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A (in)capacidade de sonhar: a precariedade da rêverie materna na clínica da psicose

  • marinaribeiroblog2
  • 26 de out.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 27 de out.

Esta é uma resenha do livro Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações de Victor de Jesus Santos Costa, publicado pela Editora Dialética em 2022. A resenha foi publicada em 2023 na Revista USP, na seção Estilos da Clínica.


Autoras: Ana Fátima Aguiar e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro.


A leitura de"Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não sonhado entre as gerações"avivou em mim o desejo de comunicar e fazer circular as ressonâncias, reflexões e os pensamentos evocados. Como analista e pesquisadora, posso dizer, inicialmente, do meu interesse particular pelo tema do livro, a rêverie, um fenômeno humano complexo, um movimento comunicativo intersubjetivo, que se manifesta a partir de um estado de mente aberto e receptivo. No que se refere às produções psicanalíticas em geral, temos aqui, neste livro, um precioso material, construído a partir de uma pesquisa bibliográfica minuciosa, muito bem fundamentada, de uma densidade teórica impressionante.


Neste livro, Victor de Jesus Costa nos presenteia com uma investigação robusta sobre o papel da rêverie materna, apresentando com muita profundidade e competência o conceito em sua origem, ou seja, na perspectiva bioniana, e além disso, nos apresenta as diferentes concepções sobre a capacidade de rêverie do analista e seus aspectos clínicos a partir das formulações de importantes autores, em especial Thomas Ogden, mas também Antonino Ferro, James Grotstein, André Green, Luís Cláudio Figueiredo, Elias da Rocha Barros, entre outros. 


Embasado nesses autores, Costa desenvolve, com rigor científico e qualidade, as aproximações entre rêverie materna e reverie do analista, sem o intuito de igualar, ou mesmo criar fronteiras rígidas, mas sim, de promover uma maior compreensão sobre cada qual, para que possamos pensar com mais clareza as possíveis conexões entre tais experiências. 


Além  da  teoria,  encontramos  também  a  experiência  clínica  do  autor com  pacientes psicóticos,  em  um  modelo  de  atendimento  institucional  que  promove  uma  visão  global do paciente, e que torna o material aqui apresentado ainda mais rico e relevante para se pensar a clínica da psicose de uma forma ampla. O que vemos é um trabalho sensível, ético, implicado, inovador por seu caráter multiprofissional que consegue entender o funcionamento psicótico em seus aspectos tanto individuais como sociais (incluindo a família e as instituições).


Costa  vai  nos  mostrando  como  o  trabalho  clínico  com  tais  pacientes  foi  gerando  nele importantes inquietações... Ele se pergunta por que o desenvolvimento psíquico de um paciente psicótico despertava angústias intensas em algumas mães? Victor se questionava se haveria algo  na  dinâmica mãe-filho(a)  que  contribuiria  para  o  surgimento  dessas  angústias. Suas reflexões partem, portanto, da experiência clínica e se encaminharam para que, aos poucos se transformassem em um objeto de estudo, do qual nasce esta obra, fruto de uma pesquisa na qual observamos  uma  vasta  e  cuidadosa  investigação  teórica  e  que  nos  brinda  com  uma rica articulação com sua clínica.


O ponto principal do livro é a relação intersubjetiva entre mãe-filha, as quais Victor nomeou Adelina-Daniela, evidenciando um anagrama que condensa uma de suas hipóteses clínicas. É uma conjunção que diz muito sobre os elementos dessa dinâmica intersubjetiva e que está muito bem explicitada ao longo do texto. Com base na experiência clínica vivenciada com Adelina-Daniela, Vitor procura compreender o papel da rêverie materna (ou a precariedade dela) na relação entre mãe e filho(a) na qual ambos possuem histórico de crises psicóticas. 


O diálogo entre a teoria e o caso clínico Adelina-Daniela é desenvolvido a cada capítulo, o que favorece ao leitor construir novos pensamentos em relação à clínica da psicose e sobre a relação mãe-filho(a) neste contexto. A leitura do livro “Mulheres que não sonharam” nos envolve e nos mostra os conceitos como o esteio que dá corpo à clínica, enquanto a experiência clínica dá vida ao campo teórico.


O caso  clínico  de  Adelina-Daniela  aponta  para  a  hipótese  central  do  autor  de  que  os

conteúdos não sonhados pelas gerações anteriores podem contribuir para o sofrimento (bem como exigir trabalho psíquico) para a geração atual. É a partir dessa ideia que se seguem as demais reflexões e questionamentos desenvolvidos neste trabalho. O livro se mostra, desse modo, uma importante ferramenta para quem se interessa pelo tema da rêverie, bem como pela clínica da psicose. Mas é indicado também aos psicanalistas em geral que se valem de uma leitura  consistente  teoricamente,  permeada  pela  sensibilidade  clínica,  e  que  aponta  novos horizontes para pensarmos a psicanálise na atualidade.


