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  • O momento estético como potencialidade de vida e de futuro

    Artigo escrito por Janderson Farias Silvestre Ramos (1) e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (2). Resumo: Este artigo é uma reflexão teórica acerca de algumas potencialidades do momento estético: este se configura, a um só tempo, como refúgio das intempéries do presente, como possibilidade de fortalecimento dos laços do indivíduo com a vida e como abertura para o futuro. A relação do pianista inglês James Rhodes com a música clássica, conforme narrada por ele em sua autobiografia, é apresentada como expressão de tais potencialidades. Em nossa argumentação, descrevemos o momento estético como momento de afrouxamento das fronteiras do self, que atualiza, até certo ponto, a relação primordial do bebê com o objeto materno. Enfatizamos os limites do momento estético, já que este não substitui a necessidade do encontro humano, mas indicamos que ele pode se apresentar como uma espécie de lugar de espera suportável que mantém aberto o horizonte do encontro. Palavras-chave : Momento estético, psicanálise, futuro, música A vida do pianista inglês James Rhodes, conforme narrada na autobiografia a Instrumental: memórias de música, medicação e loucura , parece uma verdadeira odisséia. Como Ulisses, saindo de Tróia após a guerra, tentando voltar à Ítaca, seu lar, Rhodes também parece buscarum tipo de retorno. No entanto, o lar para o qual ele busca retornar nãoé um lugar físico, mas ao seu eu infantil, inteiro, antes de começar aser estuprado1 aos seis anos de idade pelo professor de educação físicada escola. A experiência concreta de horror, o estupro, durou cinco longos e desesperadores anos, mas internamente o horror permaneceuem Rhodes (além de graves consequências físicas, que levaram, entre outras coisas, à necessidade de cirurgias na coluna), como uma guerra constante, como um Ulisses que saiu de Tróia mas que levou a guerra consigo. Rhodes expressa essa sensação de guerra interior de diversos modos ao longo do livro, como: “Estou exausto o tempo inteiro. É uma espécie de Eu tóxico, corrosivo, difuso, penetrante, negativo, tudo deruim” (Rhodes, 2014/2017, p. 8). Ou: “Sou movido por cem mil formas 711 diferentes de terror” (p. 49). Rhodes começa seu livro dizendo que a música “literalmente” salvou sua vida: “Ela [a música] provê companhia quando não se tem ninguém, compreensão quando se está confuso, consolo onde há aflição e uma energia pura e não contaminada onde há um vazio de devastação e fadiga” (p. xii). No entanto, poucas páginas adiante, diz se sentir um “fracassado de um doente mental” (p. xviii). Com isto, ficamos sabendo, já de saída, que seu livro não pretende vender uma salvação utópica. Não se trata de afirmar algum poder milagroso que afugentaria permanentemente todos os demônios. Avançando ainda algumas poucas páginas, encontramos Rhodes pluralizando as causas de sua salvação, indicando que, além da música, as pessoas, os bons encontros, o sustentaram no caminho. Ele afirma, a respeito de seu melhor amigo, seu empresário, sua mãe e sua namorada: “Essas pessoas são minha espinha dorsal (...), elas são as forças de luz, o norte da minha vida, o motivo mais forte possível de eu ter permanecido vivo (isso mesmo, permanecido vivo) durante os tempos sombrios” (p. 3). A ênfase de Rhodes no fato de ter “permanecido vivo”, somado ao uso da palavra “literalmente”, no prelúdio, nos indica a que tipo de salvação Rhodes está se referindo. Inicialmente uma salvação literal, da morte física, visto que o pianista muitas vezes esteve à beira da morte por suicídio. E, depois, pequenas inscrições de vida em suas áreas internas mortas. Rhodes narra a experiência arrebatadora que teve com a música clássica. Com sete anos de idade, encontrou uma fita cassete com uma gravação ao vivo da Chacona , de Sebastian Bach, transcrita para piano por Ferruccio Busoni; escutou em seu gravador Sony, e, de repente, sentiu algo extraordinário. O pianista narra que enquanto era estuprado, “viajava” para se proteger. Sentia-se fora de seu corpo, vagando no teto, ou até mesmo além, atravessando portas, paredes, distante de onde a cena horrenda estava acontecendo. Isto permaneceu, na vida adulta, como um tipo de mecanismo de defesa: “na hora em que um sentimento ou uma situação se tornar insuportável, eu não estou mais lá” (p. 28), diz ele. Ao ouvir pela primeira vez a Chacona de Bach-Busoni, o menino viu-se também em uma espécie de viagem, mas, desta vez (...) não para voar perto do teto e me afastar da dor física do que acontecia comigo; ao contrário, voo para mais dentro de mim. A sensação é como se eu