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A escuta do campo analítico: ressonâncias e manejos na análise de crianças [1]

  • marinaribeiroblog2
  • 26 de out.
  • 22 min de leitura

Atualizado: 28 de out.

Este artigo foi publicado em 2023 na Revista Brasileira de Psicanálise.


Autoras: Camila Young Vieira [2] e Marina F. R. Ribeiro [3].


Resumo: A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve o paciente e seu entorno. Nesse contexto, privilegiar a circularidade da escuta analítica significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais no campo em uma trama complexa que envolve a criança e, de acordo com a situação, os pais, os irmãos e os profissionais da escola e de saúde. O conceito de campo analítico, de Madeleine e Willy Baranger, ganha lugar na psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, fantasias e baluartes, que produzem impasses-transformações na análise. Para mostrar isso, as autoras apresentam um fragmento clínico de uma sessão familiar realizada numa análise de criança, na qual os elementos experienciados no campo conferem uma narrativa que contribui para a análise. Por fim, consideram que o conceito de campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza a clínica da infância.


Palavras-chave campo analítico; análise de criança; manejo; fantasia compartilhada.


Os ventos e as marés


Vento que levanta a onda

Que carrega o barco, que ondula o mar

É o mesmo que vai dar na praia

Que levanta a saia rodada de Oiá ...

Às vezes o vento muda

Sai batendo a porta, faz tudo voar

O vento é o temperamento do ar

Sopro, sopra, soprará.


MARISA MONTE E JORGE DREXLER, “Vento sardo”


A experiência clínica de análise com crianças expõe o analista a um campo de forças que envolve não só o paciente, mas também os pais, os irmãos e outros profissionais. Na caminhada desse ofício, vi colegas de profissão deixarem de atender crianças em razão do desconforto causado pelas tensões imanentes ao trabalho. Também presenciei jovens analistas e psicoterapeutas iniciarem com a clínica da infância, como se fosse uma intervenção indicada para o início da prática profissional. Contudo, o que se experimenta é que é uma área que convoca o analista a compreender as condições climáticas todas as manhãs antes de lançar o barco ao mar, adquirindo assim prudência (ou experiência clínica e teórica) para não naufragar. O pescador, com o tempo, reconhece a importância de considerar as forças da natureza, das marés e dos ventos para ora seguir e se embrenhar mar adentro, ora nem lançar o barco ao mar. Ele precisa viver a alegria de uma temporada abundante de peixes e a escassez em tempos de instabilidade.


Ao longo da atividade na clínica da infância, compreendi que os ventos (as ressonâncias) devem ganhar lugar na escuta analítica e a partir de suas características – temperatura, pressão e movimento (o campo analítico) – guiar o manejo clínico – compreensões e formas de intervenção. Com isso entendido, há alguns anos, sempre que recebo um paciente-criança, realizo sessões com os pais, sessões com a criança, e sugiro uma sessão familiar,4 exceto quando percebo contraindicação dessa estratégia, em função das defesas psíquicas do paciente ou dos pais. Essa exposição inicial aos ventos e marés viabiliza elaborar estratégias de rotas de navegação, que de certa maneira auxiliam no percurso do barco no curso do processo analítico. Em outras palavras, entende-se que o analista de criança precisa ter disponibilidade para trabalhar com os pais. Do processo que envolve o paciente, também podem fazer parte irmãos, babás, animais de estimação e outros profissionais, dependendo da singularidade de cada caso e/ou situação. García Reinoso ressalta que, por estarmos diante de um sujeito nas “vicissitudes da constituição subjetiva”, devemos “acompanhar o processo e criar as condições” para que a criança se desenvolva plenamente (2002, p. 15).


Sabemos que a clínica infantil guarda uma especificidade: são pessoas que estão em plena constituição subjetiva e inseridas em uma instituição familiar permeada de crenças, ideologias e afetos. Desse modo, pensar na clínica como dispositivo de cuidado e atenção ao sujeito-criança exige plasticidade no fazer.


