. [8] Destaco que na gravação das apresentações de 1965 e na de 1977, na Sociedade Britânica, Bion usa o verbo ver, o que é interessante, pois a experiência da reverie é comumente relatada como algo que é visto pela capacidade imaginativa da mente. [9] Tais como Antonino Ferro, Thomas Ogden e o casal Rocha Barros. [10] O enigmático do elemento beta é uma expressão presente no livro Bion em nove lições. Lendo transformações. (Figueiredo, Ribeiro, Tamburrino, 2011). [11] Mia Couto (2012a, p.52) descreve o que poderíamos entender como uma linguagem de êxito: “Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei. Como perfurme em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.” [12] “O fato selecionado realiza uma determinada combinação ou agregação de conjuntos de alta intensidade sensorial, embora, ele por si mesmo, não seja apenas sensorial. ” Citação deste livro. [13] “A pergunta parece sugerir que nós psicanalistas devemos buscar dizer algo para os pacientes que tem um valor poético, no sentido da força das palavras poéticas, que possuem durabilidade no tempo, e não se saturam com explicações e racionalismos. ” Citação deste livro. [14] Compreendo dessa forma o prelúdio para a sessão (Bion, 1977/2019). [15] O mar, a mãe e o inconsciente (a pronúncia das palavras mar e mãe em francês é praticamente idêntica). Meltzer (1995) escreve que todas as mães são belas, o encontro com a mãe/mar é a experiência estética que nos constitui na nossa humanidade, seres capazes de imaginar. Em outro texto, escrevi que o nosso primeiro encontro é com o inconsciente materno (Ribeiro, M.F.R., 2011). Chuster escreve em vários textos que a primeira triangulação é o bebê, o seio e a mente da mãe, e que o bebê busca a mente da mãe. Penso que estamos sempre buscando outras mentes para realizar novas formas de ser, por meio de uma capacidade negativa lúdica e infantil (inconsciente), os jogos infantis de que nos fala Bion (1977/2019) em vários momentos da sua apresentação de 1977. A escrita deste ensaio psicanalítico é o testemunho do prazer de encontrar aquilo que não estávamos procurando, mas nos transforma, serendipidade.
- A Poética do Luto: Reflexão a partir do conceito de objeto transformacional
Amanda Christina Victoria de Andrade Melani (IPUSP); Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (IPUSP); Janderson Farias Silvestre dos Santos (IPUSP) Resumo: Partindo do conceito de objeto transformacional formulado por Christopher Bollas, discutimos o potencial transformador dos encontros estéticos. Apresentamos algumas reflexões sobre uma experiência clínica vivida com uma paciente atravessando um luto, e destacamos a marcante habilidade dela em se utilizar de músicas, imagens e metáforas para dizer de sua experiência emocional. A partir desta experiência clínica temos por objetivo, neste artigo, refletir a respeito da potência transformacional dos objetos estéticos no contexto analítico, que parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente. Por fim, fazemos alguns apontamentos sobre a importância do encontro analítico, na relação de transferência-contratransferência, para o potencial de transformação dos encontros estéticos vividos nas sessões de análise. Palavras-chave: luto; clínica psicanalítica; arte. Link para acesso ao texto: https://www.researchgate.net/publication/348947843_A_poetica_do_luto_reflexao_a_partir_do_conceito_de_objeto_transformacional/fulltext/6018bf49299bf1b33e405814/A-poetica-do-luto-reflexao-a-partir-do-conceito-de-objeto-transformacional.pdf
- Notas sobre o objeto psicanalítico na obra de Wilfred Bion
Anne Lise Di Moisè S. Scappaticci,1; Marina F. R. Ribeiro, 2. Resumo: Este artigo trata da evolução do conceito de objeto psicanalítico no decorrer da obra de Wilfred R. Bion, trazendo questionamentos clínicos e ilustrações com trechos de sua autobiografia e uma vinheta clínica. Palavras-chave: metapsicologia, autobiografia, experiência emocional, psicanálise 1.Analista didata e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Doutora em saúde mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (epm-Unifesp). Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Roma La Sapienza. Pós-doutoranda pelo programa de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Editora da revista Ide. 2.Psicanalista. Professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), orientadora no programa de psicologia clínica e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). De que se ocupa o psicanalista? Qual é o objeto psicanalítico? É científico? Físico? Matemático? Estético? Poiético? Hoje em dia (e no passado), várias correntes dentro da psicanálise focalizam o objeto psicanalítico percorrendo um espectro que vai desde a psicopatologia, o caso clínico e a transferência – em que prepondera única e exclusivamente uma abordagem do psiquismo do paciente – até a investigação da contratransferência, das identificações introjetivas e projetivas, do campo analítico, da relação e, finalmente, da inclusão da personalidade do próprio analista. As abordagens psicanalíticas parecem ter enfoques diferentes. Algumas privilegiam a neutralidade do analista, as manifestações inconscientes do paciente, o intrapsíquico do analisando, enquanto outras se voltam para as experiências emocionais do analista no setting como principal ferramenta de trabalho. Objeto psicanalítico é um termo utilizado por Freud inicialmente no artigo “Os instintos e suas vicissitudes”, de 1915. Considerando a teoria pulsional, ele a forma que se constitui como objeto da pulsão todo objeto no qual ou através do qual a pulsão consegue atingir seu alvo. O objeto não é fixo nem previamente determinado; é o que há de mais contingente no conjunto de elementos e processos presentes nos atos pulsionais.3 Já em uma leitura mais sutil na obra de Freud, podemos conceber essa primeira experiência de satisfação como mítica, uma ficção, isto é, como uma situação que nunca existiu concretamente, mas que é postulada por ele como construção teórica necessária para alicerçar suas hipóteses. Daí a infinidade de objetos empíricos que se prestam a substituir esse lugar vazio, em uma busca vã e inesgotável, na saga pessoal de cada sujeito. Melanie Klein associa os objetos internos à fantasia, tornando o objeto psicanalítico ainda mais inefável e inerente ao modo singular de internalização e de projeção das experiências emocionais. Bion expande essa ideia distanciando-o do biológico, assim, atribui ao objeto psicanalítico a própria vivência emocional. Em Elementos de psicanálise (1963/2004) afirma que esse objeto tem a dimensão dos sentidos, dos mitos e da paixão. Focaliza o psíquico, o desconhecido, o incognoscível no inapreensível, que é, consequentemente, difícil de ser compartilhado. Bion parece alertar o psicanalista a observar seu próprio envolvimento mental na experiência da sessão, como diz o título escolhido para seu último trabalho, “Como tornar proveitoso um mau negócio” (1979). Este artigo pretende acompanhar o movimento metapsicológico em parte da obra de Bion, visualizando as mudanças no enfoque do objeto psicanalítico. Frequentemente esse autor se valeu do fato selecionado de Henri Poincaré para descrever o valor epistemológico da experiência de descoberta de uma configuração que une elementos há muito conhecidos, embora até então dispersos e aparentemente estranhos um ao outro, além de subitamente introduzir ordem onde reinava a aparência de desordem. Ele assim nos permite ver, de relance, cada um dos elementos no lugar que ocupa no todo. Não só o fato novo é valioso por si, mas ele, sozinho, confere valor aos fatos velhos que une. Nossa mente é frágil como nossos sentidos. 