Sobre intuição psicanalítica: a afetação enigmática
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- 30 de ago.
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Atualizado: 2 de set.
Este artigo, de autoria de Marina Ribeiro, foi publicado em 2022 nos Cadernos de Psicanálise | CPRJ, volume 44, número 46, páginas 155–168, na edição intitulada Afinando a escuta: um enorme passado pela frente.
Resumo: O artigo apresenta reflexões sobre a intuição psicanalítica na obra de Bion, sustentando a conjectura de que a intuição é uma afetação enigmática que ocorre entre diferentes cesuras em constante oscilação. A mente é constituída por diversas cesuras, uma entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. A intuição se fenomenaliza na reverie, ou seja, a intuição (não sensorial) evolui para uma reverie (sensorial) que emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão. A reverie é compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando.
Se a situação analítica for intuída com precisão – prefiro esse termo a “observada”, “ouvida” ou “vista”, porquanto ele não traz consigo a penumbra de associação sensorial –, o analista comprova que o inglês falado, comum, é surpreendemente adequado para formular a sua interpretação. (BION, 1967/1994, p. 153).
Inspirada1 na capacidade do analista de acolher o enigmático no encontro com seu analisando, senti-me instigada a refletir sobre um tema complexo e ainda pouco referido em textos: a intuição psicanalítica, especificamente na teoria de Bion, ou seja, o que ainda não sabemos2, a afetação enigmática que ocorre na sala de análise.
Vou começar pelo que poderíamos chamar uma ilustração teórica a partir do texto de Chuster (2019), no qual o autor destaca que o Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) pode ser compreendido como um texto testemunho de uma intuição freudiana de toda a obra que se desenvolveria posteriormente, uma espécie de memória do futuro (BION, 1975/2014). O Projeto foi um texto freudiano desconsiderado por muitos anos, em função de sua característica não psicanalítica ou, poderíamos dizer, de um pensamento com características que podem lembrar quase um pensamento alucinatório. Quinodoz (2007) escreve que encontramos no Projeto intuições geniais de Freud disseminadas em um texto inacabado.
Como podemos pensar psicanaliticamente sobre um conhecimento imediato, intuído, que tem características que podem se assemelhar a uma alucinação, pois se apresenta como uma visão que não passa pelos processos que costumamos validar como processos de pensamento: dedução, associação, comparação, análise, constatação etc., mas algo que aparece como uma imagem, que vemos, ou seria melhor dizer, criamos de forma imaginativa, sem apoio sensório identificável. Podemos conjecturar que Freud viu, por meio da sua imaginação criadora – termo de Chuster (2018, 2019, 2020) – uma prévia do que seria a sua futura obra, ou uma intuição de um conhecimento que precisaria de muitos anos para se desenvolver em vários textos e deixar uma marca considerável na História. Mudanças que podemos considerar cesuras (BION, 1977) na história, na qual há um antes e um depois, há continuidade e ruptura.
Cesura é um conceito de Bion que nos ajuda na aproximação dessa afetação enigmática – expressão de Figueiredo (2021) – que parece ser a intuição psicanalítica, algo que nos afeta, nos captura de forma enigmática. Cesura é um termo retirado do texto de Freud (1926), Inibição, sintoma e angústia, no qual ele escreve que há mais continuidade entre a vida intrauterina e a vida pós-natal do que a impressionante cesura do nascimento nos faz crer. E aqui, podemos pensar na presença do paradoxo: há uma impressionante ruptura, mas há, também, continuidade.
Cesura é sinapse, é conexão, é o vínculo, escreve Bion (1977). O termo originalmente se refere a um espaço no poema, na estrofe, um espaço que dá ritmo, que faz conexão, que gera ruptura e movimento. Bion escreve: “... Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse; a (contra-trans) – ferência, o humor transitivo-intransitivo” (BION, 1977/1981, p. 136).
