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- A linguagem perdida das gruas
Péricles Pinheiro Machado Jr.2 Marina Ferreira da Rosa Ribeiro3 Resumo: Neste ensaio discutimos a concepção de linguagem de sobrevivência para designar o modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo. Partimos de uma discussão sobre os limites da linguagem como fenômeno paradoxalmente impessoal e interpessoal, que introduz no campo analítico uma dialética fundamental para engendrar com cada analisando uma linguagem de reconhecimento capaz de veicular a intimidade da experiência. Para isso, propomos um diálogo com textos de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira e Tomas Ogden acerca das possibilidades da comunicação analítica nos limites próprios das formulações verbais. Palavras-chave: linguagem, comunicação, singularidade, reconhecimento, interpretação . 1 O artigo é parte da pesquisa de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), sob orientação de Marina F. R. Ribeiro. Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de doutorado que financia o projeto de pesquisa. . 2 Psicólogo e psicanalista. Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Doutorando pela Universidade de São Paulo (usp). Mestre em psicologia social pela usp e pela Birkbeck College, Universidade de Londres. . 3 Professora doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. No livro e lost language of cranes (1986), do qual extraio o título deste artigo, o escritor norte-americano David Leavitt narra os conflitos familiares vividos por um jovem de classe média, Philip, que certo dia, acidentalmente, assusta-se ao se dar conta da força impetuosa de suas paixões e de sua inca- pacidade de encontrar palavras para descrever a tempestade emocional que o aflige. Outra personagem desse romance, Jerene, doutoranda em filosofia da linguagem na Universidade de Stanford, também se depara acidentalmente com algo que afeta radicalmente o rumo de sua vida e a direção de suas investigações acadêmicas. Durante uma pesquisa na biblioteca da universidade, Jerene encontra um artigo psicanalítico que descreve o caso de uma criança chamada Michel. À medida que lê a síntese do relato, ela sente despertar dentro de si uma angústia que a toma de assalto e a faz mergulhar no texto como se adentrasse um universo paralelo, que guarda inúmeras semelhanças com algo que ela mesma intuía silenciosamente sobre si. Filho de uma adolescente com histórico de problemas mentais, Michel vive abandonado em um cubículo nos subúrbios de Nova Iorque enquanto a mãe vagueia pelas ruas da cidade, imersa em sua loucura privada. Sobre o pai, nada sabemos. Os cuidados para com o bebê eram precários. A despeito dessa precariedade, Michel sobrevive. Ele chega aos 2 anos de idade sem aprender a falar: grita, berra, chora, emite sons apavorantes, que atravessam as paredes e chegam até os vizinhos, os quais frequentemente tentam intervir, embora sem sucesso. Certa vez, a mãe sai de casa e desaparece por dias, deixando Michel à própria sorte. Assolado pelo terror do desamparo, ele grita a plenos pulmões. Os vizinhos batem à porta, ninguém responde. Queriam, a princípio, que o garoto se calasse e deixasse de importuná-los. Depois de muito chorar e per- turbar longamente o sossego dos vizinhos, em determinado momento Michel emudece. O som é interrompido subitamente. Nada mais ecoa de dentro do cubículo sujo e precário. Os vizinhos estranham. O silêncio ensurdecedor torna-se então motivo de inquietação e alarme. Desconfiam que o garoto esteja desacompanhado, talvez morto. A polícia e a assistência social são acionadas. Encontram Michel esquálido, absorto, não obstante vivo. Sozinho em uma espécie de berço mal-ajambrado, ele se segura na grade e parece envolvido em uma espécie de transe. De vez em quando, seu rosto se volta para a janela e ele emite grunhidos que soam como arranhões metálicos. A assistente social observa com curiosidade. Ao olhar através da janela, ela vê um pátio de construção onde estão instaladas gruas gigantescas, das quais pendem bolas de demolição. Conforme as gruas acendiam os faróis, basculavam os eixos metálicos, produziam sons ferozes dos motores e arremessavam as bolas contra as ruínas de um prédio antigo, o pequeno Michel as imitava com movimentos bruscos de braços, pequenos guinchos estridentes produzidos por entre os dentes e sons de estalo feitos com a língua. Michel é levado para um abrigo. Os anos passam, e ele chega à adolescência sempre imerso em um estado de selvagem isolamento. É nesse ponto que ele começa a ser acompanhado pela psicanalista que havia publicado o artigo encontrado acidentalmente por Jerene. Michel não interage com outras crianças, não se interessa por outros brinquedos. O mundo que ele conhecia limitava-se aos movimentos robóticos dos braços e aos sons de apelo às gruas que, tal qual um útero metálico, lhe haviam fornecido um ponto de apoio e provido um contorno sensorial para seu terror sem palavras. À medida que Jerene lê o trabalho, algumas perguntas lhe vêm à mente: “Como eram esses sons? Como será que ele se sentia?” A linguagem pertencia unicamente a Michel e agora estava para sempre perdida para ela [Jerene]. Quão maravilhosas, quão grandiosas aquelas gruas devem ter parecido a Michel em comparação com as pequenas e desajeitadas criaturas que o rodeavam. Pois cada um, a seu modo, ela acreditava, encontra aquilo que deve amar e o ama. A janela se torna um espelho. Seja lá o que amamos, isso é quem somos. (Leavitt, 1986, p. 177). Valho-me dessa recordação literária como prelúdio para delinear o território em que desenvolvo este trabalho. Tenho em mente o impacto que a leitura do romance de Leavitt teve em minha vida, especialmente por haver nela encontrado ressonâncias de uma experiência que me parecia bastante familiar durante a adolescência: as sensações de inundação passional e o sentimento de frustração ao tentar me expressar em um idioma sem referências conhecidas, uma língua que em grande medida não encontrava tradutores nem intérpretes com quem fosse possível desenvolver uma conversa verdadeira. A breve descrição de uma personagem que acredito ser fictícia, Michel, o menino das gruas, oferece imagens que nos servem para pensar o trabalho psicanalítico como processo de (r)estabelecimento de vínculos humanos, intra e intersubjetivos, por meio da linguagem. Vejo Michel como uma metáfora para o sentimento de solidão, isolamento e sofrimento que acompanha todo aquele que busca na análise um outro que seja capaz de compreender sua linguagem perdida das gruas. Costumo designar esse fenômeno como linguagem de sobrevivência, para indicar um modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo, isto é, nos limites do quanto se pode contar (ou não) com a presença do outro. No contato cotidiano, essa linguagem passa despercebida. As pessoas conversam entre si, aprendem expressões, slogans, usam palavras da moda, dos memes, dos posts de Facebook e comentários de Instagram. Falam o que ouviram dizer e se expressam por meio da repetição mimética como modo de aplacar o vazio que ameaça se revelar nos momentos de descuido. Podem falar aquilo que os outros querem ouvir, contam sobre seus fins de semana com amigos, falam com os pais por telefone, descrevem seus sintomas quando vão ao médico. A linguagem a que me refiro é útil para as operações fundamentais da vida prática, mas carece da vitalidade necessária para formar vínculos emocionais entre elementos e engendrar novas concepções mobilizadoras de sentido, para si e para o outro. A linguagem de sobrevivência recorre à paralisia de formulações prontas e encapsuladas para dar conta da oscilação que se agita silenciosamente no íntimo de suas palavras. Nesse sentido, ela revela o “sentimento de desespero que influencia a vida de uma pessoa” fadada a buscar na reorganização incessante de esquemas de linguagem um senso de pertencimento por meio da adesão ao conhecido, com “um sentido muito restrito de futuro que essas representações carregam com elas” (Bollas, 1992, p. 56). A língua vernácula é aprendida e pode mesmo ser dominada com maestria. Mas quando uma pessoa chega ao consultório para uma primeira conversa com o psicanalista, acontece algo que parece iluminar os contornos dessa linguagem única. Nela detectamos os vestígios de uma linguagem mais primitiva, cujas manifestações soam como palavras, mas carecem do poder e do significado das palavras que auxiliam no pensamento e na comunicação. Elas não são produtos da mente (elementos alfa), mas se parecem mais com algo viscoso, como lágrimas ou outras excreções corporais, ou mesmo o ar quente e vazio de um suspiro pesado. (Reiner, 2018, p. 51) Os primeiros indícios são percebidos em sua atitude diante do desconhecido da sala de análise. Certas pessoas chegam e falam sem parar. Algumas falam como se estivessem na farmácia, pedindo um remédio para tosse. Outras pronunciam palavras trêmulas, sedutoras, enigmáticas e sem destino. A linguagem de sobrevivência vai aos poucos emergindo no contraste com a sensibilidade do analista, que pode escutar naquele que o busca vestígios de palavras malformadas, murmúrios interrompidos, sons errantes em busca de abrigo. Há que ter respeito pela linguagem de sobrevivência, pois é no limite desta que se move o ímpeto que leva a pessoa a mais uma vez buscar ajuda, ainda que seja sua primeira experiência com um analista. Como a personagem Jerene, pergunto-me com frequência quais seriam os sons originais, a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que pronuncia, seus maneirismos idiossincráticos, suas entonações (que talvez sejam vestígios de identificações remotas), suas formas narrativas, suas conjugações pouco usuais, suas figuras de linguagem, ora brutas, ora mais sofisticadas. Como será que suas emoções são vividas, quando a linguagem disponível para o analisando naquele momento parece ser insuficiente ou demasiadamente rasurada para dar forma a suas experiências mais íntimas? Os limites da linguagem Ruth Malcolm enuncia de maneira extremamente simples que “o processo analítico é um processo de comunicação” (1989, p. 103). É certo que se trata de uma modalidade peculiar de comunicação, atravessada pela situação transferencial, pelas teorias que o analista tem em mente, pelas condições particulares de cada analisando. Como a personagem Michel, a pessoa que busca análise chega até nossos consultórios com uma organização linguística à qual temos acesso somente por meio de sua apresentação fenomenológica. Somos apresentados ao mundo interno do analisando por meio de suas verbalizações, mas também somos afetados por seu contexto extraverbal (Bakhtin, 2011), aqueles elementos singulares que caracterizam a estrutura de significação desse mundo interno com sua gramática afetiva particular. Por outro lado, a fala do analista desperta no analisando respostas e reações emocionais às quais igualmente teremos acesso somente pela linguagem própria daquele que nos procura, uma linguagem que frequentemente se organiza como meio de resistência para dar conta de uma agitação emocional que se apoia no que for possível para encontrar alguma vazão. Como então estabelecemos com o analisando um canal de comunicação que possibilite o reconhecimento de sua singularidade a partir do estranhamento e das limitações próprias dessa mesma singularidade? Como podemos aprender a linguagem de sobrevivência do analisando para engendrarmos uma linguagem de reconhecimento que seja igualmente única mas compartilhada pela dupla analítica? Em um texto sobre a ética dos relacionamentos humanos, Stephen Frosh propõe um delineamento da experiência psicanalítica pelo vértice da dinâmica do contato entre duas mentes, analista e analisando, e de como as sutilezas que percorrem a formulação dessa dinâmica se revelam através da linguagem. Segundo o autor, a psicanálise em suas formas contemporâneas se interessa em como a fantasia adentra as relações humanas, como o sujeito pode se tornar um outro amado ou odiado para o outro, o que significa (ou como se sente) uma pessoa ao estar em conexão próxima e ao mesmo tempo conturbada com um outro, e em modos de articular e aliviar o mal-estar através da construção de relacionamentos que sejam abertos e, em importantes sentidos, verdadeiros. (2010, p. 127) Nessa perspectiva, o reconhecimento do outro é tomado como um evento que envolve uma dinâmica ativa do encontro de duas pessoas, em que o movimento mútuo de se estender em direção ao outro tem o potencial de viabilizar a emergência ou a manifestação de algo que pode ser experimentado como verdade. O vocabulário do reconhecimento do outro perpassa a compreensão dos limites da linguagem como meio de expressão da experiência íntima de cada pessoa. Dentro do que chamei de linguagem de sobrevivência, encontramos com cada analisando o desafio de perscrutar as raízes de seu idioma pessoal, ao mesmo tempo que (delicadamente) fornecemos insumos para que seus recursos de comunicação se expandam, tendo o cuidado de não