3. “O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou por meio da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação”. (Freud, 1915, citado por Rezze, 1990) Perder-se-ia na complexidade do mundo, se essa complexidade não fosse harmoniosa. Como míope, ela veria apenas os pormenores, e se condenaria a esquecer cada um deles antes de examinar o seguinte, por se mostrar incapaz de considerar o todo. São dignos de nossa atenção somente os fatos que introduzem ordem na complexidade, tornando-a, assim, acessível a nós. (Poincaré, citado por Bion, 1962, p. 90) Em sua escrita, Bion não classificou os diferentes períodos de interesse em sua obra. Na introdução do livro O aprender com a experiência (1962), orienta o leitor quanto ao método de realizar a leitura de seus textos. Ele parece até preconizar que o objeto irá surgir durante a própria leitura, em que o leitor se torna autor, assim como na experiência analítica: O livro foi projetado para ser lido diretamente, sem conferir partes que a princípio parecem obscuras. Algumas obscuridades se devem à impossibilidade de escrever sem pressupor familiaridade com certos aspectos de um problema que só será trabalhado depois. Se o leitor fizer uma leitura direta, essas questões se esclarecerão na medida em que ele prosseguir. Infelizmente, as obscuridades também existem devido à minha incapacidade de torná-las mais claras. O leitor pode considerar recompensador o esforço de esclarecê-las por si próprio, e não vê-las simplesmente como tarefa a que foi forçado por eu ter deixado de fazê-la. (Bion, 1962, p. ii) Contudo, vários autores se debruçaram em organizar a posteriori o desenvolvimento do pensamento de Bion, entre eles Bléandonu (1993), Braga (2018), Chuster (2018), Chuster et al. (2011), Meltzer (1998) e Rezze (2018). Segundo esses estudiosos, no primeiro período destaca-se o interesse pelo grupo, no livro Experiências com grupos (Bion, 1961). O objeto psicanalítico, nesse sentido, é o funcionamento grupal em dois níveis: o grupo de trabalho – um nível psicológico, em que há colaboração – e o grupo dos pressupostos básicos. Nesses últimos, “a potência não decorre da ciência, mas da magia. ... Os indivíduos não acreditam em sua aptidão para aprender com a experiência; ao contrário, tudo isso representa o ódio de toda a aprendizagem pela experiência” (Bion, 1961, p. 28). Essa dimensão grupal continua como proposição germinal por toda a obra do autor. Bion não descarta compreensões que teve na origem; ele parece voltar a elas. Os pressupostos básicos, por exemplo, seriam nossos estados alucinatórios, dimensão sempre presente. Um fulcro do pensamento bioniano é a tensão perene entre o indivíduo e o stablishment, o místico/gênio e o grupo, os personagens do grupo interno da mente descritos no final de sua vida na trilogia Uma memória do futuro (1979/1990a, 1975/1990b, 1977/1990d). No livro Experiência com grupos, ao descrever um espaço imaginário no parágrafo intitulado “Tensões intragrupais”, ele comenta: Achei útil visualizar a organização projetada da ala de treinamento como se se tratasse de uma estrutura encerrada dentro de paredes transparentes. Nesse espaço, o paciente seria admitido em um determinado ponto, e as atividades em seu interior seriam organizadas de maneira que ele pudesse movimentar-se livremente em qualquer direção, de acordo com a resultante de seus impulsos conflitantes. Seus movimentos até onde possível não seriam deformados por interferência externa. Em resultado disso, poder-se-ia confiar que seu comportamento proporcionasse uma indicação direta de sua vontade e seus objetivos efetivos, em oposição aos objetivos por ele próprio proclamados ou àqueles que o próprio psiquiatra desejaria que ele tivesse. (Bion, 1961, pp. 14-15) No segundo período destaca-se o interesse pelo pensamento psicótico (1950-1960). Em 1967, Bion reuniu sete trabalhos no livro Estudos psicanalíticos revisados. O objeto psicanalítico está dimensionado sob a influência do pensamento kleiniano em “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946/2006), cujas ferramentas principais são a identificação projetiva, as posições esquizoparanoide e depressiva e os objetos parciais. Nesses artigos, como em “Ataques à ligação” (1962/1967a), a mente é concebida de modo espectral; sua manifestação não é apenas uma relação verbal, mas algo na tensão entre uma mente e outra, uma função. Bion está interessado nos primórdios da capacidade de pensar, no que ocorre no contato do aparelho psíquico do bebê com o aparelho psíquico da mãe, na exposição da mente do analisando à mente do analista. O progressivo enfoque nos processos de pensamento, no método do pensar, e não somente no conteúdo do pensamento, culmina no artigo “Uma teoria sobre o pensar” (1962/1967b), que prepara para a fase sucessiva, a epistemológica (1962-1979). Bion expande a teoria freudiana da consciência como órgão perceptivo das qualidades psíquicas, presente no artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911/1996a), e a teoria kleiniana da identificação projetiva, que é a fantasia primitiva onipotente e inconsciente na qual se pode projetar dentro do objeto partes ou sentimentos indesejados de si mesmo. Como decorrência, o objeto psicanalítico é investigado por meio da participação do próprio sujeito – princípio da incerteza de Heisenberg (1927) – e pode ser visualizado através de vários vértices. Trata-se, portanto, de um objeto complexo e não linear. O autor propõe a função alfa e seus fatores, os elementos alfa e beta – algo que não tem existência na realidade –, a relação entre continente e contido, e o pensamento sempre ligado à emoção por meio dos vínculos de conhecimento (K), ódio (H) e amor (L) e da oscilação ps1 d. Sua descoberta é um processo de investigação na experiência emocional em curso. Ilustro essa ideia com uma passagem de sua autobiografia, escrita no fim de sua vida. Nela o pequeno Wilfred explora o funcionamento mental dos adultos, e assim particularmente seu próprio método de exploração: Examinei essa questão por completo – e outras como “O xarope dourado é mesmo de ouro?” – com minha mãe, e depois com meu pai, mas sem me satisfazer com nenhum dos dois. Concluí que minha mãe de fato não sabia; embora se esforçasse muito, ela parecia tão intrigada quanto eu. Foi mais complicado com meu pai; ele começava, mas parecia se cansar quando eu não entendia a explicação. O clímax veio quando eu fiz minha pergunta sobre o xarope dourado pela “centésima vez”. Ele ficou muito bravo. “Uau!”, disse minha irmã com apreciação. ... Mais tarde, quando eu quis saber o significado de “persona non grata”, guardei a pergunta e outros problemas similares apenas para mim. Eu desenvolvi um sexto sentido sobre “a centésima vez” muito antes de aprender matemática suficiente para contar até cem. Já naquela época eu parecia ter estabelecido tamanha distância entre a matemática aplicada e a matemática