estivesse passando muito frio e, de repente, entrasse num edredon ultraquente e hipnoticamente confortável, tendo embaixo de mim um daqueles colchões de três mil libras, projeto da NASA. Eu nunca, nunca havia experimentado algo assim. (p. 36) O autor prossegue, dizendo: “Eu não sabia que raios estava acontecendo, mas literalmente não conseguia me mexer” (p. 36). A partir de então, a peça de Bach-Busoni, transforma-se, para o pequeno Rhodes, em seu local seguro. Toda vez que se sentia ansioso ele “mergulhava dentro dela como se fosse uma espécie de labirinto musical e cava vagando por ela, perdido e feliz” (p. 37). A poetisa portuguesa Matilde Campilho, em uma entrevista concedida a Eric Nepoceno,2 relata uma experiência (resguardadas as devidas peculiaridades) semelhante à de Rhodes. Ela conta uma situação em que visitando um museu em Londres, foi impactada por uma obra de Jackson Pollock. Conta que seus joelhos fraquejaram ao se ver diante da obra: “Foi uma bofetada de beleza e de espanto”. Podemos dizer que tanto Rhodes quanto Campilho viveram momentos estéticos. Na definição de Berenson, o momento estético é aquele instante fugidio, tão rápido ao ponto de ser atemporal, quando o espectador está irmanado com a obra de arte no momento em que a observa visualmente; ou quando vê qualquer coisa que pessoalmente considere como sendo artística (...). Ele não é mais o seu self corrente, e o quadro de um edifício, estátua, paisagem ou qualquer vivência estética não está mais fora de si mesmo. os dois tornam-se uma única entidade. (Berenson, 1950, s.p, apud Milner, 1952/1987, p. 103) Christopher Bollas (1987/2015) descreve os momentos estéticos como encontros com o espírito do objeto, momentos em que há um reconheci- mento silencioso que foge a qualquer representação; há “uma cesura no tempo, quando o sujeito se sente acolhido em simetria e solidão pelo espírito do objeto” (p. 66). O encontro com esse objeto gera em nós um sentimento de gratidão, como se a nós fosse concedida uma dádiva. Sentimos como se fossemos escolhidos pelo destino para vivenciar esse momento único. Em sua entrevista, Matilde Campilho prossegue, dizendo que mesmo que fosse criança, sentiu que aquela experiência teve a função de salvação, ainda que fosse apenas naqueles cinco ou dez minutos: “Eu acho que a arte faz isso, salva momentos”, ela afirma. O encontro com a arte, vivida como momento estético, pode, de fato, salvar um momento da vida? É isto que aconteceu com Rhodes? De momento a momento a música salvou sua vida inteira? Deixemos, por ora, essas questões em suspenso. Momento estético e objeto transformacional Bollas relaciona o momento estético a seu conceito de objeto transformacional. Ele utiliza a expressão objeto transformacional para descrever o objeto primário a partir de uma perspectiva intersubjetiva, enfatizando a experiência vivida pelo bebê do encontro com o objeto. O objeto primário seria reconhecido pelo bebê não como um objeto de representação, mas como um processo que ele identifica com as múltiplas transformações do self : Este conceito de mãe sendo vivenciada como uma transformação é sustentada em diversos aspectos. Em primeiro lugar, ela assume a função de objeto transformacional porque modifica constantemente o ambiente do bebê para ir ao encontro das necessidades dele. Não há nenhuma ilusão operando na identificação que o bebê faz da mãe com as transformações do ser por meio do conhecimento simbiótico; isto é um fato, pois na realidade ela transforma o mundo dele. (1987/2015, p. 51) Esta descrição de Bollas remetenos a um trecho da música Uma canção e só , entoada pelo cantor e compositor Lenine (2011): Desde de que eu me encanto, sigo a voz do vento,Já faz tanto tempo, canto, intento.A cantoria que me levaria a qualquer lugar,A melodia que transformaria a quem escutar, assim num piscar. Embora Lenine, enquanto músico, aluda aqui à busca de uma canção, referindo-se a algo próprio de seu universo artístico, esta busca não é privativa dos músicos nem mesmo dos artistas de modo geral. Na visão de Bolla, todos nós buscamos experiências transformacionais; nossa melodia, digamos, pois não se trata aqui de experiências artísticas, e sim estéticas . De acordo com Bollas, essas experiências teriam raiz no encontro inter- subjetivo com o objeto primário que nos transmite certa estética. Somos transformados, inicialmente, pela estética materna, pelo seu modo de ser e de se relacionar. Vivenciamos nosso primeiro grande momento estético, portanto, quando estamos dentro do outro, na estética do outro, sendo transformados por esse outro que ainda nem sabemos da existência. Temos notícias desse outro a partir das transformações que ocorrem