provocar uma perturbação além do que pode ser suportado no campo engendrado pela dupla. Frosh traz para o debate a função que a linguagem desempenha na própria configuração da relação eu-outro. Desde sua fundação com Freud, a psicanálise reconhece a potência da palavra como elemento que ao mesmo tempo constitui e perturba a dinâmica intrapsíquica, mas também está interessada naquilo que fica de fora das possibilidades de simbolização, isto é, no “contínuo murmúrio do não linguístico ..., naquelas experiências que parecem nos escapar justamente quando estamos prestes a enunciá-las” (2010, p. 139). Fico pensando no modelo do menino das gruas para refletir sobre os aspectos da linguagem própria do analisando, que derivam não apenas de suas possibilidades expressivas, no sentido de traduzir ou comunicar seus movimentos emocionais, mas também, em alguma medida, de algo que poderíamos designar como impessoal. Nascemos em um tecido linguístico que nos antecede e extrapola os limites de nossa compreensão, transcende tempo e espaço, lança-nos em contato direto com o desconhecido. Arnaldo Chuster introduz a discussão de que o campo das trocas simbólicas é mediado por símbolos heterônomos e símbolos autônomos. Os primeiros incluem toda a gama de “símbolos adquiridos da cultura dentro da qual o sujeito habita” e na qual “encontra ferramentas comuns a todos: os conceitos”. Por sua vez, “os símbolos autônomos são os criados pelo indivíduo ou o resultado do processamento psíquico que marca a subjetividade”. (2018, p. 55) A apropriação daquilo que advém da cultura revela-se no fenômeno social que denominamos língua materna, nas malhas de significados linguísticos infinitos, nos signos e conceitos que organizam a dimensão impessoal da vida psíquica, visto que decorrem de sistemas que precedem a existência de cada indivíduo humano. Mas é nessa e através dessa malha que extraímos elementos para formular nossa linguagem pessoal, sempre de forma incompleta e precária. Frosh relaciona essa interface simbólica com o elemento impessoal a que aludi metaforicamente quando da apresentação da narrativa do menino das gruas: Aquilo que é silenciado sustenta a fala, mas também é por ela excluído. É ainda a impessoalidade da fala que é importante aqui, pela qual se entende o modo como a linguagem funciona como um sistema que não está simplesmente à disposição dos falantes individuais, mas tem suas próprias regras, sua própria maneira de fazer as coisas. (2010, p. 139) Somos produzidos pela palavra. Com a palavra precisamos nos articular, encontrar meios de expressão subjetivos (a dimensão dos símbolos autônomos, discutida por Chuster), mas para tanto precisamos recorrer a esse sistema com vida própria que independe e extrapola o desejo dos seres falantes. Frosh cita a poetisa inglesa Denise Riley para discutir esse núcleo impessoal que atravessa os sistemas linguísticos e cujas repercussões podem ser captadas na maneira como cada pessoa experimenta conexões e rupturas afetivas no contato com o outro. A exemplo disso, Riley observa “como a mais profunda intimidade junta o supostamente linguístico ao supostamente psíquico” (citada por Frosh, 2010, p. 11). Ambas as dimensões são indissociáveis, porém operam a partir de conjuntos infinitos com sucessões de signos, ou “protossímbolos individuais que vão sofrendo transformações até emergirem no campo de trocas simbólicas” (Chuster, 2018, p. 35). Mais que um antagonismo entre a linguagem que deriva das formas impessoais e aquela que decorre da experiência viva do sujeito humano, Riley propõe uma concepção de “palavras afetivas que nos habitam”, isto é, que possamos apreciar o fato de que “a linguagem se insinua dentro das pessoas e impõe a impessoalidade no coração de cada sujeito humano” (citada por Frosh, 2010, p. 139). O elemento impessoal se revela na obra de Leavitt (1986) pela imagem da criança movimentando os braços e emitindo grunhidos como uma metáfora para os conflitos internos vividos pelas personagens Philip e Jerene, aprisionadas em um sistema linguístico insuficiente para traduzir as correntes emocionais que os arrastam para cada vez mais longe de seus anseios por afeto. Philip havia aprendido a falar coisas que as pessoas falam quando querem dizer o que pensam, mas não o que sentem. E percebe, para sua desgraça, mas também para sua eventual libertação, que passou a vida inteira reproduzindo uma linguagem extraída de um seio familiar árido e sem vida, uma fala incapaz de estabelecer vínculos afetivos. A linguagem como meio de comunicação supõe o reconhecimento da presença de duas pessoas abertas ao encontro. O analisando que se expressa em linguagem de sobrevivência pode ser capaz de dar indícios de seu sofrimento sem que isso represente para si, do ponto de vista emocional, uma experiência de comunicação – de troca com alguém percebido como outro. Segundo Anne Reiner, uma vez que a linguagem capaz de preencher a lacuna entre duas pessoas com mentes únicas e independentes reflete a capacidade de desenvolvimento da individuação, o paciente que não possui essa capacidade não sabe que está falando com um indivíduo separado fora do eu. (2018, p. 46) O ofício psicanalítico nos coloca em condição de nos depararmos com as fronteiras, os limites e suas simetrias eu/outro, dentro/fora, intra/intersubjetivo, inconsciente/consciente, finito/infinito, isto é, o trabalho na cesura, conforme propõe Bion (1989). A dimensão da impessoalidade atravessa os processos de expressão humana, dado que estamos inseridos em um sistema linguístico que opera não apenas por sons, mas por silêncios, por afirmações e murmúrios, por elementos verbais, pré-verbais e não verbais. Ainda que impessoal, é somente por meio da linguagem que podemos experimentar a potência do acontecimento humano em suas expressões mais singulares e criativas. A intuição analítica traz consigo a possibilidade de auxiliar o analisando a navegar pelas imprecisões da linguagem para encontrar em sua própria voz algo que lhe comunique a mais íntima experiência de ser. A comunicação analítica nos limites da linguagem Como humano que somos, também o analista precisa se valer das possibilidades e limites da linguagem para estabelecer com cada analisando um idioma próprio, que ao mesmo tempo seja o meio de conexão afetiva e o indutor de novas conexões afetivas. Entre sons, palavras e pausas, algo se insinua a despeito do que poderíamos designar como uma intencionalidade da consciência no sentido fenomenológico. As experiências pessoais do analista em contato com o universo das expressões estéticas proveem elementos que podem sensibilizar e facilitar a captação de imagens e movimentos afetivos que se imiscuem na linguagem falada do analisando. A proposta freudiana de associação livre visa a introduzir no espaço analítico um elemento de liberdade radical. De nosso ponto de vista, tudo aquilo que o analisando diz e faz e a forma como o diz e o faz são recebidos como precipitações do inconsciente – portanto, fundamentais para o trabalho da escuta e do pensamento onírico. Na condição de um diálogo ativo, o analista recorre predominantemente à linguagem verbal para se comunicar com o analisando, “mas sabemos também que esse ideal nunca é completamente atingido, pois o tom de voz do analista muda, ele se movimenta ou fala de maneira que pode comunicar ao paciente mais do que ele gostaria”. (Malcolm, 1989, p. 110) As inflexões, as modulações, a respiração, o barulho de objeto manuseados durante a sessão (como um lápis ou um copo), os goles d’água tomados para arrefecer ou fluidificar os pensamentos, os sons emitidos pelo corpo do analista, enfim, podem ser escutados pelo analisando como ruídos persecutórios ou provas flagrantes de elementos da verdade emocional que ainda não alcançou o estatuto representacional de palavra enunciada. Em todos os casos, esses elementos extraverbais se inscrevem na partitura da música que está sendo composta pela dupla analítica, alternando entre a harmonia e a cacofonia para dar contorno à experiência emocional vivida na sessão. Em um trabalho recentemente publicado, Thomas Ogden discute a maneira como ele conversa com seus pacientes, pondo em pauta também os limites da linguagem e a função dos mal-entendidos como o elemento que, de um lado, desorganiza e, de outro, favorece o contato com a verdade emocional do analisando. Ele parte da constatação de que, “em todos os momentos de seu trabalho juntos”, analista e analisando “esbarram no fato de que o imediatismo de suas experiências vividas é incomunicável” (2018, p. 400). Aquilo que se experimenta nos limites da linguagem marca, portanto, uma hesitação inevitável: estamos ambos diante um do outro para desenvolver uma conversa a partir de elementos que de antemão são incomunicáveis. Ogden cita William James para descrever a paradoxal experiência de isolamento e abertura que caracteriza o contato entre duas mentes humanas: Cada uma dessas mentes guarda seus próprios pensamentos para si mesma. Não há concessão ou intercâmbio entre elas. Nenhum pensamento sequer chega à presença direta de um pensamento em outra consciência pessoal que não a sua. Isolamento absoluto, pluralismo irredutível é a lei. ... As lacunas entre tais pensamentos [de duas pessoas] são as fendas mais absolutas da natureza. (James, citado por Ogden, 2018, p. 400) Penso nessas fendas como um equivalente daquilo que assinala os limites da linguagem como meio de comunicação entre as pessoas. A distância que marca a separação entre analista e analisando é a premissa fundamental para que haja o encontro e o reconhecimento do outro em sua expressão mais radical. A separação, a distância entre a experiência vivida por cada pessoa na dupla analítica, não representa algo a ser superado, mas a própria condição para que desse encontro nasça a experiência de contato genuína. Penso nessa fenda como o espaço em que se pode acolher a experiência criativa por meio da construção de uma linguagem comum à dupla analítica, de tal forma que analista e analisando “sejam capazes de comunicar alguma coisa parecida com nossas experiências vividas através da reapresentação da experiência”. (Ogden, 2018, p. 400) O que pode sustentar uma parceria criativa na sala de análise, considerando-se que estamos sempre nos limites da linguagem, nos limites da experiência emocional e nos limites da interpretação – essa curiosa tradução que opera na voz do analista e que vive ameaçada de causar perturbações cujos efeitos por vezes demoram a ser captados? Dito de outra forma, aquilo que o analisando nos apresenta em linguagem de sobrevivência tem sua razão de ser. Os mal-entendidos, os sub-entendidos e os não-entendidos revelam no diálogo analítico os vestígios de experiências que levaram uma pessoa a organizar por reflexo, instinto ou reprodução aquela linguagem que lhe é peculiar. Como no caso do menino das gruas, são as idiossincrasias e os sons imitativos que serviram um dia de ponto de apoio para dar contorno a uma experiência sem nome. Como as bolas de demolição que ganhavam impulso ao serem movimentadas pelas gruas para investir ferozmente contra os edifícios a serem destruídos, também a linguagem de sobrevivência do analisando abriga em sua estrutura uma força bruta que persiste a qualquer ameaça de desmonte. O núcleo que deve ser protegido é protegido a todo custo. É tanto o que impulsiona quanto o que refreia a possibilidade de contato com a verdade. Ogden descreve algo semelhante ao afirmar que “‘a indisposição’ ou ‘a incapacidade’ de fazer o trabalho analítico quase sempre reflete o equivalente transferencial/contratransferencial do método desenvolvido na infância para proteger sua sanidade e sua própria vida, método que vejo com reverência e até admiração” (2018, p. 402). O respeito à linguagem de sobrevivência do analisando é, a meu ver, a condição mais fundamental para que sejam mobilizados os recursos necessários para escutar, através das idiossincrasias e maneirismos, os sons originais e a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que consegue pronunciar. Nos limites da linguagem, o analisando experimenta a dor que muitas vezes não pode ser vivida, que se expressa em terminologias imitativas em busca de uma escuta que reconheça nessas limitações “as forças subjacentes que levaram o paciente a buscar ajuda na análise”. (Ogden, 2018, p. 402) Nos limites da árida e por vezes desértica linguagem de sobrevivência do analisando, a fala do analista tem a função de reconectar fragmentos de sons originais, restituir-lhe pouco a pouco o orvalho emocional que poderá eventualmente evoluir para uma experiência de contato verdadeiro. As falas do analista designam sua escolha em lançar luz sobre determinado fragmento do encontro analítico em detrimento de outros, revelando, portanto, nossa condição de interlocutores nada isentos. Pérsio Nogueira, ao discutir o problema da comunicação no trabalho psicanalítico com adultos, adverte que as interpretações revelam uma intencionalidade do analista. ... Qual seja ela, não importa, no