pura que não me dava por satisfeito – nem naquela época, nem agora – com a conexão entre cem e a “centésima vez”. (Bion, 1982, p. 9) O objeto psicanalítico é pensado por meio de uma fórmula que salienta a preconcepção (Ψ (ξ)) inata da personalidade em busca de uma realização, e assim uma atitude socrática do analista, que como a parteira estimula emergir algo que já existe dentro da própria pessoa. No capítulo 22 de O aprender com a experiência, Bion propõe uma fórmula para representar o que seria um objeto psicanalítico, um objeto complexo holográfico: {Ψ (ξ) ± Y M}. Chuster esmiúça as ideias contidas na fórmula: “A preconcepção Ψ (ξ) busca uma reali- zação (R) que dê luz a uma concepção no espectro de possibilidades que vai do -Y (narcisismo) ao +Y (socialismo) sob a égide constante da complexidade (M) inerente a um organismo biológico”. (2018, p. 48) Em Elementos de psicanálise (1963/2004) Bion elabora a grade como instrumento para a observação psicanalítica, de mapeamento do pensamento – um eixo horizontal para aplicações e um vertical para o desenvolvimento genético. Estuda o objeto psicanalítico, inicialmente considerado nas dimensões dos sentidos, do mito e da paixão. Até esse momento a experiência emocional é O, a origem do encontro da sessão, o desconhecido. O pensar é do pensador, embora os pensamentos não sejam criados pelo pensador, mas pré-datem platonicamente sua recepção. Entram no interior da mente que desenvolveu um aparelho para pensar: “Este vem a ser o jardim metafórico da ‘Ode à Psique’” (Williams, 2018, p. 160). Assim, o desejo de contar o sonho se transformou na experiência do sonhador que pode ser vivida pela dupla na sessão. A teoria do pensamento e a ideia do aprender com a experiência, ligada ao pensar simbólico e ao aprender (ou não), são bastante assimiladas entre os psicanalistas. A teoria do pensar se inscreve como uma teoria do conhecimento cuja finalidade é epistemológica. Portanto, à medida que nos aproximamos do final de O aprender com a experiência, uma graduação entre a ideia de aprender e a de transformações fica mais clara e culmina no foco da proposta do último capítulo, o conhecimento (K) e o não conhecimento (-K). A grade 4 – e os pensamentos que consubstanciam na apresentação do trabalho – pode ser vista como estruturante em sua metapsicologia, já deixando entrever os próximos passos, Transformações (1965). Alguns autores consideram haver uma ruptura entre o aprender e a ideia de transformações; outros, não. De qualquer maneira, a realidade psíquica, aos poucos, aparece mais incluída na observação do analista; focaliza-se uma situação que ultrapassa o aprender com a experiência. No capítulo 9 de Transformações, Bion salienta a diferença da natureza das transformações pelo conhecimento, passando pela experiência emocional e pelas transformações em O, pelo ser, entrando em contato direto com a realidade. Existiria uma continuidade ou uma mudança de vértice? A teoria do pensar poderia ser estendida para a dimensão do ser? Diz respeito ao analista decidir qual dimensão eleger para trabalhar? A concepção do mental é expandida, é multidimensional, comporta tanto uma dimensão como a outra. Em Transformações, o autor explora as transformações em alucinose, fronteira entre a capacidade de pensar e a psicose.5 Há um nível crescente da presença de algo imaterial, psíquico ou menos sensorial. Não basta passar pela experiência, já que é possível não aprender com ela. Assim, o eixo do objeto psicanalítico é a transformação em níveis psíquicos, únicos e inefáveis, infinitos, no sentido de expansão sem fim do repertório vivo. Para alguns, Bion estabelece a mudança de paradigma. O conceito de transformações carrega em si a ideia do novo, e não só do que é repetido. Bion parece não descartar suas concepções originais de que Ψ era a função psicanalítica da personalidade, algo desconhecido que nos habita, e a função alfa um fator dela. O objeto psicanalítico privilegia aquilo que está evolvendo da origem, do desconhecido, buscando existência, uma preconcepção dessa origem desconhecida (Bion, 1962). Nos últimos três capítulos de Transformações (1965), Bion propõe um percurso além do âmbito do conhecimento, dos desenvolvimentos do simbólico e do aprender com a experiência – um plano fora do conhecer. Nesse novo período, denominado ontológico, o objeto psicanalítico está no gerúndio, do ir sendo ou de tornar-se a realidade, de posicionar-se em sintonia ou de evitar a realidade psíquica não sensorial. Algo de que não se pode aproximar pelo conhecimento, que jamais será alcançado. Assim, o autor cria um alerta aos analistas: não interpretar de modo precipitado o que pode não ser analisável pela representação. Além disso, as transformações em O instauram a instigante questão de se podemos mudar sem conhecer, ainda presente em muitos autores (Marra, 2021). Enfim, caminhamos do analista tido como neutro para o reconhecimento de um analista inevitavelmente implicado na sua função psicanalítica (Ribeiro, 2017). 4. Essa comunicação é de 2 de outubro de 1963 e foi publicada posteriormente por Francesca Bion no livro Taming wild thoughts (1997). Em 1977, Bion publica o segundo artigo sobre a grade no livro Two papers: e grid and Caesura. 5. Não no sentido de uma divisão entre psicótico e não psicótico, mas do que pode ser conhecido, simbólico, ou não conhecido, não simbólico. Para Bion, o cerne da questão é a decisão do analista a respeito de qual dimensão da mente abordar, se estará disponível a estados não acessíveis pelo caminho simbólico ou do pensamento e disponível a um estado de comunhão, algo que atinge o outro de forma direta. “Por que você está triste mamãe?”, perguntei-lhe mais tarde; ela riu, dispensando a sugestão. “Sim”, eu insisti, “você sabe – as surpresas de luz”, eu lembrei a ela. “Algum dia você vai entender – quando você for adulto”, disse ela. “Mas”, eu insisti, “você é adulta e disse que não entendeu.” Ela corou um pouco e riu. Aquela risada desconfortável! (Bion, 1982, p. 24) Em “Notas sobre memória e desejo” (Bion, 1967/1990c) focaliza-se o objeto psicanalítico por meio daquilo que é desconhecido, do qual nada deve distrair o analista. Essa postura facilita o contato com a realidade psíquica, que é inefável, inapreensível; podemos apenas descrevê-la de modo absolutamente pessoal. O vértice do objeto psicanalítico vai se tornando o viver a experiência na clínica. De fato, suas supervisões demonstram que, do ponto de vista clínico, Bion continua a valer-se tanto da teoria do conhecimento (1962-1965) quanto da proposta de contato direto com a realidade. (transformações em O, a partir de 1965) Segundo Bion (1970), o analista deveria, durante as sessões, tentar estar nesse ponto em que o indiferenciado toma forma finita, ou seja, um ponto no infinito em que é possível “ver” os pensamentos à medida que surgem. Bion passou a considerar que cada pensamento seria “conquistado do infinito escuro e sem forma”. Nesse sentido T(O) seria caracterizado como algo novo acontecendo, algo diferente de T(K), que é o processar e pensar as experiências emocionais existentes na área do princípio prazer-dor. ( Vermote, 2011) Nos últimos anos de sua vida, após 1976, em artigos, seminários e supervisões, assim como em Uma memória do futuro, Bion focaliza as manifestações