Ao nosso ver, os pais participam do processo analítico de forma consentida pelo analista ou não. Afinal, são eles que levam e buscam os filhos, aguardam na sala de espera, enviam mensagens e áudios de WhatsApp, realizam os pagamentos, sustentam ou sabotam o processo de análise com toda a intempérie que o constitui. Entende-se a necessidade de reconhecer esse campo transferencial a serviço do processo analítico da criança, e marca-se que a tentativa de ignorar essas forças pode caminhar na contramão da continência e elaboração, gerando falta de sustentação de ambas as partes (pais e analista) e, por vezes, o rompimento do trabalho.


Sigal (2001) propõe que os pais circulem no espaço analítico e aponta a importância de intervenções com eles quando houver aprisionamento da criança ao desejo dos pais, que a impeça de ir ao encontro do próprio desejo. Para a autora, na análise de crianças, há um campo transferencial múltiplo, e o pensamento do analista deve considerar essa complexidade. Ressalta que, como os pais constituem, em grande parte, o laço social que promove a mediação de valores, e dada a força do seu inconsciente na constituição psíquica do filho, “acabam sendo uma peça fundamental na condução de uma análise” (p. 153).


Para García Reinoso (2002), o processo analítico dos filhos traz mudanças que interrogam aspectos conscientes e inconscientes dos pais. Nesse sentido, a autora ressalta a necessidade de pensar processos, mitigar e manejar as angústias dos pais, para haver transformação: “O trabalho analítico deverá operar permitindo que a transferência se metonimize, se metaforize, ou seja, que se ‘transfira’ a transferência” (p. 18). A escuta e o trabalho com os elementos inconscientes que circulam o campo podem “permitir uma ressimbolização do lugar que esse filho e esse sintoma ocupam na história dos pais e da criança” (Sigal, 2002, p. 31).


Busca-se uma análise que viabilize processos e não funcione de forma fragmentada, na qual as representações e transformações vividas no contexto analítico encontrem acolhimento no contexto familiar. O contrário seria fonte de conflitos e entraves no processo, “a criança acaba se confrontando com novas aquisições, sem poder incorporá-las ou concretizá-las” (Sigal, 2001, p. 160). Nessa proposta, entende-se a alteridade como horizonte, e as mudanças podem causar incômodos nas relações familiares. Com isso, a inserção dos pais no contexto da análise auxilia a sustentação da mudança e impede de verem a “cura como fracasso” (p. 158), visto que o filho se desarticula da ideia de satisfação do desejo dos pais. Na análise da criança,


os pais (ou um deles) entram no exato momento em que, devido ao peso que o intersubjetivo tem na formação do sintoma ou na estruturação das neuroses, faz-se necessário que algo também se modifique no inconsciente de um ou de ambos os progenitores, ou algo em sua relação. (Sigal, 2002, p. 33)

Privilegiar a circularidade do olhar e da escuta analítica no trabalho com crianças significa conter os elementos transferenciais e contratransferenciais que estão no campo em uma trama complexa, que envolve a criança, os pais, os irmãos, as babás e os profissionais da escola e de saúde. Segundo Ferro e Basile (2013), os elementos, eventos e linhas de força que emergem no campo sempre são relevantes. Assim, se fazem parte da complexidade do campo, estão na narrativa analítica. Sabemos que, invariavelmente na análise infantil, somos atravessados por elementos da relação com os pais, demandas da escola, a necessidade de um trabalho em rede com outros profissionais. A forma como esses elementos ressoam no campo deve encontrar um espaço continente na mente do analista. O analista de criança deve dispor de manejos clínicos complementares à sessão analista-paciente/criança, a fim de “propiciar ao indivíduo uma possibilidade de ‘fazer sentido’ de sua vida e das vicissitudes de sua experiência ao longo do tempo, do nascimento à morte” (Figueiredo, 2007, p. 15).


O conceito de campo analítico ganha lugar na perspectiva da psicanálise contemporânea ao tecer seus fundamentos na porosidade do interjogo do par analista-analisando, permeado por conteúdos conscientes e inconscientes, transferências e contratransferências, fantasias e baluartes,5 que dão origem a impasses-transformações na análise e a uma escuta singular. Dessa maneira, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) propõem investigar a situação analítica que se forma no encontro analítico, na qual emergem novas estruturas, as fantasias compartilhadas; a percepção e a transformação dessas fantasias geram a dinâmica do campo. A fantasia é produzida pelo jogo entre processos projetivos e introjetivos, identificação e contraidentificação, experimentados na relação (Bernardi, 2009).


