3 XXY: o gênero nas malhas da pluralidade
- marinaribeiroblog2
- 2 de fev. de 2022
- 32 min de leitura
Ivy Semiguem F. de Souza-Carvalho
Marina Ferreira Rosa Ribeiro

Um corpo corre pela floresta. De relance, vemos braços vigorosamente se mexendo e os pés descalços se movimentando rapidamente pelas folhas no chão. A floresta cerrada nos transporta ao cheiro da terra molhada, das folhas apodrecendo, a sensação fria da neblina. A natureza entra em cena com uma densidade quase palpável. É dela que o corpo corre? Ou é nela que ele se assenta? Nova cena, o corpo agora pode ser reconhecido como pessoa e suas mãos carregam um facão. Algo de violência grita, remete à agressividade, corte, rompimento. Trata-se de uma luta ou de uma fuga? Outra cena, alguém segue atrás. É uma perseguição? Não, espera!... alguém corre junto. Não é um percurso solitário, a pessoa tem companhia em seu frenético movimento. Sim, nenhum trajeto se faz sozinho. Sentimos a corrida, o movimento, o caos. Aos poucos percebemos que a marcha desordenada, alvoroçada e urgente é de um corpo adolescente, púbere, um corpo em fluxo.
Tal corrida caótica das primeiras cenas do filme é emblemática deste momento de reveses da sexualidade, período de “confluência de dois rios com águas muito heterogêneas, sem nenhuma certeza de que chegarão a uma mistura harmoniosa. De um lado a pulsão e a fantasia infantil; de outro, o instinto pubertário” (LAPLANCHE, 2015a, p.42). É neste caldo plural entre instinto e pulsão, fantasmas e cultura, que gênero, sexo e sexualidade se entrelaçam, reabrindo enigmas e exigindo novos trabalhos de traduções.
A proposta deste capítulo é discutir o complexo caminho da constituição da identidade de gênero, pensando-o em sua relação com o sexo, com a cultura e, principalmente, com o inconsciente. Para tanto, recorremos ao precioso filme XXY (Argentina, 2007), trama que nos convida a entrar na pele de Alex, a pessoa retratada acima, e reviver a estranha familiar pluralidade que pulsa em cada um de nós, em nossa constante ressignificação da sexualidade e identidade.
Esta análise será fundamentada de modo determinante nos pressupostos da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, mais especificamente na tese apresentada no texto O gênero, o sexo e o Sexual (2015b), em que o autor retrabalha o conceito de gênero integrando-o à teoria psicanalítica, sem perder de vista o inconsciente e a noção de conflito. Afinado com a discussão sobre gênero desde a década de 70, Laplanche escreve que os gêneros antecedem a diferença de sexos. O gênero é plural, defende o autor, e a pretexto da protagonista, Alex1, propomos refazer essa sinuosa jornada que compreende o processo de gênero e sexuação.
O drama, roteirizado e dirigido por Lucía Puenzo, é uma adaptação poética do conto Cinismo, de Sérgio Bizzio. Foi lançado na Argentina em 2007 e em 2008, nos cinemas brasileiros, recebendo inúmeros elogios da crítica. Venceu o Grand Prix da semana de críticas no Festival de Cannes e o prêmio Goya de melhor filme estrangeiro de língua espanhola, além de ser indicado pela Associação Cronistas Cinematográficos da Argentina a oito prêmios Cóndor de Plata. Tal reação não surpreende, pois, além do elenco de peso formado por grandes nomes do cinema latino-americano (como Ricardo Darín, Inés Efron e César Troncoso), Puenzo coloca em cena uma narrativa dedicada ao polêmico tema da intersexualidade.
Sem dúvida, o longa, com sua sensibilidade ímpar, oferece inúmeros fios que podem ser desdobrados nas mais diversas interpretações. A grandeza do filme, inclusive, está no modo sutil como a diretora aborda o sofrimento que todos passam. É cuidadosa em sua abordagem, na medida em que conduz a trama de uma forma empática (sem vilões ou mocinhos) e sem necessariamente nos dar uma resposta, deixando um convite à tradução em aberto. Ou, para aproveitar as palavras de Belo (2011): “criar uma obra é também renovar nossas experiências originárias: emitir uma mensagem para o outro, propor um enigma a ser decifrado” (p.72-73). Assim, qualquer leitura de uma obra é uma possível tradução que funda- mentalmente jogará luz em certos elementos ao mesmo tempo em que se reduzem outros. Neste sentido, o nosso recorte se justifica ao passo que o nosso objetivo, então, não é necessariamente fazer uma análise da história do filme, mas usá-lo a pretexto da teoria, propondo reflexões sobre a singularidade plural de cada um e problematizando a necessidade de encaixar seres humanos em definições inflexíveis.
Assim, no que se segue, desdobramos a nossa discussão em três eixos de análises. No primeiro discutimos o filme pela perspectiva das mensagens enigmáticas emitida pelos pais e a pluralidade de gênero que elas comportam. No segundo, a tradução é colocada em destaque e exploramos como o sexo (código binário) e as narrativas que advêm do mito simbólico cultural operam como auxiliares de tradução. Por último, convidamos Butler e Bleichmar para dialogar, pensando a dimensão ética do reconhecimento, questionando a violência e a importância de ser reconhecido como uma vida que importa.
Mensagem enigmática e pluralidade de gênero
XXY carrega uma atmosfera de mistério. O filme não entrega os fatos de imediato. As imagens passam de relance, insinuando-se, e os diálogos mais aludem do que explicam, funcionando como verdadeiras mensagens enigmáticas a serem decifradas. O trabalho de tradução fica a cargo do espectador, que é impactado pela experiência e mobilizado a pensar. Vê- se um livro sobre a origem dos sexos em uma cena, tartarugas marinhas em outras, assim como uma boneca nua com o sexo marcado com papel no quarto da protagonista. Muitos silêncios. Tudo isso envolto em um tom de segredo e neblina. “Ainda não consegui falar com Kraken” confidencia a mãe da protagonista. “Como não?!”, surpreende-se a personagem recém-chegada. “Mas vou achar uma hora hoje”, promete em um tom aflito. E em seguida o pedido de sigilo: “O Ramiro não falou com ninguém, falou?”, “Não, não se preocupe, ele é muito discreto”. Captura-se a densidade da angústia, a sensação de uma espera, de pudor e expectativa! É nesta trilha dos afetos que vamos, aos poucos, construindo o mosaico do enredo do filme e sintetizando, ao nosso modo, o conflito que subjaz a sua trama.