momento, para nosso problema. O significativo é que ela está presente, e pela sua presença dará significado e direção a todo o processo comunicativo que se estabelece. Por assim dizer, abrirá alguns canais de comunicação e simultaneamente fechará outros; remeterá as palavras e leituras a dado contexto e afastará de outros. (1993, p. 134) A advertência enunciada por Pérsio Nogueira vai no sentido de explicitar a complexidade da situação analítica, dado que, no cruzamento das enxurradas transferenciais que atravessam e precisam ser acolhidas com a chegada do analisando, o analista é primordialmente colocado no lugar das figuras de autoridade que levaram o analisando a engendrar sua linguagem de sobrevivência. Ou seja, temos o desafio de desconstruir e reconstruir o tecido linguístico que envolve o analisando, tomando o cuidado de primeiro aprender os signos, os sintagmas, o léxico e a gramática característicos de sua língua estrangeira singular. O exercício da dúvida sistemática diante da fala do analisando pode auxiliar o analista em seu laborioso ofício de recuperação dos sentidos de cada linguagem de sobrevivência que lhe é apresentada a cada sessão de análise. Evocando mais uma vez as palavras sinceras de Pérsio Nogueira, possivelmente inspiradas em Bion: O importante é fixar-nos no fato de que o universo emocional onde está inserida a palavra e o discurso podem contribuir para uma alteração marcante em seu significado e ser reveladores das mais diversas ansiedades. Isso nos deve levar a um extremo cuidado pelas consequências que se estabelecem para o lado da comunicação; ou seja, devemos ser cautelosos em acreditar que quando conversamos com alguém na mesma língua estamos falando das mesmas coisas. (1993, p. 144) A dúvida como método de indagação dos sentidos produzidos pelas palavras do analisando pode aos poucos explicitar a experiência emocional a que tais formações linguísticas se referem, cuidando para preservar os radicais que conferem ao analisando seu senso de individualidade. Quando a fala do analista pende para tonalidades de afirmações certeiras, corre-se o risco de retirar do analisando a possibilidade de caminhar em direção ao encontro com sua verdade emocional: Existe o perigo de enquadrar o paciente em um conjunto de interpretações. A capacidade de não saber é uma realização, e a função de não saber precisa desempenhar um papel explícito nas interpretações, transmitindo um elemento da sensibilidade analítica. Esse aspecto da técnica, descrito em termos da dialética da diferença, mitiga o perigo de a interpretação interferir na associação livre. (Nettleton, 2018, p. 139) A dialética da diferença mencionada por Sarah Nettleton refere-se à proposta de Christopher Bollas de que a função de não saber também precisa alcançar representação psíquica na experiência com o analisando. Quando a dupla se apega apaixonadamente a um ponto de vista, ainda que este tenha sido a resultante de uma experiência emocional captada e reconhecida por ambos em determinado momento, enfatiza-se o corolário em detrimento do laborioso processo que possibilitou sua realização. Nesse sentido, Bollas propõe que se dê atenção e se enuncie ao analisando todo o espectro de fenômenos experimentados no campo analítico como recurso para dar representação àquilo que constitui a linguagem viva em pleno ato de ser concebida na sessão de análise. As concordâncias e discordâncias entre analista e analisando revelam os movimentos imprecisos engendrados pela fala, estabelecem um espaço de liberdade de expressão em que a dúvida tem a função de desvincular aquilo que a interpretação vincula. Nessa melodia singular entoada pela dupla, as tensões das certezas rígidas cedem lugar às palavras errantes. A livre associação, “que se situa em algum lugar entre o saber e o não saber”, poderá ganhar voz e abrir espaço para que a palavra seja experimentada em sua potência viva mais genuína, isto é, como linguagem de criação: Como as palavras são usadas para expressar o que se passa na mente de uma pessoa, é possível considerá-las como uma forma de saber e como um procedimento vinculador. Mas quando alguém se propõe a dizer o que quer que lhe venha à cabeça, indiferente a quanto isso possa parecer bobo ou sem sentido, essa atitude evoca um princípio diferente: o do não saber e do desvincular. Talvez o pensamento influenciado, a reflexão profunda, o desreprimir de uma memória surjam de um estado de tensão mais favorável entre o processo de vincular e desvincular. (Bollas, 1992, p. 84) Em linhas paralelas, Ogden (2018) nota que as falas que procuram descrever aquilo que se observa na sessão podem ajudar o analisando a ter sua atenção despertada para elementos desprovidos de significados predefinidos, elementos vazados que poderão ser ocupados com expressões da experiência própria do analisando naquele instante, no imediato da experiência vivida. Como no caso do menino das gruas, penso que a linguagem de sobrevivência desenvolvida pelo analisando serve à função de uma segunda pele (Bick, 1968) que fornece algum nível de proteção contra o abissal do contato direto com as emoções. Ogden ressalta que as falas do analista que apontam para uma decifração da experiência do analisando convocam a atividade mental passiva do entendimento, o que pode facilmente tornar a possibilidade de encontro um jogo monótono, que leva a ainda mais retração. À guisa de inconclusão A experiência de reconhecimento da singularidade como fator fundamental para o encontro vivo entre duas pessoas implica a capacidade de lidar com as diferenças e as semelhanças, com a aproximação e o distanciamento, cuidando para que os contornos psíquicos sejam preservados e não ameaçados por esse contato. Slavoj Žižek destaca a função do não conhecer como essencial para que a experiência intersubjetiva de reconhecimento se realize: Se eu tivesse a pretensão de “realmente conhecer” a mente do meu interlocutor, a intersubjetividade propriamente dita desapareceria; ele perderia seu status subjetivo e se transformaria – para mim – em uma máquina transparente. Em outras palavras, não ser conhecível aos outros é uma característica crucial da subjetividade, do que queremos dizer quando atribuímos aos nossos interlocutores uma “mente”: você “realmente tem uma mente” apenas na medida em que esta é opaca para mim. (2006, p. 178) Na experiência psicanalítica, o não ser conhecível se entrelaça com a emergência da necessidade de ser reconhecido, de viver experiências que ajudem uma pessoa a se deslocar de uma linguagem com componentes frios e metálicos de sobrevivência para uma linguagem possível de reconhecimento e encontro com o outro. Ogden intui que a maneira como falamos reproduz simultaneamente “o desejo de ser entendido [to be understood] e de ser desentendido [to be misunderstood]” (2018, p. 412) o que se reflete também na maneira como escutamos as outras pessoas. Há algo essencial por trás da linguagem de sobrevivência que precisa ser preservado a todo custo, ainda que o sentimento de isolamento necessário seja, em alguns momentos, o motor do sintoma que conduz uma pessoa à busca da análise. A aventura de aprender a linguagem de sobrevivência de cada analisando coloca-nos diante do mistério de seus sons primordiais, das experiências infantis, de encontros e desencontros, do desassossego em que foram erigidas suas formas de expressão. Em certas ocasiões, podemos intuir alguma sensibilidade protegida sob as formulações esdrúxulas, os cacoetes verbais empregados por uma pessoa que se dirige ao analista em busca de algo que ela chama de análise, ou terapia, ou mesmo coaching, aconselhamento, conversa, bate-papo, consulta ou qualquer outra designação disponível em seu léxico pessoal. Em outras ocasiões, salta aos olhos (e aos ouvidos) o temor com que um pedido se esboça nas palavras escolhidas. Em qualquer que seja o caso, em quaisquer que sejam as formas e os alcances expressivos da linguagem possível do analisando, temos sempre o incomensurável desafio o de buscar estabelecer com ele uma linguagem capaz de forjar uma troca genuína entre dois seres humanos. Não raro escutamos de nossos analisandos a constatação de que a linguagem que usamos na sessão psicanalítica é de natureza diversa, não obstante as palavras e a língua utilizada serem velhas conhecidas. É nos interstícios da linguagem comum, nas microscópicas fendas que simultaneamente unem e separam as palavras e as organizações verbais, que se capta o elemento essencialmente vivo da experiência emocional, aquilo que jaz protegido por trás da ampla murada erigida para conter a violência das emoções e o ímpeto das paixões. Se nos pusermos a escutar por entre as frases mecânicas, por através das construções brutas e por trás dos silêncios que brotam dos ruídos metálicos que movimentam as gruas da linguagem de sobrevivência, poderemos encontrar a matéria viva que mobiliza uma pessoa a buscar – da forma como pode – a ajuda possível da análise. A potência criadora das palavras perdidas revela-se nos vacilos da linguagem, na possibilidade de desentender as certezas, desvincular as narrativas e desencapsular os sentidos aprisionados. Finalizando com uma providencial citação da historiadora Arlette Farge, ao discutir as relações do historiador com o jogo de aproximações, oposições, encontros acidentais e sentidos singulares despertados pelas falas que se extraem do trabalho vivo com os arquivos históricos, deixo aberta a palavra para buscar, em breve, novas realizações: No murmúrio de milhares de palavras e frases, poderia ocorrer de se buscar apenas o extraordinário ou o resolutamente significativo. Isso, sem dúvida, seria um erro: o aparentemente insignificante, o detalhe sem importância traem o indizível e sugerem muitas formas de inteligência viva e de entendimentos refletidos que se misturam a sonhos frustrados e a desejos adormecidos. As palavras traçam figuras íntimas e expõem as mil e uma formas da comunicação de cada um com o mundo. (2009, p. 89) El lenguaje perdido de las grúas Resumen: En este ensayo discutimos la concepción de un lenguaje de supervivencia para designar un modo de comunicación singular y solitario que una persona produce para hacer frente a la agitación emocional experimentada en estado de impotencia. Partimos de una discusión sobre los límites del lenguaje como fenómeno paradójicamente impersonal e interpersonal que introduce en el campo analítico una dialéctica fundamental para engendrar con cada paciente un lenguaje de reconocimiento capaz de transmitir la intimidad de la experiencia. Proponemos un diálogo con las obras de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira y Thomas Ogden sobre las posibilidades de comunicación analítica dentro de los límites inherentes a la formulación en lenguaje verbal. Palabras clave: lenguaje, comunicación, alteridad, reconocimiento, interpretación The lost language of cranes Abstract: In this essay we discuss the conception of a language of survival to des- ignate a singular and solitary mode of communication that a person produces to cope with emotional turmoil experienced in a state of helplessness. We begin by discussing the limits of language as a paradoxically impersonal and interpersonal phenomenon that calls for a fundamental dialectic in the analytic eld for the en- gendering of a language of recognition capable of conveying the intimacy of expe- rience with each analysand. We propose a dialogue with the works of Christopher Bollas, Pérsio Nogueira and Thomas Ogden on the possibilities of analytical com- munication within the limits inherent to formulation in verbal language. Keywords: language, communication, alterity, recognition, interpretation Résumé: Dans cet essai, nous discutons la conception d’un langage de survie pour désigner la manière de communication singulière et solitaire qu’une personne produit pour faire face aux troubles émotionnels vécus dans un état d’abandon. Nous commençons par une discussion sur les limites du langage, en tant que phénomène paradoxalement impersonnel et interpersonnel, lequel introduit dans le champ analytique une dialectique fondamentale, à n d’engendrer un langage de reconnaissance capable de transmettre l’intimité de l’expérience à chaque analysant. A cet e et, nous proposons un dialogue avec les travaux de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira et Thomas Ogden sur les possibilités de la communication analytique dans les limites inhérentes à la formulation en langage verbal. Motsclés: langage, communication, singularité, reconnaissance, interprétation Referências Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.a ed., P. Bezerra, Trad.). São Paulo: wmf Martins Fontes. Bick, E. (1968). e experience of skin in early object relations. e International Journal of Psychoanalysis, 49, 484-486. Bion, W. R. (1989). Two papers: e grid and Caesura. London: Karnac. Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano (R. M. Bergallo, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Chuster, A. (2018). Simetria e objeto psicanalítico: desa ando paradigmas com W. R. Bion. Rio de Janeiro: Trio Studio. Farge, A. (2009). O sabor do arquivo (F. Murad, Trad.). São Paulo: Edusp. Frosh, S. (2010). Psychoanalysis outside the clinic: interventions in psychosocial studies. London: Palgrave MacMillan. Leavitt, D. (1986). e lost language of cranes. New York: Bloomsbury. Malcolm, R. R. (1989). Interpretação: o passado no presente. In E. M. R. Barros (Org.), Melanie Klein: evoluções (pp. 101-124). São Paulo: Escuta. Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução (L. Júnior, Trad.). São Paulo: Escuta. Nogueira, P. O. (1993). Uma trajetória analítica. Goiânia: Dimensão. Ogden, T. H. (2018). How I talk with my patients. e Psychoanalytic Quarterly, 87(3), 399-413. Reiner, A. (2018). Bion and being. Abingdon: Routledge. Žižek, S. (2006). e parallax view. Cambridge: mit. Recebido em 2/9/2019, aceito em 17/9/2019 Péricles Pinheiro Machado Jr. Alameda Jaú, 72, conj. 92 01420-000 São Paulo, sp Tel.: 11 2884-1165 periclespmachado@icloud.com Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Avenida Professor Mello de Morais, 1721 05508-030 São Paulo, sp Tel.: 11 3091-1960 marinaribeiro@usp.br