A partir disso, entende-se que o conceito de campo analítico instrumentaliza o analista a olhar (escutar) os diferentes vértices que surgem na clínica da infância, bem como sustenta teoricamente a dinâmica complexa desse ofício.


A circularidade do campo analítico


Consideramos que o conceito de campo analítico de Madeleine e Willy Baranger pode sustentar com êxito a clínica psicanalítica infantil, por imbricar em seus fundamentos uma proposta que focaliza o campo como dispositivo para compreender os elementos circulantes e para indicar os impasses da análise, que merecem a atenção do analista. Como o trabalho com criança requer um trânsito com outros atores a serviço da análise, a escuta do campo oferece um fio condutor que garante o compromisso do analista.


Madeleine e Willy Baranger são franceses. Em 1946, mudam-se para a Argentina, onde fazem a formação em psicanálise em Buenos Aires. Pertencem à segunda geração de analistas da Associação Psicanalítica Argentina (apa). Em 1954, vão para Montevidéu (Uruguai), onde vivem até 1965, e contribuem com a constituição do grupo psicanalítico uruguaio. Em 1966, retornam à Argentina e compõem a equipe da apa, na qual atuam como professores, analistas e pensadores (Bernardi, 2009).


Apresentaremos a seguir o conceito de campo analítico e como ele se tornou parte da técnica analítica. De acordo com Churcher (2010), o texto “La situación analítica como campo dinámico” foi publicado pela primeira vez em espanhol na Revista Uruguaya de Psicoanálisis , em 1961-1962. Em 2008, foi publicado em língua inglesa e, em 2010, traduzido para a língua portuguesa.


Entendemos que há uma originalidade no pensamento dos autores, não de forma isolada, mas no efervescente diálogo com a clínica e a história da psicanálise. Podemos dizer que colaboram com uma mudança epistemológica e superam o subjetivismo ao considerar os eventos que acontecem no encontro analítico (sessão ou sequência de sessões) a partir da ideia de situação analítica como campo dinâmico.


O casal Baranger, além de realizar um estudo aprofundado da obra de Freud e de Melanie Klein, também teve influência de autores como Paula Heimann, Wilfred Bion, Heinrich Racker, Kurt Lewin, Merleau-Ponty e Pichon-Rivière em seu pensamento.6


No desenvolvimento e expansão dos processos transferenciais e contratransferenciais, Madeleine e Willy Baranger lançam luz sobre o interjogo da dupla e a comunicação inconsciente que ocorre no campo. Para Favalli (1999), o conceito de identificação projetiva, introduzido em 1946 por Melanie Klein, amplia a percepção sobre processos mentais e a relação analítica. Contudo, o fenômeno era compreendido a partir da mente do paciente, enquanto os sentimentos despertados no analista podiam ser vistos como demandas para autoanálise. A ampliação do conceito vem com um trabalho de Paula Heimann denominado “Sobre a contratransferência”, publicado em 1950, no qual “a partir daí a mente do analista passa a compor, junto com a do paciente, os objetos da observação analítica” (p. 26). Tamburrino (2013) ressalta que Paula Heimann foi uma das primeiras a reconhecer os afetos despertados no analista como ferramenta técnica na análise.


Paralelamente aos estudos de Heimann, Heinrich Racker unifica o binômio transferência-contratransferência e define a função ativa da mente do analista na relação analítica. Avança ao postular que o analista não está livre de seus conflitos inconscientes, e que estes interferem na relação analítica. Refere-se sempre ao movimento em dois sentidos, os conteúdos transferidos e contratransferidos inseridos em um contexto analítico. Com isso, pavimenta o que seria nomeado, mais tarde, de campo analítico (Favalli, 1999).


Tamburrino (2013) mostra que as contribuições de Bion também surgiram na década de 1950, enfatizando o funcionamento da mente do analista e frisando o caráter intersubjetivo do processo de análise. Nesse sentido, “a intersubjetividade não é encarada apenas como inevitável, mas impõe-se como única via possível de aproximação com a realidade psíquica” (Favalli, 1999, p. 31).


