Eros no encontro analítico: a sedução suficientemente boa [1]
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- 26 de out.
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Atualizado: 28 de out.
Este artigo foi publicado em 2023 no Cadernos de Psicanálise (CPRJ).
Autoras: Fatima Flórido Cesar de Alencastro Graça e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro.
Resumo: A partir do relato de um atendimento analítico online, o texto apresenta uma reflexão sobre a função vitalizadora do analista, destacando o que denominamos “sedução suficientemente boa” à semelhança da “mãe suficientemente boa” de Winnicott: a sedução fazendo parte do encontro analítico, devendo manter-se operando a partir de uma posição ética. Propomos que a sedução se equipare à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando; desenvolvendo tais ideias a partir de Luís Claudio Figueiredo e Dianne Elise. Pensamos a sedução como estratégia terapêutica de vitalização – estando esta ligada a Eros em seu sentido amplo. Fizemos uso das contribuições de Dianne Elise quando esta associa a díade mãe-bebê à dupla analítica, propondo a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. Destacamos ainda que, na modalidade de um atendimento remoto, o caso apresentado teve salvaguardado o vigor do encontro.
Palavras-chave: Atendimento online. Sedução suficientemente boa. Erotização. Função vitalizadora do analista.
Pérolas Aos Poucos [2]
eu jogo pérolas aos poucos ao mar
Eu quero ver as ondas se quebrar
Eu jogo pérolas pro céu
Pra quem pra você pra ninguém
Que vão cair na lama de onde vêm (...)
José Miguel Wisnik
A pesca: o relato de uma experiência clínica online
Nomeio-o Ahab, este senhor que me procurou. De onde vem esse nome quando emerge de minha reverie [3]? Será ele um caçador implacável, obstinado em alcançar com seu arpão raivoso sua Moby Dick? Ou serei eu a pescadora? Eu, na insistência de alcançá-lo, enquanto ele se debate – cachalote ardente – nós ardentes? Quero que fique e me empenho nesta árdua pescaria em que a cada dia embarco, assim que o sol ilumina o mar das emoções turvas ou negadas.
Este senhor me procura para falar de seu filho de mais de 40 anos (Ahab tem 80), que está “bebendo demais e, possivelmente, usando drogas”. Convido-o a um encontro (virtual) comigo e assim começamos nossa pescaria. Não sei bem quem é o pescador ou quem é o poderoso mamífero. O não saber me protege e prossigo.
Ahab, senhor ativo, me conta histórias desse filho-menino que chega embriagado na casa paterna, onde ainda mora. Pula de trabalho em trabalho, mal se estabeleceu na vida adulta. Ahab quer ajudar o filho, mas não sabe como e me pergunta: como? Eu também não sei, mas pressinto que uma indagação profunda emerge desses mares ocultos: como é ser pai? Jogo pérolas aos poucos, pesco pérolas aos poucos quando intuo que seu filho-menino pode ser enigma e espelho. Ahab também gosta de bares e já fora alcoolista, também usara drogas e se perdera na vida profissional. A esposa morrera devido a um aneurisma quando os filhos eram adolescentes. Tinham uma relação estéril. Ficara só desde então e me oferta pérola ferida quando percebo sua solidão, seu distanciamento dos filhos, seu modo desastrado: não é somente ser pai que Ahab não sabe, também não sabe viver ou o que fazer com as emoções. Desde nosso primeiro encontro, vislumbro uma sensibilidade que se oculta e não se endereça a ninguém, estrangulada sob a aparência de secura e aridez.
Sugiro que continuemos a conversar: “talvez a partir de nossas palavras você consiga se aproximar de seu filho”. Homem de poucas palavras, sente um incômodo ao ter que falar comigo. Reconheço a dificuldade, mas uma ligação se estabelecera: é certo que ele se debate, mas eu pressinto um longínquo e antigo pedido de ajuda. Eros comparece, embora sob a forma de frouxos nós que preciso/precisamos tecer novamente a cada encontro.
E assim começou nossa dança-coreografia: não terá sido também uma louca coreografia a que envolvera Ahab e Moby Dick? A violência amorosa também vivencio com meu Ahab. Mas vamos aos poucos: aqui tudo é delicado. O nosso enlace – o contrato possível – a cada novo encontro se apresenta através de meu convite entre tímido e vigoroso: “vamos continuar a conversar semana que vem?”
Poderia também nomeá-lo Shahriar, o sultão de Mil e uma noites, enquanto eu sigo como Sheherazade, pois, tal qual a filha do grão-vizir, renovo a cada encontro nosso enlace-contrato. Conto nova história para que permaneça o vínculo, para que eu não morra enquanto analista, para que seu interesse por seu próprio mundo de emoções, aparentemente nunca dantes compartilhado, permaneça vivo.
Na verdade, como diz Gerber: “analista e analisando, somos ambos êmulos de Sheherazade, contando infindáveis histórias um ao outro” (2013, p. 13). Ele também me conta histórias, e não apenas com palavras, mas na forma como se expressa. Seu rosto fala: seu olhar evita o meu, subitamente interrompe o cenário interno ao levantar o olhar na direção do teto, e ri uma risada vitalizada. Nesses momentos, uma vivacidade cativante faz sua aparição – também fui pescada desde o início. Com um flash de alegria autêntica, me convida a entrar em sua vida, nos lugares em que algo saudável se preserva. Eu o convido a se espreitar para fora dos recônditos cantos de sua alma conturbada e a pertencer à comunidade humana. Para isso é preciso, se necessário, atravessar desertos, e assim a vitalidade terá chance de emergir na dupla analítica.