- Filhas da PUC
Para início de conversa sou filha da PUC com muito prazer e orgulho. E isso vem antes de qualquer agradecimento, mas já se trata de vários reconhecimentos gratos pertencentes há uma sucinta frase. Primeiro ao Luis Cláudio, meu orientador de doutorado, mas não apenas. Para quem ainda não sabe, encontramos em vários textos seus a expressão: para início de conversa! Que também se tornou um pouco minha e tem momentos que me recordo disso, outros que esqueço, porquê já faz parte do meu acervo como pessoa. Assim como um certo modo de pensar a psicanálise, uma certa liberdade ousada e consistente de fazer atravessamentos de paradigmas que sempre apreciei e admirei. Ao Renato Mezan gostaria de agradecer pelo que você provavelmente ainda não sabe, mas que vou contar agora. Um dos meus primeiros trabalhos no doutorado, fiz para a sua disciplina, e veio a se transformar em um dos capítulos da minha tese. Apreensiva ao receber seus comentários encontro um bilhete simpático de alguém que leu, apreciou o texto e considerou-o criativo. Aquelas folhas de papel ficaram guardadas por um bom tempo, como um tipo de talismã que me dizia: continue! Nos encontramos novamente na defesa do doutorado e foi um trajetória marcante e realizadora como pesquisadora, e que continua, agora na USP. No entanto, mesmo estando na USP, sou filha legítima da PUC, também porque sou filha do Walter Ribeiro; que fez PUC no final da década de sessenta, uma das primeiras turmas da psicologia, e foi um dos pioneiros da Gestalt Terapia no Brasil. A infância tem esse poder de deixar marcas nas quais passamos a orbitar sem nos darmos conta. Lembro de aos oito anos estar com meu pai na clínica da PUC fazendo testes psicológicos e, depois, conhecer seus colegas. Não entendia absolutamente nada do que estava ocorrendo, mas me senti importante, e isso era tudo. Entrei pela porta das Ciências Sociais na graduação da PUC em 1981. Na época, fazíamos o curso básico no primeiro ano e naquele momento a psicologia do curso básico colocou abaixo a minha rebeldia de final de adolescência de não seguir a profissão do meu pai, naquele momento todas as minhas identificações edípicas ganharam espaço dentro de mim, criaram raiz sem pedir licença, simplesmente existindo. A experiência da graduação foi uma espécie de anos dourados. E, tenho deles, um tipo de memória de viagem, daquelas que você se lembra da bisteca fiorentina que você saboreou em Firenze naquele restaurante, atravessando a ponte vecchia do lado esquerdo. Exatamente em qual ano...já se perdeu, mas a cor e o sabor do prato permanecem vivos. Durante a graduação fiquei dividida entre a Gestalt Terapia que meu pai tanto amava, e a psicanálise que já me encantava, mas que seria uma traição a lealdade paterna, assim como o primeiro namorado. Em meados da década de oitenta quem se formava e queria trabalhar em consultório fazia cursos de especialização no já reconhecido Instituto Sedes Sapientiae, instituição também filha da PUC, mas que tomou rumos próprios. E lá estava eu recém- formada atendendo em consultório e fazendo a especialização em Gestalt Terapia. A transição para a psicanálise foi por meio da análise; a melhor e a mais consistente maneira de nos tornarmos psicanalistas. Lembro de uma situação emblemática dessa transição da Gestalt para a psicanálise. Em 1993 eu era professora no curso de especialização em Gestalt Terapia no Sedes, ministrava o curso sobre Abordagem Dialógica de Martin Buber, e era aluna no curso de Formação em Psicanálise, o que sempre deixava confuso o manobrista do estacionamento, afinal eu era professora ou aluna? Reencontrei Martin Buber depois de muitos anos no texto de Bion e isso fechou uma Gestalt de forma impressionante. Penso que o interesse pelas teorias que habitam a mente de nossos pais e depois de nossos analistas é uma herança inescapável. Encontrei Klein e Bion na análise, nos pacientes, na vida. Se não é como a vida não é psicanálise, disse Bion em uma das suas visitas ao Brasil na década de setenta. Antes do mestrado fiz a minha Formação em Psicanálise no Sedes. Lá encontrei colegas que me apresentaram teoricamente Melanie Klein, e essa foi outra forte identificação clínica e teórica. Será que os autores psicanalíticos se tornam objetos internos que nos habitam? Penso que sim. Klein e Bion são o casal parental psicanalítico amoroso e criativo enraizado em mim. Freud reencontrei de forma mais vitalizada nos dez anos que acompanhei presencialmente as aulas do Luís Cláudio na PUC, marcantes como as memórias de viagem. Fui ser filha do mestrado na PUC depois de quinze anos exclusivamente como psicóloga e psicanalista clínica. Nesse momento estava interessada em Bion e nos trabalhos dos sonhos, exatamente onde estou agora! O trem da chegada é o mesmo da partida, e por esse motivo retomo o nome do meu projeto inicial de pesquisa na época: uma investigação sobre o relato de sonhos na sessão como algo promovedor de mudanças psíquicas. O pensamento onírico já me interessava muito. O texto de base era A vida onírica de Donalt Meltzer que tinha estado no Brasil em meados da década de noventa. E, além disso, encontrei o livro de Maria Emília Lino da Silva, Pensando o pensar com Bion, fruto de uma consistente tese de doutorado defendida na USP. Maria Emília foi minha orientadora de mestrado, com ela comecei meus estudos teóricos sobre Bion. O primeiro texto que escrevi no mestrado em 1999 para disciplina da Maria Emília foi A Conversa Analítica. As palavras são as pessoas que as pronunciam. Texto que continua a ter desdobramentos nas minhas pesquisas; também os textos têm uma invariância, algo que permanece ao longo do tempo e que reconhecemos como próprio, assim como as fotos da infância. Mas os ventos sopraram e fui passear como pesquisadora por outras cearas que também faziam parte de um território sempre desconhecido chamado Eu. No meio do mestrado resolvi fazer um outro tipo de trabalho: fui pesquisar os sofrimentos psíquicos na maternidade, ou no caso, na sua ausência, na infertilidade. As mudanças de rumo fazem parte do processo de pesquisa, mas são trabalhosas e precisam ser sustentadas com consistência. Hoje comento no meu grupo de pesquisa: iniciamos com um projeto que será desmontado e remontado algumas vezes, e, na melhor das hipóteses saímos transformados por uma experiência como pesquisadores, sempre no enfrentamento de angústias. Se temos bons parceiros no trajeto isso facilita, mas um projeto de pesquisa, que seja um mestrado ou um doutorado, é sempre um processo de elaboração. Escrever e pesquisar é uma forma de pensar. A psicanálise é indissociável da atitude de pesquisador, escreveu Freud a quase cem anos. Submeti meu mestrado para publicação na antiga Casa do Psicólogo, e lá também tive uma experiência semelhante aos comentários do Renato Mezan ao meu texto. Quem leu o texto, gostou e quis publicar. Coincidência ou não, ou trama inconsciente, Flávio Ferraz foi quem me convidou para publicar o mestrado, e, anos depois, participou da minha defesa de doutorado. Logo após o término do mestrado, fui ser ouvinte das aulas do Luis Cláudio e Nelson Coelho na USP. Adorei o lugar, todo arborizado, me lembrava Brasília, cidade da minha adolescência. O primeiro contato que fiz com o Luís Cláudio já foi preciso e sucinto: A sua pesquisa é clínica? Respondi que sim. Vá para a PUC. E essa foi minha brevíssima passagem pela USP, um semestre. Iniciei o doutorado em 2005. A forma de orientar em grupo do Luis Cláudio foi algo extremamente produtivo e marcante para mim, tanto que atualmente no meu grupo de pesquisa fazemos um trabalho semelhante. Todos leem e colaboram com a pesquisa e com o texto dos colegas, o que tem tornado os trabalhos gerados consistentes e de qualidade. Além de criar uma cumplicidade fraterna que favorece o enfrentamento das angústias que são inerentes a trajetória do pesquisador. Como fruto do doutorado publiquei o livro De mãe em filha. A transmissão da feminilidade. No mesmo ano que iniciei o doutorado comecei a ministrar aulas regularmente no Instituto Sedes Sapientiae em um curso que durou muitos anos e que estava vinculado a minha pesquisa de doutorado: Entrelaces psíquicos entre mães e filhas. Concomitante a esse primeiro curso iniciei em conjunto com Gina Tamburrino o curso Para além da contratransferência: o analista implicado, que em 2017 se transformou no nome de uma coletânea. Nesse curso ministrávamos aulas com os textos de Antonino Ferro, Thomas Ogden e Bion. Meus estudos sobre a obra de Bion continuaram paralelamente a pesquisa de doutorado sobre a feminilidade. Ainda no doutorado, Gina Tamburrino e eu apresentamos a teoria das transformações de Bion em um curso do Luis Cláudio. Usamos nessa apresentação as anotações do LC. Suas anotações de aula eram um estudo minucioso, reflexivo, desconstrutivo do difícil livro de Bion Transformações. No intervalo, em um descontraído café (isso perdemos no modo online), comentamos: Luis Cláudio seria muito bom publicar esse material, não há nenhum livro com essas características, de uma leitura tão próxima desse enigmático livro de Bion. Na ocasião ele comentou que seriam necessárias muitas horas para fazer a revisão e a organização do material. Gina e eu nos prontificamos a fazer isso, e Luis Cláudio generosamente nos acolheu como coautoras. O livro sobre Balint teve uma trajetória parecida. Em 2012 recebo um @ do Luís Cláudio com suas sucintas e consistentes frases: veja se você se anima! Percorro o @, era o edital de concurso na USP para as disciplinas de Melanie Klein, Bion e Winnicott e para as disciplinas de Atendimento Clínico, ou seja, indubitavelmente meu número. Li aquela lista enorme de documentos e procedimentos e a frase do Luis Cláudio ficou ecoando em mim: veja se você se anima, e acabei me animando a enfrentar um concurso árduo, mas que valeu o esforço. Hoje, olhando de forma um pouco mais distante no tempo, penso que foi uma situação de serendipidade (Chuster): quando encontramos o que não estávamos procurando, mas esse encontro faz toda a diferença. A USP entrou assim na minha vida, encontrei o que não estava procurando, mas esse encontro fez toda a diferença. Outro significativo encontro foi com Elisa Cintra; primeiramente na qualificação do doutorado, depois na defesa, e um pouco mais adiante no partilhar dos prazeres e dos desafios da vida acadêmica. Nossos interlocutores de pesquisa podem no futuro tornarem-se nossos melhores parceiros de trabalho. Encontros criativos estão em constante expansão. Com Elisa publiquei em 2018 Por que Klein? Além de duas coletâneas em 2017 e 2019, e, também eventos internacionais que deram muito trabalho e satisfação, além da parceria em bancas e artigos. Também do encontro com Elisa surgiu o sonho de uma ponte imaginária entre a PUC e a USP. O risco de sonhar é que alguns sonhos se realizam, e foi esse o caso: a ideia de um laboratório entre dois criativos centros de produção de pesquisas em psicanálise aconteceu. Em outubro de 2019 tivemos o lançamento do Lipsic com a participação de sessenta pesquisadores. LIPSIC: Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea. PUC (5): Luis Cláudio, Renato, Alfredo Naffah, Elisa e Rosa Tosta. USP (4): Nelson Coelho, Pablo Castanho, Ana Loffredo e eu. Com a pandemia aceleramos a inserção do LipSic no mundo online. Agora temos as Reuniões Científicas acontecendo no YOUTUBE - LipSic psicanálise; programação no Instagram. Já temos seis reuniões científicas programas para o segundo semestre, confiram a programação! Para finalizar, sempre momentaneamente a conversa, sou filha da PUC, já tendo perdido a dimensão dos contornos do que isso significa, e agora, na maturidade, sou caloura na USP. É muito bom quando a vida nos surpreende de forma favorável. Obrigada!
- Ser mãe, ser pai: desafios na contemporaneidade.