gradualmente em nosso próprio ser. Podemos dizer, portanto, que os versos de Lenine ecoam algo de um momento da infância primeva. Um momento em que realmente escutamos uma melodia que nos transformou, assim num piscar. Nas palavras de Bollas (1987/2015): “A dor da fome, um momento de vazio, é transformada pelo leite da mãe em uma experiência de plenitude. Esta é uma transformação fundamental: vazio, agonia e raiva se tornam plenitude e contentamento” (p. 68). Procuramos mergulhar no quadro, na música, na paisagem, na voz da pessoa amada ou em seu abraço, tal como um dia estivemos mergulhados na estética materna. Nesta perspectiva, os momentos estéticos são, portanto, momentos transformacionais. Em um livro posterior, falando sobre os sonhos, Bollas (1992/1998) afirma que estar num sonho é “uma contínua reminiscência de estar no mundo materno quando se era de algum modo uma fi gura receptiva dentro de um ambiente compreensivo ” (p. 5; itálicos nosso). E diz ainda: “O sonho parece ser uma memória estrutural do inconsciente do bebê, uma relação objeto de pessoa dentro do processo do inconsciente do outro ” (p. 5; itálicos nosso). O sonho, então, é uma constante atualização da relação primordial com o primeiro objeto transformacional. Ou seja, o que definiria uma vivência transformacional é a existência do par fi gura receptiva/ambiente compreensivo . O par fi gura receptiva/ambiente compreensivo está subjacente aos processos transformacionais, pois esse par que se inicia na relação mãe-bebê e que se transforma na estrutura onírica, se desloca também para os objetos estético-culturais. Assim como o ego cria o sonho, recriando a situação transformacional primária (mãe-bebê), a cultura criou todo um aparato de objetos culturais que são ambientes compreensivos potenciais para os quais o sujeito pode se entregar como figura receptiva. Desse modo, a relação do indivíduo com esses objetos serve como uma espécie de evocação do holding materno. A esse respeito, Bollas (1987/2015) afirma que o momento estético é uma “experiência de holding que promove a memória psicossomática do holding ambiental” (pp. 73-74), configurando-se como um “registro pré-verbal e essencialmente pré-representativo da presença materna” (p. 74). Nesse sentido, embora não seja possível dizer que o momento estético substitui a presença materna, podemos pensar que esses momentos são potencialmente propiciadores de elementos de cuidado presentes originalmente na figura materna. Sharon Chirban (2000) é uma autora que apoia esse ponto de vista. Ela estabelece uma relação entre os momentos de rebaixamento das fronteiras do self , e o relacionamento primitivo mãe-bebê, que seria marcado pela indiferenciação, pela unidade. Desse modo, sendo derivados da união primeva, os momentos estéticos são definidos por Chirban como experiências de unidade. A autora argumenta que essas experiências impulsionam a integração e expansão do self (tal como a experiência de indiferenciação primitiva mãe-bebê). Para compreender essas afirmações, nos reportemos à relação mãe-bebê para depois retornarmos à questão do momento estético. A unidade com a mãe impulsiona a relação com o outro, na medida em que ela apresenta o mundo ao bebê em pequenas doses que ele pode suportar, oferecendo-lhe abrigo do mundo turbulento (mundo interno e externo), deste modo o bebê pode conhecer o mundo a partir do seu próprio gesto, de maneira que o mundo adquire gradativamente sentidos pessoais. Inversamente, a ausência da unidade coloca o bebê diante da amplitude esmagadora do mundo, decorrendo daí as angústias impensáveis das quais Winnicott ( 1963/2005) nos fala. Seguindo essa lógica, podemos dizer que se as experiências de imersão nos objetos, tais como as experiências de Rhodes e Campilho, refletem, em certo nível, a experiência de unidade primitiva com a mãe, elas levam então à individuação e à capacidade de estabelecer relações íntimas sem perder-se no outro, pois quando o indivíduo “se perde” no objeto e encontra nele partes suas, o objeto ca “pessoalizado”. Isto impulsiona o indivíduo na direção do mundo: dos encontros pessoais, dos objetos, em suma, na direção do futuro. O momento estético e os futuros Christopher Bollas afirma que estamos continuamente alternando de estados de self complexo para estados de self simples, e vice-versa. O self simples é o self que está imerso na experiência, que a vive como um personagem, como quando estamos no sonho, isto é, quando somos uma figura receptiva em um ambiente compreensivo. O self complexo é o self que medita, que reflete. A este respeito Bollas (1992/1998) descreve os estágios da experiência do self . Vejamos: Eu uso o objeto. Quando pego um