Apresenta-se como homem de devaneios e, embora sem saber falar de sentimentos, diz a mim deles. Fala de um amor antigo que o visita em recordações. Lamenta que não tem assunto, apenas “escuta sem maior interesse e não sabe dizer não”. Digo que tanto sim, despossuído de seu próprio desejo, é perigoso: me lembra um vulcão amarrado pelo bico – antiga imagem que me ocorre: novamente a reverie vem ao meu auxílio. Diz então que vai mesmo a outros extremos. Saindo de uma festa alcoolizado fora perseguido pela polícia, mas, não parando, atiraram dez vezes no seu carro. Vai para a delegacia e, ao sair, põe fogo num dos carros da polícia. Logo absolvido, o promotor acha graça, ele ri ao contar sua história incendiária e eu nesse momento encontro Ahab ou Moby Dick: não apenas terna sensibilidade, eis a violência – a turbulência mascarada. Posso também ser alvo de balas perdidas ou de ímpetos incendiários.
Na sessão seguinte é o cachalote furioso que comparece à sessão. Não quer continuar as sessões, não vê progresso na relação com o filho. Como já ocorrera antes, eu o convenço a continuar. É sempre assim, enfatiza: faz o que os outros querem. Um embate tenaz se estabelece: falo que sinto que ele gosta. Ele diz do mal-estar que atravessa durante a semana até nosso encontro. Mostra-se irritado, mostra arpões: viera pelo filho, não por ele. Ficamos um tempo nesta coreografia de desencontros. Penso que não há mais atalhos para alcançá-lo e tenho vontade de desistir, mas persisto, ligada por algo que intuíra nele desde o início. Falo de sua sensibilidade. Ele diz que sabe dela, mas não gosta. Digo que a fragilidade é vizinha da sensibilidade. Será esse o temor?
Conto uma história: quando jovem, quase adolescente, era muito tímida, temerosa de contato. Tinha uma creche na casa do meu avô, que era ligada à casa de minha mãe. Todo ano fazíamos um forró e, da casa materna, já ouvia os barulhos da música, hesitante entre o desejo e a contenção. Mas quando chegava na festa, já gostava e dançava sem medo, entusiasmada ao som da sanfona.
Meu cachalote amansa ou Ahab, ou Shahriar. Retorna Sheherazade: me conta histórias de escritos e de pinturas. Quero ver o que cria. Lá pelas tantas, recordando os tempos da faculdade, fala do horror que fora a ditadura. Militou? Pergunto. Mas tem amigos que foram presos e torturados. Sua compaixão aparece: como podem negar que houve ditadura?
Vou sentindo seu retorno à sala de análise (online), e agora vem com seu próprio nome. Vai continuar, vamos marcar um próximo encontro. Estou cansada, lutamos tanto, me dera trabalho, eu a ele também. O que é vivo dá trabalho!
A apresentação dos encontros com meu paciente, com suas idas e vindas, tem como objetivo destacar meu movimento primordial em sua direção e relacioná-lo à vitalização necessária a alguém que, tendo a experiência de uma vida secreta, precisava ser convocado para o partilhar dos sentimentos e para o mundo humano.
A imagem que surge da reverie não foi aleatória. Em As mil e uma noites, Sheherazade “seduzia” o sultão com suas histórias, mantendo-o ligado à vida e a ela. A sedução, aqui, tem sentido de ligação: Eros se sobrepõe aos impulsos assassinos que ocultavam a dor pela traição da primeira esposa. Também meu paciente tinha sua dor e precisava de mim, enquanto objeto externo, para que Eros circulasse no vínculo.
Como objeto “sedutor”, meu primeiro movimento fora desviar Ahab de sua demanda inicial – ajudar o filho – para que pudesse caminhar em sua própria direção e olhar a si mesmo. Por meio de meu investimento, me ofereço na esperança de que seus próprios recursos de vida e sua capacidade de se ligar possam emergir em nossa relação. Quando falo que ele gosta do encontro, ele nega, mas insisto, acreditando que o prazer circula, contribui para o fortalecimento da ligação e enfraquece o temor despertado pela proximidade afetiva.
Como podemos pensar a sedução e a função vitalizadora da analista que acontece nesse atendimento online?
Reflexões sobre sedução e a função vitalizadora do analista
A palavra sedução provém do latim seductio, que significa “afastar (uma pessoa da lealdade)”. O prefixo se – denota afastamento, e ducere, “guiar, portar, levar” [4] . Os riscos da sedução já estão revelados na etimologia do termo: ação que pode afastar ou levar ao encontro, e é nesse estreito e acidentado caminho que vamos discorrer.
Comecemos com a conhecida passagem de Freud sobre a sedução materna, tirada do Esboço de psicanálise (1938), e cujos desdobramentos acompanhamos até hoje, em diversos autores:
...através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações (alimentação/cuidados corporais) reside a raiz da importância única sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores − para ambos os sexos (FREUD, 1938/1980, p. 217).
A mãe é a primeira sedutora: é quem libidiniza o bebê e marca no corpo do filho ou da filha uma geografia de prazer/desprazer (RIBEIRO, 2011), convidando o seu bebê à vida. Propomos que a sedução se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando. Iremos desenvolver essa ideia a partir de autores da psicanálise contemporânea, principalmente Luis Cláudio Figueiredo e Dianne Elise.
É preciso ressaltar que a sedução, tema polêmico para a psicanálise, vem sendo resgatada. É fundamental considerar seus riscos e fazer com que ela opere a partir de uma posição ética, ou seja, não atrelada ao narcisismo do analista, mas sim às necessidades do paciente. Optamos por nomeá-la “sedução suficientemente boa [5]” à semelhança da ”mãe suficientemente boa” de Winnicott (1951, p. 28). Por fazer parte do encontro analítico, a sedução precisa ser suficientemente boa, isto é, apresentar-se numa “temperatura” ótima: nem distante ou fria, de modo a impossibilitar o contato, nem excessiva, determinando uma sobre-excitação quente demais. É esta medida ótima que a expressão “suficientemente boa” denota. Os extremos conduzem a vazios ou abismos tórridos; precisamos buscar um equilíbrio entre ser distante ou débil demais no contato, e ser intenso demais, portanto, intrusivos.