A mente é constituída por diversas cesuras, essa entidade imaginária que separa, une e cria estados mentais. Por exemplo, o lusco-fusco ao acordarmos, momento no qual temos uma cena onírica em mente e, por um instante, não há diferenciação entre a cena e o mundo da vigília; temos a impressão de que aquilo foi vivido e, subitamente, acordamos e percebemos que a cena foi experienciada em um sonho, e rapidamente se evapora na luz do dia. Na cesura entre o sonho e a vigília: há conexão, há continuidade e há ruptura entre dois estados mentais, assim como entre consciente e inconsciente, o eu e o outro, estados indiferenciados de mente e estados diferenciados.
A hipótese que levanto é que a intuição acontece entre cesuras em constante oscilação: finito/infinito; eu/outro; o formar/o desformar, as transformações em K/as transformações em O3. A partir dessas já conhecidas cesuras, podemos conjecturar a cesura intuição/alucinação. A intuição é um tipo de fenômeno, uma afetação enigmática que se dá na cesura, entre a oscilação da área indiferenciada da mente – ainda sem forma – e a área diferenciada, e por esse motivo, podemos ter a impressão de uma alucinação, pois é uma criação imaginativa que encontra sentido apenas no a posteriori da sessão4. Precisamos do tempo para saber de qual lado da cesura estamos, da alucinação ou da intuição. Freud ao escrever o Projeto estava em um estado alucinatório ou estava intuindo o funcionamento psíquico? Muitos anos foram necessários para que esse texto fosse considerado um momento fundante da psicanálise, e que fosse encontrado nas linhas e entrelinhas do Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895) quase tudo que foi desenvolvido posteriormente.
Ao escrever sobre cesura Bion (1977) usou a analogia com a foto de Picasso5 pintando sobre um vidro, ou seja, podemos ver de vértices diferentes e simétricos a mesma pintura, assim como os estados mentais podem ser vistos por vértices diferentes, porém simétricos, o exemplo de Bion (1979): desamparo/onipotência6.
Para sustentar a hipótese apresentada acima, de que podemos conjecturar que a intuição ocorre entre cesuras e que há uma cesura intuição/alucinação, irei examinar dois recortes do texto de Bion (1965) no livro Transformações:
Pode-se ver alucinação de modo mais proveitoso como uma dimensão da situação analítica, na qual, juntamente com as outras ‘dimensões’ restantes, estes objetos são ‘sensorializáveis’ (caso incluamos a intuição analítica, ou consciência, seguindo uma indicação de Freud7, com um órgão sensorial da qualidade psíquica). (BION, 1965/2004, p. 129). 8
Resumindo, Cs (A1) representa uma conjunção constante de relações. Cs (A1) tem a natureza de um tropismo Esta ‘consciência’ é uma consciência (awareness) de uma falta de existência, um pensamento em busca de um significado, uma hipótese definitória em busca de uma realização que dela se aproxime, uma psique procurando por uma habitação física, ♀ procurando ♂. (BION, 1965/2004, p. 124).9
Nesses dois sucintos parágrafos, temos ideias complexas e condensadas a partir das quais vou desenvolver algumas reflexões.
Bion no livro Transformações compreende a intuição como um fenômeno próximo à consciência, e a consciência como um órgão sensorial que apreende qualidades psíquicas. Apoiado em Freud (1900), Bion coloca a intuição psicanalítica e a consciência lado a lado, tornando evidente a importância que esse autor deu à capacidade de observação analítica, proposição técnica apreendida por Freud de seu mestre Charcot10: continue a observar, até que algo faça sentido – usando termos bionianos – até que uma forma emerja do infinito vazio sem forma, o inconsciente. Aquilo que pode ser treinado pelo analista é sua capacidade de observação, para que a intuição capte um elemento psíquico11 por meio da eclosão de uma reverie na mente do analista. A intuição emerge na cesura entre consciente/inconsciente, ou como Bion propôs: o finito da consciência e o infinito do inconsciente; o inconsciente como aquilo que ainda não sabemos, que ainda não tem forma: o infinito vazio e sem forma.