livro, vou a um concerto ou telefono para um amigo, eu seleciono o objeto de minha escolha. Eu sou influído pelo objeto. No momento em que uso o objeto, sua particularidade específica (sua integridade) acaba por me transformar: pode ser a Oitava Sinfonia de Bruckner me sensibilizando, uma novela que contenha associações evocativas ou um amigo me persuadindo. Eu fico perdido em minha experiência do self. A distinção entre o sujeito que usa o objeto para realizar seu desejo e o sujeito que é tocado pela ação do objeto não é mais possível. O sujeito está no interior da terceira área de experiência self. O estado anterior de seu self e a simples integridade do objeto estão ambos “destruídos” na síntese da experiência do efeito mútuo. Eu observo o self como um objeto. Emergindo de sua própria experiência do self, o sujeito reflete sobre onde esteve. Este é o lugar do self complexo. (Bollas, 1992/1998, p. 19; itálicos do autor). O terceiro estágio é o lugar do self simples, o quarto é o do self complexo. O principal objetivo do self complexo é “objetivar da melhor maneira possível onde alguém esteve ou o significado de suas ações” (p. 6). Estamos sempre oscilando entre a posição de observadores objetivos e a condição de figura receptiva dentro de um ambiente compreensivo. Nestes últimos estados retornamos à não integração, somos “ilhas espalhadas de potenciais organizados dirigindo-se para o ser” (p. 6). James Rhodes (2014/2017) narra a experiência de imersão na Chacona de Bach-Busoni e, ao longo do livro, imersões em diversas outras peças musicais que foi conhecendo ao longo do tempo. Em certa ocasião, por exemplo, estando internado em um hospital psiquiátrico, conta que um amigo lhe levou escondido dentro de uma embalagem vazia de shampoo (os visitantes não podiam levar qualquer presente, exceto produtos de higiene), um iPod repleto de música, o que lhe propiciou a seguinte experiência: Eis que me encontro debaixo das cobertas. Fone de ouvido bem apertado. Meia- -noite. Escuro, silêncio total. E eu apertei o play e ouvi uma peça de Bach que ainda não tinha ouvido. E isso me levou a um lugar de tamanha magnificência, entrega, esperança, beleza e espaço infinito, que foi como tocar a face de Deus. Juro que tive algumas vezes uma espécie de epifania. A peça era o Adágio, de Bach-Marcello (...). Glenn Gould estava tocando isso no seu Steinway, e conseguiu há quarenta anos viajar mais trezentos anos até o passado, fazendo-me saber que as coisas não só iriam ficar bem, como também iriam ficar absolutamente sensacionais. A sensação era como se eu tivesse sido plugado a um soquete elétrico. (...). Aquilo me arrasou e liberou algum tipo de delicadeza interior que não via a luz do dia havia trinta anos. (p. 133; itálico no original) Arriscamos dizer que nesse momento Rhodes está no terceiro estágio da experiência do self descrito por Bollas. O lugar do self simples. No entanto, o trajeto de Rhodes na música clássica não é feito apenas de experiências de imersão nas peças, mas também de um trabalho de reflexão sobre essas experiências, sobre o campo comercial ligado à música e sobre os compositores das peças. Desse modo, cada um dos capítulos do livro é iniciado com uma breve biografia de algum compositor. A experiência de Rhodes com a música, portanto, está muito além do impacto advindo dela. Se expande para o compartilhamento de sua experiência (na própria publicação do livro e nos concertos que realiza) e para a identificação com os diversos compositores e suas histórias trágicas. A começar por Bach, órfão aos dez anos, sofrendo abusos na escola, tendo perdido 11 (!) filhos e a esposa. Passando por Beethoven (que emergiu de uma família alcoolista onde se praticava violência doméstica, que morre surdo e infeliz), Ravel (que carregava o trauma de ter servido na Primeira Guerra Mundial e ter sofrido danos cerebrais severos em função de uma colisão de automóveis), Brahms (que, segundo Rhodes, vivia em uma família tão desestruturada que, ainda criança, precisou tocar em bordéis para ganhar dinheiro), Schumann (que tentou se matar lançando-se no rio Reno e, ao não conseguir, internou-se voluntariamente em um hospital, onde morreu dois anos depois), entre outros. A excitação com a qual Rhodes narra essas histórias, nos faz recordar de um trecho de uma carta da poetisa Florbela Espanca, enviada à sua amiga Julia Alves em 1916, na qual ela diz o seguinte: A única coisa que consola os tristes é a tristeza, não te parece? A alegria irrita, e eu hoje tendo no regaço a bíblia dum grande desgraçado, tive mais uma vez a prova disto, porque o livro consolou-me. Chama-se o desgraçado Silva Pinto; chama-se o livro Neste vale de lágrimas, conheces