de estados primordiais da mente. São vestígios arcaicos e pré-natais, não passíveis de ser registrados pelo córtex cerebral, mas que deixam marcas em órgãos como o tálamo, as adrenais e as gônadas. Eles estarão presentes no resto da vida do ser humano, na manifestação de terrores de ser só e dependente, de uma consciência moral primitiva (Braga & Matos, 2009), assim como nos impulsos que urgem por existir. Gostaria de concluir este artigo com um caso clínico em que o registro da sessão é a busca do vértice com base na descrição da experiência do analista em termos psíquicos. As transformações ocorridas também parecem variar entre transformações em conhecimento (K) e em ser (O). A partir do pressuposto da importância da observação do analista, penso que a comunicação se estabelece dependendo do vértice pelo qual se faz essa observação, isto é, do que é sensível à lente do analista, à sua personalidade, ou seja, a “publica-ação” se relaciona e está determinada pelo pano de fundo da observação. Alguns analistas se atêm a dados de anamnese, diagnósticos, a lógica de causa-efeito, enquanto outros estão mais disponíveis para descrever a experiência psíquica que podem apreender, mesmo que de forma inexoravelmente subjetiva. Nesse caso ouvem os sons dos silêncios, sentem a ansiedade, visualizam fantasmas e precisam “pagar o preço” da decisão de sua “autopublicação”, ou seja, de uma escrita na qual o analista está inevitável e inteiramente comprometido. Seria essa escrita a de um xamã? Será que o analista escreve o que absorve com sua sensibilidade talâmica ou subtalâmica? Será que está em alucinose? Eva ou Evita Aguardo um bom tempo. Evita chega correndo. Quando entra, não me olha e casualmente diz: “Teve a festa. Foram todos, menos você e o papai”. Continua num clima muito dramático, descrevendo a situação. Do seu modo firme e claro, automático, sinto aumentar a distância entre nós. O clima é árido. Um discurso muito articulado e vazio. Quase uma encenação?! Sem emoção. Procuro por mim, procuro não “des-existir”, partir dali. Encontro-me sem energia para repetir a argumentação de que não poderia ir ao seu aniversário para preservar nossa relação. Aquele pensamento soa como uma ladainha. Uma reza?! Seria fácil, penso, resolver essa minha angústia simplesmente dizendo que ela está se vingando de mim (de nós, de nosso tempo juntas), já que não pode dizer ao pai aquilo que sente ou pensa dele. Mas será que é o que sente? Sentimento? Pensamento? Decido permanecer em silêncio. Evita continua seus lamentos espalhando todos os brinquedos de sua caixa pelo chão. Não tem parada nem sossego. Não para de falar e não para de atirar coisas para lá e para cá, como quem rapidamente não vê interesse algum por nada. Os brinquedos, espalhados, perdem sua finalidade, sua discriminação. Destroços. Parece que estamos numa espécie de lixão. Permaneço num espaço muito restrito da sala, atrás do pequeno divã. Diz que não pode gostar de C (o companheiro da mãe) para não desagradar o pai. Seu discurso é adulto, sem emoção. Sinto que participo de um teatro, como se ela fosse um papagaio repetindo frases que ouviu de outras pessoas. Uma matraca? Não eram as matracas que faziam barulho para imitar as metralhadoras? Estaria minha paciente impondo medo para não sentir sua fragilidade? Será que tenta me paralisar, ilhada como estou neste cantinho? Mergulhada em meio a tantas frases repetidas, penso que já não sei mais do que se trata. Comento: “Que pena! Tua cabeça está tão ocupada com tanto barulho que não consegue nem brincar, ou pensar, estar aqui comigo”. Ela para e olha para mim. Continuo ilhada no cantinho. Como consigo sua atenção, insisto: “Olha só a nossa sala. Ficamos sem nada: sem brinquedo, sem brincadeira, sem encontro e sem conversa...”. Nesse momento parece que surge algo nela. Uma espécie de ternura. Recolhe todos os brinquedos parecendo muito preocupada e cuidadosa. “Preciso colocar tudinho no lugar!” Logo depois pede um copinho e começa a picá-lo em pedacinhos. Conta que seu pai disse que não virá mais buscá-la, mas que ela acha que ele estava brincando. “Ouço” o tom sofrido da fala. Num relance, olho para o chão da sala e sou tomada por uma forte emoção. Não sei explicar, é um mistério para mim. Os pedacinhos de plástico espalhados pelo chão da sala, que os reflete como numa superfície espelhada. É muito belo. Parece-me uma “instalação”. Decido comentar minha impressão: “Puxa, você espalhou seu choro por toda a minha sala!”. Eva diz: “É, tenho medo de machucar meus pés!”. Sugiro: “É como caminhar em caquinhos de vidro?”. Sinto seu olhar profundo apoiado em mim. Saímos ambas impactadas... Algumas reflexões a respeito das teorias e do caso clínico O objeto psicanalítico parece ser um conceito abstrato que depende da teoria adotada, da formação e, sobretudo, da personalidade de cada analista. A experiência reportada com a pequena analisanda está no limite do descrito, fruto da vivência emocional que tento comunicar. Evelise Marra (2021) propõe “pensar o objeto psicanalítico, ou mais estritamente o que fazemos, como o que se passa quando na oportunidade de construção de uma relação pessoal-emocional, onde a sinceridade, franqueza, intimidade, alicerçadas na fé de que algo surgirá do encontro, evolva”. Cecil Rezze destaca: O essencial é um estado mental do paciente com o qual o analista pode se conectar e, reciprocamente, uma produção mental do analista que o paciente pode usar para suas necessidades de crescimento mental – amor, ódio, refutação, agressão, enfim, qualquer uso que lhe seja pertinente. (1990) Percebo que na sessão utilizo minha intuição e que privilegio as transformações em O. Entretanto, podemos pensar nas transformações em O sem o corolário das transformações em K, ou da intermediação do uso dos sentidos? Ou ambas as transformações, em O e em K, embora de natureza diferente, estariam sempre entrelaçadas e presentes em nossas apreensões (Scappaticci, 2017)? Parece que trabalhamos na cesura, no trânsito K1 O. Ainda acerca da natureza do objeto psicanalítico, este seria um dado a priori, e assim a dupla analítica se debruçaria em sua investigação, ou algo criado (Frochtengarten, 2021)?6 Podemos supor um trabalho “poiético” da dupla, a recriação desse objeto sempre subjacente e aguardando realização? Notas sobre el objeto psicoanalítico en la obra de Wilfred Bion Resumen: Este artículo trata sobre la evolución del concepto de objeto psicoanalítico en el trabajo de Wilfred R. Bion, trayendo preguntas clínicas e ilustraciones con extractos de su autobiografía y una viñeta clínica. Palabras clave: metapsicología, autobiografía, experiencia emocional, psicoanálisis Notes on the psychoanalytic object in the work of Wilfred Bion Abstract: is article deals with the evolution of the concept of psychoanalytic object during the work of Wilfred R. Bion, bringing clinical questions and illustrations with excerpts from his autobiography and a clinical vignette. Keywords: metapsychology, autobiography, emotional experience, psychoanalysis Notes sur l’objet psychanalytique dans l’œuvre de Wilfred Bion Résumé : Cet article traite de l’évolution du concept d’objet psychanalytique au cours des travaux de Wilfred R. Bion, apportant des questions cliniques et des il- lustrations avec des extraits de son autobiographie et une vignette clinique. Mots-clés : métapsychologie, autobiographie, expérience émotionnelle, psychanalyse Referências Bion, F. (Ed.). (1997). Taming wild thoughts. Routledge Bion, W. R. (1961). Experiences in groups. Tavistock. Bion, W. R. (1962). Learning from experience. Heinemann. Bion, W. R. (1965).Transformations. Heinemann Bion,W. R. (1967a). Attacks on linking. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 109-126). Karnac. (Trabalho original publicado em 1962) Bion, W. R. (1967b). A theory of thinking. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 127-138). Karnac. (Trabalho original publicado em 1962) Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation. Karnac. Bion, W. R. (1979). Como tornar proveitoso um mau negócio. Revista Brasileira de Psicanálise, 13 (4), 467-478. Bion, W. R. (1982). e long weekend (1897-1919): part of life. Karnac. Bion, W. R. (1990a). e dawn of oblivion. In W. R. Bion, A memoir of the future (Vol. 3). Karnac. (Trabalho original publicado em 1979) Bion, W. R. (1990b). e dream. In W. R. Bion, A memoir of the future (Vol. 1). Karnac. (Trabalho original publicado em 1975) Bion, W. R. (1990c). 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- Ressonhando sonhos na Pandemia: Em busca de um continente psíquico
Marina F. R. Ribeiro35 Elisa Maria Ulhoa Cintra36 Carla Penna37 35 Psicanalista, professora doutora do IPUSP, coordenadora do LipSlc (Laboratório interinstitucional de Estudos da intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea IPUSP-PUCSP). 36 Psicanalista, professora doutorada PUC-SP, coordenadora do LipSic (Laboratório interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanalise Contemporânea IPUSP-PUCSP). 37 Psicanalista, doutora em psicologia clínica pela PUC-RJ, psicanalista do Circulo Psicanalítico do RJ, membro da Group Analytic Society International. "Sonhar é acordar-se para dentro." Mario Quintana A noite passada eu sonhei... Ao ouvir estas palavras, rapidamente a atenção do interlocutor se aguça; se é um analista, ainda mais. O que será que acontece? Freud elaborou as premissas da escuta psicanalítica que tomaram forma através do setting analítico: o analisando é convidado a fazer associações livres e o analista a entrar em estado de atenção livremente flutuante. Depois de Freud, um número incontável de psicanalistas deu inicio a diferentes praticas clinicas que ampliaram e diversificaram esse modelo original e fundante da psicanálise. A escuta de pacientes psicóticos e traumatizados obrigou a diversas adaptações do modelo originário, especialmente na pratica da psicanálise extramuros fora do setting clássico. A descoberta da análise infantil por parte de Melanie Klein (Cintra e Ribeiro, 2018) e de Anna Freud, e as incursões na psicose por parte de Bion, Winnicott e Lacan, além de todas as experiências de trabalhos com grupos, levaram a transformações na prática psicanalítica e ampliações do método psicanalítico. Em todas estas demarches um elemento permanece constante: o insight fundamental de que o funcionamento psíquico se baseia uma associatividade entre ideias, afetos e memórias, e na construção de relações de vínculo afetivo entre as pessoas, gerando novos efeitos intersubjetivos e transferenciais, ampliando sempre as redes associativas. Podemos ainda afirmar, en passant, que até mesmo o funcionamento cerebral pressupõe uma rede neuronal que funciona através de circuitos associativos. Os novos problemas clínicos e a necessidade de levar a escuta psicanalítica para territórios diversos daquele que a originou exigiram renovação e expansão, favorecendo, dessa forma, expansões do método, da teoria e da pratica psicanalítica. Surgiram a clinica psicanalítica ampliada e a exigência de pensar os fundamentos de novas praticas, o que vamos encontrar em muitos autores na psicanálise contemporânea, especialmente no livro Manual da pratica clinica em psicologia e psicopatologia de R. Roussillon (2019). Durante a pandemia, a clinica psicanalítica tem enfrentado desafios que, se por um lado demandaram mudanças no setting analítico, por outro deram espaço para importantes inovações. Na psicanálise clássica, o sonho é considera como via regia de acesso ao inconsciente. Seu relato, as associações livres e sua interpretação no seio da relação analítica permitiram o acesso a conteúdos recalcados, levando a insights e a elaboração das experiências traumáticas. Contudo, apesar de as considerações freudianas sobre o sonho terem sido transformadoras para a psicanálise, a importância do sonho permaneceu incialmente restrita a ideia do sonho como acesso ao inconsciente, através do universo intrapsíquico do paciente em analise. Ferenczi (1933) foi o primeiro psicanalista a compreender os sonhos dentro de um contexto relacional localizando sua gênese no espaço intersubjetivo (Neri, Pines & Friedman 2002). Para Ferenczi, o relato de um sonho é sempre uma tentativa de comunicação: "uma pessoa pode sentir-se impelida a relatar um sonho para a pessoa a qual o sonho encontra-se relacionado” (Ferenczi, 1913/1992, p. 112). Anos mais tarde no Diário Clinico (1933/1990), Ferenczi acrescentou que "o paciente percebe que o fragmento de seu sonho e uma combinação de conteúdos inconscientes da psique do analisando e do analista". (1933/1990, p. 35) Atualmente, as investigações sobre a função dos sonhos na psicanálise envolvem uma miríade de autores, tais como Bion (1962), Meltzer (1984), Ogden (2001), Ferro (2001) e Grotstein (2010), que permitiram não apenas a ampliação do conhecimento sobre questões traumáticas e diferentes estados de consciência, mas que também, em maior ou menor grau, apontaram para a interface do sonhar com a experiência intersubjetiva. Desde 1937, Ella Sharpe já apontava para o fato de que o trabalho do sonho e o sonho revelavam o "não conhecido implícito no conhecido", e que esse processo permitia ampliação da experiência da linguagem e do pensamento. De uma forma particular, tanto o sonhador quanto o poeta ou o artista seriam capazes de transcender o cotidiano e, associando livremente, ampliar de forma infinita as palavras e os sentimentos. (Sharpe, 1937/1961) Para Resnik (1987), o contar o sonho na sessão analítica é sempre um evento transferencial. A análise do sonho e desenvolvida através da compreensão de sua gramática e de seu teatro de significações. O sonhar é uma forma especial e complexa de pensar, e um tipo de experiência no espaço e no tempo que, governada pelo processo primário, recria experiências primitivas. A partir da teatralidade psíquica característica dos processos inconscientes, permite confrontar expressões oníricas infantis as experiências cotidianas da vida adulta. Contudo, o relato do sonho não é apenas um trabalho de construção e elaboração conjunta da dupla analítica, ele pode nascer também das experiências com grupos e com a sociedade. Nesse sentido, a abordagem intersubjetiva do fenômeno do sonho permitiu que sua apreciação se deslocasse da perspectiva meramente individual/intrapsíquica para a dimensão Interpsíquica/intersubjetiva, permitindo valorizar a ideia do grupo como um sonho, sua polifonia e a existência de espaços oníricos comuns e compartilhados. (Kaes, 2004). Na Inglaterra, em 1982, Gordon Lawrence criou no Tavistock Institute of Human Relations a