Ateliê de sonhos e não-sonhos: uma reflexão sobre o conceito de enactment a partir do filme Trama Fantasma
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- 1 de dez.
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Este é um capítulo do livro "Entre sombas e luzes: o cinema e a experiência estética do psicanalista", publicado em 2025 pela Editora Zagodoni. O artigo foi escrito por Marina Ribeiro, Camila Young e Luan Ricardo.

No vai e vem da agulha, exploramos o conceito de enactment a partir dos estudos de Roosevelt Cassorla, articulando-o ao filme Trama Fantasma. Embora originado no contexto clínico, buscamos expandi-lo para pensar as dinâmicas intersubjetivas que o cinema permite entrever - e que tentamos costurar neste ensaio.
Das costuras no nosso ateliê: a teoria
O enactment é um conceito psicanalítico contemporâneo que se refere a atuações geradas pela comunicação inconsciente entre paciente e analista, nas quais ambos participam de um conluio que interrompe a capacidade de simbolizar. Nesses momentos, experiências não elaboradas emergem como padrões imobilizadores, que ao mesmo tempo ocultam e revelam conteúdos inconscientes - como num teatro mudo.
Diferentemente do acting out descrito por Freud (1905), o enactment implica uma dinâmica intersubjetiva, na qual paciente e analista participam, inconscientemente, de uma cena co-construída. As particularidades do analista - sua história, contratransferência, estilo clínico - influenciam suas reações, favorecendo conluios e não-sonhos [1] que demandam elaboração no processo analítico.
Como destaca Marina F. R. Ribeiro (2016), o conceito de enactment tem raízes nos estudos sobre identificação projetiva desenvolvidos por Melanie Klein (1955) e se insere em uma “era” da psicanálise marcada pela ênfase na interação entre analista e analisando. Valoriza-se aqui a intersubjetividade, evidenciando a implicação do analista nos pensamentos e afetos que atravessam o campo transferencial-contratransferencial.
As contribuições de Roosevelt Cassorla: enactments crônicos e agudos
Cassorla (2016) descreve o enactment como um fenômeno intersubjetivo no qual ambos os membros da dupla analítica, a partir da indução emocional mútua, se envolvem inconscientemente em dramatizações que expressam vínculos primordiais. Propõe, ainda, uma distinção entre dois tipos de enactment: crônico e agudo.
Os enactments crônicos referem-se a uma indiferenciação prolongada entre analista e paciente, dificultando a simbolização. O campo é dominado por cenas [2] e repetições estagnadas que encobrem o traumático. Esse conluio pode surgir sob idealizações mútuas - com gratificação excessiva e ilusões de compreensão - ou dinâmicas sadomasoquistas, marcadas por dominação e submissão.
Forma-se, então, um vínculo resistente, que suspende a capacidade de sonhar. Palavras e gestos deixam de promover elaboração e passam a funcionar como defesas contra a verdade emocional - são não-sonhos-a-dois, sustentando a paralisia psíquica.
O enactment agudo, por outro lado, rompe essa fusão e permite o contato com a alteridade e o traumático. O campo se reorganiza, restabelecendo a diferenciação inconsciente entre os membros da dupla. Em consonância com as ideias de Bion [3], é nesse momento que pode emergir uma verdade emocional capaz de ser sonhada.
No entanto, esse enfrentamento nem sempre é tolerável. O conluio atua como defesa e obstáculo - escudo e prisão - e sua dissolução exige preparo de ambos para metabolizar a experiência. Do contrário, o campo pode retornar ao enactment crônico, repetindo a paralisia até que haja disponibilidade psíquica para o trabalho analítico.
Assim, embora interrompa momentaneamente o processo, o enactment pode inaugurar um novo ciclo de simbolização. Ao se abrir novamente à experiência do sonho-a-dois, o analista se deixa afetar, oferecendo imagens, intervenções e narrativas que ampliam o campo simbólico. Quando essas contribuições se articulam ao universo interno do paciente, um novo sonho emerge - mais autêntico, mais próprio.