Na história temos Alex (Inés Efron), uma adolescente de 15 anos que rapidamente fisga o telespectador com sua aparência andrógina, com seus olhos extremamente expressivos e com sua personalidade paradoxal. É tão brava e ácida quanto esperta e sagaz. Alex é direta, sem meias palavras. Neste ambiente de nevoeiro no qual sussurros, expectativas subliminares e falta de clareza compõem um cenário de incertezas, as palavras da protagonista cortam o ar e funcionam como uma rajada de vento que clarificam as intenções numa concretude impactante: “Você se masturbou hoje!”, “Você transaria comigo?”, “Gosta de minha casa? (...) Não minta para mim!”, “Você gosta dos seus pais? (...) Não é porque eles são seus pais que você tem que gostar deles”. As suas palavras honestas remetem a uma pessoa corajosa que se coloca ativamente na busca de respostas aos seus enigmas em seu processo de traduzir-se.
A história efetivamente começa com a visita dos portenhos, Ramiro (Guillermo Angelelli), de sua esposa, Erika (Carolina Pelleritti), acompanhados de seu filho adolescente Álvaro (Martín Piroyansky) ao lar de Alex, uma casa rústica situada numa pequena cidadezinha litoral uruguaia2. Como esperado, as intenções de tal encontro não são claras. É entre sus- surros que vamos entendendo aos poucos que Ramiro é um cirurgião interessado em corrigir casos de deformidades, sendo que parece especialmente entusiasmado pelo caso de Alex.
A responsável por mobilizar tal encontro foi a mãe da protagonista, Sueli (Valeria Bertuccelli). A família é de antigos amigos dela, levando-nos a supor que existe uma expectativa de sua parte em discutir a possibilidade de uma operação para Alex. Na trama Sueli aparenta estar confusa, angustiada e com certa premência em resolver a situação.
No entanto, o cenário é extremamente delicado, pois, ao que tudo in- dica, esta não é a posição de Kraken (Ricardo Darín), o pai de Alex. Este, por sua vez, parece veementemente resistir ao discurso médico vigente e normatizador3. À medida que o real propósito da visita vai ficando claro para todos, Kraken não hesita em provocar um desconforto geral ao se posicionar na mesa do jantar: “Não suporto gente arrogante. Saímos de Buenos Aires para nos vermos longe desse tipo de gente, se lembra? Agora parece que estamos sentados com ela na mesma mesa”. Coincidentemente (ou não), ele é um biólogo que trabalha com a preservação de tartarugas marinhas, espécies que, por conta do ambiente hostil, correm sérios perigos de extinção.
Assim, se até então o casal estava de acordo sobre a mudança para o Uruguai – um “espaço de refúgio e de asilo ante situações de perseguição e de agressão” (JOHANSSON, 2018, p.104) – para poupar a filha dos preconceitos de terceiros, resistindo especialmente à prescrição médica de “correção” cirúrgica precoce; agora parecem divergir quanto ao o que deve ser feito. Enquanto Kraken ainda deseja esperar a filha crescer e fazer a sua própria escolha, Sueli, por sua vez, apresenta certa urgência em ver uma definição. Talvez por ter descoberto que a filha deixou de tomar remédios da terapia hormonal, que mantêm os efeitos biológicos de feminização, o que implicaria estar “perdendo” a sua menininha.
Fica evidente que esses adultos que permeiam Alex também estão confusos e tentando não só ajudá-la a se constituir da melhor forma, mas também precisam dar conta daquilo que a ambiguidade da filha suscita neles, na medida em que reabre os seus próprios enigmas de gêneros. Ao observar este tipo de relação, Laplanche (2015b) afirma que a presença do bebê necessariamente convoca a sexualidade infantil presente nos adultos. Trata-se de uma relação assimétrica, do ponto de vista do Sexual, em que, de um lado, temos um bebê passivo e, do outro, um adulto ativo, clivado, isto é, dotado de um inconsciente sexual. Quer dizer, quando os adultos cuidam do bebê, eles não podem abrir mão de seu inconsciente. Por isso, no seu contato com a criança, diversas mensagens são transmitidas sem que nem eles próprios saibam. A princípio, o diálogo entre adulto e criança se fundamenta no plano do apego. A criança, com sua montagem comportamental inata, busca no corpo do adulto o calor, o alimento e a sobrevivência. O adulto, por sua vez, ao mesmo tempo em que despende os cuidados ternos e autoconservativos ao infante, inevitavelmente inocula a sua sexualidade na criança, propiciando os elementos para sua constituição psíquica. Por exemplo, ao amamentar uma mãe pode viver essa cena de inúmeras formas – pode se sentir gratificada, invadida, preocupada etc. – e as excitações produzidas por essas fantasias são transmitidas ao infante, restando a ele traduzi-las. Assim, o corpo da criança faz um apelo ao infantil dos pais, que, por sua vez, erotizam a criança. Não há amor desprovido de sexualidade. É neste inescapável contexto da sedução originária e do estabelecimento da tópica psíquica que se situam os conteúdos de gênero.
De início, pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior4. Isso porque desde quando nascemos, junto com as mensagens de apoio – aquelas que recebemos dos cuidados corporais de limpar, alimentar, amamentar... –, recebemos também atribuições contínuas de mensagens de gênero por meio do socius, isto é, aquela pequena sociedade que permeia o bebê. Mãe, pai, avós, tios, babás, professoras da escolinha, todos eles realizam um conjunto de atos que se prolonga na linguagem e nos comportamentos, compondo uma verdadeira prescrição de gênero. “É uma menina! É um menino!”. Frente a tal constatação se coloca em marcha uma série de prescrições que envolvem desde o nome, o vestuário, as brincadeiras infantis e até a forma de levar a criança no colo. São mensagens contínuas que começam no dia em que nascemos e que aparecem até o último dia de nossas vidas.
Desta forma, antes mesmo de a criança ser capaz de se identificar com os adultos em sua volta – por exemplo, “sou um menino como o papai” –, são os adultos que fazem uma “identificação por” ela – “você é um menino como o papai”. Com isso, Laplanche (2015b) reposiciona o pro- cesso de identificação presente na atribuição de gênero, transformando-o completamente ao inverter o seu vetor. Ao invés de pensarmos em “identificação com”, deveríamos pensar em “ser identificado por”, isto é, ser identificado pelo socius da pré-história individual.