Observa-se que no contexto cultural da atualidade, com a quebra dos valores rígidos, estáticos e a abertura para as múltiplas possibilidades de subjetivação, de modos de existência, o vir a ser mãe e pai precisa ser criado, inventado a cada nova experiência. Este artigo se propõe a discutir essas questões, a partir de um recorte psicanalítico - especialmente o conceito de Preocupação Materna Primária, de Winnicott - bem como das contribuições de Gilles Lipovetsky e Joel Birman, teóricos que estudam o mundo contemporâneo. Rachele da Silva Ferrari e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952020000100014&lng=pt&nrm=iso
- RESENHA: Melanie Klein. Autobiografia comentada
Organização: Alexandre Socha Blucher, 2019 Marina F. R. Ribeiro (1) (1) Psicanalista, Profa. Dra. IPUSP, coautora com Elisa M.U. Cintra do livro Por que Klein? (Ed. Zagodoni, 2018), entre outros livros e artigos. Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersujetividade e Psicanálise Contemporânea, LipSic (IPUSP e PUCSP). Apresentar um livro é sempre algo desafiador e de considerável responsabilidade. Considero que os textos são sempre autorais, mesmo aqueles que são predominantemente teóricos. E, aquele que escreve a resenha de um livro, o faz inescapavelmente a partir de suas impressões e ressonâncias. O livro em questão é um convite à reflexão de como vida e obra estão inexoravelmente entrelaçadas, sendo que apenas um delicado e respeitoso trabalho de aproximação é capaz de iluminar algumas facetas desse amálgama. Primeiramente, penso ter sido uma excelente ideia traduzir e publicar um texto kleiniano ainda inédito em língua portuguesa, tanto pelo seu caráter histórico, quanto pela presença afetiva que emana nas linhas e entrelinhas. Alexandre Socha, organizador do livro, nomeia sua introdução de “Melanie Klein, personagem de si mesma”, introduzindo o leitor a uma instigante reflexão sobre o gesto autobiográfico: “o debruçar-se sobre as próprias memórias como um modo de apegar-se à vida, bem como de despedir-se dela” (Socha, 2019, p.16). O paradoxo emocional e o tom nostálgico capturam o leitor nessa apresentação, o ethos rememorativo, como escreve Socha. Destaco que o livro apresenta a cuidadosa e implicada tradução de Elsa Susemihl(2), psicanalista e estudiosa da obra de Klein e de Bion. Encontramos ao longo do texto notas que esclarecem e orientam o leitor e que demostram seu conhecimento da obra kleiniana, atestando o valor das traduções feitas por psicanalistas. A autobiografia de Klein está acrescida do comentário de quatro psicanalistas e ainda, no apêndice, o testemunho de James Gammill sobre o seu contato como supervisionando de Klein entre os anos de 1957-1959, mesmo período em que os fragmentos autobiográficos foram escritos. Entre os comentadores, encontramos duas autoras nacionais (Liana Pinto Chaves e Izelinda Garcia de Barros) e dois internacionais (Robert D. Hinshelwood e Cláudia Frank), que juntos compõem de forma equilibrada e harmônica o livro. (2)Apenas o apêndice foi traduzido por Paulo Sérgio de Souza Jr. Do texto inédito de Hinshelwood (2019), eu gostaria de destacar alguns pontos que considero pertinentes a questões da psicanálise contemporânea. Em primeiro lugar, a ousadia de Klein ao sustentar uma mudança de foco no trabalho de análise, da questão energética freudiana, para os afetos e suas angustias. Em segundo, sua problematização quanto à precisão da interpretação, sugerindo que o analista observe cuidadosamente o efeito de sua fala dentro da sessão de análise, levantando a questão da verdade emocional que se mobiliza e se procura traduzir no ato da interpretação. Se o analista for bem-sucedido em sua capacidade de colocar em palavras a angústia, de construir uma narrativa, é observável a mudança que se segue à interpretação: a criança passa a brincar livremente e o adulto a pensar. O analista precisa ser capaz de capturar em palavras a dor da ansiedade. Como sinônimo de fantasias inconscientes encontramos no texto de Hinshelwood a expressão dramas narrativos, referindo-se, talvez, ao vasto campo de pesquisa sobre a narratividade na sessão, a capacidade narrativa exitosa da dupla analítica, a linguagem de êxito (Bion, 1970) ou linguagem bem-sucedida, promovendo transformações no campo analítico. A impressão é que Klein transferiu seu método de observar as narrativas do brincar das crianças para a observação das narrativas dos processos de pensamento de um adulto. É como se a “sala de brincar” passasse a ser o próprio espaço mental. (Hinshelwood, 2019, p.102) No texto de Liana Pinto Chaves destaco a proximidade com minhas breves impressões descritas no final desta resenha: a autobiografia como um acerto de contas amoroso com seus objetos internos e externos, e uma reconciliação com a mãe, aproximando vida e morte. Liana nos lembra que a autobiografia forma um mesmo conjunto de reflexões com o artigo publicado postumamente, “Sobre o sentimento de solidão”. Cláudia Frank traz importantes dados históricos sobre a trajetória dos textos e do pensamento kleiniano na Alemanha, além de uma erudita apresentação de alguns autores pós-kleinianos e seus desenvolvimentos conceituais. Izelinda Garcia de Barros enfatiza a importância da experiência com a maternidade e de como esta marca a proposta teórica e clínica de Melanie Klein. Destaca que a construção teórica kleiniana é fruto das trocas conscientes e inconscientes entre Ferenczi e Klein entre 1912 e 1918, autor pouco citado em sua obra devido a questões políticas. A obra de Ferenczi sofreu uma condenação pelo silêncio, ficou por muitos anos banida dos institutos psicanalíticos. Na autobiografia Klein escreve que tem muito a agradecer a Ferenczi e que ele era um homem de talentos incomuns e tinha o traço de um gênio. O apêndice escrito por James Gammill é um relato de sua experiência pessoal como supervisionando de Klein. Comenta que se sentia à vontade com a Sra. Klein quando apresentava seu material clínico, o que nos leva a pensar que Klein era acolhedora e continente com os psicanalistas próximos a ela. Ele relata que Klein lhe fazia contribuições precisas e consistentes, especialmente quanto ao timing das interpretações e a escolha de palavras, enfatizando a importância de o analista conhecer o vocabulário do paciente e sua forma única de se expressar.Gammill escreve que para Klein era importante que um psicanalista fosse dedicado de maneira autêntica e profunda à psicanálise, e aqui encontramos uma preciosidade, um comentário de Klein sobre o trabalho de Bion: O que é que ela [uma determinada analista] estava querendo dizer, então, quando afirmou que compreendia perfeitamente o que o Dr. Bion queria comunicar na conferência dele? Frequentemente tenho de reler várias vezes o texto das conferências do Dr. Bion antes de começar a captar alguma coisa daquilo que ele tem a dizer. Tenho a impressão de que ele trabalha com algo novo em psicanálise, mas não tem serventia alguma fingir que é fácil e evidente. (Gammill, 2019, p.199/200) É manifesto nesse comentário o respeito e a admiração que Klein nutria por Bion, seu paciente nos anos de 1945 a 1953, que depois tornou-se um dos kleinianos mais geniais, conjuntamente com Hanna Segal, Herbert Rosenfeld e Money-Kyrle. Klein reconhece nessa fala citada por Gammill que Bion postulou um novo paradigma para a psicanálise. Seus textos epistemológicos foram publicados após a morte de Klein em 1960. Entretanto, ainda em seu livro de 1970, Atenção e Interpretação, Bion se considerava um kleiniano, anos depois de ter formulado um pensamento original e autoral, provavelmente num gesto de gratidão e reconhecimento à sua analista. Para finalizar a resenha do livro e capturada pelo ethos rememorativo da proposta do organizador Alexandre Socha, relato algumas ressonâncias pessoais geradas pelo texto autobiográfico de Melanie Klein. Breves impressões da autobiografia de Melanie Klein Será a escrita autobiográfica a elaboração momentânea de uma vida? Chegando ao fim da trajetória, nós nos remetemos ao começo, na busca por aquilo que inspirou o caminho, o sentido encontrado no a posteriori do percurso. Obra e vida inevitavelmente se entrelaçam, sendo produto da nossa racionalidade essa distinção insustentável. A narrativa autobiográfica pode ser lida como um sonho, assim como uma sessão de análise (Scappaticci, 2018). Inspirada por esse vértice, teço alguns breves comentários. A autobiografia de Klein seria o testemunho de um processo de elaboração da experiência da proximidade da sua morte? Uma despedida amorosa? O sentimento de nostalgia que transborda pelas margens do texto autobiográfico de Melanie Klein seria a busca pelo sentido do que a moveu na vida? Sentido alcançado no a posteriori, e que implica um estado de lucidez daqueles que construíram recursos psíquicos para se deparar com a verdade emocional de suas vidas e com o árduo enfrentamento de suas perdas. A leitura dessa breve autobiografia nos remete à construção de uma cena psíquica, uma cena onírica, na qual é possível se despedir da vida com amorosidade e sentimento de gratidão.Os vínculos amorosos podem ser compreendidos como um objeto bom constituído por cenas de trocas afetivas gratificantes, memórias em sentimentos. Já não há tempo para discórdias ou para os difíceis trabalhos do ódio. É preciso partir, carregando o que há de mais precioso na mente, as cenas amorosas que constituem nossos objetos bons. .... Mas penso na minha infância como uma infância com uma boa vida familiar e daria qualquer coisa para tê-la de volta por um só dia; nós três, meu irmão, minha irmã e eu sentados em volta da mesa, fazendo nosso trabalho escolar, e os muitos detalhes de uma vida familiar unida. (Klein, M. 1959/2019, p.42) Klein descreve idilicamente a cena dos irmãos juntos na mesa fazendo os deveres, uma cena amorosa que permaneceu vitalizada em sua mente. O estudo auto didático é uma marca da família. Klein indubitavelmente foi uma autodidata admirável, uma mulher além de seu tempo. A leitura da autobiografia de Klein inspira-me à seguinte compreensão: morrer entrelaçada aos objetos bons significa morrer tranquila, sem a predominância de estados paranoicos de mente. A morte parece ser representada na autobiografia como um encontro com essas cenas amorosas que constituem o frágil tecido psíquico, sempre ameaçado por intensas turbulências. A morte ou sua proximidade pode ser uma experiência psíquica avassaladora. Como se despedir da vida de forma vitalizada e amorosa? Parafraseando Winnicott: quero estar vivo quando morrer. Penso que Klein oferece ao leitor, generosamente, o testemunho da intimidade do processo de elaboração da sua própria morte(3) e de sua vitalidade, como Socha escreve na introdução, o paradoxo entre apegar-se e o desprender-se. É algo relativamente comum diante da proximidade do fim da vida a experiência de que iremos, de forma imaginária, encontrar a mãe, quase como se voltássemos para o lugar de onde partimos, ou que a lembrança desse vínculo primordial que nos conduziu para a vida agora pudesse nos conduzir suavemente para a morte. Nas duas grandes cesuras de uma vida, nascer e morrer, temos a mãe ao nosso lado. A mãe real ao nascer, e a mãe imaginada ao morrer. Klein escreve sobre morrer quase sem angústia, e talvez ela se inspirasse nesse momento na morte de sua mãe para que ela também tivesse uma experiência próxima. Tons de idealização estão presentes na sua escrita, mas talvez para o enfrentamento da cesura da morte esse sentimento seja necessário e apaziguador. Nunca imaginei que alguém pudesse morrer do jeito que ela morreu, completamente de posse de suas faculdades mentais, calma, sem nenhuma ansiedade e, de forma alguma com medo ou relutante em morrer. (Klein, M. 1959/2019, p.54) Klein descreveu com maestria os trabalhos psíquicos do luto e a criatividade que emerge da mais intensa das dores, a de perder entes queridos. Nossa autora escreveu que na elaboração dos processos de luto a pessoa perdida torna-se um objeto interno bom. Nesse texto autobiográfico ela descreve isso de forma surpreendente, aproximando a morte dos seus dois irmãos que tiveram a vida interrompida precocemente: sua irmãzinha Sidonie, quando Klein tinha quatro anos, seu irmão Emmanuel, quando ela tinha 20 anos(4). Escreve sobre a profunda admiração que nutria por eles e de como ela tinha imagens vivas dos irmãos na sua memória: “A doença do meu irmão e sua morte precoce é mais um, entre os outros lutos na minha vida, que ainda permanece vivo em mim” (Klein, M. 1959/2019, p.48). É bela a passagem na qual Klein escreve sobre como o irmão Emmanuel, que ela tanto admirava, fonte das suas inspirações, mistura-se em sua mente com o filho morto, Hans, com o filho vivo, Eric, e o neto Michael, descrevendo a plasticidade da experiência estética dos objetos na mente: Meu filho mais velho, Hans, que morreu aos 27 anos de idade quando praticava alpinismo, tinha uma grande semelhança com meu irmão, particularmente em seus primeiros anos, assim como acho que também Eric tem. Penso, também, que meu neto, Michael, tem algo de sua aparência, mas posso estar enganada porque todas essas figuras tinham muito em comum nos meus sentimentos. (Klein, M. 1959/2019, p.51) Compreendo o objeto bom como uma reserva de memórias afetivas, um conjunto de cenas e de narrativas, um atravessamento de distâncias atemporais (Cintra & Ribeiro, 2018). Uma cena psíquica que funciona como uma tênue âncora na turbulência da transitoriedade da vida, favorecendo, mesmo que de forma breve, um reconhecimento de que somos nós na turbina do tempo, que encontramos algo da pequena Melanie, uma invariância que se conecta com a Sra. Klein ao final de uma tumultuada, dolorosa e criativa vida. O texto é o testemunho de uma mulher que teve a ousadia de sofrer a própria dor, e de acreditar que isso é o que transforma, o que é verdadeiramente importante. O analista precisa encontrar o ponto de urgência, o ponto de maior angústia no aqui e agora da sessão ou da vida, “tocar” a ansiedade, como escreve Hinshelwood (2019) e ser capaz de construir uma narrativa bem-sucedida. Ao ler a autobiografia, tenho a impressão de encontrar uma carta de despedida à vida, de alguém que parte com o sentimento de realização do que foi possível e de amorosidade pelos seus objetos internos e externos, com suas plásticas e únicas narrativas psíquicas. Klein, personagem de si mesma, como nomeia Socha. (3) A autobiografia foi escrita um ano antes da morte de Klein, sendo que ela já lutava com um câncer. (4) Klein perdeu seu pai quando tinha 18 anos, dois anos antes da morte do irmão. Seu pai era 24 anos mais velho que sua mãe, e na autobiografia ela relata que ele já estava senil alguns anos antes de morrer. Após a morte do irmão Emmanuel, Klein casa-se com seu melhor amigo, Arthur Klein, inviabilizando com o casamento e o nascimento dos filhos a ambição de estudar medicina e psiquiatria. Klein está de mãos dadas com seus objetos queridos e amados para morrer na companhia deles. Está nostálgica, generosa, entristecida, mas tranquila com suas realizações e com a continuidade do seu legado... Dentro dos limites da capacidade humana, sinto que fiz algo que talvez no futuro possa se provar ter sido uma grande contribuição para a compreensão da mente humana. (Klein, M. 1959/2019, p.81) Referências bibliográficas Bion, W.R. (1970/2007). Attention and Interpretation. London, UK: Ed. Karnac. Cintra, E.M.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP: Ed. Zagodoni Scappaticci, A. L. (2018). A Autobiografia de Wilfred Bion. Psicanálise, uma atividade autobiográfica. Jornal de Psicanálise, 51(95), 241-254.
- Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico.
A narrativa do analista e a do escritor. A partir do relato da experiência do escritor turco Orhan Pamuk (2010) com uma de suas leitoras, o artigo propõe uma analogia com o campo analítico, em que se faz presente a intersubjetividade analista-paciente. É apresentado o contexto teórico dos conceitos de reverie, função alfa e função psicanalítica da personalidade, criados por Bion e discutidos por autores contemporâneos. Compreendida na perspectiva de autores pós-bionianos como um campo do sonhar do analista e do analisando, a situação analítica é sempre complexa, nela podendo ser realizada a função psicanalítica da personalidade. O artigo finaliza considerando que tanto a experiência entre autor e leitor, como entre analista e analisando, em especial, a relação de intimidade e proximidade que acontece nesses dois diferentes contextos é favorecedora de transformações. Tais transformações se dão por meio da função psicanalítica da personalidade: a capacidade humana de transformar as experiências emocionais, inicialmente em estado bruto, em narrativas, a do analista e a do escritor, na busca humana incessante pela verdade e pelo sentido daquilo que é experienciado. Mariana F. R. Ribeiro Link do texto: http://cprj.com.br/ojs_cprj/index.php/cprj/article/view/74
- Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment. O analista implicado.
O artigo é uma reflexão teórica sobre os conceitos de identificação projetiva e enactment. Alude-se que a identificação projetiva é um conceito de transição entre a primeira geração (Freud-Klein) e a segunda geração (Bion-Winnicott) da psicanálise, divisão sugerida por Ogden (2014). A primeira geração se debruça mais intensamente sobre a questão do que pensamos; segue-se a geração que se dedica à maneira como pensamos. Considerando esta organização temporal, o termo enactment pertence ao que é conjecturado aqui como a terceira geração de conceitos na psicanálise: aqueles que abordam de que forma analista e analisando pensam juntos. Marina F.R.Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952016000200001
- Rêverie e Enactment na situação de supervisão. O campo do diálogo clínico
Marina Ferreira da Rosa Ribeiro - Profa. Dra. IPUSP O artigo apresenta uma síntese dos conceitos de rêverie e enactment, destacando a utilidade de ambos na clínica psicanalítica contemporânea e, especificamente, no contexto de supervisão. Quando ocorre o enactment, situações de impasse eclodem, podendo, inclusive, gerar o rompimento do processo analítico. Contudo, também podemos estar diante da oportunidade de transformação dos conteúdos mentais inconscientes presentes na sala de análise, a partir da capacidade de continência psíquica do analista, com a colaboração do supervisor, que pode ser um professor durante a formação ou um colega consultor. Nessas situações, em que o analista é tomado pela intensa turbulência emocional que se faz presente no campo analítico, torna-se fundamental a capacidade de rêverie do supervisor, de modo a possibilitar a compreensão de angústias ainda não passíveis de serem narradas na sala de análise. De modo a aprofundar ainda mais o tema, além da discussão conceitual, são também apresentadas neste texto duas situações de supervisão que ajudam a esclarecer os fenômenos de rêverie e enactment. Por fim, sugere-se um novo termo para a situação de supervisão: campo do diálogo clínico, de maneira a precisar a inter-relação entre o conceito de campo analítico e o contexto de supervisão. 1 Agradeço a prestimosa contribuição de Darlene Ferragut e Edilaine Pugliese para a construção deste texto. Palavras-chave: enactment, rêverie, supervisão, campo analítico, continente-contido, Bion. ABSTRACT This article shows a synthesis of the rêverie and enactment concepts, emphasizing the usefulness of both for the contemporaneous psychoanalytic clinic, especifically in the context of supervision. When enactment occurs, situations of impasse arise, even making it possible the rupture of the analytical process. However, we can also be in front of the opportunity for transformation of the unconscious mental contents, which are present in the analysis room out of the analyst’s capacity for psychic continence, together with the cooperation from the supervisor, who can be a professor over the formation period or else a colleague consultant. In these situations, when the analyst is taken by intense emotional turbulence which takes place in the analytical field, the supervisor’s capacity for rêverie becomes fundamental, so that it endows him or her with the understanding of the states of anguish that are not yet liable to be narrated in the analysis room. In order to deepen still more the theme, besides the conceptual discussion, two situations of supervision are presented in this text. They help clarify the rêverie and enactment concepts phenomena. Finally, a new term is suggested for the situation of supervision: field of the clinical dialogue, in order to state exactly the interrelationship between the analytical field and the supervision context. Key words: enactment, rêverie, supervision, analytical field, continent-contained, Bion. Introdução Freud (1925/1980) escreve que a psicanálise é uma das profissões impossíveis, conjuntamente com educar e governar, ou seja, estamos diante de um desafio considerável, admitido desde o início por seu fundador. Em razão disso, faz parte da formação de um analista o tripé análise, supervisão e teoria psicanalítica - três campos consagrados há muitas décadas, mas com intersecções nem sempre fáceis de discernir (Zaslavsky & Nunes, 2006). Sabemos, também, que essa tríade permanece presente ao longo do exercício profissional de um psicanalista, mesmo que de maneira descontínua. Não há dúvidas de que, somadas aos outros campos, as horas de supervisão, tema deste artigo, contribuem significativamente para o enfrentamento dessa profissão que tentamos, a cada sessão, tornar possível. Contudo, não deixam de ser, também, desafiadoras para todos os implicados: aqueles que estão em formação, os analistas mais experientes e, obviamente, para os próprios supervisores. De modo a aprofundar a discussão, trago aqui, sucintamente, os conceitos de rêverie (Bion, 1962/2014), de campo analítico (Barangers, 1961/1962/1993) e de enactment (Ellman e Moskowitz, 1998; Cassorla, 2015). Parto da compreensão, consagrada na psicanálise contemporânea, de que na situação analítica os processos mentais do analista também estão implicados e devem ser considerados como um importante instrumento de trabalho. Vale dizer, considero tanto os aspectos intrasubjetivos, quanto os intersubjetivos, sempre indissociáveis. Ao final, apresento então duas breves situações de supervisão. A primeira evidencia o conceito de rêverie e sua importância na compreensão de elementos ainda não passíveis de uma narrativa pela dupla analítica em questão. A segunda, a importância da continência emocional do supervisor quando ocorre o fenômeno do enactment entre analista e analisando, para que os conteúdos emocionais encenados na dupla encontrem um percurso de transformação e não de paralisação do processo analítico. A necessidade de continência psíquica por parte do supervisor Começar a atender pacientes implica em uma tensão inevitável, mesmo quando o profissional foi bem preparado para essa atividade. Mas o que seria alguém bem preparado para atender um paciente? Faço uma analogia com uma situação comum: uma mãe primigesta com seu bebê recém-nascido. Por mais que ela tenha se ‘preparado’ - lido muitos livros, conversado com outras mães, se dedicado a outras crianças, feito cursos sobre os cuidados com bebês, além do fato de ter sido filha de alguém -, a maternidade introduz uma situação experiencialmente ainda inédita na vida daquela pessoa, e corriqueiramente, vivida com angústia e desamparo. Uma mãe de segunda viagem, ou terceira, pode estar um pouco mais segura das suas capacidades maternas; no entanto, a nova dupla mãe-bebê que se constitui será, também, um novo desafio. Da mesma forma, um analista, por mais experiente que seja, quando recebe um paciente, encontra-se diante de uma situação nova e desafiadora. Ainda que os anos de atendimento lhe ofereçam um acervo internalizado da função analítica, não evitam a angústia diante do que ainda não é conhecido. Dessa forma, a abertura e disponibilidade ao desconhecido são habilidades fundamentais. Bion (1970/2014), inspirado no poeta Keats, aconselhou que o analista deve manter uma atitude de reserva diante do conhecimento, do já sabido, não sendo recomendável que ele se precipite em buscar fatos ou encontrar razões para compreender o material compartilhado pelo analisando. Essa disposição analítica foi nomeada pelo autor como capacidade negativa. Trata-se, pois, da capacidade de permanecer na turbulência emocional2 (Bion, 1976/2014) da sessão, confiante de que o sentido do material surgirá com o tempo e de acordo com a capacidade de transformação da dupla analítica. 2 Turbulência emocional é um termo usado por Bion (1976/2014), significando que o encontro entre analista e analisando deve gerar turbulências, indicando que o processo analítico não está estagnado em um conluio de acomodação da dupla. Podemos conjecturar então que, para o analista com muitos anos de prática, a capacidade negativa pode ser um exercício ainda mais desafiador do que para o analista iniciante, justamente porque já cumulou muitos anos de exercício clínico, e, além disso, apegar-se ao conhecido parece ser uma disposição comum3, no sentido de evitar as turbulências geradas pelo encontro analítico. Em relação a esse aspecto, cabe lembrar da insígnia sugerida por Bion (1967/2014), de que o analista precisa alcançar a disciplina mental de estar em um estado sem memória e sem desejo. Aqui, o autor sublinha o legado freudiano, de que a atenção do analista necessita se manter realmente flutuante. De fato, é condição psíquica importante para o processo analítico essa capacidade do analista de não se apegar a fatos, razões, desejos ou memórias, de modo que sua atenção possa flutuar pelas turbulências emocionais presentes na sala de análise, tolerando não saber, para, assim, ser permeável ao novo, e ao novo paciente, a cada sessão. A esse respeito, escrevem Gabbard e Ogden (2009) que temos a responsabilidade de nos tornarmos com cada paciente o analista que antes nunca fomos. Devemos, pois, receber um paciente como se fosse sempre a primeira vez, aconselha Bion (1967/2014), de maneira que analista e analisando não se apeguem ao conhecido e ao familiar, podendo então se lançar em busca do desconhecido, da transformação emocional que ainda não ocorreu. Essa ideia tem como referência a compreensão de que faz parte do funcionamento psíquico ‘saudável’ uma mente em constante expansão - há sempre um pensamento novo no horizonte, uma transformação emocional que ainda não ocorreu. Para Bion (1990/2014), devem existir, na sala de análise, duas pessoas amedrontadas - caso não estejam, será que ambas estão ali, apenas, para conversar sobre o que já sabem? O encontro humano gera turbulências emocionais e, apesar da aparência geralmente confortável da sala de análise, ali é o lugar no qual o desconforto psíquico precisa se apresentar. O trabalho do analista é se ater aos elementos enigmáticos da sessão, aqueles que ainda não puderam ser pensados, simbolizados e, então, narrados - a emoção em seu estado bruto, portanto, ainda enigmática. 3 A necessidade de segurança, de não se arriscar ao novo, parece ser uma disposição comum, que tende a se acentuar com o passar dos anos. A situação de supervisão, tanto para iniciantes, como para analistas mais experientes, deveria ter a qualidade de continência às angústias despertadas durante os atendimentos. O leitor poderia perguntar: mas o analista se angustia? Não seria o paciente o angustiado? Digamos que as angústias dos pacientes precisam ser contidas na mente do analista para serem transformadas. Em outras palavras, a mente do analista precisa ter uma qualidade de permeabilidade às angústias dos pacientes para que a análise aconteça, e isso não é tarefa fácil. E, justamente, pelo fato de o analista estar exposto às inéditas situações de angústias durante seus atendimentos, sua capacidade de continência psíquica precisa ser constantemente cuidada e, em algumas situações, também reparada. Cabem aqui algumas breves pontuações conceituais. A expressão capacidade de continência psíquica surge dos conceitos de Bion (1962/2014) de continente e conteúdo. A partir do conceito de identificação projetiva de M. Klein (1946/1991 e 1955/1991), Bion postulou que deve haver outra mente que contém um conteúdo projetado e, ao fazê-lo, o transforma (elabora) e o devolve de forma mais assimilável. Para o autor, esse é o modelo de funcionamento mental usado tanto na compreensão da relação mãe-bebê, como entre analista e analisando. Bion (1959/2014) escreve que a identificação projetiva do analisando lhe possibilita investigar seus próprios sentimentos dentro de uma personalidade forte, a do analista, o suficiente para contê-los4. A capacidade de continência emocional do analista – capacidade de ser continente às angústias dos pacientes - pode ser experienciada e reconhecida por meio da rêverie do analista. Suscintamente, a rêverie5 é o sonho acordado, o devaneio. Consiste na capacidade imaginativa da mente do analista, e também da mãe com seu bebê, que capta as emoções em estado bruto, o enigmático do material clínico, transformando-as e metabolizando-as em representações imagéticas e, posteriormente, em narrativas6. A rêverie é a manifestação do ‘sonhar’ do analista, e, também, do supervisor. Segundo Ogden (2005), na tradição bioniana, o ‘sonhar’ é o trabalho psicológico inconsciente de elaboração da experiência emocional, ocorrendo tanto na vida de vigília, como durante o sono. A partir desta compreensão, na situação de supervisão, o supervisor colabora, favorece, ajuda, o supervisionando a sonhar os elementos ainda não elaborados da sua experiência emocional com o paciente. 