Nesse movimento, o que antes se condensava em conluios transforma-se em apropriação subjetiva, permitindo que ambos reconheçam e elaborem aquilo que antes apenas encenavam. O campo se revitaliza e a capacidade de pensar e sonhar é recuperada.
Os pontos de alinhavo: reflexões teóricas a partir de fragmentos cinematográficos
A partir dessa tessitura teórica, propomos um deslocamento do setting analítico para a sala de cinema. É nesse novo cenário que o enactment pode se apresentar sob formas diversas - gesto, atmosfera, silêncio - revelando-se como um modo de escuta para além das falas.
Escolhemos o filme Trama Fantasma como matéria para costurar, à mão e com escuta analítica, pontos de contato entre o conceito de enactment e os fios que atravessam sua narrativa. O encontro com a obra foi vivido como experiência - no sentido proposto por Ogden (2014) - em que o espectador psicanalista mobiliza uma percepção singular, capaz de iluminar estados emocionais complexos.
Logo no título, a obra anuncia uma trama fantasmagórica que, sem se revelar de forma explícita, permeia toda a narrativa. A narrativa do filme se distancia de propostas que mastigam os sentidos ou impõem uma leitura saturada, marcada por uma forma única de olhar (ou escutar); ao contrário, propõe um encadeamento de cenas marcadas por silêncio e ambiguidade, que permitem entrever comunicações inconscientes.
Dirigido e roteirizado por Paul Thomas Anderson, Trama Fantasma acompanha Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), renomado estilista da elite britânica dos anos 1950, cuja vida é rigidamente controlada. Embora envolvido com várias mulheres, é com Alma (Vicky Krieps), uma garçonete do interior, que estabelece uma relação intensa - na qual algo de sua própria alma vem à tona de forma inesperada.
O estilista incrível e a manequim perfeita: o enactment crônico
Alma é uma mulher de vida simples. Vive em uma cidadezinha pequena nos arredores de Londres e trabalha como garçonete em um café. Uma pessoa pouco vista pelos outros e por si mesma. Alta, esbelta, bochechas coradas e uma autoimagem que, em seus gestos e falas, sugere fragilidades. Woodcock é um estilista de sucesso, vaidoso e impenetrável. Proprietário e criador de um ateliê de alta costura que veste a elite inglesa.
Woodcock tira uns dias de descanso da árdua rotina de trabalho e é atendido por Alma em um café da pequena cidade próxima a Londres. Enquanto é atendido, trocam olhares, sorrisos e ele a convida para jantar. Na cena seguinte, em um espaço íntimo, Woodcock pede que Alma vista um de seus vestidos e, com entusiasmo e uma fita métrica, mede cada parte de seu corpo, como se fosse uma manequim. Um corpo (im)perfeito submetido à arte da costura para se tornar impecável.
Cria-se um laço, um interesse, um afeto que os aproxima. Alma passa a viver na mansão em uma sobreposição de papeis: mulher, amante, funcionária do ateliê, manequim, enquanto Woodcock se dedica avidamente à atividade da alta costura.
No cotidiano dos acontecimentos da mansão, quem dita o tempo e as regras é Woodcock, de tal modo que Alma se submete a passar horas em pé como sua manequim, além de trabalhar como costureira junto às outras funcionárias. Além do casal dormir em quartos separados, Alma vive na sombra, à disposição dos desejos e vontades de Woodcock.
Por outro lado, e de forma contraditória, nos holofotes, desfila seus exclusivos vestidos em eventos comerciais e sociais. A jovem, paramentada por tecidos sofisticados de altíssima qualidade, experimenta ser vista por Woodcock e por todos ao redor. Alma vive situações nas quais se sente investida, talvez reconhecida; ela diz: “Reynolds realizou os meus sonhos e eu lhe dei o que ele mais desejava em troca: cada pedaço de mim.”