Dean-Gomes faz uso da expressão “sedução ética” (2019, p. 436) para indicar a sedução que é um chamado para a vida. Ele destaca que, se a pulsão de morte não possui objeto e a pulsão de vida precisa de um objeto interessado e disponível, o objeto é sedutor e desvia o infante das forças mortíferas, conduzindo de modo primordial o psiquismo para que este opere a partir de Eros e do princípio do prazer.
Sim, há riscos, e precisamos estar atentos para o uso da sedução de modo ético, como sugere Dean-Gomes, especialmente naqueles casos em que a vitalidade se faz fundamental e deve ser conferida ou restituída ao paciente. Ante os temores e inibições do paciente, a analista o encoraja, empresta sua vitalidade, usando sua voz, ora mansa, ora com vigor, os gestos que atravessam a virtualidade, com os quais a analista pretende despertá-lo para sua própria vitalidade.
Contribuições de Luís Claudio Figueiredo
É necessário levar adiante uma reflexão metapsicológica sobre a sedução, vinculando-a à vitalização. Para isso, iniciamos apresentando o artigo de Luís Claudio Figueiredo, Figuras da sedução em análise: a vitalização necessária (2019), cujo objetivo é a reavaliação da sedução em seus vários aspectos, com base em diferentes pensadores da psicanálise.
A sedução é abordada por Figueiredo (2019) em sua particular importância na constituição do psiquismo e, também, na etiologia dos adoecimentos e no atendimento a pacientes apassivados – ou seja, os pacientes da matriz ferencziana (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018). Não podemos, alerta Figueiredo, desconsiderar os efeitos antianalíticos e antissimbolizantes da sedução e da excitação. Sendo assim, no decorrer deste artigo, nosso objetivo é tanto o reconhecimento das estratégias vitalizantes, quanto a atenção ao seu contraponto: o da vitalização e sedução arriscadas, portanto, antianalíticas.
Figueiredo (2019) diz que até hoje a sedução é um tema polêmico, entretanto, embora os riscos e possíveis violações do setting não devam ser ignorados, passou-se a destacar a dimensão erótica e sedutora do encontro analítico como um aspecto fundamental dos tratamentos. Tal dimensão é o eixo fundamental deste artigo e, para ressaltá-la, começamos com o caso de Ahab, no qual estão presentes os aspectos da vitalização, de Eros e da sedução. Com o texto de Figueiredo, abordaremos uma prática analítica que reconhece a sedução em sua feição benigna (2019, p. 54), ao mesmo tempo em que se mantém atenta quanto aos riscos e desvios de uma imprescindível posição ética.
A teoria da sedução generalizada, de Laplanche, resgata a importância constitutiva da sedução. Seguindo o pensamento deste autor, Figueiredo destaca que a constituição psíquica depende invariavelmente da sedução de um psiquismo infantil pela ação sedutora inconsciente do adulto, a qual se dá, por sua vez, nos cuidados proporcionados ao infante. Trata-se de um trauma constitutivo fundamental: “assim como o bebê precisa de cuidados, precisa também, para iniciar sua marcha psíquica, de uma sedução adulta” (FIGUEIREDO, 2019, p. 52). Eis o resgate da sedução e o reconhecimento de uma dimensão traumática constituinte, e não desestruturadora. De qualquer modo, a reabilitação da sedução por alguns poucos analistas não alterou o caráter majoritariamente negativo que a maioria lhe atribui. Figueiredo propõe a reconstituição dessa questão e, para tanto, inicia com Ferenczi.
Ferenczi pressupõe uma condição de passividade original do infante que convoca o adulto a um investimento narcísico e erótico (erótico, aqui, entendido em seu sentido amplo que remete às forças de ligação). Somos conduzidos a pensar em “sedução” distante da conotação negativa do conceito, embora o próprio Ferenczi não use esse termo.
Importante ressaltar a concepção de Ferenczi de que, no início da vida, a pulsão de morte é muito mais operante que a de vida. Daí decorre a necessidade de impulsões de vida, como a atenção dedicada do adulto que convida o infante à vida de modo genuíno e autêntico. Diferentemente de Laplanche, que supunha que “a pulsionalidade fosse inoculada no bebê pela sexualidade adulta recalcada, inconsciente” (FIGUEIREDO, 2019, p. 53), ressaltamos a função fundamental do objeto para resgatar o infante da regressão à passividade absoluta, da morte ou de estados de cisão. Por outro lado, a condição de passividade primordial é necessária à sobrevivência do bebê: uma condição de receptividade aos cuidados vitalizadores do adulto, o outro-adulto como fonte de vida.
Antes de abordar a sedução e a estratégia vitalizante a ela relacionada, Figueiredo discorre sobre os adoecimentos por passivação a partir do pensamento ferencziano. Estes pacientes necessitam ainda mais dessa estratégia terapêutica de vitalização. É importante acompanhar o pensamento do autor para que resguardemos uma posição ética contundente, já que apresentamos como proposição que tal estratégia terapêutica de vitalização se estenda a pacientes menos adoecidos. É o caso de Ahab, que apresenta um retraimento não severo, mas, por outro lado, se encontra aprisionado por uma dificuldade de estabelecer contato: onde, quando, com quem aconteceu um encontro? A analista se disponibiliza como um outro que o convida para andanças vivas e compartilhadas, para além de suas solitárias perambulações.