o desgraçado? Conheces o livro? É belo e consolador; lê-lo é evocar saudosamente todas as relíquias de esperança de um passado morto. Como o compreendi e como tão da alma o sinto. (Dal Farra, 2002, p. 213; itálicos no original) Parece que por meio das biografias dos compositores Rhodes também consola-se. Suas tragédias ressoam a sua própria tragédia. Por outro lado, ele admira a potência desses autores, o potencial de criar mesmo em meio à desolação e, por vezes, a partir dela. Em Bach, por exemplo, seu grande ídolo, exalta a capacidade de seguir adiante e viver da maneira mais criativa que consegue, mesmo em meio a toda tristeza, e de ter deixado um legado que Rhodes considera estar além da compreensão da maioria dos humanos. Rhodes transita, portanto, entre momentos estéticos (momentos de self simples) e momentos de reflexão sobre a experiência e sobre si mesmo, utilizando-se das peças e de todo o universo musical que a circunda, para pensar sobre si mesmo e caminhar na direção do futuro. Por meio das biografias de compositores mortos há séculos, Rhodes parece, assim como Florbela, evocar relíquias de esperança de um passado morto. Mas não apenas saudosamente, visto que os compositores com os quais se identifica, e todo o universo da música clássica, parecem lhe dar força para, no presente e no futuro, encontrar e criar novas relíquias (tais como seus concertos e seu livro), forjadas por dor e esperança, que podem ser compartilhadas com outros. Ou seja, os estados de imersão nas peças musicais propiciam não apenas experiências de êxtase, mas incrementam a esperança e o movem para o futuro. Neste ínterim, para pensar esse movimento de Rhodes, recorremos nova- mente a Bollas. Ele afirma que da mesma maneira que possuímos memórias, pode-se dizer que possuímos futuros. Ele nos lembra que na teoria econômica, fala-se em investir no futuro. Semelhantemente investimos psiquicamente no futuro a partir do uso que fazemos dos objetos do presente. Os objetos atuais estão “impregnados de futuros”, nos diz o autor. Igualmente, assim como reprimimos memórias, é possível haver uma repressão dos futuros, já que uma pessoa que passou por experiências muito dolorosas pode ter seus objetos impregnados de futuros dolorosos: “Não há, então, nenhum desejo de evocar futuros , uma vez que a pessoa não deseja evocar memórias dolorosas” (Bollas, 1989/1992, p. 58). No entanto, nas palavras de Bollas, “se tudo decorrer bem, uma criança desenvolverá interesses apaixonados pelos objetos, muitos dos quais projetam a criança no futuro” (p. 49). Assim, uma criança pode se imaginar nadando, outra tocando piano, jogando futebol etc. É por meio desse interesse apaixonado por determinados objetos, que a criança se move para o futuro. Esse é um processo que permanece ao longo de toda a vida, de maneira que todos nós, ao utilizarmos objetos do presente, estamos nos movimentando para o futuro. Ao projetar nos objetos as nossas próprias disposições, constituímos “as primeiras formações do caminho do desejo” (p. 50). Isso é bastante claro na história de James Rhodes. Desde que iniciou o contato com a música clássica, ele sonhou em ser também um concertista tal como os grandes músicos que escutava. Desse modo, as músicas tornaram-se para ele não apenas um lugar de refúgio da atrocidade que sofria, mas uma promessa de dias e encontros melhores, o que se depreende de uma afirmação sua, quando narra a sensação que teve após apresentar o seu primeiro concerto: “(...) eu compreendi que todas aquelas fantasias sobre dar concertos que eu tinha na infância, que me mantiveram vivo e resguardado na minha mente , eram precisas. De fato, é algo que tem esse poder” (Rhodes, 2017, p. 114; itálicos nosso). Durante todo o seu relato autobiográfico James Rhodes afirma algumas vezes que a música o salvou ou que a vida o manteve vivo. No entanto, no epílogo de sua autobiografia, ao falar sobre o momento otimista em que se encontra, ele adverte, de maneira honesta, que não faz ideia se esse momento durará muito tempo: “Já estive em situações em que me sentia sólido, confiável, bom e forte, e tudo foi pro espaço” (p. 245). De fato, acompanhamos muitas dessas situações ao longo do livro. Momentos em que um raio de esperança surgia para logo ser coberto pela neblina (várias internações psiquiátricas, tentativas de suicídio, reincidência na automutilação e no uso abusivo de álcool e drogas etc.). Com base nisso, poderíamos, com certa razão, adentrar pelo caminho do ceticismo e duvidar da solidez da melhora de Rhodes. Poderíamos apostar que em não muito tempo ele iniciaria novamente uma descida a uma espécie de abismo (e é mesmo bem possível que isso tenha acontecido após a