Um encontro de almas
A vivência do encontro a dois, é nela que os afetos atravessam e os diálogos ganham forma. Sob os elementos que emergem da relação, cada membro da dupla sente, pensa, age ou paralisa.
No encontro de Alma e Reynolds existe uma relação que cursa o caminho da mutualidade e expansão? Ou, ao contrário disso, estamos diante de uma relação que traduz a lógica opressor-oprimido; dominador-submisso? O que os mantêm nessa dinâmica? E qual a percepção que cada um deles debruça (ou não) sob a relação?
A fala de Alma sobre o seu encontro com Reynolds carrega a “realização de um sonho”, um possível estado de satisfação, e talvez gratidão, que se reflete em atos de entrega afetiva, com aspectos de submissão. A jovem tímida e invisível, sem sobrenome, residente em uma cidadezinha nos arredores da capital, vive momentos em que encarna uma bela modelo que desfila roupas de grife em Londres, fica visível, recebe doses de importância e, quem sabe, um lugar de reconhecimento. Para Woodcock, importa a criação de seus lindos vestidos. É vê-los ganharem fama carregados pelo corpo de sua bela e jovem manequim - Alma. Que com sua delicadeza e doçura lhe faz companhia sempre que deseja. Uma presença para preencher suas expectativas.
Cada qual abastecido no seu sonhar, mas que sonho é este que impede o pensar e perturba a caminhada da vida? Estamos diante de um conluio de idealização e gratificação que, se por um lado representa uma aparente harmonia, por outro, carrega os perigos da estagnação. Tanto no que diz respeito à expansão dos processos subjetivos de cada pessoa envolvida, como da própria relação.
Quando a capacidade de reconhecer e atribuir sentido à experiência está deteriorada, estamos diante de conexões frágeis, simbolizações precárias e, portanto, na área de não-sonhos. De acordo com Cassorla (2016) o enactment crônico nasce no terreno do não-sonho, como consequência da incapacidade de simbolização do que está sendo vivido e da necessidade de se reviver vínculos primordiais.
Na atmosfera do filme, assistimos à formação de uma relação fusional ativada pela fragilidade, que expressam formas de enactment crônico entre eles. “O espalhamento apaixonado se revela como conluios de idealização mútua” (CASSORLA, 2014, p. 4) sem que a dupla envolvida perceba o que está ocorrendo. A aparência de um sonhar-a-dois camufla paralisações inconscientes, que esbarram em situações traumáticas e embaralham a produção de sentidos que desperte para alteridade.
A psicanálise contemporânea tem se voltado a pensar a vida onírica e a falta dela nas análises, Cassorla, em seus estudos, dedicou-se a compreender o contínuo movimento de sonho↔não-sonho nas análises, com todas as possibilidade intermediárias que se manifestam no campo a partir da rede simbólica que se amplia ou se atrofia nas travessias dos processos analíticos (CASSORLA, 2014, 2016).
Assim como na relação da dupla Alma e Woodcock, que em um conluio de idealização e excessos de gratificações empobreceu o pensar e, consequentemente, o rumar para as transformações e alteridade, a relação analítica, também pode se embrenhar em conluios inconscientes de resistências e favorecer a formação de enactments crônicos.
Para Cassorla (2016) os enactments crônicos têm algumas funções, tais como: evitar a revivência do trauma tamponando a ansiedade; imobilizar o analista para que ele não traumatize o paciente; promover uma relação profunda (inconsciente) entre a dupla que levará o analista para as áreas traumatizadas; esperar tempo suficiente para que a mente dê conta de elaborar novos conteúdos.
Neste percurso, o analista pode perceber os impasses e buscar estratégias de elaboração, ou não, sendo arrastado para área de não-sonhos, paralisações, podendo viver longos períodos de retraimento de sentidos. A situação em que o não sonho do paciente ataca a capacidade de pensar do analista constitui-se em um não-sonho-a-dois. De modo geral, são formadas em terreno onde não há uma rede simbólica suficiente para viver a realidade triangular (CASSORLA, 2013), ou seja, a diferenciação eu-outro e todos os percalços resultantes desse processo.