Voltando a Figueiredo (2019), assim como ocorre a vitalização através do ambiente que investe narcisicamente o infante, o contrário também pode acontecer, a passivação, pela ausência radical de cuidados ou por excessos e abusos: “Em ambas as vertentes, a passivação é mortífera: mata ou deixa partes mortas ou cindidas por onde passa. Em especial, mata o potencial de atividade espontânea preservado na condição passiva associada às pulsões de vida” (FIGUEIREDO, 2019, p. 54)
Figueiredo destaca que Balint, Winnicott e Kohut seguiram o caminho aberto por Ferenczi no que diz respeito tanto aos adoecimentos por passivação, quanto à passividade original. Mesmo que já se comporte um potencial para alguma atividade desde o nascimento, é condição de vida, como já vimos falando, um “ambiente facilitador” (que sustenta e cuida), como expressa Winnicott (apud FIGUEIREDO, 2019, p. 38) Aqui, retomamos o ponto fundamental deste artigo: um ambiente de cuidado é também um ambiente com qualidades de uma sedução na medida certa, que convida à vida e ao vínculo.
Nestes autores encontram-se traços em comum da estratégia terapêutica junto aos pacientes adoecidos por passivação: a estratégia vitalizante, que Figueiredo chama de sedução “benigna”, e será tão relevante ao tratamento destes sujeitos:
Reconquistar a confiança de indivíduos profundamente desconfiados com o ambiente e desalentados com a vida, reacender a esperança de pacientes profundamente desesperançados, convidar a brincar, a jogar e a fantasiar, reconhecer necessidades rudimentares de se sentir vivo e com valor, tudo isso, de uma forma ou de outra, pertence ao campo da clínica pós-ferencziana (2019, p. 54).
A estratégia vitalizante: a erotização
Figueiredo destaca que, apesar de fazerem uso terapêutico da sedução – “sedução para a vida” (2019, p. 55) –, estes autores não falam dela. Daí advêm consequências problemáticas: primeiro, a sedução fica reduzida à sua conotação negativa; mas, adverte o autor, como já vimos em Laplanche, sem sedução não há constituição do psiquismo, nem vida.
Em segundo lugar, algo que nos é particularmente relevante: o não reconhecimento da dimensão da sexualidade em sua acepção ampla. Sedução se liga à libido, sexualidade e principalmente a Eros, este referido “não apenas a excitação, descarga e prazer, mas também aos processos de ligação intrapsíquica e intersubjetiva sem as quais a vida não se instala e expande” (FIGUEIREDO, 2019, p. 55, grifo do autor). Não se trata apenas de uma estratégia terapêutica na direção da “ex-citação”, um “chamar para fora”, como explica Figueiredo (2019, p. 55), mas também no sentido de facilitar ligações. Estamos nos referindo a um trabalho de vitalização que não é a tentativa de animar pacientes deprimidos: o prazer compartilhado deve estar a serviço da simbolização e da transformação das experiências emocionais.
Por fim, um terceiro problema: na ocultação da dimensão erótica e no não reconhecimento da sexualidade em sua dimensão ampla, corremos o risco de não atentarmos para os perigos da erotização, mesmo quando esta é necessária. A erotização tanto pode produzir ligações, como, também, adoecimentos:
O excesso de erotização ou sua inadequação às capacidades egoicas e de simbolização do sujeito é certamente algo prematuro, invasivo e traumatizante no velho sentido do termo. (...) ou seja, a vitalização inclui o risco de um excesso que contraria e obstrui a marcha do psiquismo no rumo de sua expansão e integração (FIGUEIREDO, 2019, p. 55).
Segundo o autor, a dimensão da sexualidade na sedução – em outras palavras, –a erotização e vitalização, podem conduzir a um excesso patogênico e contrário à expansão do psiquismo, nosso objetivo terapêutico principal. Todas essas advertências direcionam a pensar nos riscos no atendimento de Ahab: como construir um campo de erotização que não perca seu caráter terapêutico ao “derrapar” em excessos e desvios? Quando a excitação ultrapassa a ligação? Qual a medida?
Mesmo considerando seus riscos, Figueiredo (2019) trata das estratégias de “sedução para a vida” como necessárias em todos os casos de adoecimento por passivação. No presente artigo, em particular no caso de Ahab, propomos a ampliação do uso da vitalização, em menor ou maior grau, presente em todo processo analítico, assim pensamos. Uma proposta que precisa ser conduzida com o máximo rigor ético, pois pressupõe o uso da sedução e da erotização no resgate de áreas mortas e desvitalizadas, invariavelmente presentes, mesmo em casos não tão graves. Aqui o cuidado com extravios se faz ainda mais necessário, pois os riscos podem ser maiores, e o compromisso ético do analista é imprescindível.
Figueiredo (2019) refere-se à clínica de Anne Alvarez, que atende crianças gravemente adoecidas e faz uso do que denominou de reclaiming em seu primeiro livro, Companhia viva (1992). Alvarez sugere tal estratégia terapêutica como correspondente a uma modalidade de sedução. Referindo-se a seu paciente Robbie, o qual apresentava um retraimento severo, ela diz:
Pareceu-me que, em seu estado mais doente, mais retraído, ele emergiu e veio para onde eu consegui chegar, quando fiz um movimento fundamental para alcançá-lo onde quer que ele estivesse em seu estado perdido de estupor. À época, escolhi a palavra ”reclamação” para descrever a situação. Uma terra improdutiva não pede para ser recuperada, mas sua potencialidade oculta para germinar pode florescer quando é reclamada (1992, p. 101).
Em seu segundo livro, The thinking heart (2012), Alvarez dá sequência à noção de reclaiming, a partir da “vitalização intensificada” (FIGUEIREDO, 2019, p. 58), estratégia terapêutica descrita de forma teórica e com exemplos clínicos. Alvarez (2012), entretanto, não faz apenas o elogio da sedução, mas também, aborda outras manifestações que surgem da excitação provocada: jogos perversos e brincadeiras viciadas e frenéticas, ou seja, manifestações de crueldade, envolvendo a analista (Alvarez) em cenas de violência sexual ou abusiva, que surgem a partir do que Figueiredo denomina “sobre-excitação” (2019, p. 58). Da instalação de vida (a vitalização intensificada), o que surgia eram soluções mortíferas, ou seja, a proximidade entre sexualidade e pulsão de morte.