escrita do livro, visto que esse foi lançado há mais de seis anos). No entanto, se tomarmos apenas essa via estaríamos, como diz o ditado, “lançando fora água da banheira com o bebê dentro”, pois apesar das constantes recaídas do pianista, parece-nos inegável que muitos momentos de sua vida foram salvos pela música e pelas pessoas de seu entorno. Fato inegável também é que à despeito da violência atroz que sofreu durante anos a fio, hoje James Rhodes é um homem de 46 anos, exímio pianista que realiza concertos, escreve artigos, concede entrevistas etc. Não sabemos de fato onde e como ele estará em um ano ou dois, ou mesmo em um dia ou dois (e quem sabe como cada um de nós estará?), mas sabemos que inúmeras pessoas que sofreram atrocidades semelhantes às que ele sofreu sucumbiram ao suicídio ou estão há décadas enclausuradas em níveis extremos de loucura. Como negar, então, que, de alguma maneira, a música, se não o salvou, ao menos teve um papel importante na sua sustentação até aqui, isto é, um papel fundamental (ao lado dos amigos, da família, dos terapeutas) em mantê-lo vivo? Esta reflexão leva-nos à seguinte pergunta: como podemos compreender ou dimensionar o potencial da música (ou da arte em geral) nesse processo de manutenção da vida? No tópico seguinte recorreremos a alguns autores na tentativa de esboçar uma compreensão. Momento estético e progressão na direção da vida A respeito da experiência primitiva de unidade que se reflete nos posteriores momentos estéticos, Chirban (2000) marca uma diferença entre experiências de unidade progressiva e fantasias de unidade regressiva . No primeiro caso trata-se de uma experiência íntima que impulsiona à abertura, à expansão, à relação objetal. No segundo, estamos diante da fuga da realidade, do enclausuramento. O momento estético se situaria no primeiro campo, o da progressão. Progressivo aqui é entendido como movimento em direção à vida, à integração e diferenciação egoica. Regressivo, por outro lado, é compreendido como afastamento das relações, desligamento, movimento em direção à morte psíquica.3 A fim de embasar essa compreensão a respeito de progressão e regressão, recorremos a algumas afirmações de Abraham, Freud e Winnicott. Vejamos. Já em 1924, Abraham (1924/1970b) referia-se ao estágio mais primitivo de desenvolvimento psicossexual como sendo pré-ambivalente e apontava a tendência regressiva melancólica em direção a esse estágio. Se essa regressão radical for efetuada, o resultado pode ser o suicídio (Santos e Migliavacca, 2020). Muitos anos antes, Abraham (1911/1970a) indicava que a tendência do melancólico ao afastamento seria uma expressão da negação da vida. Ou seja, Abraham equalizava regressão e afastamento da vida. Freud (1923/2013), no contexto da segunda teoria pulsional, argumenta que cada etapa do desenvolvimento psicossexual é marcada por um progresso da ligação da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. Assim, nas fases mais primitivas haveria uma preponderância da pulsão de morte, enquanto ao longo do desenvolvimento a fusão pulsional levaria a um incremento de pulsão de vida. A regressão a estágios mais primitivos do desenvolvimento levaria a uma desfusão pulsional e, portanto, a um incremento da pulsão de morte. Vemos então, em Freud e Abraham, a concepção de progressão como movimento para a vida, e de regressão como movimento para a morte. Também em Winnicott encontramos a ideia de progressão em direção à vida, embora sobre bases bastante diferentes de Freud, uma vez que a teorização do autor inglês não se assenta sobre o conflito pulsional (pulsão de vida x pulsão de morte). Em “O bebê como organização em marcha”, Winnicott (1957/1979) nos fala da presença de uma centelha vital nos bebês, uma tendência inata para a vida. Tendência que precisa ser sustentada pelo ambiente. Winnicott refere-se a mães que perdem o prazer do cuidado por acreditarem-se responsáveis pela vivacidade de seus bebês, certificando-se continuamente que estão vivos, ou fazendo “malabarismos” para animá-los quando os veem rabugentos ou taciturnos. Ou seja, essas mães obstaculizam a marcha/progresso natural das crianças na direção da vida. A essas crianças “nunca é permitido sequer, nos primeiros tempos, que quem simplesmente deitadas e entregues às suas divagações. Perdem assim muito e pode-lhes fugir a sensação de que elas próprias querem viver” (p. 30). Esta citação winnicottiana remete-nos a uma descrição, feita por Sara Nettleton, de uma criança que explora criativamente o mundo, enriquecendo seu mundo interno por meio dessa exploração: Imaginemos que um bebê está deitado em seu berço, sozinho e em estado de calmo devaneio. Sua mãe aparece, sorri, diz