No entanto, este “bombardeio de mensagens de gênero” direcionado ao infante também não está imune do inconsciente dos pais. Quer dizer, as mensagens de atribuição de gênero não transmitem apenas os desejos e as expectativas conscientes dos cuidadores, mas carregam também o polimórfico perverso, os fantasmas, o resíduo plural composto pelos conteúdos conflitivos de gênero de cada um. Tudo aquilo que os adultos precisaram elaborar e recalcar para dar conta do próprio enigma dos gêneros é revisitado e passível de transmissão. A confusão que os próprios adultos apresentam em relação ao gênero é exemplificada pelas palavras de Dejours (2009):
Quando os adultos atribuem um gênero a uma criança, eles mesmos não sa- bem exatamente o que entendem por macho ou fêmea, masculino ou feminino, homem ou mulher. É fácil significar a uma criança que ele é um homem. Mas, o que quer dizer ser um homem para o adulto que pronuncia esta atribuição? Quando um adulto diz a seu filho que ele é um menino, ele diz ao mesmo tempo tudo aquilo que pensa acerca dos meninos e das meninas, mas também todas as dúvidas que têm sobre o que esconde exatamente a noção de identidade de sexo e de gênero. Seguramente podemos afirmar que, por meio desta atribuição de gênero, o adulto, sabendo-o ou não, confronta a criança com tudo o que pode haver de ambíguo na diferença anatômica de sexos e no sexual, e isso por causa de suas próprias ambivalências, incertezas e conflitos internos (DEJOURS, 2009, p. 7).
Justificar o que significa “ser um homem” ou “ser uma mulher” não é uma tarefa simples ou neutra, ela é mobilizadora de fantasias. Laplanche elucida essa confusão com o seguinte exemplo: um pai pode dizer conscientemente ao rebento que ele é um menino. Mas pode, inconscientemente, ter desejado uma menina e, mais, ter desejado penetrar uma menina. E estes ruídos não advêm de pais perversos, mas de pais “suficientemente bons”, que diante do corpo do bebê que cuidam, também são assaltados por aquilo que é estrangeiro a si: a sua sexualidade polimórfica perversa, o seu plural.
No filme, Alex é tudo. Sua carne corporifica o plural. E, sem diminuir o peso do viés da intersexualidade – que é uma problemática importante5, Alex poderia ser pensada também como uma metáfora deste processo complexo de elaboração da identidade de gênero. Eixo que, em certo sentido, parece ser sustentado pela própria Puenzo ao dizer: “Havia o risco de as pessoas acharem que o filme é sobre uma anomalia. Não é. Essa é uma história de amor adolescente, algo que acontece a todo mundo” (apud ARANTES, 2007). Assim, para a cineasta, seu longa quer situar o tema da “liberdade de escolha no mundo de hoje” e a discussão sobre “a identidade” na fase da adolescência.
Para nós, é o plural que grita e salta aos olhos do espectador. Apesar da atribuição consciente advinda dos pais “menino ou menina”, desde o início da vida já recebemos muito mais que dois: é com a multiplicidade do inconsciente que sobrevém, em forma de enigma, do resíduo tradutivo deles, que temos que nos a ver. Neste sentido é curioso que, por mais racional, lógico ou moral que seja o discurso de designação de um gênero dos adultos, no centro da transmissão de gênero encontramos o infantil inconsciente: o corpo da criança passiva que convoca a criança do adulto que, por sua vez, faz ruído nas mensagens de designação de gênero.
Agora, se toda criança traz à tona o inconsciente do adulto, sendo que isso inevitavelmente já acontece diante de uma criança biologicamente “normal”, no filme vemos que a situação coloca um desafio maior para os pais (e para a própria Alex). Diante de um corpo ambíguo e pouco definido em termos biológicos, o que vem então à tona? Novamente, o plural! E em sua versão mais anárquica, pois a falta de clareza sobre a anatomia desorganiza as possibilidades de recalcamento. O sexo – como veremos adiante – funciona como um código que ajuda na tradução e recalcamento de tal pluralidade. Ele, juntamente com os auxiliares de tradução culturais, o mito simbólico, ajudam a dar contornos para o conteúdo plural e polimórfico de gênero, recalcando-o. A identidade do gênero é um processo que coincide com os processos de estabelecimento do Eu, fazendo parte do próprio originário. A pluralidade do gênero, portanto, constitui o próprio Sexual, é o próprio enigmático e remete à abertura caótica que nós fazemos de tudo para evitar.
No filme, Alex mobiliza pontos do inconsciente dos pais. O que exatamente vai vir na mensagem a partir do que foi mobilizado é uma incógnita, mas podemos antever que há no mínimo duas reações, duas formas de lidar com o enigmático, sendo que o modo do pai não coincide com o da mãe. A princípio ambos concordam, pois, apesar de estarem confusos, foram contra a corrente do discurso social e médico e não lançaram mão de uma cirurgia de antemão. A proposta foi esperar o tempo de elaboração da própria Alex. Uma espera que evidentemente nunca será completamente neutra, uma vez que os adultos, querendo ou não, inconscientemente fazem uma identificação por ela, isto é, projetam inconscientemente elementos de sua sexualidade6, suas expectativas e confusão. Tanto que no filme, apesar de não operarem Alex quando pequena, estes pais não deixam de oferecer, de certa forma, alguns contornos e traduções. Assim, apesar de optarem por nome neutro, que suportaria uma mudança posterior se viesse ser necessário, a reconhecem como filha, pelo pronome feminino. Escolhem temporariamente por ela, até ela ser capaz de escolher por si só.
Mas quando Alex, agora já adolescente, deixa de tomar os comprimi- dos, ocorre uma reabertura da situação originária para todos. A solução da mãe frente à angústia do plural é dar um contorno rápido e definitivo: a cirurgia. Pronto. Ufa! Estabelece uma definição, Alex é uma mulher. Solução esta que estaria em conformidade com o desejo da mãe, como foi revelado em um diálogo entre Érica e Alex “Quando éramos pequenas, sua mãe dizia que ela queria ter quatro filhas. Nós a chamávamos de Susanita”. E Alex, sagaz e aguçada com a expectativa implícita nesta mensagem, nem hesita em ironicamente se posicionar: “Parece que a Susanita ficou assustada ao longo do caminho”.