Podemos, também, conjecturar uma possível intuição de Bion a partir da obra freudiana: algo é percebido, ou melhor, sensorializado pela consciência, um órgão capaz de apreender qualidades psíquicas, órgão que sofre o impacto do elemento bruto da experiência, o elemento beta, o enigmático da experiência (FIGUEIREDO; RIBEIRO; TAMBURRINO, 2011), que precisará ser sonhado pela função onírica alfa, uma função transformadora, para se tornar um elemento psíquico, um pensamento imaginativo, a reverie.
Ao usar de forma surpreendente a intuição analítica e a consciência como sinônimos, Bion ilumina outro sentido no texto freudiano, poderíamos dizer ressaltando as qualidades da consciência – “ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, p. 609) – em outras palavras, a consciência nada mais é, ou, ela é um importante órgão sensorial de percepção de qualidades psíquicas, fundamental para a observação analítica treinada e para a intuição psicanalítica.
Será que estamos teoricamente diante da carta roubada do famoso conto de Edgar Alan Poe (1809-1849)? A carta está na mesa, tão visível que passa a não ser vista, assim como aquilo que é considerado óbvio ou elementar, mas que nos escapa. Consciência como awareness, ou seja, um estado de mente receptivo para o que parece estar invisível devido ao fato de ser excessivamente visível. A carta roubada está visível para aqueles observadores em estado de capacidade negativa (BION, 1977), uma capacidade virtuosamente expectante (CHUSTER, 2019a) ou, também, uma consciência como awareness. O termo negativo é no sentido do polo que contém, recebe, permite a afetação enigmática. Se estamos na sessão em estado de capacidade negativa, podemos ver a carta roubada, e a imagem que se cria transforma tudo em um antes e um depois, como a carta no conto, promove uma cesura na sessão e, posteriormente, a possibilidade de uma construção narrativa e um sentido para a experiência, pois as palavras precisam tentar dizer o indizível, precisam tentar alcançar, mesmo que à distância e parcialmente, o enigmático de qualquer experiência emocional.
A consciência é o órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas, em outras palavras, um dos elementos que compõe a complexidade da intuição psicanalítica. A disciplina de observação do analista no campo analítico pode ser treinada, favorecendo a intuição. A observação analítica é treinada a partir da proposta metodológica de Bion (1965, 1967): sem memória, sem desejo, e sem compreensão prévia. Algo é captado por esse órgão sensorial e posteriormente sonhado, inconscientizado por meio da função alfa. A experiência é percebida, primeiramente, como um elemento bruto (beta), enigmático, que pode gerar estados de enlouquecimento sem a função sonho, a função alpha. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, como escreveu Kant (1724-1804), postulado filosófico que marcou o pensamento de Bion sobre a intuição psicanalítica.
Ogden (2016) escreve que o artigo de Bion (1967/2014) “Notas sobre memória e desejo”, é um texto sobre o pensamento intuitivo e como este pensamento se apresenta na situação analítica. O autor considera que esse pequeno e difícil artigo é um marco para a psicanálise, pois ele compreende que Bion propõe uma revisão da metodologia analítica.
Penso que a proposta de Bion no artigo de 1967 pode ser compreendida como uma cesura na metodologia analítica, ou seja, representa tanto uma continuidade da proposta freudiana da atenção flutuante, como uma ruptura, pois convoca a capacidade intuitiva do analista, não somente seu pensamento associativo e analítico, mas seu pensamento imaginativo, a imaginação criadora (CHUSTER, 2019), a capacidade de ser afetado pelo enigmático da experiência e construir um pensamento imaginativo, a reverie.
Em uma nota ainda inédita de Bion, publicada nas Obras completas, encontrei: a reverie seria uma forma de fabricar um pensamento, ainda sem pensador12 (BION, 1968/2014). Neste texto Bion se refere à reverie do analista, e não somente entre a mãe e seu bebê (BION, 1962), ideia que foi desenvolvida por outros autores (Ogden, Rocha Barros, Ferro, Civitarese). Compreendo a reverie como a capacidade imaginativa da mente, e quando a mente é imaginativa capta os mais tênues sinais de vida (OGDEN, 2013). A afetação enigmática seriam esses tênues sinais de vida psíquica, captados pela intuição do analista na cesura entre consciente/inconsciente e transformados em uma imagem pela função alfa.