Alvarez, atenta ao que acontecia, afirma: “Desencorajar as excitações perversas precisa ser acompanhado da afirmativa confiável de que há outras maneiras de se sentir vivo. Caso contrário, o paciente pensa que só há duas alternativas: o excesso de excitação ou o abismo” (2012, p. 158).
Figueiredo (2019) ressalta a não recusa da sedução por Alvarez, ou seja, isso seria uma forma de reclaiming, mesmo considerando os riscos de extravios capazes de obstruir os processos de simbolização. Sumarizando, a vitalização intensificada comporta sempre uma dimensão erótica e seus inevitáveis riscos.
É uma clínica arriscada, que apenas conseguirá encaminhar o tratamento na direção de modos saudáveis de vitalizar a partir de uma posição analítica que salvaguarde o que denominamos, a partir de Dean-Gomes, uma “sedução ética”. Estamos propondo também a denominação de uma “sedução suficientemente boa”, ou seja, que não se extravie, nem por falta nem por excessos de investimentos vitalizantes.
Indo além da sedução como estratégia terapêutica, acreditamos, como sugere Roussillon (2019), que a sedução está presente no encontro analítico, na medida em que, ao não se escapar da questão da transferência, tampouco se escapa dos seus efeitos, especialmente da “sedução”. Acompanhemos suas palavras:
Os efeitos da “sedução” dependem, de fato, apenas em parte daquilo que o clínico faz ou diz, pois são inerentes ao próprio processo transferencial, isto é, à posição na qual o sujeito o situa no encontro analítico, e isso só depende muito parcialmente dele. Queira ou não o clínico, a questão da sedução está presente no encontro clínico, em todos os encontros clínicos, pois ela é também um efeito induzido pelo processo transferencial que lhe é consubstancial. O que o clínico diz, faz, deixa de fazer ou dizer é “interpretado” pelo sujeito em função da posição transferencial na qual ele situou o clínico. Como não se escapa da transferência, tampouco se escapa dos efeitos de sedução, de sugestão ou de influência que ela implica. O problema, portanto, não é a sedução – ela é inevitável – e muito frequentemente, ao querer escapar da sedução “libidinal”, produz-se uma “sedução superegoica” – e querer escapar a todo custo desta faz, com frequência, com que se caia na “sedução narcísica” etc. Vai-se de mal a pior, desenvolvendo modos de sedução cada vez mais nocivos – posto que cada vez mais difíceis de desmascarar; logo, de ultrapassar. O problema não é a sedução em si, é a sua forma e a sua utilização (ROUSSILLON, 2019, p. 57).
É verdade que as colocações do autor se referem à sedução de modo diverso do que vimos até então tratando. Estamos apresentando a sedução como estratégia terapêutica, o que diverge da proposta de Roussillon de pensá-la como efeito da transferência. Partindo da inevitável presença da sedução no campo analítico, propomos, a despeito das diferenças entre elas, que as reflexões do autor se entrelacem às nossas. A questão principal é o que fazer com a sedução, incontornável, que ocorre no processo analítico? Como encaminhar as poderosas forças de Eros para os processos de vitalização?
Se o objetivo inicial deste artigo, a partir da história com Ahab, era o entendimento das várias dimensões da sedução, optamos por focar a sedução em sua perspectiva de estratégia terapêutica de vitalização. Entretanto, não podemos deixar de pontuar que a sedução, como convite à vida, inicia-se nos cuidados da mãe com seu bebê, a “mãe suficientemente sedutora”, e é nesse mesmo começo que a erogeneização se faz imprescindível.
Retomando, propomos que a sedução, desse modo considerada, se equipara à erotização, tanto na díade mãe-bebê, quanto no par analista-analisando, como dito acima. Tendo refletido até aqui sobre a sedução, temos como propósito, em seguida, entender a erotização, a partir de um texto da psicanalista Dianne Elise (2017), autora destacada por Figueiredo (2019) em seu texto sobre as figuras da sedução.
A coreografia do erotismo analítico: algumas ideias de Dianne Elise
Trabalharemos agora o artigo Moving from within the maternal: the choreography of analytic eroticism, de Dianne Elise (2017). O título do artigo comunica a associação, proposta pela autora, entre a díade mãe-bebê e o par analista- -paciente, e expressa a metáfora da dança como paralela à vitalidade criativa e erótica que entrelaça os movimentos das duplas referidas. De modo específico, o movimento de uma sessão é entendido a partir de um erotismo analítico, algo que expande o conceito de transferência e contratransferência eróticas e que procuraremos entender a partir das palavras da própria autora.
Clinicamente, quando a criação de uma narrativa simbólica passa para o verbal, enquanto retém este componente afetivo corporificado, a transformação da dor psíquica torna-se possível. A capacidade estética para manter essa vitalidade incorporada viva na relação analítica é a qualidade a que me refiro como erotismo analítico (ELISE, 2017, p. 33) [6].
Elise parte das ideias de Kristeva (2014) sobre a importância do erotismo materno: o encontro da mãe como ser erótico traz à existência o eu erótico da criança, não apenas no aspecto especificamente sexual, mas no sentido mais amplo de vitalidade e curiosidade em relação ao viver: “Eros, em vez de adaptação funcional” (ELISE, 2017, p. 34). É a partir deste sentido de Eros que complementamos o que estamos discorrendo neste artigo: Eros como força vital, força de ligação.