O pai, por sua vez, também viu em Alex, uma menina. Dado que se insinua quando Alex lê, em alto e bom tom, a frase do livro “A origem dos sexos”, cujo pai é autor: “Em todos os invertebrados, incluindo os seres humanos, o sexo feminino é primário no sentido evolutivo e embriológico...”. Frase que, sem dúvida, compõe as mensagens enigmáticas com que ela tem que se haver. Entretanto, apesar de seu desejo frente à pluralidade enigmática que retorna na adolescência de Alex, este pai parece tolerar mais o ambíguo, o fluido, sem necessariamente se desorganizar a ponto de antepor uma definição a ela. Suporta manter a dimensão da alteridade interior, a relação com enigma, a relação com o desconhecimento, colocando-se suficientemente em suspenso para o bem da filha. Neste sentido parece que consegue ser “o guardião do enigma”7, na medida em que sua atitude remete à bienveillante neutralité do analista, isto é, “querer o bem do paciente, mas sem pretender jamais conhecê-lo, sem jamais manipular o paciente, mesmo que para seu suposto bem” (LAPLANCHE, 1993, p.80). Ao recusar saber o que é melhor para ela e manipulá-la, o pai oferece condições que permitem recolocar em movimento o processo de tradução e de simbolização.
A tradução: do plural ao binário
E em meio deste caos de mensagens temos a própria Alex, tentando dar conta de organizar e traduzir a sua identidade de gênero e o seu desejo sexual. É interessante como nessa dimensão intersubjetiva não existem vítimas ou algozes e nem uma solução correta, certeira e pronta, pois tudo se transforma em mensagens enigmáticas, em um a decifrar. Fazer ou não fazer uma operação é uma mensagem a ser elaborada, esconder sua condição do mundo é outra mensagem, assim como aguardar o tempo de se decidir também se transforma em mais uma mensagem. Alex captura tudo isso e precisa fazer uma simbolização própria, estabelecer ligações e atribuir sentidos. “Eu tenho pena dos meus pais” diz ela a Álvaro em um momento de confidência e cumplicidade, “eles estão sempre esperando algo”.
É no encontro com Álvaro que se desenrola uma história de descoberta, sexo, amor, que abre possibilidades de novas significações. A princípio Alex se mostra arredia frente à chegada dos estrangeiros, es- conde-se sob a casa, observa-os à distância. A primeira pessoa de quem se aproxima é Álvaro. Um encontro só a dois, na praia, ao entardecer. Neste, acontece um diálogo inusitado, no qual Alex nem se apresenta e inicia a conversa com a temática da masturbação e termina convidando-o a transar com ela.
O encontro entre Alex e Álvaro é um encontro de confusão. O enigma que remete a Alex está posto, é externo, explosivo, está revestido na própria carne. Desde à primeira vista o seu corpo plural evoca certa confusão. Álvaro, por sua vez, é o adolescente tímido, com seus inseparáveis fones de ouvido, que segue desenhando quieto, fechado em si. Aparentemente ele não causa confusão, ao contrário, poderia passar despercebido em um ambiente mais ruidoso. O encontro entre os dois parece a junção entre o mar e areia. O mar que remete ao caos, o fluido, a fúria, em contraposição à suposta uniformidade da areia, que, à primeira vista, supõe algo estável no horizonte. Mas que, de outro modo, é também fluida, amórfica, como se o caos estivesse socado em si. São o implosivo e o explosivo. Duas confusões diferentes, mas que não deixam de ser confusão, a da areia e a do mar. O que é genial é que tal encontro não é disruptivo. Apesar do tom de surpresa, Álvaro não a percebe como intrusiva ou repulsiva. Se até então ele havia se limitado a olhá-la com desconfiança, passa a ver sua sinceridade e valentia com certa admiração.
Alex parece nos colocar à prova o sexo, desejo e genitalidade. Quer vivenciar e se redescobrir, ou talvez, se descobrir pela primeira vez. Isso porque, segundo Laplanche, para organizar os enigmas plurais de gêneros, a criança recorrerá a alguns recursos de tradução. Um dos recursos será o próprio sexo anatômico, que diz respeito àquele momento, ainda na infância, quando acontece a “descoberta dos sexos”. Antes disso, afirma o autor, a criança reconhece que o mundo se organiza em homens e mulheres, mas apenas no momento da fase fálica, em que “descobre” que os genitais são diferentes, que um dado se articula ao outro, sendo ressignificado. Por isso que Laplanche deixa claro que a identidade de gênero é primeira, ao passo que precede a descoberta do sexo e é, inclusive, organizada por ele. No entanto, a anatomia, da qual se trabalha o gênero, é perceptiva e ilusória, e não biológica. A simbolização das mensagens enigmáticas ocorre no seio de uma rede fantasmática, podendo ser traduzidas em termos de teorias sexuais infantis, como a da castração e as fantasias associadas a ela.
Fica evidente que, na teoria de Laplanche, a castração não constitui uma categoria metafísica, não é filogenética ou universal, mas é um código tradutivo, um importante processo secundário. Ela seria a teoria que a criança consegue forjar para responder uma das três questões fundamentais e que todo indivíduo tenta compreender: a sua própria origem, a origem da sexualidade e a origem da diferença sexual: “A teoria da castração quer dar conta desse enigma e está simbolizando um sistema codificado. O código se baseia, por sua vez, na anatomia e funciona como um mito binário, mais ou menos” (LAPLANCHE, 2001, p. 205). Trata-se do primado fálico, que coloca em jogo um código regido pela presença ou ausência no qual se inscreve a diferença entre os sexos. Este código transforma diversidade (pluralidade) em diferença (fálico - não fálico).
Logo, se a anatomia é o que impulsiona as fantasias infantis e estas funcionam como código para traduzir, como se estabelece este código em Alex? Afinal, ela teria um código tão enigmático quanto a própria mensagem. Seu corpo não faz parte da lógica binária. Ele carrega o masculino e o feminino juntos, o que nos permite inferir que, ao invés do corpo funcionar como código de tradução, ele poderia vir a potencializar a mensagem. Neste sentido, se a mensagem já é enigmática, pode ser “enigmatizada” ainda mais, sob o risco de seus conteúdos estarem fadados a permanece- rem congelados, sem tradução. Desta forma, sem o auxílio deste importante código tradutivo, resta à nossa protagonista buscar outros possíveis organizadores. E é aí que o complexo de Édipo entra em cena.