Willy Baranger (1979) destaca o aporte original de Racker ao compreender a transferência-contratransferência como unidade. Aponta que, a partir dessa concepção, Pichon-Rivière7 expande e elabora o processo analítico em espiral. Para Willy Baranger, o processo em espiral marca e fecunda suas ideias sobre a complexidade da situação analítica, que explicitamos na sequência.


Na teoria do campo intersubjetivo e dinâmico, a experiência da análise se concebe como processo em espiral, que se modifica a cada volta. Nesse sentido, a lógica dialética marca essa concepção em seus acontecimentos e nas dimensões temporais. Em diálogo com Pichon-Rivière, Willy Baranger (1979) propõe olhar a situação analítica a partir do aqui e agora comigo, que agrega o como lá e antes, e o como mais adiante e em outra parte. Assim, abarca as repetições experimentadas no presente da sessão, as perspectivas futuras que se abrem no encontro e as distintas voltas em espiral sem começo nem fim predeterminado. Isso permite pensar a variedade e complexidade de fenômenos regressivos e progressivos que se dão no processo analítico, superando qualquer concepção linear a respeito do desenvolvimento de uma análise.


Churcher (2010) aponta a influência das obras de Kurt Lewin no trabalho de Pichon-Rivière, que por sua vez inspira as ideias do casal sobre o conceito de campo analítico, constituindo assim uma espiral de influências teóricas. O conceito de campo se origina na física do século 19, com o intuito de pensar a “ação-à-distância” (p. 178), ou seja, como dois corpos físicos separados podem influenciar um ao outro. Dessa maneira, um campo gravitacional, elétrico ou magnético é um continuum de forças distribuídas por todo o espaço. Com isso, o campo físico não é menos tangível que os corpos sólidos. Os efeitos que nele ocorrem são percebidos como realidades do campo. Kurt Lewin,8 originário da escola gestáltica, ampliou o uso do conceito para a psicologia e a fisiologia ao descrever o campo ou “espaço vital” psicológico e social como um campo de forças, como um todo dinâmico que constitui uma rede de relações entre as partes (Tellegen, 1984).


Nessa ebulição criativa, a fenomenologia de Merleau-Ponty também influenciou a construção teórica do casal. Segundo Civitarese (2014) 9, Merleau-Ponty entende que o sujeito nasce na intersubjetividade. Assim, pensar na constituição psíquica é pensar em intersubjetividade, no espaço intermediário. No avanço de suas ideias, o casal rejeita a noção de analista-espelho e aponta o caminho de viver as experiências arcaicas que ganham sentido na relação presente. Essa vivência analítica permite a integração de processos cindidos que são vividos na relação e possibilita um continente que articula os fenômenos ocorridos na experiência da análise. Civitarese diz também que, na proposta de Merleau-Ponty, nem tudo pode ser levado à consciência pela percepção, porque há um nível de sentido que “pode ser descrito como semiótico, mas ainda não é semântico” (p. 11).


No diálogo com as ideias apresentadas, Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) entendem que o campo é estruturado funcionalmente pelo contrato/regra fundamental, que resulta em uma configuração bipessoal, que se reorganiza em uma estrutura triangular e se torna pano de fundo para diversas estruturas multipessoais emergirem.


O campo estabelecido ganha um sentido próprio, e os elementos que emergem são circulantes e não pertencem exclusivamente a um dos participantes. A situação analítica pode ser descrita como totalidade, na qual a estrutura e a dinâmica resultam da interação de ambos e da situação analítica sobre ambos, em movimento recíproco.


Os autores denominam relação psicoterapêutica bipessoal o encontro dessas duas pessoas de carne e osso, que se parcializam em diferentes aspectos, se misturam, se sobrepõem, povoam diversos personagens e formam situações multidimensionais em constante movimento. Nas palavras dos Baranger, “essa estruturação terapêutica bipessoal continua como pano de fundo presente, ainda que não percebido, sobre o qual vão fazendo e se desfazendo as estruturas tri e multipessoais em mudança constante” (1961-1962/2010, p. 190). Ao entender “o par analítico como um trio” (p. 190), a complexidade, a contradição e o movimento se instauram, seja no sentido progressivo, com o surgimento de personagens que se desdobram num campo multipessoal, seja no sentido regressivo, no qual emergem objetos parciais.