Memória (passado), desejo (futuro) e compreensão prévia são opacidades que obstruem a capacidade de intuição do analista e a observação psicanaliticamente treinada. Bion (1992, p. 324) escreve que a intuição opera entre opacidades e transparências, ou seja, na cesura entre opacidades e transparências.
Bion (1970) faz uma analogia13 que nos ajuda a compreender esse processo psíquico: os negativos da fotografia antes da época digital. Faço aqui uma apropriação sutilmente diversa dessa analogia: o negativo é uma película transparente escura que recebe quaisquer impressões, ou poderíamos dizer, afetações enigmáticas. A mente do analista precisaria ter essa qualidade negativa, uma qualidade de recepção, de hospitalidade, de continência a qualquer afetação. No processo de revelação, ou melhor, realização, feito por elementos que precisam de um período para produzirem efeito e uma sala escura para que a afetação do negativo se realize em uma imagem, ou seja, um facho de intensa escuridão que precisa de tempo e espaço. Há uma composição complexa de elementos para que a realização da imagem ocorra. Memória, desejo e compreensão prévia podem ser a luz precipitada que queima o filme antes da realização da imagem. A imagem é criada a partir da afetação no polo negativo da mente do analista, a capacidade negativa, pela captação da consciência como awareness, a observação psicanalítica, sob a égide da função alpha, que transforma o enigmático da experiência em elementos psíquicos.
A observação psicanaliticamente treinada é a disciplina do analista para não queimar o filme com a sua equação pessoal (BION, 1992). O treinamento do analista é sua análise pessoal e sua disciplina ética analítica.14
Podemos pensar na intuição de Bion ao ler Freud, considerando a outra via da interpretação dos sonhos, a interpretação dos fatos, Bion:
...sugiro que alguém aqui poderia, ao invés de escrever um livro chamado “A interpretação dos sonhos”, escrever um livro chamado “A interpretação dos fatos”, traduzindo-os em linguagem dos sonhos – não apenas como um exercício perverso, mas a fim de conseguir um tráfego em duas mãos (BION, 1977/1992, p. 104).
A interpretação dos fatos seria a inconscientização da experiência, a transformação do enigmático em elemento onírico (alfa), o que é percebido pela consciência como awareness, ou seja, a capacidade de observação analítica de um pensamento em busca de um pensador, de um contido em busca de um continente, o bebê buscando a mente da mãe, o analisando buscando a mente do analista para dar forma, palavra e sentido a sua experiência, torná-la finita e narrável. Bion (1965) denominou tropismo15 essa busca.
A consciência é da natureza de um tropismo, escreve Bion (1965/2014), essa consciência como awareness é um estado propício para se notar coisas, um estado de prontidão presentificada, que capta algo, uma conjunção constante, uma forma, a carta roubada: invisível por ser excessivamente visível.
No início há um tropismo, uma força de atração para algo existir, para que ocorra a realização de uma experiência, como o bebê realiza a existência do seio no encontro com este, mas antes do encontro, há apenas um tropismo intuitivo de que há algo a ser encontrado, mas não se sabe o que realmente será encontrado. A pré-concepção do seio, ao encontrar uma realização, se transforma em uma concepção. O bebê busca o seio, busca o olhar da mãe, a mente da mãe, em uma cena de apaixonamento que funda o humano.16 A intuição psicanalítica captura algo que demanda uma existência, como um campo magnético, um tropismo, no qual é preciso encontrar sentido e forma para a experiência vivida, torná-la pensável, palavra narrada, finita e saturada.
Poderíamos dizer que Bion ilumina, por outro vértice, a compreensão freudiana de consciência como awareness, um estado de observação presentificado, um estado de notação: um órgão sensório que capta a realidade psíquica, capta as nuances sutis do vivido ainda não sonhado, ainda não representado, que precisa da imaginação criadora (CHUSTER, 2019) para se transformar em imagens – reveries – e posteriormente, em construções narrativas na situação analítica. Dizendo de outra forma, não se trata de uma consciência como racionalidade, mas uma consciência como awareness, um estado de prontidão presentificado que pode evoluir para uma futura notação, como a carta roubada no conto, que quando é vista, promove uma cesura na história, um antes e um depois.