Resgatando Eros para pensar a relação mãe-bebê e adiante, o par analítico, a autora continua a definir o erotismo materno como vitalidade corporificada deste espaço da díade: uma atmosfera afetiva que poderia ser pensada em termos winnicottianos como “mãe ambiente”, mas por ela conceituado como “viva com o erótico” (Id., 2017, p. 36). A metáfora da dança nos ajuda a entender o impulso materno derivado de seu erotismo que, ritmicamente, de modo libidinal, energiza o dueto mãe-bebê, liberando energias libidinais e imaginação criativa:
Sublinho que essa dança, com seus primórdios, tanto pré quanto pós-natal, é a forma de arte mais plenamente corporificada, dando forma à vida afetiva através do movimento. Cada ser humano começa pré-natalmente, com a mãe como parceiro de dança. Preso no abraço do corpo oscilante da mãe, o bebê pré-natal é valsado ao redor do útero, colocado em movimento, sempre acompanhado pela batida rítmica do coração da mãe, a música de sua voz, mesmo quando ela não está realmente cantando. O feto eventualmente responde com um solo – um primeiro chute, tão emocionante para a mãe (e para o feto?). Certamente deve haver, neste dueto mãe-bebê, continuidade do útero ao abraço de balanço dos braços e colo da mãe, com a amamentação devolvendo o bebê a proximidade com a batida musical do coração da mãe emanando das profundezas de seu corpo. (ELISE, 2017, p. 37).
As palavras da autora são aqui acompanhadas, pois nos possibilitam a articulação entre Eros, vitalização, libidinização e sedução, seja na vitalização do par mãe-bebê, seja no encontro analítico.
A partir da conceituação de Julia Kristeva sobre o erotismo materno, Elise enfatiza o erótico como parte/ingrediente importante da situação analítica: “uma espontaneidade viva que faz parte do self criativo tanto do analista como do paciente” (Id., 2017, p. 40). Também no trabalho analítico, é sugerido um processo coreográfico: uma dança que não constitui o produto criativo apenas da mente do analista, também a “música” do paciente está incorporada nas comunicações verbais e não-verbais.
Se o erotimo maternal falhou – e, portanto, também a dança mãe-bebê –, será nosso desafio trabalhar com um paciente sem música (podemos aqui pensar nos casos difíceis e nos pacientes desvitalizados, engessados em sua paralisia e ausência de movimento). Nesses casos, Elise destaca o erotismo analítico como essencial para a criação de uma narrativa que faça sentido. É especialmente com pacientes amortecidos que o erotismo analítico se torna um elemento tão vital.
Elise associa a vitalização da situação clínica a um campo de força libidinal, considerando que tanto o paciente quanto o analista envolvem suas energias eróticas e ressaltando que tal envolvimento não é específico do desejo erótico, embora possa incluí-lo.
No caso de Ahab, usamos a metáfora da pesca, mas bem poderíamos ter imaginado uma dança-coreografia em que a analista o convida para formar um par analítico. Fica a questão se, como Elise afirmou, o desejo analítico o manteve, pelas tantas sessões em que eu o convocava a retornar, mas se também não foi o impulso para que, então, após um curto período, largasse o palco e fugisse de minhas narrativas para se resguardar em seu mundo monótono e deslibidinizado. Foi embora afirmando veemente que talvez gostasse mas, acostumado a aceitar o desejo do outro, queria agora experimentar dizer “não”. Não queria mais; se sentisse saudade, me procuraria. Uma afirmação a partir do negativo? A enunciação de sua potência? Um fio erótico permanecendo na dança interrompida? As coisas esfriando na pista de dança, mas uma chama tênue se manteve na comunicação final? Ou a excitação, como afirma Figueiredo, colocando a perder a possibilidade de encontro?
As tantas metáforas de movimento que usamos neste artigo – pesca, caça e agora dança – parecem comunicar as tentativas de aproximação e as idas e vindas de um par analítico; remetem também à arriscada sedução, que anuncia os perigos dos mares em turbulência, e dos avanços ora da caça, ora do caçador.
Na dança erótica entre analista e analisando, a ameaça de tangos tórridos ou salsas ardentes terá conduzido o paciente de volta ao seu claustro e aos seus temores de viver? Viver é perigoso: o recolhimento trazia cifrado seu susto tal qual vulcão amarrado pelo bico.
Ao acompanharmos Elise, a teoria iluminou a presença de Eros no encontro analítico, quando, não raro, desprezamos a dimensão libidinal e libidinizadora do trabalho terapêutico. Lançou luz ao que se dançava em inocência: os riscos de o bico do vulcão desamarrar e inundar de lava o setting analítico. Eis o perigo a que se refere Figueiredo: uma clínica com tamanha implicação demanda reserva (2000, p. 31) [7] . Implicação e reserva diante da dimensão sexual da sedução enquanto estratégia de vitalização.
Por outro lado, como não arriscar? Era necessária a busca do vivo para resgatar Ahab do mundo silencioso e amortecido. Nessa direção, Elise (2017, p. 48) destaca que a ausência da vitalidade como núcleo da atividade analítica minaria a possibilidade de criação conjunta de uma narrativa simbólica e emocional. A autora escreve que seria importante deixar esse componente erótico mais bem explicitado e apresentado na teoria psicanalítica, em vez de tratá-lo como tabu circunscrito na estreita conceituação da contratransferência erótica (ELISE, 2017, p. 48).
Tal questionamento me remete à “novela” com Ahab: como podemos pensar o erotismo como constitutivo de um tratamento? Pode o erotismo analítico realmente “sustentar” a dupla? Reafirma-se aqui a inter-relação da sedução e da erogeneização como ingredientes necessários para a vitalização do par analítico, em sua medida justa, ou seja, sem faltas nem excessos, nos moldes adequados a cada paciente, um analista suficientemente bom sedutor, como viemos propondo.