Complementarmente, no caminho de pensar o campo e seus processos subjacentes, também ganham destaque as distrações ou devaneios dos analistas, entendidos como elementos que emergem no espaço-tempo da situação analítica.


O casal Baranger (1961-1962/2010) discorre sobre a dimensão do campo funcional, que se constitui nos pilares do compromisso básico e da regra fundamental. Há delimitação dos papéis dos integrantes do campo, ou seja, cabe ao analisando associar livremente suas ideias, comunicar, regredir, e ao analista, acolher, analisar, entender, regredir parcialmente e garantir o sigilo. Tais prerrogativas fundam a regra da análise e sustentam o compromisso básico. Em 2002, M. Baranger et al. explicitaram que a funcionalidade do campo requer a assimetria de base e que a estrutura do campo se localiza na regra fundamental – a escuta está sempre comprometida com a verdade do paciente. A perda do pacto analítico traz consequências ao processo. Os autores observam que a oposição entre enquadre e processo deve ser considerada para pensar o campo.


A proposta teórico-técnica tem a análise como encontro de duas subjetividades comprometidas com a tarefa de promover a transformação psíquica do paciente. Com o soprar dos ventos da sessão com Jasmine,10 suas irmãs e seus pais, o aqui e agora da sessão intersubjetiva apresenta a riqueza de elementos que circulam o campo e conferem a fantasia compartilhada da dupla. A partir do fragmento clínico, pretende-se lançar luz sobre os impasses de Jasmine e o porvir de sua análise, e não tecer conclusões que saturem11 a escuta. Compreendemos a escuta clínica em um devir de acontecimentos e elaborações que abrem vértices de compreensão e de intervenção com a criança e com os pais.


A proposta do “fragmento analítico intersubjetivo” refere-se ao impacto estético-afetivo produzido na relação, para assim “pescar algo que expandirá” (Ribeiro et al., 2022, p. 35). Tanis contribui com o tema das narrativas clínicas e afirma que “nenhum texto dá plenamente conta da experiência – isto é da ordem da limitação da linguagem”; entretanto, “é potência viva”, permite associação com o autor e evocações no leitor (2015, p. 181). Avança-se, assim, para uma dialética entre experiência e teorização.


No sopro com Jasmine


Ela veio da recepção até a sala de atendimento imbuída de um andar ligeiro, entrou, sentou-se no tatame, olhou-me, abaixou a máscara por alguns instantes, colocou o dedinho em um dos dentes da parte inferior da boca e se pôs a balançá-lo: “Olha, está mole. O permanente está bem aqui atrás, está vendo?”. Foi assim que se abriu a possibilidade de vivermos juntas seus impasses e sua experiência de transição.


Agendamos a sessão familiar, momento de vivenciar o campo analítico com todas as suas forças, turbulências e dimensão intersubjetiva. Chego à recepção do consultório, repleta de burburinhos. Estavam à minha espera Jasmine, as irmãs gêmeas (mais novas), o pai e a mãe.


Durante a sessão, uma cena me saltou aos olhos, ao ouvido, ao corpo e à mente. Subitamente fui fisgada por uma agitação interna. Parecia que algo queria saltar do meu corpo para fora. Da poltrona em que estava sentada, avistei a mãe de Jasmine sentada no tatame, com uma das filhas acomodada em suas pernas entreabertas, num buraco côncavo, no qual ela se aconchegava. Elas faziam cobrinhas com massinha e se envolviam na tarefa de criação e adivinhação do que era moldado. Ao lado estava o pai, de frente para outra filha e para Jasmine. Entretanto, o olhar do pai estava na irmã, que no momento fazia uma boneca bem criativa de massinha. O pai elogiava sua produção: “Que bacana!”. Avistei Jasmine como uma panela de milho estourando. Mexia-se e remexia-se no tatame, trabalhava a massinha como se estivesse sovando uma massa de pão, e nada saía. Olhava para um lado, para o outro e para sua produção. Eis que surge algo. Os pais não notam sua produção. Então ela desmancha e, mais uma vez, faz outra e outra. Em uma das produções, noto que fez uma pizza, pôs dois olhos e uma boca triste, com uma meia-lua para baixo. Enquanto Jasmine se esforçava para fazer algo, dando forma à massinha, para em seguida transformá-la em massa de pão e sovar, desejei que os pais olhassem para ela. Angustiei-me com a distração dos pais e o envolvimento com as gêmeas. Como sua criação não era reconhecida, a massa amorfa voltava a aparecer em suas mãos. Por um instante, quase fiz uma interpretação no sentido de significar a ausência do olhar dos pais para Jasmine, mas as palavras não saíam de minha boca. Parecia inapropriado, com características de desnudez. Então, resolvi pactuar com o que Jasmine estava vivendo e sentindo. Por alguns segundos, trocamos olhares e eu sorri para ela, na tentativa de lhe dizer “estamos juntas”.