Acontece que, primeiramente, a castração funciona como um código independente de presença e ausência, e, posteriormente, torna-se parte de enredamento com o complexo de Édipo, ressignificada como castigo ao crime. O complexo de Édipo é, segundo Laplanche, “um ‘esquema narrativo’ que remete a uma teoria da narratividade, submetendo esta a roteiros mais ou menos ricos, populares, flexíveis” (LAPLANCHE, 2015c, p.286). Pertencente ao universo mito simbólico, este processo não estaria ao lado do recalcado, mas do recalcamento, uma vez que sua trama e seus personagens (pai, mãe, filho, homem, mulher) já se relacionam com tudo aquilo que sua pequena sociedade coloca como parâmetro.
É no entremeio do enredo edípico que se triangulam as relações, posto que ocorrem as identificações (quem eu quero ser?) e a escolha de objeto (quem eu quero ter?). Aos poucos, a identificação por aquela identificação que no primeiro tempo o bebê recebeu passivamente, conforme foi identificado como menino ou menina pelos pais, transforma-se em identificação a, fruto da atividade tradutiva da própria criança. E as fantasias edípicas auxiliam organizar, em forma e conteúdo, a profusão plural, estabelecendo a sexuação. Estas “novas descobertas” – a identidade sexual e escolha de objeto – são rearticuladas à identidade de gênero (sou menina ou menino), que vinha sendo elaborada no primeiro tempo, atribuindo novos sentidos a ela.
Sobre isso, Silvia Bleichmar (2009) afirma que o gênero é organizado a partir do lugar que o sujeito tem instituído no sistema simbólico. Dentro dessas categorias identitárias, a posição sexuada é um importante ele- mento que conjuga e articula o que será e o que não será recalcado. Afinal, toda afirmação identitária – sou mulher, sou brasileiro, sou generoso – opera em forma de um centramento do Eu que, necessariamente, deixa do lado de fora o que se quer excluir. No caso da sexuação, Bleichmar (2009) entende que o núcleo da identidade sexual, que tem relação com a “descoberta dos sexos”, exerce um peso. Ele recolherá certos atributos de gênero, que vão funcionar como contra investimento, em particular, dos desejos homossexuais que foram sepultados a partir do recalcamento dos elementos do “Édipo invertido”8.
É certo que os desejos qualificados pelo Eu como “homossexuais” só terão o estatuto estabelecido a posteriori, após terem sido qualificados pelo pré-consciente. Como os desejos se constituem antes da descoberta das diferenças, a relação com os objetos não estará atravessada pelas preocupações que vai assumir a identidade sexuada, de modo que ela irá organizar tanto o Eu quanto a diferença anatômica. Por isso, Bleichmar (2009) exemplifica que, no contexto de pré-sexuação, o garotinho pode sustentar certos desejos pulsionais em direção ao pai sem entrar em contradição com o fato de se reconhecer como menino. No entanto, este mesmo garotinho já não consegue se vestir de mulher sem entrar em conflito com sua identidade de gênero. Não se trata simplesmente do polimorfismo infantil, mas de processos complexos que operam concomitantemente.
Agora, ciente destes marcadores – ‘sexo, fantasias e cultura’ – responsáveis por recalcar a pluralidade em torno de uma binaridade dos gêneros, voltamo-nos ao percurso de nossa protagonista e, tentando compreender o desafio identitário que ela se vê às voltas, perguntamo-nos: a quem Alex se identifica (pai ou mãe?) e quem Alex deseja? Mistério que a trama mantém em suspenso até que um dos momentos mais surpreendentes do filme talvez nos dê uma pista: o encontro sexual de Álvaro e Alex. Após um desentendimento entre os dois, Álvaro procura Alex que está chorosa num galpão na parte externa da casa. Rapidamente a suposta tentativa de desculpas se transforma numa cena de sexo, guiada afobada- mente por Alex. O elemento surpresa é quando, no ato, ela vira Álvaro de costas e assume a posição penetrante. E Álvaro, por sua vez, não recua e demonstra sentir prazer na posição penetrada. É um momento de descoberta e experimentação para ambos. A cena é subitamente interrompida quando se dão conta que Kraken, sem querer, testemunha a cena. É algo disruptivo para todos, onde cada um a seu modo tenta dar conta da confusão que o episódio gerou.
Alex, se afasta de todos, chora nua em frente ao espelho e se refugia na casa de uma amiga que sabe o seu “segredo”. Dormem juntas, banham- se juntas, mas nada de teor efetivamente sexual acontece. Ficamos em sus- penso, esperando o tempo de Alex para entender como a nova experiência sexual ecoou em sua tradução identitária.
Álvaro, por sua vez, se apaixona perdidamente e passa a perseguir Alex, tentando compreender o que realmente ocorreu: “Alex! Me explique algo... Você não ...”, pergunta Álvaro, ainda recuperando o fôlego, após alcançá-la em sua fuga furiosa pela floresta. “Eu sou os dois”, responde Alex aflita. Ele, em tom surpreso: “Não pode ser!”. Ela esbraveja “você vai me dizer agora o que eu posso ser ou não posso ser?”. Confuso ele continua: “Mas você gosta de homens ou mulheres?”. E ela simplesmente diz: “Não sei”. É interessante que, mesmo sendo considerado fisicamente “normal”, Álvaro também tenta organizar, compreender e dar lugar ao seu próprio desejo. Como Alex, ele também está adolescendo, vivendo e arriscando suas primeiras experiências9. “Perdoe pelo o que fiz com você” diz Alex envergonhada ainda neste diálogo na floresta, “Você não me fez nada. Não me machucou. Eu gostei” responde Álvaro. “S rio? Eu também!”. No filme, mesmo vivenciando algo inusitado, ele não recua frente à experiência e, ao contrário, se apaixona pela pluralidade de Alex, a ponto de querer levar o romance adiante, enquanto ela se afasta irritada.
Este emaranhado tradutivo que busca assentar a questão identitária “quem eu sou” (mulher ou homem) diante “de quem eu gosto” (mulher ou homem), torna-se especialmente mais complexo quando lembramos que o filme trata de jovens adolescentes, momento em que o instinto sexual urge. Para Laplanche instinto e pulsão coexistem no homem, mas não é uma coexistência tranquila. O instinto é aquilo que é hereditário e adaptativo, que apresenta uma tensão somática inicial, uma ação específica e o objeto de satisfação que leva a um relaxamento duradouro. Está associado às montagens de autoconservação. A pulsão, por outro lado, não é necessariamente adaptativa e o modelo fonte-meta-objeto mal se aplica a ela.