A partir de Bion, os conceitos são compreendidos de forma espectral, dessa forma, a intuição teria tanto um polo consciente (awareness), no sentido da observação presentificada, como um polo inconsciente no qual a função alpha faz seu trabalho: a transformação da experiência emocional em estado bruto, o enigmático da experiência, em um elemento onírico, a imagem produzida pela reverie, um pensamento imaginativo. Em outras palavras, há um trânsito constante, absurdamente rápido, fugaz, e sempre instável, entre a cesura do finito (consciência, forma, área de diferenciação da mente) e o infinito (inconsciente, sem forma, área de indiferenciação da mente). No movimento e no espaço gerado pela cesura a intuição emerge como um raio em céu azul17, a afetação enigmática.
Poderíamos pensar que há uma função intuitiva (CHUSTER, 2021) em trânsito constante entre cesuras, na qual a capacidade de reverie/função alpha18 do analista se sustenta, uma capacidade imaginativa e de criação de elementos psíquicos. Podemos compreender a intuição psicanalítica, favorecida pela capacidade treinada de observação do analista, uma capacidade negativa, um estado de awareness, de observação presentificada, um tropismo da consciência na direção de uma notação que se dá na posterioridade da afetação enigmática. Em outros termos, primeiramente somos abduzidos pela experiência, somente na posterioridade podemos representar partes do que foi vivido.
Retomando a minha conjectura: a função intuitiva (CHUSTER, 2021) acontece entre cesuras, a passagem e oscilação contínua entre estados mentais: o não-sensorial/sensorial; finito/infinito; transformações em K/transformações em O; conhecido/desconhecido; eu/outro. Além de considerarmos uma contínua oscilação, a partir de uma compreensão espectral dos conceitos, há sempre um ponto de indecibilidade, ou seja, um ponto no qual não é possível saber em qual dos dois polos do espectro estamos. E, talvez, o ponto possa ser, também, uma área, um território de indiferenciação conceitual e fenomenológico. A imprecisão e a indecibilidade fazem parte das nuances das cesuras constitutivas do psíquico, com suas opacidades e transparências. Como escreve Ogden (2013, p. 21): “A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão”.
Para ilustrar essa complexidade conceitual, faço uso de uma imagem19:
O encontro entre o Rio Negro e o Rio Solimões na Amazônia é uma boa analogia para a cesura, há pontos de indecibilidade nos quais não sabemos mais se é Negro ou Solimões, analista ou paciente, alucinação ou intuição. O boto que emerge subitamente da água é, na sua parte invisível, a intuição psicanalítica; na sua parte visível, a reverie. O boto, ou melhor, a intuição e sua fenomenalização na reverie, emerge entre várias cesuras instáveis e oscilantes que são os estados mentais do analista na sessão.
A reverie, compreendida como a capacidade imaginativa da mente ou um pensamento imaginativo; ou uma imaginação criadora (CHUSTER, 2019), são nomeações e transformações bem-sucedidas da intuição freudiana do caráter alucinatório das construções do analista (FREUD, 1937). Por essa perspectiva podemos pensar na cesura intuição/alucinação, sendo que há um ponto de indecibilidade, um momento em que não sabemos se aquela imagem que nos arrebata na sessão analítica é uma alucinação ou se é uma intuição.
Concluindo, penso que a intuição psicanalítica é uma afetação enigmática que ocorre de forma fugaz no trânsito contínuo e oscilante entre diferentes cesuras, e que evolui por meio de uma imaginação criadora para uma imagem, um ideograma, a reverie, um pensamento imaginativo em busca de um pensador na dupla analista-analisando.
NOTAS
1 As ideias aqui expostas foram apresentadas no II Colóquio Jean Laplanche Brasil em 15 de outubro de 2021.
2 Faço aqui uma referência, que é uma reverência, ao que já foi bem apresentado por Paulo Ribeiro, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho, no texto Sobre intuição e inspiração. Algumas ideias acerca de Bion e Laplanche (2019). Destaco o principal ponto de convergência entre Bion e Laplanche referido pelos autores: uma transferência com o não saber.