Cabe salientar que, no paradigma intersubjetivo, a pessoa do analista participa da sessão [4], com seus aspectos conscientes e inconscientes, sua história pessoal e profissional, suas possibilidades e limites. O analista é parte do campo analisante, ele sofre as identificações projetivas do(s) paciente(s) e participa desse processo a partir da sua condição psíquica, que pode operar em um bom funcionamento ou em disfuncionamento (TAMBURRINO, 2016).
No filme, Woodcock dá prestígio e visibilidade para Alma, um aparente lugar de reconhecimento, de mulher-esposa. Alma, por sua vez, lhe oferece seu corpo-manequim, seu corpo-mulher, seus serviços, seus cuidados. Em uma análise, assim como destacado na dinâmica do filme, a dupla pode funcionar de modo inconsciente, em complementaridade de desejos e expectativas, podendo se afastar, por ora, do movimento da transformação.
Alma! Não se mova: o enactment agudo
Alma chega à cozinha para tomar o seu café da manhã: o ambiente está silencioso e Woodcock e sua irmã estão sentados à mesa. Ruídos irrompem no ambiente, Alma se movimenta, faz barulho para descascar o pão, para despejar água morna na xícara de chá, para mastigar o alimento que leva à boca. Woodcock, nitidamente incomodado, dirige seu olhar para ela: “Por favor, não se mova tanto. Alma, é movimento demais no café da manhã”. O estilista irritado se retira da mesa e sua irmã aconselha Alma a fazer o seu desjejum em outro horário ou no próprio quarto.
Em uma cena posterior, a jovem Alma está inquieta, quer transformar o ritmo das coisas. Então, dispensa os funcionários, pede para que a irmã de Woodcock passe uma noite fora e prepara uma surpresa romântica, um jantar a dois. Woodcock chega em casa, que está vazia e silenciosa, e se depara com Alma bela e sorridente, esperando-o no alto das escadas. Por sua vez, Woodcock apresenta um semblante descontente e sombrio, questiona a iniciativa de Alma e pergunta por sua irmã. A moça, com as mãos para trás, semelhante à postura de uma garçonete, pergunta se ele aceita uma bebida e ele recusa a oferta e diz que vai tomar um banho. Nota-se, mais uma vez, contradição de afetos em cena. Alma ousa causar uma transformação, mas seu corpo é tomado por ações que retomam o sentido das posições estagnadas na relação [5].
Alguns minutos mais tarde, na mesa de jantar, Alma, ao mesmo tempo que tenta ser doce com amado, pergunta com tom de ciúmes sobre o seu encontro com a princesa da Inglaterra, uma bonita e especial cliente. Então, ele olha firme para ela e não responde, apenas toma um gole de sua bebida. A cena segue com um desentendimento entre eles.
Alma está nervosa e desapontada. O jantar romântico tem gosto de hostilidade. Ela observa Woodcock espalhar uma grande quantidade de sal em cima dos aspargos que ela preparou com carinho. Apreensiva, pergunta a ele se gostou da comida. Em um primeiro momento ele diz que sim, mas pressionado por ela, Woodcock admite que ela não cozinhou os aspargos da maneira como gosta, apenas no azeite. Com mais doses de tensão, onde paira um clima de aniquilamento, uma discussão eclode. Nesta, Alma diz estar cansada dos jogos de Woodcock e ataca seu jeito cínico de viver e se relacionar. Ele a agride (e humilha) pontuando que ela não é obrigada a viver ali e que pode voltar para o lugar de onde veio.
Alma tem alma!