Na direção de respostas para tantas questões, a Elise nos auxilia ao sugerir que uma análise não pode se basear apenas nas energias libidinais do paciente. É necessária uma energia erótica circulando,“uma matriz libidinalmente viva” (ELISE, 2017, p. 49). Trata-se de entender a dimensão erótica como vitalidade analítica: a energia erótica do analista sendo vista em seu potencial de cura e como ingrediente necessário para o tratamento. Elise interroga, ou será uma afirmação? Pode nosso recipiente analítico ser um útero de concepção, uma dança de gestação e entrega, onde o Eros incorporado de um analista emparelha com, e facilita, a capacidade de um paciente de sentir e expressar seu próprio ritmo pessoal?
No lugar do analista como tela em branco, movimentar sua figura para uma vivacidade, imagem colorida, em vez de “re-presentação de uma mãe amortecida” (Id., 2017, p. 50). Destacamos aqui a necessidade de nossas narrações verbais baseadas em experiências corporificadas para além de cada frase. Como vimos em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020), a linguagem só tem utilidade se vier junto com as energias corporificadas, tanto as do analista, quanto as do paciente. Dança, também, necessária com as palavras: o uso da linguagem de modo artístico, “indo além, abaixo e antes da palavra” (ELISE, 2017, p. 51). Estamos falando aqui da linguagem viva, em consonância com nosso artigo mencionado (2020): a responsividade afetiva não apenas do paciente, mas, também, do analista.
De qualquer forma, como trabalhar com nosso erotismo de forma ética?
Podemos articular o erótico com a imaginação criativa do analista. Energia libidinal, em conjunto com os recursos imaginativos, fornecem, segundo Elise, a base essencial para o trabalho com pacientes cujo trauma precoce congelou ou impossibilitou a capacidade simbólica. Ressaltamos o pensamento da autora de que as energias criativas não devem ser vistas como substitutas dos próprios recursos vitais do paciente, mas sim como contribuição vivificante para a dupla, mesmo que paradoxalmente, e aqui incluímos necessariamente uma travessia em territórios de desvitalização e amortecimento [8].
Também partilhamos da conclusão de Elise de que a função vitalizadora do analista deve estar presente em cada encontro analítico, de sua concepção de um analista vivo, ativo e de posse de suas capacidades criativas de modo a auxiliar na construção de uma matriz libidinal e vitalizadora no campo analítico (CESAR; RIBEIRO, 2020). O encarnado, o vital, precisam estar primariamente presentes. Em lugar de um ambiente recipiente passivo e desencarnado, Elise propõe a atividade do analista derivada de seu eu erótico: “um estado vibrante de alerta equilibrado, assim como uma dançarina parada no palco é equilibrada, não passiva, pronta, cheia de movimento potencial, de impulso” (ELISE, 2017, p. 53).
A ampliação, em nossos pacientes, de sua capacidade de estarem vivos não será possível sem nossa própria presença viva: “somos receptividade equilibrada, não um receptáculo: nós agimos, nós respondemos, e não apenas de uma teoria intelectualizada, mas de nossas próprias energias ardentes corporificadas – algo do momento vivo” (Id., ibid., p. 53).
Sobre o atendimento remoto: o enquadre interior
Figueiredo, em texto recente (2020), propõe que, ao invés de falarmos em “atendimento virtual”, falemos em “atendimento remoto”, pois a virtualidade seria algo intrínseco ao dispositivo analítico. De qualquer modo, é preciso que examinemos, mesmo que sucintamente, as questões que advêm dos atendimentos à distância, os quais nos remetem à elasticidade da técnica, assim nomeada por Ferenczi (1928), que propunha uma flexibilização da técnica para o atendimento daqueles pacientes precocemente traumatizados que não se adaptavam à técnica padrão.
Nesta tradição ferencziana, Winnicott (1962) usa a expressão “psicanálise modificada” quando se vê fazendo algo que não a análise padrão – embora, ainda assim, paradoxalmente, trabalhando como um analista. No dizer de Winnicott:
Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? (1962, p. 155).
Nesses casos, eram os pacientes que necessitavam de modificações na técnica, algo diferente do que estamos vivendo nessa pandemia: assistimos à ampliação do trabalho do psicanalista. Figueiredo (2020) ressalta o que se ganhou conceitualmente com essa elasticidade.
Destacamos aqui a ênfase dada pelo autor ao “enquadre interior”, que independe da presença física do analista e indica uma disposição de mente:
(...) trata-se da disposição de mente do analista em sua dimensão ética e “técnica” e em sua capacidade de escuta: em outras palavras, é a sua presença implicada e reservada (FIGUEIREDO, 2008), sua “mente própria” (CAPER, 1999), sua atenção flutuante operando em seu mais amplo espectro e englobando todas as modalidades de escuta em análise (FIGUEIREDO, 2014). (FIGUEIREDO, 2020, p. 65).
É a presença do “enquadre interior” que comparece no atendimento de Ahab, uma vez que, como vêm acontecendo com frequência na pandemia, não ocorreram encontros presenciais e as sessões foram remotas. Tal “enquadre interior” é um estado de mente que só é possível a partir da transferência com a própria psicanálise, e que floresce das experiências de análise pessoal e de prática clínica do analista.
O “enquadre interior” pode ser entendido por duas vias: primeiro a transferência com a própria psicanálise, o enquadre se instalando a partir da internalização daquela como bom objeto. No dizer de Figueiredo, uma “psicanálise amada” como condição de fundamento de nossa ética, que se constitui não na regulação ou interdição, mas no “vínculo transferencial (amoroso) com o próprio método analítico” (FIGUEIREDO, 2020, p. 68).