4 Para um aprofundamento do tema ver o artigo de minha autoria: Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment. O analista implicado, 2016. 5 Palavra francesa, mantida sem tradução nos textos originais. Em inglês a tradução seria day-dream. 6 Zimerman (2004, p. 231) considera que a rêverie é uma ampliação e complementação do que Freud denominou como a atenção flutuante do analista, aspecto já citado anteriormente. Considerando esse mesmo enfoque continente-contido na situação de supervisão abordada neste texto, encontramos a publicação das psicanalistas argentinas Ungar e Ahumada (2001). Para as autoras, a sessão analítica e a sessão de supervisão são áreas interatuantes, ou seja, áreas paralelas que se influenciam. Ao favorecer a continência das ansiedades presentes na sessão de análise, a supervisão possibilita que o supervisionado sustente, da melhor forma possível, o processo analítico. Como sugerido no clássico artigo de Fleming e Benedek (1964), usado como referência no trabalho dessas psicanalistas, elas concluem que a supervisão facilita o desenvolvimento da personalidade do analista como principal instrumento de trabalho. Nesta mesma direção, privilegiando o enfoque continente-contido, Gabbard e Ogden (2009) consideram que o continente é um processo de elaboração dos pensamentos perturbadores e o contido, a representação psíquica dos pensamentos ligados à experiência perturbadora. Faz parte da disposição de continência do analista a capacidade de pensar/sonhar as experiências emocionais trazidas pelo analisando. Para Bion (1962/2014), pensar é sonhar a experiência emocional e, dessa forma, ser capaz de aprender com a experiência. Porém, é preciso considerar que a experiência vivida costuma exceder nossa capacidade de pensá-la ou sonhá-la. De fato, o analista é, no cotidiano da clínica, inevitavelmente colocado em situações que excedem a sua capacidade de metabolização do vivido. Em Análise terminável e interminável, Freud (1937/1980) orienta os analistas que, a cada cinco anos, submetam-se a um novo período de análise, devido à força das exigências pulsionais7. Hoje, podemos considerar que o analista está exposto, durante os seus atendimentos, a uma considerável cota de sofrimento psíquico, além do fato de que uma análise é interminável, de que não há a possibilidade de alguém ser completamente analisado. 7 Freud (1937/1980, p. 284) escreve: “(...) Não seria de surpreender que o efeito de uma preocupação constante com todo o material reprimido que luta por liberdade na mente humana despertasse também no analista as exigências instituais que de outra maneira ele é capaz de manter suprimidas. Também esses são ‘perigos da análise’, embora ameacem não o parceiro passivo, mas o parceiro ativo da situação analítica, e não deveríamos negligenciar enfrentá-los. Não pode haver dúvida sobre o modo como isso deve ser feito. Todo analista deveria periodicamente – com intervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais uma vez à análise, sem se sentir envergonhado por tomar essa medida. Isso significaria, portanto, que não seria apenas a análise terapêutica dos pacientes, mas sua própria análise que se transformaria de tarefa terminável em interminável”. A esse respeito, Bion (1990/2014) expressa que, ao final de uma análise, poderíamos considerar ter alcançado o melhor que se pode com quem se é, ou seja, com as incontornáveis idiossincrasias do funcionamento psíquico de cada um. Como o funcionamento mental do analista é o seu instrumento de trabalho, o compromisso de estar mentalmente disponível para o seu paciente é um desafio a cada sessão, ano após ano. Essas considerações tornam ainda mais significativo o trabalho de elaboração psíquica que ocorre nas situações de supervisão, como um forte aliado no enfrentamento dessa profissão que tentamos tornar possível a cada sessão. A supervisão como campo de diálogo clínico Penso, porém, que o termo supervisão pode gerar alguns equívocos, favorecendo idealizações, principalmente para o iniciante. A principal idealização é de que o analista mais experiente não sofre angústias e apreensões nos seus atendimentos, que está sempre conduzindo a análise com tranquilidade, supostamente gerada pela posse de um conhecimento psicanalítico constituído ao longo de seus anos de prática e estudos. No entanto, parece que o analista experiente também não escapa dos desafios dessa profissão impossível: há o esforço para desapegar-se ao conhecido, intento necessário para que a análise seja um espaço de criatividade e vitalidade. Um exemplo amplamente conhecido desse desapego do conhecido é a atitude investigativa de Freud, sempre disposto a olhar o fenômeno clínico de uma nova maneira, muitas vezes, abrindo mão, textualmente, do que já havia dito. Porém, desapegar-se do já conhecido não significa deixar de lado o acervo teórico existente na psicanálise hoje; muito ao contrário, trata-se de considerar que o setting analítico é o lugar no qual as articulações conceituais devem estar incorporadas na mente do analista, permanecendo apenas como um fundo que sustenta a técnica e o processo analítico. Situação similar ocorre em relação às normas que regem a língua falada: não precisamos lembrá-las para nos fazer entender. Ao entrar na sessão, é recomendável então que o analista não use suas teorias como uma proteção indevida às angústias provocadas pelos aspectos enigmáticos do material clínico. Do contrário, a análise pode se tornar um lugar de apego e comprovação da teoria, e não de realização da função analítica do analista em prol das demandas psíquicas do analisando. Gabbard e Ogden (2009) sugerem que, para um analista já formado, a supervisão seria uma situação de diálogo clínico com um colega mais experiente e parceiro, e não uma conversação com alguém com uma ‘super-visão’ diante de outro alguém desamparado, sem essa condição ‘super’. O colega mais experiente escuta de outro lugar, no qual há um arrefecimento das turbulências emocionais presentes no campo analítico durante a sessão. Penso que a principal função dessas conversas sobre atendimentos clínicos seja favorecer e amplificar a capacidade de continência psíquica do analista às angústias que circulam na sala de análise. Essa condição de diálogo clínico parece ser, também, pertinente àqueles que estão em formação. Mas há também outro aspecto a ser pontuado em relação à supervisão clínica: a possibilidade de esse espaço de troca acabar por favorecer paralisações, decorrentes de críticas autocondenatórias do analista. Assim, se a autocondenação prevalece, o analista pode ficar preso à interpretação supostamente “correta”, aos erros e acertos, se deveria realmente ter feito dessa forma, ou de outra, etc. Penso que a função analítica do analista é uma condição psíquica que se torna precária diante de críticas excessivas; aliás, estas costumam comprometer a capacidade de continência emocional do analista às angústias do paciente. Refletir, mesmo que de modo crítico, sobre uma sessão, favorece o processo, mas as críticas excessivas podem gerar paralisações. Nas situações clínicas em que ocorre o que se denomina hoje de enactment, o analista comumente se sente cometendo uma falha grave, o que pode dificultar ainda mais a compreensão e elaboração da situação, ocorrendo impasses ou interrupções abruptas da análise em função dessa dificuldade. É habitual ser esse o momento em que o analista busca a colaboração de um colega; ou seja, o analista está geralmente exposto nas suas fragilidades e dúvidas, precisando da capacidade de continência psíquica do colega que está fora da situação analítica turbulenta. Mas a que se refere o conceito de enactment, precisamente? Ainda que tenha entrado no vocabulário psicanalítico há relativamente pouco tempo, devido a sua utilidade clínica, o enactment tem sido citado em vários textos e discussões. Alguns autores (Mclaughlin, 1998; Bohleber et al., 2015) retomam a história do conceito, localizando sua primeira aparição no título de um trabalho de Theodore Jacobs (1998), originalmente publicado em 1986: On couter-transference enactments, que se tornou então referência para o entendimento do termo. Para explicitar uma compreensão do enactment, uso a descrição de Cassorla (2015, p.47): (...) fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficiente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada. Destaco que essa compreensão está acoplada a outro conceito que vem sendo discutido na psicanálise contemporânea: a compreensão da situação analítica pertencendo ao campo analítico. O casal Baranger (1961-1962/1993, p. 145) define originalmente o campo analítico da seguinte maneira: O campo bipessoal da situação analítica está constantemente orientado por três (ou mais) configurações: o contrato básico, a configuração aparente do material manifesto, inclusive a função do analista nele, e a fantasia inconsciente bipessoal, que é objeto da interpretação. Essa estrutura é constituída pelo interjogo de processos de identificações projetivas e introjetivas e de contraidentificações, com seus limites, funções e características diferentes no paciente e no analista. A partir de um estudo aprofundado da obra Melanie Klein, o casal Baranger faz contribuições originais para a compreensão da situação analítica. A fantasia inconsciente8 passa a ser compreendida como uma fantasia inconsciente bipessoal, ou seja, se insere na compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando e seus efeitos no processo analítico. Parto da ideia de que, no diálogo clínico na supervisão, o fenômeno de campo analítico também acontece, porém com algumas especificidades. A assimetria da relação analítica se modifica - são dois colegas de profissão trabalhando, considerando- se as distintas experiências, tanto clínicas como teóricas. O foco de atenção no campo do diálogo clínico costuma ser a dupla analítica, sendo o colega mais experiente um terceiro na situação, o que favorece o que o casal Baranger (1961-1962/1993) denominou um segundo olhar. Trata-se, como o próprio nome diz, de olhar novamente o material clínico e tentar identificar novos vértices de compreensão. O segundo olhar pode advir do analista auto reflexivamente e/ou conjuntamente com seu supervisor. 8 Fantasia inconsciente é um conceito central na teoria kleiniana, refere-se à representação psíquica da pulsão, e constitui o conteúdo básico da vida mental. O colega consultor9 ou o professor na formação ocupam, pois, um lugar privilegiado. Ambos estão fora da sala de análise, ocupam um lugar não tão próximo, não tão imerso nos conteúdos emocionais presentes no atendimento. Trata-se de um posto de observação mais elevado, com vista panorâmica e ainda portando um binóculo potente. O horizonte se torna mais amplo, e a capacidade de analisar os detalhes também. Além das diferenças quanto ao tempo de experiência clínica e domínio da teoria, o lugar ocupado pelo supervisor é, portanto, favorável. Se pensarmos essa situação como uma visão ‘super’, no sentido de ampliada, saímos da área de risco dos autojulgamentos do analista, os quais podem comprometer sua capacidade de continência, especialmente nas situações de enactment10. Considerando os conceitos expostos, apresento a seguir duas vinhetas clínicas, nas quais a capacidade de continência psíquica do supervisor favoreceu a transformação da situação analítica incialmente apresentada na supervisão, promovendo uma expansão do campo analítico. Diálogo clínico na situação de supervisão I 11: o ilusionista Alice12, uma adolescente, inicia a análise com uma queixa trazida pelos pais, de baixo limiar de tolerância à frustração. Sempre que era frustrada no que queria, tinha um acesso de raiva e destruía objetos. Nos primeiros encontros, a analista observou um funcionamento psíquico que a preocupou. Era muito difícil distinguir, na narrativa de Alice, o que era factual do que era apenas invenção. A sensação na sala de análise, que se manifestou na rêverie da analista, era de um espaço de nebulosidade e nuvens de fumaça. Não era possível enxergar o que estava acontecendo. Nas sessões, com certa propriedade, Alice discursava sobre patologias psíquicas e seus sintomas, sugerindo que sofria deles, e gerando a impressão de ter estudado minuciosamente cada uma dessas doenças. Em outros momentos, descrevia como faria para executar um animal, e observava as reações da analista. 9 Gabbard e Ogden (2009) usam o termo consultor, e, também, usam a expressão um colega mais experiente. Fiz a junção colega consultor a partir deste texto. 10 Para um aprofundamento sobre os impasses gerados pelo enactment, consultar o livro: Enactments e transformações no campo analisante (Tamburrino, 2016). 11 Destaco que todo e qualquer material clínico é passível de diferentes apreensões, o apresentado na situação I e II de supervisão é apenas um vértice de compreensão possível. 