No caminho de uma escuta estética e imaginativa (Figueiredo, 2021), associei um útero gostoso e quentinho, que suscita desconforto em nascer para outros processos, para outros momentos, para outras relações. Algumas perguntas atravessaram meus pensamentos: como é fazer parte dessa família (como elemento diferente, que destoa da estética harmoniosa)? Como os pais estão significando as diferenças de lugar e momento de vida das filhas (com destaque à situação de Jasmine, que estava diferente das irmãs)? Outro aspecto que participou dos atravessamentos “deslizando em direção a”, e não “chegando a”, foi a impossibilidade de comunicar aquilo que estava sendo vivido.


A imersão no caldo intersubjetivo da vivência da sessão – o campo analítico – permite experienciar alguns ventos e debruçar o olhar, enquanto escuta analítica, em um campo de forças com camadas objetivas e subjetivas, visíveis e invisíveis, dizíveis e indizíveis, reveladas e encobertas.


No fio condutor da situação analítica como totalidade, de acordo com Willy Baranger (1979), temos duas formas de olhar o campo: em primeiro e em segundo grau. O olhar em primeiro grau enfoca o material associativo e conteúdos manifestos; nessa tarefa, surgem sentimentos, devaneios, reações corporais, fantasias e a necessidade de focalizar o campo em seu conjunto. Já o olhar em segundo grau inclui a auto-observação e a situação transferencial; não se trata de um obstáculo ao trabalho do analista, mas um de seus instrumentos essenciais. No caso de Jasmine, as imagens e sensações que emergiram na sessão alcançaram um lugar na mente da analista, um sentido no curso da análise e um espaço de elaboração na análise da criança e nos atendimentos com os pais. O movimento e a paralisação do campo na sessão ganharam uma narrativa: o desejo de ser bebê, a dificuldade de transição, a dificuldade de crescer nessa família dado o aumento desproporcional de exigências, a rivalidade fraterna, e a raiva das irmãs, que resultava em ataques físicos.


Para pensar o campo, os Baranger assinalam, então, três estruturas diferentes: a básica (contrato analítico expresso), a expressa verbalmente (conteúdos manifestos) e a inconsciente (conteúdos e fantasias inconscientes). A dinâmica desses processos resulta da história do sujeito e remonta a um ponto de convergência ligado à “essência verdadeira”. Segundo os autores, esse ponto que se destaca e ganha um significado no campo, e para o qual convergem as estruturas, é o ponto de urgência. Esse elemento que sobressai comunica algo significativo, que pode ser uma urgência interpretativa ou uma situação de vida, “o problema inconsciente que deseja ao mesmo tempo esconder e comunicar” (Baranger & Baranger, 1961-1962/2010, p. 194). O alcance do ponto de urgência pela dupla produz expansão de entendimento e modificação inteligível do campo; entretanto, nesse percurso há pontos secundários e preliminares. O ponto de urgência foi designado por Pichon-Rivière como a emergência de algo que invade a cena presente, muitas vezes com raízes no passado. Melanie Klein também utilizou esse termo ao se referir ao ponto de angústia, que seria foco de interpretação e abertura da análise (W. Baranger, 1979).