Indo ao encontro da dimensão sedutora da experiência analítica relatada, vale ressaltar a ênfase dada por Figueiredo (2020), lado a lado ao enquadre interior, às transferências evocadas no paciente, quando, a partir da escuta, este é convidado “a ser, a falar, a brincar, a alojar-se no espaço de hospitalidade instaurado pela posição do analista: a situação analisante com sua dinâmica sedutora e criativa” (Id., ibid., p. 65).
Assim, acompanhando o autor, a virtualidade está sempre presente no atendimento analítico, seja no atendimento remoto, à distância, na psicanálise padrão ou na psicanálise modificada; isto porque depende da disposição de mente de cada um da dupla analítica. Figueiredo associa muito apropriadamente tal virtualidade à instalação do espaço potencial (WINNICOTT, 1971): encontros em que comparecem realidades reais e fictícias, verdadeiras e ilusórias; campo fundamental a partir do qual o trabalho da psicanálise pode acontecer.
Destacamos, brevemente, do texto de Figueiredo, algumas ideias que poderiam iluminar a compreensão do encontro que se deu com Ahab. Mesmo o atendimento sendo remoto, a dimensão de virtualidade, a manutenção do enquadre interior do analista e a instalação do espaço potencial aconteceram. Paradoxalmente, pensamos que a condição de atendimento remoto possibilitou que, protegido do corpo a corpo, Ahab conseguiu se aproximar de uma experiência analítica de intimidade.
À guisa de conclusão
As ideias de Figueiredo e Elise confirmam a necessidade da vitalização presente em todo encontro analítico. No presente texto procuramos articular a sedução com a erotização, e corroborar a importância de uma presença encarnada, em vez de uma presença intelectualizada: corpos ardentes e não abstrações desencarnadas. Dessa forma, encarnada, surgiu a imagem da dança, da caça com Ahab, em torno de tórrido vulcão: de que modo poderíamos ter prosseguido sem nem nos queimarmos nem congelarmos? Sim! Os encontros analíticos nessa dimensão vitalização-desvitalização têm temperatura, a cada sessão, de um momento a outro, de tempos em tempos.
Essas reflexões nos conduzem à seguinte questão: como trabalhar com nosso erotismo de forma ética? O par constituído com Ahab trabalhou de forma ética? A analista se manteve em estado vibrante, o corpo envolvido no encontro, mas o quanto se equilibrou no palco dos encontros? O quanto titubeou na dança ou, por outro lado, Ahab recolheu temeroso suas energias vibrantes que cintilavam sutilmente? Ou, o quanto a analista intuía a música que emergia através das narrativas corporificadas, suas histórias endereçadas à analista? Não sei se temos respostas, mas podemos entender a sedução suficientemente boa, o erotismo presente de forma ética, acompanhando a proposição de Elise do entrelaçamento de criatividade e sexualidade a partir dos pensamentos de Winnicott e Freud.
Winnicott (1971, p. 65) escreveu que é “a apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que faz o indivíduo sentir que vale a pena viver a vida”. Freud (1915, p. 169) postulou o amor sexual como “sem dúvida uma das principais coisas na vida, um de seus picos culminantes”. Algo que, para Elise, faria com que a psicanálise valesse a pena para analista e paciente.
Estar de um modo criativo junto ao paciente é elemento de força vital. O que aqui pensamos como presença erótica (que começa nas trocas mãe-infante) estende-se para além destas e do puramente sexual para uma “joie de vivre”, uma paixão pela vida em seus altos e baixos, o sexual aqui resgatado numa concepção ampla, a mente enraizada na dimensão erótica do corpo: o nascedouro do vivo entre ternuras e ardências.
Tudo isso é arriscado e vitalizante. A analista convidou seu paciente à dança, convocou-o à caça, relatou e ouviu suas histórias, buscou “ex-citá-lo”. Deixamos ao leitor, como um filme com final impreciso, como os de Bergman, que suas próprias reveries, sua capacidade imaginativa e criativa, surjam no encalço de respostas im-possíveis.
Notas
1 O artigo apresentado faz parte da pesquisa de Pós-doutoramento de Fátima Flórido Cesar, tendo Marina F. R. Ribeiro como supervisora. Quanto a questões éticas, o artigo é um fragmento clínico no qual a identidade do paciente está preservada; se enquadrando, dessa maneira, na RESOLUÇÃO Nº 510, DE 7 DE ABRIL DE 2016: “Parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: VII - pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”.
2 Letra de música do CD Pérolas aos poucos, lançado em 2003 pela gravadora Circus Produções Culturais & Fonográficas.
3 Reverie é um conceito de Bion (1962); refere-se à capacidade imaginativa da mente, no caso, a capacidade imaginativa do analista na sessão, de captar o sofrimento psíquico do paciente.
4 Disponível em: origemdapalavra.com.br Acesso em: 25 jan. 2021.
5 Em trabalho anterior (ELISE, 2011, p. 30) usamos o termo “mãe suficientemente sedutora”: “Como, neste trabalho, estamos no âmbito da sexualidade feminina, a qualidade da mãe – de ser uma ‘sedutora suficientemente boa’ – está em cena. Isso significa a capacidade (como qualidade psíquica) de a mãe erotizar o corpo de seu bebê, nem a mais, nem a menos, na tensão única e específica a cada dupla mãe e filha (ou filho)”.
6 O artigo original de Dianne Elise é em inglês. Esta e todas as citações que seguem nos próximos parágrafos foram livremente traduzidas por nós.
7 Figueiredo se refere à necessidade de uma “presença reservada”, constituinte de uma “clínica de implicação e reserva” – um espaço em que se instaura um paradoxo de presença e ausência, de proximidade e distância (2000, p. 31).
8 Em artigo anterior (CESAR; RIBEIRO, 2020) apresentamos pensamento semelhante. A partir das ideias de Winnicott, propusemos que a vitalização ou o vir a ser do infante provêm do encontro da centelha vital deste com o encontro do cuidador/mãe/analista com suas energias vivificadoras.
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