olá, e pendura, no suporte do berço, um brinquedo móvel vermelho, o qual se move em um padrão aleatório. A atenção do bebê é imediatamente atraída para isso e vários elementos se juntam: a chegada familiar e reconfortante da mãe, um novo objeto inesperado em seu campo de visão, uma cor vermelha estimulante, o movimento imprevisível e a experiência prazerosa de sua própria resposta física, enquanto seu corpo expressa surpresa e excitação. O ponto importante aqui é que vários aspectos dessa nova experiência se inscrevem no inconsciente e ganham significado, não porque são recalcados, mas porque são recebidos por razões criativas. No inconsciente do bebê cada um dos elementos individuais irá se vincular a um conjunto formado por experiências anteriores. Com cada novo evento, esses conjuntos se expandem e fomentam o desejo de uma excitação prazerosa. O bebê então procurará mais do mesmo em seu ambiente exterior — o reaparecimento da mãe, outras coisas que são vermelhas ou que se movem de certa maneira, e assim por diante. (Nettleton, 2018, p. 36) Estabelecendo um diálogo entre a concepção winnicottiana a respeito da marcha da criança na direção da vida e a descrição de Nettleton sobre a exploração criativa dos objetos, podemos afirmar que a marcha (progressão) natural do bebê é, ao mesmo tempo, movimento para a vida e para os objetos. Movimentos indissociáveis. Este é o significado de progressão que queremos aqui acentuar. Muitas das divagações do bebê a que Winnicott se refere na citação acima podem ser explorações do objeto tal como Nettleton descreve. As divagações podem ser estados de imersão nos objetos em estado de self simples, como se o bebê estivesse continuamente vivenciando momentos estéticos. Essa afirmação é corroborada por Marion Milner (1952/1987), que afirma que o momento estético, momento de suspensão do tempo e das fronteiras sujeito-objeto, é uma experiência corriqueira da infância. Em suas palavras, “a arte fornece um método, durante a vida adulta, para reproduzir estados de mente que fazem parte da experiência diária de uma infância sadia” (p. 103). Podemos afirmar, então, que quando o bebê se entrega ao objeto em estado de self simples ele está progredindo na direção da vida. Por derivação, podemos conjeturar que um movimento semelhante acontece na entrega do indivíduo a um objeto estético na vida posterior, tal como nas experiências de Rhodes. Os momentos estéticos que ele vivenciava o sustentaram, não permitindo que ele sucumbisse, sob pressão da violência que sofria, à regressão absoluta da pulsão de morte e fortaleceram seus laços com a vida. Esta é uma afirmação também corroborada por Chirban (2000), que argumenta que o afrouxamento das fronteiras do self numa experiência de unidade com o outro (em suma, o momento estético, o terceiro estágio da experiência do self , como descreve Bollas), resulta, após a experiência, em um self mais integrado e aprimorado por uma vitalidade aumentada. Como compreender essa afirmação? O que significa fortalecer os laços com a vida? Em seu texto “A localização da experiência cultural”, Winnicott (1971/ 1975) refere que embora os psicanalistas tenham se debruçado sobre a definição de saúde , entendendo-a como ausência de defesas rígidas, pouco se fez no sentido de compreender uma questão mais básica, isto é, o problema de saber o que é vida, independente de saúde ou doença. Para Winnicott, essa resposta não pode ser encontrada na experiência instintual; não é a satisfação instintual que fará o indivíduo sentir que a vida vale a pena ser vivida, de modo que afirma que o analista pode curar o paciente (cura entendida como diminuição das defesas) sem nunca saber o que é que permite que o paciente continue vivendo. A ausência de doença, ele afirma, é saúde, não vida. Boraks (2008) segue o questionamento winnicottiano sobre o que é estar vivo, definindo “estar vivo”, como uma capacidade . Ela destaca que, para Winnicott, o sentir-se vivo se assenta, inicialmente, no corpo. O corpo é o lugar privilegiado a partir do qual podemos alçar voo na direção de todas as outras experiências. É o lugar onde iniciamos a vida “a partir do que nos é conhecido, do que é nosso e do que vivemos primeiramente de modo sensorial” (p. 113). O destino dessa vitalidade inicial, assentada no corpo, depende da presença de um ambiente capaz de acolher o bebê nos estados excitados e sustentá-lo nos momentos tranquilos. É dos cuidados maternos, destaca Boraks, emergindo da vitalidade emocional e corporal (não intrusiva) da mãe, que o corpo do bebê poderá emergir como sede do estar vivo. A capacidade de estar vivo depende, portanto, da presença do outro. É a sustentação do outro que