técnica do Social Dreaming Matrix. Inspirado no livro de Charlote Beradt e apoiando-se em teóricos das relações objetais, especialmente em Bion e Bollas, Lawrence (2010) desenvolveu uma metodologia que, ao se afastar dos aspectos individuais do sonho e do sonhador contidos em seu relato, facilitou a exploração do sentido social dos sonhos, enfatizando sua dimensão social e coletiva. (Penna, 2013). Investigações sobre sonhos e relatos de sonhos fora da sessão analítica tem ainda permitido a utilização do sonho como uma via regia em que a relação com "o outro" toma-se fundamental para a elaboração de sonhos em contextos traumáticos. Em uma pesquisa realizada na Universidade Haifa em Israel, com 200 participantes, Friedman (2002, 2004) investigou aspectos interpessoais com envolvidos no relato de sonhos/pesadelos, especialmente na relação entre pais e filhos. Verificou-se que o relato dos sonhos não consistia apenas num esforço de eIaboração inconsciente de conteúdos ameaçadores ou excitantes que invadiam a subjetividade das crianças pesquisadas. O material onírico não pertencia somente a criança, mas também apontada para a relação com os pais, remetendo ainda a excessos da ordem do traumático provenientes tanto de questões transgeracionais quando do contexto sociocultural. Para Friedman (2004), a experiência de contar o sonho – Dreamtelling - permite, portanto, através da intersubjetividade, a criação de uma "royal road through the other/ uma estrada real através do outro". (Penna, 2013, p. 21). Assim, o relato de um sonho, tanto na sala de análise, quanta na dimensão interpessoal ou mesmo em uma plataforma on-line, promove a criação de um espaço potencial, entre o eu e o outro, fundamental para a elaboração de processos inconscientes e afetos ainda não digeridos e/ou representados. Contar um sonho é, portanto, uma "busca por continente", e sua narrativa revela um desejo do sonhador de que alguém sonhe com ele seu próprio sonho, isto e, "re-sonhe" com ele o sonho. Em termos bionianos, o contar o sonho facilita a expansão da função alfa do sonhador, ampliando suas possibilidades de autocontenção. Considerando os aspectos intrapsíquicos e intersubjetivos envolvidos, a narração do sonho promove o desenvolvimento do pensamento (Meltzer, 1984), a interiorização da função alfa (Bion, 1963), permitindo o pensar, o devanear, ampliando, ainda, a capacidade de conter afetos e emoções. Bion (1962) formulou, a partir do texto freudiano "Os dois princípiosdo funcionamento mental" (1911), que somos sonhadores em dia, que, além do sonho da noite, temos o pensamento onírico da vigília, que é captado pela capacidade de rêverie do analista, a capacidade imaginativa do analista. Bion (1992) usa a metáfora das estrelas: durante o dia não vemos as estrelas, mas elas estão lá, ou seja, o pensamento onírico de vigília é invisível á consciência, captando as mais tênues emoções, que serão processadas no sonho á noite. O pensamento onírico de vigília é, portanto, uma função diurna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais. (Ribeiro,2019) Muito tempo antes da chegada de um analista na vida de alguém, temos a mãe e o bebê. Bion (1962) descreve a capacidade de rêverie como uma amorosidade da mãe para com o filho. Além de uma boca que encontra o seio, o psiquismo incipiente do bebe busca a mente da mãe. Bion propõe a existência de um movimento em direção a algo que seria uma "preconcepção" de um objeto/seio. O encontro com o seio se realiza, dando origem ao mundo psíquico, colorido pelas emoções. A mãe, narcisicamente apaixonada por sua criação, se oferece como possibilidade da experiência de satisfação e dai decorre o sentimento de plenitude que Freud descreveu em "Sua majestade, o bebe" (Freud, 1914). Desse primeiro investimento narcísico e libidinal tem inicio a constituição, atravessada por emoções, sempre intensas e paradoxais. Quando o bebe encontra a mãe, capaz de sonhar, com capacidade para a rêverie, essa função transformadora e imaginativa atribui qualidade psíquica as sensações e percepções. Surge uma capacidade nascente de sonhar a nossa própria vida. Antonino Ferro (2011) faz outra interessante analogia: durante o dia temos um cameraman (o pensamento onírico da vigília), que vai captando varias cenas vividas; a noite temos o diretor, que vai compondo essas imagens dentro de um enredo fantástico, com todos aqueles mecanismos descritos por Freud: deslocamentos, condensações, simbolização, dramatização, elaboração secundaria. Vários analistas estudiosos da obra de Bion recomendam que o analista sonhe a sessão, que ele possa ouvir o relato do seu paciente como um sonho. Isso soa enigmático? Pode ser, mas é, na verdade, um convite para entrar em contato com o mais intimo e verdadeiro em nós mesmos: o pensamento onírico, a inquietante realidade que nos habita, as emoções que se expressam intensamente através de imagens. Em termos bionianos, o analista sonha a sessão por meio de sua função onírica alfa: uma função transformadora dos elementos beta, que compõem as sensações, os sentimentos e as imagens em fragmentos que surgem da experiência em estado bruto. Esse sonhar analítico da sessão se elucida se recordamos o expressivo termo ensoãcion, da língua espanhola. O analista entra em um estado de ensonhamento, uma atividade que transforma em sonho a experiência vivida. Bion sugere algo que revela o sentido inverso da proposta freudiana, sem abrir mão do que Freud postula (tomar consciente o inconsciente); propõe que precisamos tomar inconsciente o vivido. A rêverie e a função onírica alfa são constitutivas da capacidade de ensonhamento da experiência vivida em estado bruto. (Ribeiro, 2019) Ogden (2019), em sua apresentação da teoria do pensar de Bion, destaca que são necessárias duas mentes para pensar pensamentos perturbadores. O pensamento perturbador é aquele que ainda não foi pensado não encontrou um continente, uma outra mente que o contenha e possa torna-lo pensável. No entanto, podemos refletir que qualquer pensamento novo é perturbador, inquietante e enigmático, Justamente por ser novo. (Ribeiro, 2019) O pensamento perturbador passa ser contido na mente a partir de sua função onírica alfa. As impressões sensoriais brutas não podem se ligar entre si, não podem ser utilizadas para pensar, sonhar ou serem armazenadas na memória. Elas precisam se inscrever psiquicamente. A função alfa realiza essa inscrição psíquica, transformando os elementos beta em elementos alfa, que podem se ligar entre si e dão origem ao pensar. No inicio, Bion falava em rêverie, e, com o tempo, preferiu a noção de função alfa, que poderia reunir diversas funções mentais que, juntas, transformam impressões sensoriais brutas em elementos alfa. A rêverie é um fator função alfa, como escreve Bion (1962). Os ele- mentos beta que são contidos manifestam-se primariamente através de imagens e, posteriormente, chegam a ser narrativas. Para Bion, pensar em sua origem é sonhar; o sonho é o pensamento inconsciente. (Ribeiro, 2019) Estamos sempre buscando o sentido da experiência vivida; essa busca de sentido é o que nutre a mente. A experiência em estado bruto produz impacto, susto, assombro e perplexidade. Sobre isso opera a função onírica alfa (Bion, 1962, 1992), que coloca o vivido em uma imagem, pois pensamos inicialmente