No caso clínico apresentado, havia um ponto de angústia: não ser vista, não ser reconhecida em sua produção. Também havia uma tentativa de simbolizar as sensações do corpo na massinha, que em um momento se delineia em um rosto triste, para em seguida ficar amorfa. Havia pais muito envolvidos no cuidado com as filhas e uma impossibilidade de comunicar, como se algo pudesse ser quebrado e a única saída fosse observar. Na circularidade do processo em espiral, pudemos entender que o útero quentinho era um reduto de harmonia, que borrava as diferentes necessidades e as diferenças individuais. Não existia espaço para conflito, para aspectos agressivos, para situações desarmoniosas. Nas sessões subsequentes com os pais, esses elementos ganharam forma, e buscou-se a construção de um espaço continente para o reconhecimento das diferenças, dos lugares, dos conflitos e das dificuldades.


Madeleine e Willy Baranger (1961-1962/2010) mencionam o ponto de urgência como fantasia básica da sessão (ou de um grupo de sessões). Aqui se destaca um aspecto de cesura das compreensões anteriores sobre fantasia inconsciente, porque não se trata do “entendimento da fantasia do analisando pelo analista, mas algo que se constrói em uma relação do par” (p. 196), exige do analista um contato profundo com o outro. Podemos entender essa estrutura “como algo que se cria entre ambos, dentro da unidade que constituem no momento da sessão, algo radicalmente diverso do que cada um deles é separadamente” (p. 196), uma fantasia inconsciente compartilhada que os autores nomearam de fantasia bipessoal. Na situação analítica, a fantasia bipessoal se estrutura a partir da porosidade do campo e da cristalização de papéis atuados inconscientemente. Tais fatores podem impedir as manifestações necessárias e a analisabilidade do campo.


Os fenômenos das identificações, identificações projetivas e contraidentificações têm peculiaridades. Assim, a análise deve permitir o livre jogo para que se estruture a fantasia no campo. Entretanto, a posição do analista deve ser centrífuga ao entrar e sair do jogo, a fim de garantir sua função analítica.


Nesse percurso, o casal Baranger agrega o conceito de baluarte, que se refere às defesas, “é o refúgio inconsciente de fantasias poderosas de onipotência” (p. 203), geradoras de cargas afetivas intensas e, muitas vezes, impensáveis. Na análise, essas estruturas precisam ser transpostas no intuito de abrir novas formas em um processo em espiral. Assim, a mobilização e o estancamento do campo favorecem ou não a integração e/ou a cisão de aspectos do paciente. Tecnicamente, cabe ao analista criar caminhos de rompimento do processo defensivo, a fim de reintegrar aspectos cindidos do eu do paciente e, consequentemente, irrigar o campo.


No contexto deste estudo, sabe-se que as fragilidades dos filhos ou suas potencialidades e mudanças podem representar ameaças aos aspectos narcísicos e/ou onipotentes dos pais. No decurso do processo analítico de Jasmine, abriu-se a possibilidade de pensar os impasses que sobressaíram nessa sessão e, com os pais, buscou-se cultivar formas para pensar o que acontece diante de situações conflitivas, não harmoniosas, a fim de contribuir para um processo continente às mudanças. Segundo M. Baranger et al., a “olhada em direção ao campo” do analista (2002, p. 124), enquanto segunda olhada, é acompanhada de momentos de bloqueio, momentos de mobilização afetiva, ampla vivência e emoções que sinalizam que o processo está em curso. Entendemos que a exposição do analista a esse campo de forças amplia a compreensão e contribui para uma narrativa cognoscível do processo analítico, cujo propósito é fomentar integração e invenção. Nesse sentido, consideramos que o cuidado com os pais na análise infantil é condição para a mobilização de novos arranjos na análise dos filhos.


O vento que carrega o barco


Nos ventos da psicanálise contemporânea, pretende-se pensar o sujeito-criança intersubjetivamente construído em uma prática clínica maleável, que tem o campo como fio condutor. Nas palavras de Coelho Júnior, seria pensar a clínica psicanalítica pelo vértice “da compreensão e o manejo do campo transferencial-contratransferencial a partir de uma metapsicologia em que o intersubjetivo possa encontrar seu lugar no intrapsíquico” (2012, p. 15). Nessa proposta, o intersubjetivo ganha lugar nos acontecimentos que emergem da dupla analista-paciente e nos acontecimentos que emergem no encontro com o entorno da criança.