Laplanche questiona: por acaso pode-se dizer que o ânus é a fonte da pulsão anal? Ou que a pulsão escopofílica teria fonte na “tensão ocular?”. Economicamente também há diferença entre os modelos, pois, enquanto o instinto busca o alívio, o retorno à homeostase, a pulsão busca a excitação, às vezes, às custas de um esgotamento total do sujeito. Isso por- que o objeto fonte da pulsão é intersubjetivo, é o resto não traduzido dos enigmas, os significantes dessignificados que pulsam incessantemente no inconsciente, sem conhecer o apaziguamento. “Ela [a pulsão sexual infantil] não conhece o apaziguamento pelo objeto adaptado complementar, falta-lhe sempre ligação, ela é ambivalente” (LAPLANCHE, 2015a, p.40).
Na adolescência, quando o instinto sexual finalmente chega, correspondendo à maturação genital com sua busca inata pelo complementar – a pessoa do sexo oposto -, ele chega em ruptura com o funcionamento pulsional. Assim, todos os prazeres pré-genitais nos quais se inclui o genital infantil, são na puberdade confrontados com o genital pubertário. Trata-se de modelos heterogêneos que nunca chegam a uma mistura harmoniosa:
“O que a psicanálise quer nos ensinar é que, no homem, o sexual de origem intersubjetiva, portanto o pulsional, o sexual adquirido vem, muito estranha- mente, antes do inato. A pulsão vem antes do instinto, a fantasia [fantasme] vem antes da função; e quando o instinto chega, o assento já está ocupado” (LAPLANCHE, 2015a, p.41, grifos do autor).
No filme nossos jovens estão diante deste conflito, pulsão mais instinto, pulsão versus instinto. A retradução edípica aqui é a principal tentativa de ligação e apaziguamento, uma tentativa sempre insuficiente.
Temos ainda a reação de Kraken diante do testemunho da cena de sexo. Certamente, deparar-se com sua filha num papel penetrante deixa- o confuso, na medida em que provoca os conteúdos enigmáticos deste pai. Desorganiza-o, não por conta de um moralismo, mas principalmente por- que vai de encontro com a construção mito simbólica dos gêneros que a cultura faz: homem-ativo-penetrante, mulher-passiva-penetrada. Kraken pressupõe que se a filha estava “por cima”, logo, isso quer dizer que ela “escolheu” a masculinidade. Curioso que, desde os Três ensaios sobre a sexualidade (1905), as noções freudianas de pulsão, identificação e sexualidade infantil já trabalhavam a disjunção das categorias de sexo, gênero e modalidades de prazer, rompendo com a ideia de dois conjuntos coerentes e fixos (CAFFÉ, 2009). Mas, Kraken, este pai preocupado, não sabe nada disso e, movido pelo seu legítimo desejo de fazer o melhor por sua filha, segue em busca de atribuir sentido para sua nova descoberta.
Na mesma noite, ele dirige sozinho ao encontro de uma figura misteriosa. Descobrimos que se tratava de uma pessoa intersexo, a quem não foi dada a chance de escolher por si. Em sua tentativa de tradução, Kraken escuta atentamente o tortuoso caminho de jornada dos gêneros desta pessoa. Descobre que após ter sido submetido à cirurgia pelos pais, ainda na tenra idade, ele cresceu e não se identificou com a atribuição feminina que recebeu. Restou recomeçar na adolescência os procedimentos e as cirurgias para se transformar, agora, em homem. Sua identificação a não correspondeu sua identificação por. Nas entrelinhas desta conversa, Kraken parece querer compreender se, como pai, está sustentando o caminho certo. Será que foi um erro não ter submetido Alex a uma cirurgia? Como aguardar o tempo de ela escolher?
Reconhecimento, violência e ética
A relação que se estabelece entre Kraken e Alex é sem dúvida o eixo mais sensível e delicado do filme, que apresenta uma beleza ímpar. Enquanto o pai de Álvaro faz a linha dura, normatizadora e intolerante – um pai que por intuir uma possível escolha homossexual no filho, não hesita em dizer a ele que não o admira –, Kraken faz a vez de um pai compreensivo, como dito, o guardião do enigma. Ele tolera desorganizar-se, permite-se repensar seus ideais totalizantes sobre homem e mulher e se dispõe a (re)enfrentar o próprio caos da pluralidade originária, mirando o bem da filha. Neste sentido se mostra aberto para entender questões que até então ignorava, inclusive, repensando a organização do mundo entre feminino e masculino. Interessa a ele permitir o processo, em seu tempo, da própria Alex.
O reencontro entre pai e filha, depois do susto da cena de sexo, carrega exatamente este tom de confiança e intimidade. O pai a espera na frente da casa de sua amiga. Em silêncio sentam-se um ao lado do outro. “Você está me olhando diferente?” pergunta ela. “Você já é crescida”, res- ponde ele em tom terno. O olhar cúmplice paira entre ambos e o reconhecimento transborda! Como pontua Péret (2009): “O silêncio, entrecortado apenas pelo barulho do vento (sempre presente) e do mar, é um elemento fundamental no filme. É ele que permite que a comunicação formal e o diálogo sejam substituídos pela cumplicidade silenciosa e implícita entre as personagens.” (p.859). Nada precisa ser dito, desculpado ou explicado. Ele simplesmente está ali com ela e por ela. Por fim, oferece uma carona para casa, mas Alex anuncia que quer caminhar... sozinha. E é respeitada!
Nesta caminhada a nossa protagonista passa por um episódio indigesto de violência, algo próximo de um estupro. Alguns rapazes da comunidade em que vivem descobrem o seu “segredo” e a encurralam para ver se isso era verdade. Uma cena intrusiva segue, na qual Alex é violentamente segurada por quatro rapazes e tem sua calça abaixada sem seu consentimento. “Nossa é verdade! Ela tem os dois!”. “Que nojo”, diz um dos rapazes. E o outro: “Nojo nada que legal, será que funciona?” e passa a tocá-la contra a sua vontade. Neste momento, um amigo de Alex aparece e impede que o pior aconteça.