Alma tem sons próprios! Há uma disritmia na mesa do café da manhã. Alma tem ideias próprias! Planeja e organiza um jantar surpresa. Alma tem alma! Sofre de ciúmes e profere cobranças. Incomodado com o descompasso das coisas, Woodcock sugere que ela volte para o lugar de onde veio, a cidadezinha pequena, o lugar submisso. Como continuar na relação, de maneira discriminada e, ao mesmo tempo, relacional?
As atitudes da jovem esboçam mudanças na trama, uma tentativa de redefinição de lugares. Entre a iniciativa de organizar um jantar a dois na mansão e oferecer uma bebida posicionada como serviçal, ela rabisca uma saída criativa para se diferenciar e encontrar um lugar de reconhecimento. Simultaneamente, Woodcock tenta driblar o movimento de transformação, se coloca de maneira autoritária a fim de manter o status quo, a configuração de dominação de um sobre o outro. À essa altura, entramos em contato com o seu sofrimento, que se origina desse não-lugar, um não-sonho com trajes de sonho.
A fantasia simbiótica que sustenta o enactment crônico traça caminhos para ser desfeita. Cassorla explica que durante a cronicidade dos conluios, “o contato momentâneo com a triangularidade pode ser marcado por micro-enactments agudos (tentativas de diferenciação) quase imperceptíveis, quando a organização defensiva retrocede imediatamente para enactments crónicos” [6].
Assim, assistimos Alma tentar se libertar do conluio simbiótico de perfeição na busca de uma relação de amor na qual ela pudesse ser em função de quem se é. Na sequência, fortalece um vínculo sadomasoquista, onde a jovem volta a acatar aos comandos de seu amado, que, por sua vez, continua a ditar sadicamente o que deve ou não existir no campo da relação. Desse modo, os movimentos escancaram as faces complementares do conluio inconsciente: proteção da verdade emocional traumática e aniquilamento das subjetividades.
Enquanto o enactment crônico é sutil e se constitui em uma zona de resistência, o enactment agudo marca uma encenação aguda, abrupta, com caráter de denunciar a estagnação e o sofrimento. De acordo com Cassorla (2016, p. 97-98) o fenômeno tem “por objetivo demonstrar seu valor comunicativo para o processo analítico, estimulando sua compreensão.” Ou seja, embora o enactment agudo se apresente com características de impasse ou conflito, como o desentendimento frente ao jantar romântico, ele tem o aspecto comunicativo, evoca o entendimento para um vínculo adoecido, para o sofrimento.
Na clínica, nos deparamos a todo momento com impasses no processo analítico. De tal modo, é função do analista identificar e desfazer os enactments com uma certa frequência [7]. Quando há o imbróglio do enactment crônico, onde as paralisações se estendem e se localizam em zonas inconsciente o enactment agudo pode se impor, obrigando o analista a “abrir os olhos para o que estava acontecendo”, trata-se de um momento construído après coup (posteriormente à sessão ou ao acontecimento) e que permite a compreensão do impasse. (CASSORLA, 2014, p. 22).
Nas análises, o enactment agudo se apresenta de maneira performática, onde o paciente convoca o analista para encenação e ambos se envolvem na cena dramatizada sem que percebam, a priori, toda a rede de significados que está por trás da atuação. Cassorla (2014, 2016) descreve uma sequência de etapas que caracteriza o fenômeno. O primeiro momento é marcado por uma atuação abrupta (aguda), no qual elementos sem significados ou com significados deteriorados são eliminados via identificação projetiva, são fatos que não se conectam à rede simbólica e se constituem em zonas onde a simbolização está prejudicada.
Em seguidas, o campo é inundado por intensidade de afetos e estados confusos, difíceis de descrever ou entender. Neste momento, o analista pode sentir que exagerou, falhou, sentimentos de culpa, raiva, entre outros, podem estar presentes. Entretanto, com a sequência dos fatos analíticos e a implicação do analista sobre os acontecimentos [8], caminha-se para que os pontos cegos sejam desfeitos, havendo uma ampliação da rede simbólica e um momento analítico mais criativo.