Nessa confluência de ventos que direcionam o barco, olha-se para a clínica psicanalítica da infância em sua complexidade de elementos, que não envolvem apenas a criança. A capacidade de “pensar juntos” nas trocas e devaneios da sessão e do entorno da criança confere narrativas para as fantasias compartilhadas, que indicam caminhos de calibragem da participação dos pais e outros membros da família, quando e como entram na análise da criança e os rumos para pensar, elaborar e manejar o diálogo com outros profissionais.


Aposta-se no processo em espiral e na situação analítica enquanto totalidade como indicadores de mobilidade e estancamento do campo, ou seja, da fluência ou obstrução do processo analítico. Convergem na situação analítica o aqui e agora comigo (presente da sessão), o como lá e antes (repetições, história do paciente) e o como adiante e em outra parte (porvir, áreas em criação). Essa dialética temporal é atravessada pelo olhar em segundo grau do analista, que abarca a situação transferencial e a auto-observação, e lança luz na fantasia compartilhada da dupla, com seus baluartes e capacidade transformativa. Na clínica da infância, a configuração dessa fantasia pode incluir aspectos do entorno da criança, e a perspectiva teórica do campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza o analista a compreender as ressonâncias para manejar tecnicamente os impasses e recuperar o movimento analítico.


O modelo de campo analítico permite uma concepção na qual os acontecimentos do campo, os personagens do discurso, as figuras despertadas configuram a dinâmica da análise. São múltiplos pontos de vista, justamente para compor os diferentes elementos da trama complexa que se forma no campo. Segundo Civitarese (2014), são “interpretações” ao mesmo tempo conceituais e sensoriais, conscientes e inconscientes de si, do outro, de si-com-o-outro, e, inversamente, do eu visto pelo outro e pelo campo intersubjetivo. Dessa maneira, a externalização das fantasias confere uma narrativa e uma forma cognoscível de suportar, compreender, acomodar e/ou assimilar a realidade. Portanto, no atendimento de crianças, expandir os vértices faz parte do trabalho.


No avanço das ideias de M. Baranger et al. (2002), considera-se o processo analítico vivo e dinâmico, e o enfoque técnico na experiência concreta do campo vai na contramão de concepções passivas e desenvolvimentistas, que seguem uma certa estrutura em etapas progressivas.


Na clínica psicanalítica da infância, a mobilidade do barco implica garantir que os ventos soprem, que os olhares se ampliem e que os manejos estejam a serviço do movimento e da expansão.


Notas


1 Este texto deriva de tese de doutorado desenvolvida no Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic), sob a orientação de Marina F. R. Ribeiro.


2 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP).


3 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (IP-USP).


4 Vale destacar que esse percurso inicial é acordado (contrato) de forma clara e consentida com os pais e com a criança.


5 Os baluartes são defesas que emergem na situação analítica e são vivenciadas na experiência da dupla. Trata-se de uma estrutura que entorpece ou paralisa o campo (M. Baranger et al., 2002).


6 Faremos uma breve menção a essas ideias, pois uma apresentação mais detalhada delas fugiria ao escopo deste artigo.


7 Pichon-Rivière era membro pioneiro da apa e por vários anos ministrou seminários, por meio dos quais o casal Baranger mantinha estreito contato com suas ideias.


8 “Kurt Lewin (1890-1947) nasceu na Alemanha e permaneceu em Berlim durante boa parte de sua vida acadêmica. No ano de 1932 Lewin foi para os Estados Unidos” (Moraes, 2007, p. 315).


9 Cabe ressaltar que Antonino Ferro, em A técnica na psicanálise infantil (1995), foi o psicanalista que divulgou internacionalmente o conceito de campo analítico dos Baranger, vinculando este ao pensamento de Bion. Nesse período, o texto dos Baranger ainda não tinha sido traduzido para o inglês. Civitarese e Ferro escrevem alguns textos em conjunto e partilham de ideias próximas, principalmente no que se refere à compreensão do campo analítico.


10 Foram garantidos os cuidados éticos na apresentação do fragmento clínico, visto que se trata de uma “ficção narrativa” que contém diversos elementos e personagens da experiência clínica das autoras (Tanis, 2015).


11 No sentido de fixar uma compreensão preexistente e não abrir para os acontecimentos do campo, no aqui e agora da sessão.


Referências


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