Quando o segredo de Alex é descoberto pela comunidade, somos levados a pensar sobre o impacto de seu corpo pelo viés cultural. De acordo com Butler (1993), o sexo de um indivíduo tem fundamental importância e centralidade, visto que ele não seria apenas um atributo de adjetivação, mas uma marca necessária para a humanização. Em suas palavras: “Sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem, ou uma descrição está- tica do que alguém é: ele será uma das normas pelas quais o ‘algum’ torna-se simplesmente viável, que qualifica um corpo para a vida dentro do domínio da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 1993, p. 2). Acontece que o corpo de Alex não é um corpo binário, ele transita entre um eixo e o outro, sem se assentar em um dos polos, mas nossa organização social é. Na binaridade não há lugar de compreensão dos sujeitos que vivem desprezando as normas regulatórias da sociedade, porque o que escapa ao binário rapidamente torna-se ininteligível (LOURO, 2008).
Quer dizer, para a sobrevivência, o corpo precisa contar com o que está fora dele, precisa encontrar condições e instituições sociais que o legitimem. A capacidade de sobrevivência de alguém não se sustenta por vias meramente intrapsíquicas, depende também do social e do fato de contar como um corpo que importa. É esta ideia, inclusive, que a própria autora coloca no cerne de sua teoria “se poderia dizer que todo meu trabalho gira ao redor desta questão: o que é o que conta como uma vida? E de que maneira certas normas de gênero restritivas decidem por nós? Que tipo de vida merece ser protegida e que tipo de vida não?” (BUTLER apud BIRULÉS, 2008). Quer dizer, em uma ponta desta lógica temos os corpos que se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade social e, na outra, os corpos que não importam e que são tomados como abjetos. Tais corpos não são inteligíveis, não têm uma existência legítima.
Normatizar, materializar, importar... uma cadeia de associação que atribui significados a um pedaço de carne, concedendo (ou não) o direito de um corpo existir. Isso pode ser observado na sequência do filme. Frente ao ocorrido Kraken, furioso, fisicamente avança nos garotos responsáveis por abusar de sua filha. Quer assegurar a sua importância e o seu direito de existir. Nesta busca de justiça, dirige ele até a delegacia. Mas, ali em frente, prestes a entrar na instituição, se percebe de mãos atadas. O que significa entrar? No mínimo todos vão descobrir a condição de sua filha e o que vai acontecer a partir daí? Ela terá apoio legal? O sistema judiciário abarcaria e protegeria seu corpo abjeto? O mesmo acontece quando o pai sugere levá-la a um hospital. Para tanto, novamente está implicado a descoberta de um segredo e os limites do sistema médico. Frente essas dúvidas Kraken recua e volta para casa. O que resta fazer então? Érica angustiada, insiste para Sueli que apresse logo a cirurgia e opere a filha, assim poderá protegê-la e evitar que este tipo de coisa aconteça. Basicamente, encaixá-la rapidamente ao sistema binário e garantir a sua inteligibilidade dentro dos moldes culturais.
Por outro lado, a cultura não é uma entidade fixa, ela também tem seus movimentos e segue, vagarosamente, em transformação. Vemos isso, por exemplo, quando pensamos que os parâmetros do que entendemos por perversão vêm sendo redefinidos. Bleichmar (2009) questiona quem ainda hoje poderia considerar de ordem perversa as práticas nas quais um casal, em seu relacionamento amoroso, reúne formas pré-genitais e genitais, ou modos de produção mútua de prazer sob formas não tradicionais? Assim, a autora propõe tirar a perversão de uma questão moral e transpô-la para uma questão ética. Ela diz: “Redefinamos então a perversão como um processo no qual o gozo está implicado a partir da dessubjetivação do outro. Não se trata de transgressão de uma zona, nem do modo de exercício da genitalidade, mas na impossibilidade de articular na cena sexual o encontro com o outro humano” (BLEICHMAR, 2009, p.102). Esta nova definição da autora é generosa posto que a construção da ética transcende a moral.
A criança, por sua vez, só poderá incorporar a lei através do amor ético do outro. O sentido ético funciona como uma construção. Para a criança se permitir introjetar a lei, ela tem que viver com o outro essa dimensão ética. Precisa, primeiramente, ser colocada no lugar de sujeito e ser identificada como sujeito pelo outro. Isso transmite mensagens impregnadas de senso de valor: “Você merece os nossos cuidados”, “Sua existência é significativa”, “Você importa”. Receber um lugar valorizado no olhar dos pais, funciona como um “sopro de vida narcísico” que faz frente aos efeitos desagregadores provenientes dos excessos inoculados pelos adultos e coloca o movimento de fechamento do Eu para funcionar. E neste sentido se constrói um senso ético. Como se dissesse “Se o outro for ético comigo, aceito esse modelo de ética e este modelo identitário que ele está me passando”.
Isso nos leva aos momentos finais do filme. Em casa, depois do abuso, Alex é abraçada e recebe apoio da mãe, dos amigos e do seu pai guardião. Um diálogo interessante acontece entre eles. Ela acorda e vê o pai sentado ao lado da cama olhando para ela:
- O que está fazendo?- Cuidando de você.- Não vai poder cuidar de mim para sempre.Ele concorda com a cabeça e diz:- Até que possa escolher...-O quê?- O que vai querer.Alex se vira na cama pensativa. Olha para cima, suspira e diz: - E se não houver o que escolher?Se entreolham em silêncio.
Talvez seja isso. Talvez Alex simplesmente quer ser. Sem remédios e sem cirurgia. É possível que, diante do reconhecimento e da ética exercida por seu meio familiar, Alex queira arriscar sustentar uma tradução de gênero mais flexível e plural, sem necessariamente recorrer a uma solução taxativa delimitadora. Percebemos o quanto as mensagens e o auxílio deste meio são importantes para ela elaborar alguma coisa por si. Tanto que decide prestar queixa, bancando o que isso significa: “que descubram”. Talvez se trate disso, de “descobrir” a pluralidade encoberta, desvelando- a e tentando sustentar outros contornos identitários. O próprio Laplanche (2015b) se interroga se o complexo de castração e a sua lógica fálico-castrado seria mesmo incontornável: “não existem modelos de simbolização, mais flexíveis, mais múltiplos, mais ambivalentes?”10 (2015b, p.171). As- sim, talvez o olhar tolerante dos pais, somada a experiência de aceitação que viveu com Álvaro, deu condições para Alex formular alguma tradução própria. Na despedida chorosa e doída que faz de Álvaro, esse surpreendente “amor de verão” que Alex jamais pensou se apaixonar, ela mostra a ele os seus genitais. Assim, àquilo que até então deveria manter-se obstruído, recalcado e sob segredo, pode ser enxergado e vir à luz.