Um aspecto importante de destacar é que o “enactment agudo é aproveitado quando existe cerzimento suficiente para que o trauma seja suportado e sonhado.” (CASSORLA, 2014, p. 25), ou seja, o paciente precisa ter recursos psíquicos suficientes para se deparar com a realidade e simbolizá-la. Caso contrário, podemos nos deparar com regressões aos conluios iniciais, agravamentos de resistências e até rompimentos na análise. Assim como ocorre na cena do filme, marcado por um movimento de mudança seguido de contra ataque.
Cabe ao analista seguir no processo de formação e/ou construção da rede simbólica, até que novos movimentos de transformação possam ser vivenciados e introjetados na relação da dupla. Da mesma forma, Alma continua sua busca por novas tentativas.
Uma casa que não muda é uma casa morta: o enactment agudo como abertura ao sonho
“Às vezes, é bom para ele desacelerar um pouco”, pensa Alma. Neste momento, a câmara foca na imagem de um livro de medicina aberto em um capítulo específico sobre cogumelos comestíveis e venenosos. Woodcock fica alguns dias de cama após a ingestão de cogumelos, ninguém suspeita da causa do seu adoecimento. Em uma situação de fragilidade, Woodcock se submete aos cuidados de Alma, que exerce a função com carinho e dedicação.
Acamado, sozinho no quarto, Woodcock tem uma espécie de sonho em alucinação com sua falecida mãe. Em sonho, ele conversa com ela, diz sentir saudades, que pensa nela o tempo todo e acorda com lágrimas no rosto. É a primeira vez que o espectador percebe a fragilidade de um homem vigoroso e controlador. Alma entra no quarto de Woodcock que, sob o efeito do sonho e entremeando as imagens da mãe e de Alma, se entrega ao cuidado.
Ao melhorar do seu estado entorpecido, novos elementos entram em cena. Woodcock desperta mais leve e feliz, acorda Alma, que está dormindo em um sofá ao lado da sua cama, e pede sua mão em casamento.
Após o casamento, o casal começa a passar mais tempo juntos: vão em festas, fazem viagens, etc. Alma passa a auxiliar mais diretamente nos processos produtivos da fabricação de vestidos. Partindo desse novo contexto, o casal recebe o convite para uma festa de Ano Novo em um clube de renome da cidade, Alma quer muito ir, mas Woodcock desaprova o convite: “Está brincando. Eu não vou dançar”. Alma decide ir sozinha, apronta-se e Woodcock a observa saindo de casa. Após um tempo em silêncio olhando a porta fechada, resolve ir até a festa.
Há uma multidão de pessoas comemorando a chegada de um novo ano, um novo ciclo. Woodcock, do mezanino, lança seu olhar sobre Alma, cujo semblante é paradoxal, está animada e desconcertada em meio à folia. Com o olhar de preocupação e determinação, Woodcock vai ao seu encontro. Entre os foliões há um encontro ambíguo entre o casal, no qual circula sentimentos de ódio e amor, eles se beijam e dançam.
O semblante indecifrável de Alma durante a folia também revela uma percepção que escapa à compreensão de Woodcock. Quem ela é, além dele? O impulso do estilista em protegê-la do desconhecido evidencia a turbulência emocional criada por um novo tipo de vínculo. Há movimentos de retração e expansão, há circulação de sentimentos ambíguos.
Uma outra cena desnuda com sutileza aspectos dessa trama: enquanto Alma prepara o jantar para Woodcock, ele a observa da mesa onde rabisca seus vestidos em um pequeno bloco de notas. Entre olhares, ela corta os cogumelos com um farto tablete de manteiga, contrariando o gosto do marido, que os prefere refogados apenas no azeite. Serve-lhe um copo de água marcado por intenso barulho do líquido se acomodando no copo, não tem qualquer preocupação em não incomodá-lo com os seus sons. Ela coloca uma porção dos cogumelos no prato de Woodcock, que os cheira antes de levar até a boca, seu olhar encontra os olhos de alma de forma penetrante, em seguida, os engole lentamente. Abre-se um sorriso no rosto de Alma e eclode um pensamento sem comunicação em palavras, uma espécie de monólogo: “Eu quero você sem forças para se levantar. Desamparado. Frágil. Aberto. Somente comigo para ajudar.” O garfo é colocado sob o prato e Woodcock diz, docilmente: “Me beije, minha garota, antes que eu adoeça”.