por imagens. Ha uma exigência de nos tomarmos "alfa-beta-zadores" das emoções vividas em estado bruto. Criamos, então, imagens, narrativas. As palavras expressam sempre parcialmente o vivido, as emoções "em bruto", por isso precisamos contar e recontar nossos sonhos e precisamos ser ouvidos. As palavras são sempre aproximações que contem rastros do vivido; a experiência como um todo sempre nos escapa; é incognoscível. Ressonhando os sonhos na pandemia Neste memento da pandemia, percebemos no mundo inteiro o movimento de contar sonhos uns aos outros como se estivesse nascendo um grande desejo - ate mesmo uma exigência - de expressar e comunicar algo do sofrimento de cada um, colocando-o ao lado do sofrimento e dos desejos e esperanças da humanidade inteira. Para esta reflexão, escolhemos alguns sonhos que nos parecem exigir novas associações e outra rêveries. Sonho 1. Sem calcinha, sem máscara. Sonhei que ia a uma festa com alguns amigos que não vejo há muito tempo, e no meio do caminho percebi que estava sem calcinha e precisei ir ao shopping. Lá me deparei com 100% das pessoas sem usar máscara e fiquei irritada e com medo de me contaminar, Eu também tinha esquecido a minha, mas estava usando um casado para cobrir minha boca/nariz. Grande parte das lojas estava fechada e não consegui encontrar uma calcinha para comprar (sendo que seja algum comum para comprar). Lembro também que, quando estava na presença de meus amigos, estava muito feliz e animada. A vida nua e crua no desamparo pandêmico Neste sonho, aparece um sinal da angustia humana mais fundamental, que Freud denominou de desamparo (hilflosigkeit); angustia que emergiu com tanta nitidez na pandemia, com suas ameaças de contagio mortífero, adoecimento, perdas em vários níveis e mortes. O adoecimento pela Covid ataca o aparelho respiratório e pode nos privar desse elemento fundamental: o ar, o sopro vital, que inalamos pela primeira vez ao nascer e que nos deixa para sempre ao morrer. Associamos um corpo vivo, animado, a esse sopro que anima, a alma do corpo. A pandemia nos deixou ameaçados de perder o sopro vital. No sonho, estar sem mascara pode ser uma forma de falar da perda fundamental do sopro de vida, ao nos deixar expostos ao vírus, em dois sentidos: tanto de sermos contagiados e então privados do sopro vital, quanto de contagiarmos os outros, tirando a sua vida. Nos sonhos de sair a rua sem roupa aparece tão bem o nosso desamparo: desnudos, diferentes dos outros, sozinhos. Freud incluía esses sonhos entre os sonhos típicos da humanidade, universais. Aqui aparece uma dupla nudez: sem calcinha e sem mascara. Durante a pandemia a mascara se tornou uma barreira fundamental, sair de casa sem ela equivale a sair sem roupas, sem as proteções mínimas para a vida social. De forma semelhante e ao mesmo tempo diferente, estar sem calcinha evoca imediatamente um estado de maior exposição ao encontro sexual - encontra eco na imediata associação ao "estar sem mascara" um sentido aumentado de desproteção, de vulnerabilidade, de estar entregue as invasões. A vida nua e crua, sem e defesas, sem mascaras: de um lado, à mercê a invasão estrangeira pelo vírus; do outro estar com os genitais desprotegidos. A nossa sonhadora - uma figura agora coletiva, que poderia representar qualquer um de nos - vai ao shopping e lá se encontra com as pessoas sem mascara, como nos tempos pré-pandêmicos! O desejo de andar nos lugares públicos vendo as pessoas sem mascara se expressa nessa cena onírica: o mundo que perdemos e não sabemos se vamos recuperar, a liberdade de sair por ai sem mascaras. Essa liberdade censurada se liga a perda da liberdade dos encontros sexuais, em que a entrega ao outro não representa um perigo mortal. A referencia um pouco cômica e irônica ao genital sem proteção sugere já não estarmos mais sob o domínio do medo e do desamparo; evoca uma entrega sem mascaras e sem calcinha aos perigos do amor e do sexo. Nossas associações são apenas um convite as associações do leitor. Sonho 2. Os psicólogos na pandemia Sonhei que os psicólogos do Brasil haviam sido convocados pelo Ministério da Saúde para trabalhar em atenção básica em áreas de contaminação de Covid-19 durante a pandemia. Sonhei que havia sido convocada para trabalhar na favela da Rocinha do Rio de Janeiro. Lá andava destemidamente e sem máscara em meio a um grande número de moradores do local. Sonhos de estar sem mascara durante a pandemia vem sendo relatados por pessoas em todo o mundo. Sua frequência, como apontamos anteriormente, evoca as considerações de Freud na Interpretação dos Sonhos (1900) sobre sonhos típicos, especificamente sobre o sonho de nudez, como se sonhos com o uso de mascaras fossem os sonhos típicos da pandemia. No primeiro sonho, o medo da contaminação mútua se fez presente na relação ambivalente com a ausência da máscara e da calcinha. Já no segundo, o medo em relação à exposição e à contaminação pelo vírus desencadeado pela experiência real da convocação dos psicólogos pelo Ministério da Saúde brasileiro, transformou-se em uma reação defensiva, marcada por uma experiência de onipotência, de triunfo maníaco diante do medo da contaminação e da morte. A sonhadora trabalhava alegremente, sem máscara, junto à população da maior favela da América Latina. De fato, como Freud (1915) pontuou, em nosso inconsciente não há lugar para a morte, ela e sempre a "morte de outrem" (p. 327). Contudo, como Ogden (1997) recorda, e impossível manter a sanidade e ao mesmo tempo experimentar a própria mortalidade sem recorrer a um certo grau de negação da morte, e a onipotência encontra-se sempre presente. Nesse sentido, a pandemia trouxe uma enorme ruptura na confiança e na onipotência exagerada que depositávamos na continuidade da vida em sociedade. Quando a onipotência se despedaça, a impotência e uma perigosa vulnerabilidade se instalam, exigindo a restauração da lei do inconsciente. Foi isso que aconteceu conosco, uma dose coletiva de onipotência foi destruída (Hinshelwood, 2020). Assim, diante do desamparo e da vulnerabilidade, defesas maníacas, como o triunfo onipotente diante do medo da morte presente no segundo sonho, procuram evitar a dor psíquica e o contato com ansiedades depressivas. (Klein, 1935) Nesse sentido, na pandemia de Covid-19 defesas maníacas, como a onipotência e o triunfo sobre o "outro" que contamina, tem sido utilizadas para se contrapor ao fundo depressivo coletivo que predomina na sociedade atual (Figueiredo, 2017) e que durante a pandemia recrudesceu. Experimentamos hoje, em nosso cotidiano traumático, um apelo a fugir em direção a realidade externa, através de fantasias e ações onipotentes, para escapar da realidade interna e negar a morte que hoje parece sempre avizinhar-se. (Winnicott, 1935) Antonino Ferro (2017) descreveu de uma forma simples e bela a experiência analítica: quando duas pessoas se juntam para elaborar a brutalidade da vida. Quando a brutalidade da vida se intensifica, precisamos ainda mais desse outro para elaborar a dureza da experiência, buscamos apoio nos grupos, ainda que aconteçam de forma virtual. Sentimos a necessidade de sonhar juntos para tentar metabolizar tanto susto, tanta perplexidade, tanto assombro. Sonhar o redemoinho da pandemia, seu excesso, e suas descobertas também. A experiência nos atendimentos