3 Transformações em K são as transformações em conhecer (knowledge), e transformações em O são as transformações em ser.
4 Com relação à localização na obra de Bion das suas ideias sobre intuição, elas aparecem a partir de 1965, no livro Transformações (1965), na conferência ministrada em 1965 em Londres, intitulada Memória e Desejo, no pequeno, porém notável texto de 1967, Notas sobre memória e desejo, nos Comentários ao livro Estudos psicanalíticos revisados (1967), nos Seminários em Los Angeles (1968/2013) e nos primeiros capítulos de Atenção e interpretação de 1970, e, também, no livro Cogitações (1992).
5 Disponível em: <https://www.arteeblog.com/2012/08/pablo-picasso-pintando-sobre-vidro. html.>. Acesso em: 12 dez. 2021.
6 No texto original: “It also resorts to omnipotence; thus, omnipotence and helplessness are inseparably associated” (BION, 1979/2014, p. 137).
7 O texto de Freud, referido por Bion, no livro Interpretação dos sonhos: “Que papel sobra, em nossa exposição, para a outrora todo-poderosa consciência, que encobria todo o resto? Ela nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1900/2018, v. 4, p. 609).
8 No texto original: “Hallucination may be more profitably seen as a dimension of the analytic situation in which, together with the remaining ‘dimensions’, these objects are sense-able (if we include analytic intuition or consciousness, taking a lead from Freud, as a sense-organ of psychic quality)” (BION, 1965/2014, v. 5, p. 229).
9 No original: Cs (A1) is of the nature of a tropism. … This ‘consciousness’ is an awareness of a lack of existence that demands an existence, a thought in search of a meaning, a definitory hypothesis in search of a realization approximating to it, a psyche seeking for a physical habitation to give it existence, ♀ seeking ♂ (BION, 1965/2014, v. 5, p. 223).
10 “Podia-se verificar a maneira como ele, inicialmente, ficava indeciso em face de alguma nova manifestação difícil de interpretar; podia-se seguir os caminhos pelos quais se esforçava por chegar a uma compreensão; podia-se estudar o modo como avaliava as dificuldades e vencia; e podia-se observar, com surpresa, que ele nunca se cansava de observar o mesmo fenômeno, até que seus esforços repetidos e sem prevenções lhe permitissem chegar a uma visão correta de seu significado” (FREUD, 1886, p. 44).
11 O elemento psíquico emerge por serendipidade (CHUSTER, 2018), ou seja, quando encontramos algo sem procurar, e o que é encontrado faz toda a diferença.
12 No texto original: “Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’” (BION, 1968/ 2014, v. 15, p. 77).
13 Encontrei essa analogia de Bion primeiramente nos textos de Chuster (1996).
14 “Bion também desenvolveu um instrumento técnico que teria a função de afinar a intuição do analista, a grade. A grade foi proposta por ele para ser usada fora da sessão, como um tipo de academia para a mente do analista” (CHUSTER, 2019).
15 Sandler (2021, p. 1154) considera que o termo tropismo é um antecessor do conceito de reverie.
16 Os apaixonados também buscam o olhar do outro, a comunicação se dando pelo olhar, continente e contido, penetrado e penetrável.
17 Expressão usada por João Carlos Braga em aula, 2021.
18 Chuster (2019) coloca reverie e função alfa em um espectro, no qual a reverie seria predominantemente sensorial e a função alfa predominantemente simbólica; em seus textos encontramos essa grafia: reverie/função alpha.
19 Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/299278337712804587/?amp_client_id=CLIENT_ ID(_)&mweb_unauth_id={{default.session}}&simplified=true.>. Acesso em: 12 dez. 2021.
20 Sob essa perspectiva, podemos compreender a inspiração como o polo negativo que recepciona, hospeda e contém a afetação enigmática da experiência emocional na sessão.
REFERÊNCIAS
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