[...] Diversos afetos tais como tristeza, solidão, abandono eram quase que inaudíveis em meio ao impressionante e surpreendente “barulho” oriundo da violência presente em suas histórias. Por meio dessa escuta, fruto da suspensão do julgamento de realidade, tornei-me capaz de ouvir uma mulher profundamente entristecida, também uma mulher que carregava muito ódio do mundo e de todos por ter vivido uma vida tão turbulenta e solitária [...] O vínculo que se estabeleceu entre nós, durante boa parte da análise, era caracterizado por me fazer experienciar intensos afetos que, aparentemente, mostravam-se impossíveis de serem vividos por ela. (Costa, 2022, p.98)

A  partir  de  sua  experiência  com  mãe  e  filhos  na  clínica  da  psicose,  e  com  base  no aprofundamento teórico do qual resultou esse livro, Victor se questiona sobre quais seriam as consequências  psíquicas  na  mente  do  filho  quando  a  mãe,  ao  invés  de  metabolizar os pensamentos perturbadores da criança, projeta nela seus próprios pensamentos. Como toda boa pesquisa, esse trabalho permite que formulações sejam feitas e abre caminhos para pensarmos a importância da criação de novas ferramentas técnicas para o manejo na clínica da psicose.


Entendo que um psicanalista é sempre um pesquisador do funcionamento psíquico e suas manifestações. Cito  aqui  Thomas Ogden (2013),  um  dos  autores  privilegiados  no  livro  de Victor Costa, que diz que a psicanálise que deve ser viva e criativa, e nos convida a estarmos abertos  ao  movimento  cambiante  da  vida  para  que  a  análise  possa  se  tornar,  tanto  para  o analisando  quanto  para  o  próprio  analista,  um  acontecimento  humano. Por  meio  de  uma psicanálise viva e fluida, Ogden nos coloca diante de uma clínica implicada, que se dá a partir de uma presença e de uma escuta receptiva na experiência analítica. 


É exatamente o que acompanhamos com a leitura do livro de Victor de Jesus Costa. Vemos um trabalho clínico sensível e disponível, que possibilita a abertura para uma escuta atenta e continente de processos psíquicos complexos. Pensar sobre a rêverie na clínica da psicose, tanto no que se refere à relação mãe-bebê, como também na dinâmica analista e analisando, amplia e  reforça  a  compreensão,  bem  como  a  relevância  das  experiências  emocionais  vividas intersubjetivamente. As reflexões e problematizações teórico-clínicas levantadas por Victor culminaram em uma produção relevante, consistente, que tem muito a contribuir para o avanço do pensamento psicanalítico e para os estudos sobre a intersubjetividade na clínica psicanalítica contemporânea.


Separei um pequeno trecho do livro de Costa que gostaria de apresentar aos futuros leitores de “Mulheres que não sonharam”. Nele, Victor discorre sobre os sentimentos vividos na análise de Adelina, relato que nos permite, como leitores, compreender a necessidade de que haja um estado  de  abertura  de mente  do  analista  para  ser  habitado  pela  desordem  do  analisando, disponibilizando-se  a  receber  seus  conteúdos  hostis  e  caóticos.  Neste  pequeno  fragmento podemos  entrar  em  contato  com  as  turbulências  e  percalços  que  o  analista  vive  com  a analisanda, e o quanto a capacidade de rêverie do analista, estado de mente capaz de receber tais conteúdos não representados de seu analisando, tem uma função de extrema importância para que a dupla possa, então, sonhar sonhos que não puderam ser sonhados:


[...] me senti puxado para seu mundo interno, um mundo permeado de personagens difusas e hostis. Acredito que essa minha sensação pode apontar um caminho a ser pensado. Esse mundo difuso e hostil sugere a mim que a diferenciação entre o mundo externo e o interno era precária na mente da paciente e associo-o às peripécias trágicas vividas e sofridas por ela. Ao intuir que a história de vida relatada por Adelina era composta por histórias que, de tão absurdas, beiravam à incredulidade, e que contudo, eram ainda, em certa medida, críveis, comecei a deixar em suspenso se tratar-se-iam de dados de realidade, fantasia ou delírio. (Costa, 2022, p.99).

Considero o recorte acima citado uma forma de ilustrar a implicação de Costa como analista e a sensibilidade com a qual ele acolhe e dá continência a conteúdos psíquicos tão desprovidos de metabolização e representação. O trabalho teórico-clínico desenvolvido pelo autor aponta para a necessidade de nos abrirmos para uma compreensão da clínica da psicose a partir de uma psicanálise  ampliada,  que  se  atenta  às  questões  psíquicas,  sociais  e  institucionais  desses pacientes. Desse modo, o livro promove um olhar para o papel das dinâmicas intersubjetivas nos processos de constituição do psiquismo, bem como, para a relevância da intersubjetividade como um elemento central na relação analista-analisando, fundamental para as transformações (de ambos) em análise. Desse lugar implicado, podemos construir, como descrito por Ogden, um pensamento psicanalítico vivo e humano.


Referências


Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação. São Paulo: Escuta. 


Ribeiro, M. (2020). The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed. The International Journal of Psychoanalysis, 103 (6), 929-947. Doi: 10.1080/00207578.2022.2084402.


 
 
 

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