12 Nome fictício. Nesses momentos, a sensação da analista era de estar embriagada, inebriada, capturada em um estado de confusão mental, o que foi inviabilizando, paralisando sua capacidade de pensar. Confusa e angustiada com a situação, preocupada se não estaria diante de uma adolescente em estado grave, em risco, solicitou um diálogo clínico ao colega consultor, que, após a exposição do que estava acontecendo, por meio da sua capacidade de rêverie, comentou que Alice parecia ser uma ilusionista. Ao conseguir narrar as emoções presentes na sala de análise, por meio da imagem de um ilusionista – essa é a rêverie -, o colega consultor nomeou o torpor, a confusão mental gerada pelo ataque à capacidade de pensar da analista. Lembremo-nos, diante desse quadro, de quando Bion (1959/2014) se refere ao ataque aos elos de ligação: o paciente ataca o próprio pensamento e a capacidade de pensar do analista, provocando, justamente, uma espécie de torpor. A compreensão, manifestada por meio da narrativa do consultor, transformou o estado mental da analista: foi como se a neblina em sua mente se desanuviasse, e ela conseguisse, nesse momento, enxergar e compreender o que estava acontecendo no campo analítico. Aqui, fica então evidente a estreita conexão entre o campo analítico e o diálogo clínico com o supervisor. A partir desse momento, houve uma transformação na mente da analista – deixando de permanecer imersa e perdida nas turbulências emocionais do campo, pôde encontrar um sentido, uma narrativa que a habilitou a estar com Alice em outra condição mental, mais disponível para o encontro analítico. A capacidade de refletir e pensar sobre o que acontecia na sessão foi retomada, ou seja, a função analítica voltou a se disponibilizar para Alice. Com isso, a escuta clínica deixou de ser capturada por preocupações psicopatológicas, o que tornou possível à paciente trazer para as sessões outros conteúdos, ou seja, o campo analítico mudou, se expandiu. Eis que, em um determinado momento, Alice trouxe à sessão um jogo de baralho, dizendo que gostaria de mostrar sua habilidade para a mágica. A analista refletiu, então, que ela já estava mostrando essa sua capacidade, fazendo mágica na sessão: promovendo uma sensação de estar inebriada, e de confusão mental, talvez decorrente de um sistema defensivo para evitar frustrações. Quando a mágica passou a ser narrada na sessão, foi possível o trabalho com elementos simbolizados, situação alcançada com a colaboração da experiência de rêverie do supervisor – o ilusionista – no campo do diálogo clínico. Diálogo clínico na situação de supervisão II: o enactment e a continência do supervisor Quando Natália13 era ainda uma criança, sua família entrou em contato com a analista pedindo orientações sobre como conversar com a filha a respeito de sua condição de adotada. Com uma riqueza psíquica surpreendente, em pouco tempo de análise, a menina não apenas verbalizava e detalhava a história contada e recontada pela mãe sobre sua adoção, o estado onde havia nascido, os costumes de lá, sua localização no mapa, como também brincava durante as sessões de ‘nascer’: passava por debaixo da cadeira onde a analista estava sentada, aparecendo do outro lado e dizendo: ‘nasci! O vínculo transferencial e contratransferencial, presentes no campo analítico, estava bem estabelecido. Após o tema da adoção ser falado e atuado em inúmeras sessões, a pequena Natália passou a trazer então seus questionamentos sobre a sexualidade. Temas como de onde vêm os bebês e as diferenças sexuais anatômicas passaram a fazer parte dos encontros. Porém, para a mãe, o trabalho analítico que ela havia solicitado - abordar e tratar a adoção de Natália - estava concluído, o que parece ter levado à decisão de determinar o fim da análise. O tema da separação da dupla analítica não foi tarefa fácil. Então, na tarde que antecedeu a última sessão, certo acontecimento fez com que a analista experimentasse muita estranheza e angústia. No início do segundo ano de análise com Natália, os pais decidiram mudá-la de colégio e ela acabou indo estudar na mesma escola das filhas da analista. Como as crianças estavam em períodos diferentes, essa situação não alterou o processo de análise, o setting analítico estava preservado. No entanto, na tarde que antecedeu a última sessão, a analista foi buscar sua filha em uma aula extra. Quando entrou pelo corredor por onde circulam as crianças, no exato momento em que elas aguardavam para serem conduzidas pelas assistentes às suas respectivas salas de aula, de repente, ficou diante da pequena Natália, que a olhou fixamente e disse: “Oi, tia, você também vem aqui? ” A reação imediata da analista foi cumprimentá-la e dizer: “sim, Natália, às vezes eu venho até este colégio também! ”. E seguiu adiante até a sala da filha, sentindo-se atônita e confusa, com mal-estar e taquicardia, e apenas conseguindo se auto recriminar: como não havia lembrado que aquele era justamente o horário de entrada das crianças do período da tarde? Por que havia utilizado aquele corredor e não a outra entrada? A analista sentia como se tivesse sido levada, simplesmente conduzida a estar ali e a criar uma situação tão inesperada e surpreendente para ambas. Naquela mesma tarde, felizmente antes da tão esperada despedida da última sessão, a analista procurou o colega consultor para entender o que estava acontecendo. Então, o acolhimento, a capacidade de continência da angústia por parte dele favoreceu a reflexão e compreensão do ocorrido. O primeiro aspecto cuidado pelo consultor foi a sensação de ter sido levada, conduzida, sem o menor controle sobre a situação. Tratava-se, portanto, do que a analista nomeava uma atuação, não havia elaboração, apenas uma ação sem reflexão. A analista estava transtornada e aprisionada em pensamentos autocondenatórios. Após essa primeira continência por parte do colega consultor, que promoveu outro estado de mente na analista, um estado mais disponível para compreender o que havia ocorrido naquele “colocar em cena”14, foi possível buscar o sentido daquele acontecimento, um autêntico enactment. A compreensão surgiu na mente da analista a partir da lembrança da fala da pequena Natália quando a viu parada à sua frente, no corredor do colégio: “Oi, tia, você também vem aqui? ” A partir da continência psíquica do colega consultor diante da situação apresentada, a analista pôde pensar sobre o que ambas sentiam frente à despedida, que aconteceria naquele mesmo dia, dentro de poucas horas. E apesar da dor da separação após um trabalho analítico extremamente intenso e produtivo, a analista disse à Natália e a ela mesma, através de um enactment, que encontros do jeito que estavam acostumadas a viver na análise não aconteceriam mais. Porém, outros encontros, de outra forma, e em outros lugares, poderiam sim ocorrer. 14 Nas considerações finais, há uma discussão sobre a diferença entre um acting-out, ou atuação, e um enactment, colocar em cena. Todas essas emoções que puderam ser contidas no espaço do diálogo clínico, um pouco antes da sessão da despedida, apareceram no último encontro com Natália. O encerramento da análise foi vivido por ambas como o início de outras possibilidades de encontros, em outros lugares. O conceito de enactment – uma ação na qual o analista é inconscientemente arrastado a colocar em ato – tornou-se, a partir da supervisão, um elemento importante da análise. A escuta de um terceiro, o colega consultor, pôde transformar aquilo que foi vivido através de um enactment em uma elaboração da dupla analítica. Dois anos após o término da análise de Natália, a analista estava em um teatro esperando o início de uma apresentação, quando escutou uma voz: “oi, tia!”. Quando virou para trás, lá estava Natália, que se debruçou sobre a poltrona, deu-lhe um forte abraço e voltou correndo para sentar-se ao lado de sua mãe. A analista apenas sorriu, as palavras, ali, já não eram mais necessárias. Considerações finais No momento da supervisão, o analista, menos ou mais experiente, está exposto nas suas dúvidas e angústias acerca do atendimento; poderíamos dizer que o analista está ‘nu’, desvendado. A capacidade de continência psíquica do supervisor é, pois, fundamental como um fator transformador na compreensão do que está presente no campo analítico. Quando o analista solicita uma supervisão, trata-se, geralmente, de uma situação na qual sua mente não está em condições de metabolizar as angústias presentes na sala de análise - há um transbordamento, como na vinheta dois, ou um estado de confusão mental, como na vinheta um. O supervisor faz uso de sua função analítica, a partir de outro lugar, de um posto de observação privilegiado, no qual é possível avistar tanto o panorama, quanto os detalhes. Ele está em outro campo, que denomino aqui o campo do diálogo clínico, está parcialmente distanciado das turbulências emocionais da dupla analítica. Lugar que torna possível outra visão, não ‘super’, mas um segundo olhar sobre o enigmático do material clínico, um olhar ampliado, a partir da sua capacidade de continência psíquica. Essa situação favorece uma transformação na mente do analista, possibilitada pela rêverie do colega consultor e/ou professor, que pode transformar as situações de confusão mental, nas quais a capacidade de pensar do analista pode estar prejudicada, ou nas situações em que ocorre o enactment: o colocar em cena, da dupla analista- analisando, os conflitos ainda inconscientes presentes no setting. Penso ser necessário uma breve pontuação sobre as diferenças entre o conceito de enactement e de acting-out discutido na vinheta dois. Cassorla (2015, p.44), autor que tem se dedicado ao conceito de enactment, ressalta que acting-out diz respeito a algo que acontece com o analisando, sendo o analista apenas um observador. Freud (1914) utiliza o termo agieren para se referir a fatos que não podem ser lembrados e são, então, encenados na transferência. Cassorla também destaca que o termo acting-out ou atuação passou a ser usado de forma moralista por vários psicanalistas, como se atuar fosse uma opção consciente. Precisamos considerar que o conceito freudiano de acting- out é anterior à concepção intersubjetiva da situação analítica; trata-se, ainda, de uma perspectiva unipessoal analista e analisando. A colega da vinheta dois, que solicitou a supervisão, estava imersa em um processo autocondenatório que a estava impossibilitando de pensar a situação de enactment. A analista está paralisada na sua capacidade de refletir sobre o que estava se apresentando na cena analítica daquela forma, provavelmente, a única possível para a dupla analista-analisando. No enactment, o analista é coparticipante, ele é convocado inconscientemente a colocar em cena as angústias da separação iminente. A continência psíquica do supervisor foi importante para que a analista pudesse pensar que era essencial ter a experiência de que outros encontros ocorreriam fora do setting, que aquele não seria um vínculo que desapareceria para sempre, como com a mãe biológica, mas poderia ser transformado. Natália poderia encontrar a analista em outros contextos. Nas duas vinhetas podemos evidenciar a inter-relação entre o campo analítico e o campo do diálogo clínico. Se há uma transformação na mente do analista, resultante da capacidade de continência psíquica do supervisor às angústias apresentadas, há, como decorrência, uma expansão do campo analítico. Finalizando, o que aqui denomino diálogo clínico com um professor ou com um colega consultor me parece ser uma respeitável colaboração, no desafio de tornar essa profissão impossível, o possível de cada sessão. Referências bibliográficas Baranger, Madaleine. & Baranger, Willy. (1993) La situación analítica como campo dinâmico. In: ______. 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- Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto
O artigo apresenta alguns conceitos de Bion, tais como: função α, elemento α, pensamento onírico da vigília, fato selecionado e rêverie, a partir das expansões de dois psicanalistas contemporâneos: Antonino Ferro e Thomas Ogden. O conceito de derivado narrativo de Ferro é colocado em destaque como uma expressão privilegiada na sessão analítica do pensamento onírico da vigília. Finalizo o texto com uma interlocução com o conto de Mia Couto, de modo a iluminar os conceitos apresentados, em articulação com o ofício do analista, que é comunicar e transformar as experiências emocionais; a imagística das interpretações narrativas é acesso privilegiado ao pensamento onírico da vigília. Palavras-chave: Função α; pensamento onírico da vigília; reverie; derivado narrativo Link de acesso ao texto: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/WYfqg66Z9B3LgRxPttyfV7k/?lang=pt
- De mãe em filha: a transmissão da feminilidade
O objetivo principal desta pesquisa é fundamentar e sustentar, pela literatura psicanalítica, a existência de vicissitudes psíquicas específicas na trajetória bebê- menina-mulher. Investigo e analiso as concepções levantadas por alguns psicanalistas sobre tão intrincada relação, e seus efeitos no contínuo desafio de tornar-se mulher, assim como na transmissão da feminilidade. Parto das observações de Freud sobre o recalque inexorável que encobre os primórdios da relação de uma mãe com sua filha. Busco explicitar as nuances dos vestígios dessa relação arcaica com a mãe, que é, para a menina, tanto o objeto de identificação primário quanto o secundário. É a mãe quem erotiza seu bebê menina, deixando marcas sensuais para o futuro desfrutar adulto da sexualidade feminina. Há nessa relação do mesmo que engendra o mesmo, um risco pontecializado para a cilada narcísica e a ilusão simbiótica. A hostilidade entre mãe e filha é compreendida como uma busca de diferenciação psíquica, sempre presente, em maior ou menor intensidade. Apresento a paixão entre mãe e filha, primeiramente no mito de Deméter e Perséfone; abordo a tragédia de Electra como a outra face da paixão – o ódio. Investigo e articulo a trama conceitual que cerca a concepção da feminilidade em psicanálise, e faço uma explanação da origem e desenvolvimento dos seguintes conceitos: identificação feminina primária (Paulo de Carvalho Ribeiro) homossexualidade primária (Jacqueline Godfrind), posição feminina primária ou fase da feminilidade (Melanie Klein) e, o materno primário e o feminino primário (Florence Guignard). Analiso o filme Sonata de Outono de Ingmar Bergman, sob o enfoque da insustentável nostalgia do encontro com a mãe, sempre sonhado e jamais alcançado. Na continuidade da reflexão a respeito do filme, coloco em evidência o olhar masculino e sua indissociável e dialética articulação com o olhar feminino. Essa aproximação – entre o feminino e o masculino – traz à tona o conceito de bissexualidade psíquica. O estatuto diverso da mãe e do pai como objeto também é discutido. Apresento duas construções clínicas: Zoe e Liz. Enfim, investigo o precioso e o tanático ou a força e a vulnerabilidade da transmissão da feminilidade de mãe em filha. Palavras-chave: mãe e filha, feminilidade, identificações, transmissão, sexualidade feminina, bissexualidade psíquica. Link de acesso ao texto: https://tede.pucsp.br/handle/handle/15873