A última cena do filme mostra Woodcock sentado em um banco, em um ambiente arborizado, e Alma empurrando um carrinho de bebê.
Dissolução dos enactments - novos ciclos
Em um ambiente asséptico, onde a capacidade de trocas afetivas dos protagonistas se revelam inexistentes, nos deparamos com áreas de simbolização precárias. Nessas circunstâncias, emerge uma situação extrema - um entorpecimento pela ingestão de cogumelos. Este acontecimento impele mudanças na trama e irriga os sentidos para o telespectador. Estamos diante de um movimento abrupto (no caso, agressivo) que oxigena e recupera o sonhar (conferem novos sentidos) ou de uma inversão de papéis que preservam a lógica dominação-submissão?
Independente da resposta à questão, a reflexão floresce. Os enactments agudos se apresentam como descargas de comportamentos em áreas de não-sonhos que, de certa maneira, estão em busca do sonhar, pois tem um caráter comunicativo (CASSORLA, 2016).
Alma forja uma condição de fragilidade que favorece sua entrada. Isto resulta em um pedido de casamento, um ato que anuncia mudança na relação, seja ela uma inversão da lógica dominador-submisso ou novos modos de relação e de subjetividade. Do mesmo modo, o sonho noturno de Woodcock o coloca às voltas com os cuidados maternos, uma condição humana na qual precisamos do outro para sobreviver. Acordado, sonha em ter um casamento ao lado de Alma. A condição do adoecimento e entrega (ou submissão) aos cuidados da jovem mulher traz um novo olhar sob o vínculo.
Em outro momento do filme, Reynolds encontra Alma na festa de Ano Novo. O casal (agora, se constitui como casal) dança em meio à bagunça dos foliões e ao anúncio da chegada de um novo ciclo. A atmosfera do vai e vem dos corpos sugere a circulação de afetos, talvez amor pelo reencontro, ou raiva pela nova condição - casados, ou ódio pela própria inversão de papéis. Novos acontecimentos, novos sentidos.
Na sutileza e profundidade da troca de olhares na cena em que Woodcock se alimenta dos cogumelos, paira nas entrelinhas, um certo consentimento ao novo modo de encontro, no qual, em circunstâncias provocadas de fragilidade, a entrega ao outro pode existir. Evidentemente, não podemos deixar de mencionar a falta de reciprocidade do casal e o tom de subjugamento que se revela na cena.
Os elementos que se apresentam na cena final do filme têm uma fotografia cinematográfica diferente, marcada por um espaço aberto, arborizado, enquanto atravessa um carrinho de bebê conduzido por Alma. Esse cenário poderia apontar para uma possibilidade de sonhar-a-dois? Talvez, vislumbremos que “o desenvolvimento da capacidade de sonhar e pensar, por sua vez, permitirá maior capacidade de lidar com frustrações e aprender com a experiência emocional.” (CASSORLA, 2014).
A capacidade de sonhar com a experiência e novos futuros favorece o trânsito em áreas simbólicas. Nesse caminho, pensar ou simbolizar diz respeito a uma qualidade do psiquismo que se dá através da constituição dos símbolos, sejam eles imagéticos ou verbais.
No contexto das análises, os enactments agudos podem ser a via régia para a abertura de uma cadeia de sentido. O analista atento se dá conta que as descargas e explosões que se manifestaram no campo analítico permitem a recuperação do pensar e do sonhar. Com isso, percebe-se a esterilidade e conluios que estavam sendo vividos e cria-se caminhos de ressignificação, a dupla vive momentos de proximidade e criação.