on-line favoreceu algo que estávamos antes um pouco tímidos para reconhecer: que a realidade psíquica e virtual, de uma natureza intangível e insondável. A pandemia nos ensinou que a voz e a imagem dos analistas continuaram a oferecer hospitalidade ao outro, e receber dele também a sua presença viva, ainda que on-line. Grupos de pessoas aconteceram on-line, e em muitos momentos desapareceram as fronteiras de separação e de isolamento. No entanto, estamos ainda um pouco atordoados com a novidade, ainda buscando palavras par uma experiência desorganizadora e diferente do já conhecido e instituído. O redemoinho que aparece neste sonho parece nos arrastar e tragar por uma imensa força centrípeta e sem limites, como se um grande volume de terra desabasse arrastando a tudo e a todos, através do contagio crescente e irreversível. Alguém tenta salvar o outro e se afoga, mas no final todos se salvam, surge a esperança tingida de onipotência, o desejo de que tudo se resolvera. Onipotência e desamparo são as duas faces humanas da mesma moeda; onde um aparece, a outra é sempre evocada para compensar. Precisamos construir cenas, narrativas, que contenham, mesmo que parcialmente, o transbordamento da experiência. Isso e uma imperiosa exigência do momento: encontrar a outra realidade psíquica, agarrar-se a esperança de que juntos não vamos nos afogar. A estratégia de sonhar coletivamente Uma imagem onírica capta não somente o sofrimento pessoal, mas também o trauma coletivo. Bion dizia que um sonho pode ser compreendido em duas dimensões: o eixo do narcisismo e o eixo do social-ismo: “Poderíamos empregar esses termos para descrever duas tendências, uma egocêntrica e a outra sociocêntrica (...). As duas devem andar juntas: se uma estiver operando, a outra também estará". (Bion, 1992/2000,p.133). Ou seja, alguns sonhos captam o sofrimento psíquico de uma coletividade, o sonho do redemoinho tem essa característica. E, ao serem relatados em um grupo, fornecem sustentação e expansão ao sonhar de todos, favorecem a metabolização da experiência avassaladora da pandemia. O que nos afoga e o excesso e a falta. O excesso da brutalidade da experiência, a falta de sentido, a ausência de imagens, a ausência de narrativas, que tragam alguma inteligibilidade e a falta de um continente que contenha o absurdo da doença e da morte. Não ha continente psíquico para tanto, precisamos nos juntar, o sonhar e narrar de um estende aos outros alguma estratégia de salva-vidas. Os analistas foram convocados a oferecer e precisaram também receber alguma forma de continência psíquica, através de formas singulares e coletivas de rêverie. A dor partilhada e sonhada nunca mais e a mesma. Encontra guarida em imagens, palavras e no olhar do outro; bem abrigada, essa dor pode, então, ser verdadeiramente sofrida. É Bion (1970) que nos fala a respeito da necessidade de sofrer a dor, de adentrar nela, sem fugir; a dor não sofrida e não sonhada transforma-se em ódio, vazio e arbitrariedade. Depois de contida por um outro, ou muitos outros, a dor toma-se pensável e elaborável: toma-se psíquica por ter "morado" em outras realidades psíquicas. Será que podemos nos perder ao salvar o outro? O sonho evoca o perigo de oferecer um continente psíquico para a loucura do semelhante e ser com ele arrastado pela força irracional da loucura. A partir das suas experiências na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, Bion (1992) afirmou que o analista e um comandante no campo de batalha: pode matar ou morrer, mas a sua responsabilidade e manter com serenidade a sua capacidade de pensar - isto e, "sua capacidade de pensar sob fogo/think underfire" (Bion, 1961) - , lembrando que, para Bion, pensar é sonhar. Perder a cabeça é um risco real: é preciso coragem para frequentar a morte psíquica da falta de sentido, de não conseguir mais sonhar, de sentir o vazio e a falta de vida psíquica do outro, e a falta de consistência de nos mesmos. Bion (1992) afirma que precisamos ser apresentados a nos mesmos, a pessoa com quem iremos conviver ao longo da vida. O redemoinho que aparece no sonho seria essa perda de qualquer sentido, o absurdo da morte, do desamparo humano, da doença, que nos contamina psiquicamente, em uma ciranda macabra: excesso e falta. Estaríamos todos sujeitos a esse redemoinho mortífero, e isso e inédito; o mundo inteiro sob o mesmo vendaval, que vai nos sugando. A única resistência possível é estabelecer vínculos e laços: estender as redes do sonhar e do narrar o mais longe possível, soltar do porto a embarcação ao mar alto. Só assim pode ser domesticada a brutalidade da experiência: buscando novas figura-se novas palavras para o desamparo humano, que está em carne viva na pandemia. Referencias BION, W. R. (1961) Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, _ 1990 BION, W. R. (1962) Learning from experience. The complete works of W.R.B. London: Karnac, 2014. BION, W.R. (1963) Elementos da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2004. BION, R. W. (1970) Attention and interpretation. The complete works of W.R.Bion London : Karnac, 2014 BOLLAS, C. (1987) A sombra do objeto. Rio de Janeiro: Imago, 1992. CINTRA, E. M. U.; RIBEIRO, M. F. R. Por que Klein? São Paulo: Zagodoni, 2018 FERENCZ!, S. 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- Os dias têm uma diferença que ainda busca palavra Uma experiência de cesura.
Somos animais extremamente perigosos; de todos os animais ferozes que habitam esta terra, o ser humano conseguiu matar todos os seus rivais – exceto o vírus. No fim da Primeira Guerra, a gripe espanhola matou um número maior de pessoas do que a própria guerra. Mesmo levando em conta a nossa maravilhosa destrutividade, não somos tão eficientes quanto o vírus. (Bion, 1977/2014b, p. 273) Marina F. R. Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062020000100010
- Sobre o potencial transformador da experiência com a literatura junto a adolescentes na escola
Celina Diaféria ; Luis Cláudio FigueiredoII; Marina F R RibeiroI RESUMO A leitura, a escrita e as artes podem vir a proporcionar transformações da experiência do self, ampliando as possibilidades de interpretação da realidade, que se torna mais diversa, rica e complexa. Este artigo apresenta um trabalho na interface da literatura com a psicanálise de D. W. Winnicott, tendo ainda como referência ideias de Marion Milner. De modo a compreender como se dá o processo de elaboração da experiência vivida por meio da leitura mediada e criação de textos ficcionais, foram selecionados alguns episódios vividos junto a alunos de treze e quatorze anos na escola. A partir da apresentação de objetos culturais em propostas com a leitura e a escrita, o educador cria um ambiente de confiança, favorável ao gesto criativo dos jovens. Algumas experiências vividas junto a adolescentes no contexto escolar permitem ao leitor ver como as angústias podem ser elaboradas em produções criativas, desde que sejam ofertados aos jovens meios maleáveis aos quais eles possam imprimir seu estilo pessoal e pelos quais possam expressar sua singularidade. Palavras-chave: literatura, psicanálise, teoria geral do cuidado, educação. Link de acesso ao texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-69542020000100007


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