Referências
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Filmografia
XXY. Direção: Lucía Puenzo. Pyramide Productions, Argentina, França e Espanha. colorido, 1997, 87 minutos.
Notas
1 A escolha de Puenzo em nomear a protagonista de Alex não se faz por acaso. Além deste nome remeter à ideia de ambiguidade, ele também faz uma referência explícita à obra de Foucault. “No prefácio do livro Herculine Barbin – O diário de uma hermafrodita, o filósofo francês questiona de forma categórica a criação dos gêneros sexuais como imposições socioculturais e, principalmente, políticas. Ao relatar o drama vivido por Herculine – (...) [cujo] os familiares e amigos a chamavam de Alexine –, Foucault revela a violência de sistemas discursivos (o sistema médico e o sistema jurídico) que reivindicam “a verdade” do sexo em detrimento da ética e do respeito à vontade dos indivíduos. Herculine Barbin, hermafrodita francesa, que viveu toda sua infância e adolescência como mulher, matou-se depois de ser obrigada legalmente a mudar de identidade” (PÉRET, 2009, p. 856-867). Por opção metodológica mantemos neste capítulo o pronome feminino ao se referir a Alex, seguindo a mesma orientação que aparece na composição geral do filme.
2 Johansson (2018) faz uma interessante análise da geografia ficcional do Uruguai, criada pela literatura e cinema argentinos e afirma que, em XXY, a configuração das paisagens das praias, desdobra a potência de corporalidades e formas de vida alternativas: “O olhar da câmera sobre a jovem não pretende interiorizar, mas seguir uma forma, a de um corpo em devir que é exposto como uma imagem de um trajeto desde o interior da casa para o exterior da orla costeira: mar, areia, florestas de praia delineiam um ambiente natural solidário à imagem do corpo da protagonista. A paisagem da praia se configura então como uma superfície material na qual se inscreve o corpo de Alex, uma poderosa imagem liminar detida no tempo da decisão sobre seu gênero” (JOHANSSON, 2018, p. 103).
3 Ainda hoje a meta principal das equipes de saúde que lidam com casos de intersexo é fazer a designação sexual, geralmente conduzida por meio de intervenção cirúrgica e/ou terapia hormonal antes dos 24 meses de idade. Santos e Araújo (2003) criticam que tanto a proposta que enfatiza intervenção precoce ou adiamento da cirurgia, parecem insistirem no “quando” intervir cirurgicamente, adotando, assim, “uma perspectiva de desenvolvimento apoiada exclusivamente na noção de idade cronológica e biológica, minimizando a importância de outras dimensões como aquelas vinculadas aos planos subjetivo, social e cultural” (SANTOS & ARAÚJO, 2003, p.19).
4 Segundo Jô Gondar (2019), Laplanche escreve que “antes da diferença de sexos, a psicanálise admite sem teorizar uma diferença de gêneros. Uma criança recebe a oposição social entre masculino e feminino sem questioná-la. O problema é que a psicanálise, diz Laplanche, também retoma essa oposição sem questioná-la. Essencializa essa oposição, situando-a como uma distinção à qual naturalmente se chega. Pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior. Nesse ponto, Laplanche concorda com Judith Butler, e é surpreendente que tenha dito isso bem antes de qualquer movimento queer” (p. 2-3).
5 De acordo com Fausto-Sterling (2000) estima-se que 1,7 % da população mundial apresenta algumas das variações intersexo, que são caracterizadas como incompatibilidades entre órgãos e cromossomos sexuais, alterações hormonais e, em menor número, ambiguidades sexuais. Como comparação, essa é mais ou menos a porcentagem de pessoas ruivas na população geral.
6 O tema é polêmico, já há relato de pessoas que se propõem criar os filhos de um modo completamente neutro. Negam dizer o sexo da criança, atribuem um nome neutro, evitam tudo aquilo que numa cultura se diz “de menino” ou “de menina”. Tudo isso numa expectativa de criar a criança verdadeiramente livre, deixando-a escolher por si só. Entretanto, pela perspectiva psicanalítica laplancheana isso não se sustenta, pois a inoculação dos fantasmas dos adultos sob forma de enigma, inevitavelmente acontece. Podemos nos perguntar, inclusive, se tais atos não potencializam o enigma, sob o risco de ele se tornar paradoxal. Afinal, retira-se da criança importantes códigos tradutivos que vão auxiliá-las na elaboração da pluralidade originária.
7 No artigo Da transferência: sua provocação pelo analista (1993), Laplanche discorre sobre três dimensões, três funções do analista: o analista como responsável da constância; o analista como piloto do método e acompanhador do processo primário e o analista como guardião do enigma e provocador da transferência.
8 É importante ter em mente que o Édipo infantil é sempre, ao mesmo tempo direto e invertido. Isso porque as identificações são sempre substituições de amor, são, basicamente, interiorizações do objeto perdido. “A identificação com o objeto e não com o rival é indispensável para qualquer abordagem da homossexualidade” (p.41), relembra- nos Laplanche (2015a). E continua “O homossexual (..) identifica-se com o objeto de amor: mãe. E, do mesmo modo, o heterossexual deve ter amado intensamente e com um amor homossexual o pai para se identificar com ele” (LAPLANCHE, 2015a, p.41-42). Assim, as monções positivas e negativas estão sempre presentes em qualquer identificação.
9 No conto Cinismo, o percurso deste personagem foi mais bem explorado, revelando que ele já estava às voltas da descoberta de algum prazer anal via masturbação.
10 A sua defesa é que há uma oposição entre o simbólico pensado como mito único e as simbolizações plurais. Em suas palavras: “Com efeito, se a castração é uma lei culturalmente inculcada, continente em relação ao que constitui o mais profundo dos nossos desejos, nada impede que se indague se ela não estará vinculada a um certo tipo de sociedade ou a certos tipos de sociedade ou mesmo, mais além, a uma sociedade mais radicalmente falseada, uma sociedade androcêntrica, centrada, portanto, no primado da problemática masculina, do falo e de sua supressão” (LAPLANCHE, 1988, p.164).
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