Da mesma forma que “uma casa que não muda é uma casa morta”, uma análise sem movimento perde sua função onírica, ou seja, a capacidade de gerar conexões simbólicas, novos significados, maior desenvolvimento emocional, em uma contínua ampliação da mente. (CASSORLA, 2017).
Os arremates da nossa costura: considerações finais
Para além do setting clínico, a leitura do conceito de enactment em obras cinematográficas permite pensar movimentos de estagnação e transformação na relação entre personagens. Como vimos em Trama Fantasma, as reações dos protagonistas não se dirigem apenas ao outro, mas ao sentido que a dupla cria inconscientemente no vínculo. O cinema, assim, revela aquilo que a psicanálise formaliza teoricamente.
Ao mobilizar a imaginação do espectador, a sétima arte torna-se uma via potente para a reflexão psicanalítica. Pensar um filme é também confrontá-lo com o que há de mais íntimo em nós - e essa operação se intensifica quando a obra preserva sua ambiguidade, abrindo espaço para múltiplos sentidos. Tal como o campo analítico, o campo cinematográfico convida a sonhar, revelando tramas singulares e afetivas em cada espectador.
Referências bibliográficas
CASSORLA, R. O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment; São Paulo: Editora Blucher. 2016.
CASSORLA, R. Estupidez no campo analítico: vicissitudes do processo de desprendimento na adolescência. Internacional Journal of Psychoanalysis. Open. 1 (28), 1-37. 2014.
CASSORLA, R. Afinal, o que é esse tal de enactment? Jornal de Psicanálise 46 (85), 183-198. 2013.
CASSORLA, R. O campo analítico como campo do sonhar: O lá, o aí, o aqui, o acolá como vértices de observação participante. Jornal de Psicanálise 50 (93), 53-65. 2017.
FREUD, S. Análise fragmentária de uma histeria. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6). Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1905. 2016.
KLEIN, M. Sobre identificação. In: —. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. (Publicado originalmente em 1955).
OGDEN, B. & OGDEN, T. O ouvido do analista e o olho do crítico: repensando psicanálise e literatura. São Paulo. Escuta. 2014.
RIBEIRO, M. F. R. Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment: O analista implicado. Cad. psicanal., Rio de Jeneiro, v. 38, n. 35, p. 11-28, dez. 2016.
TAMBURRINO, G. Enactments e transformações no campo analisante. São Paulo, SP: Ed. Escuta. 2016.
TRAMA FANTASMA. Paul Thomas Anderson. Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville. 2017. Universal Studios. DVD (130 minutos). Legendado em português. 2016.
NOTAS
[1] Cassorla, seguindo o pensamento de Bion, compreende que sonhar e o pensar inconsciente são processos equivalentes, ou seja, sonhar é pensar.
[2] Vamos exemplificar essas cenas na reflexão do filme.
[3] Cassorla segue o pensamento de Bion, como já dito, no entanto, o conceito de enactment é da década de 80 e não está presente na obra de Bion com esta nomenclatura.
[4] O interesse e estudo pela vida mental do analista e sua implicação na análise é uma contribuição à psicanálise a partir da obra de Bion.
[5] Essa é uma cena estanque, paralisada, como mencionado na parte inicial do texto.
[6] IPA - Inter-Regional Encyclopedic Dictionary of Psychoanalysis online. Recuperado em 4 de janeiro de 2024 de https://online.flippingbook.com/view/544664/270. Capítulo Enactment - entrada tri-regional, tradução de João Bicudo Keating, p. 9.
[7] Cassorla (2016) denominou enactments normais os impasses gerados pelo trânsito das identificações projetivas, que são percebidas e acompanhadas de elaborações.
[8] O analista busca a compreensão a posteriori através de reflexão, escrita do caso e auxílio de interlocutores (colegas de profissão, supervisores).





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