possibilitará a oscilação entre estados excitados e tranquilos sem que o sujeito tema despedaçar-se. Assim, a capacidade de estar vivo, para Winnicott, inclui a capacidade de alternância entre estados de ser. Inclui a capacidade de desintegrar-se e retornar à integração. Inclui mesmo a capacidade de abandonar momentaneamente o impulso fundamental para existir: “Pode-se dizer, assim, que estar vivo é ter e manter a esperança de recuperar a integração quando sentimos que a perdemos” (Boraks, 2008, p. 121). A autora prossegue: Mais especificamente e dependendo do grau de integração alcançado, a capacidade de estar vivo liga-se à possibilidade de manter opostos em jogo, de trans- formar em fonte de inspiração os nossos horrores, nossas confusões e nossos conflitos, além de criar com eles um jogo que permita um novo lugar frente a nós mesmos e ao mundo. (p. 121; itálico nosso) Parece-nos que o que James Rhodes realiza é exatamente transformar em inspiração seus horrores, confusões e conflitos. Seu primeiro disco, por exemplo, carrega um título absolutamente autobiográfico: Razor blades, Little Pills e Big Pianos (Lâminas de barbear, pequenos comprimidos e grandes pianos ). O próprio livro é fruto de uma inspiração desse tipo, além de um programa de TV na Channel 4, James Rhodes: Notes from the inside, no qual o pianista foi a um hospital psiquiátrico conversar com os internos e tocar uma música específica para cada paciente. É forçoso nos questionarmos, no entanto, se Rhodes teve a presença do ambiente compreensivo que Boraks assinala, e se foi então esse ambiente que permitiu a transformação do horror em inspiração. Em sua autobiografia encontramos pouquíssimas referências à sua família nos seus primeiros anos. Ele comenta, entretanto, que antes dos abusos se iniciarem ele era uma criança reservada, mas que já gostava de música, dança e tinha uma imaginação bem fértil, estando “livre de muitas bobagens com as quais os adultos parecem viver sobrecarregados” (Rhodes, 2014/2017, p. 12), o que talvez nos dê alguma indicação de um ambiente razoavelmente acolhedor. Por outro lado, em um boletim de ocorrência policial escrito em 2010, Chere Hunter, a diretora da escola fundamental de Rhodes, diz que ele implorou mais de uma vez para não ser mandado ao ginásio (para as aulas extracurriculares de boxe, nas quais o abuso acontecia). Ela alega ter conversado com a mãe do menino sobre isso, que comentou que havia percebido que o filho tinha se tornado mais arredio em casa, que não estava sendo “ele mesmo”. Apesar disso, Chere pontua que não se recorda de os pais terem cancelado a atividade. De fato, mais adiante, Rhodes conta que os abusos pararam apenas aos 11 anos de idade, quando ele mudou de escola. A própria diretora diz que embora pensasse que algum tipo de castigo físico estivesse sendo aplicado, jamais imaginou que fosse algo de caráter sexual. Não temos intenção de agir como juízes dos pais de Rhodes ou da diretora, o que evidentemente não é o nosso papel. Queremos apenas indicar que onde houve uma falha do ambiente em protegê-lo, a música o acudiu. É claro que a música não pode substituir o cuidado parental, muito menos apagar a violência que Rhodes sofreu, e a prova cabal disso é a tempestade emocional com a qual ele conviveu (e talvez ainda conviva) durante toda a vida. Contudo, como já indicamos algumas páginas acima, a música serviu-lhe de sustentação para que ele não caísse em abismos de morte sem fim. A partir disso retornemos à questão sobre os laços com a vida, expandindo-a agora para além da presença parental, inserindo a experiência cultural (tal como a relação com a música). Winnicott (1971/1975) afirma que o espaço potencial, espaço existente entre as áreas subjetivas e objetivas da experiência, pode ou não tornar-se uma área vital da vida psíquica do indivíduo. Podemos dizer, desse modo, que o espaço potencial é o lugar onde a vida acontece. É o lugar de criação, do brincar, em que o indivíduo passa da pura existência para o viver propriamente. O lugar da exploração criativa dos objetos, a saber, da marcha em direção à vida: (...) para o bebê (se a mãe puder proporcionar as condições corretas), todo e qualquer pormenor de sua vida constitui exemplo do viver criativo. Todo objeto é um objeto “descoberto”. Dada a oportunidade, o bebê começa a viver criativamente e a utilizar objetos reais para neles e com eles ser criativo. Se o bebê não receber essa oportunidade, então não existirá área em que possa brincar, ou ter experiência cultural, disso decorrendo que não existirão vínculos com a herança cultural, nem contribuição para o fundo cultural. (p. 161; itálicos nosso) Algumas conclusões podem ser depreendidas dessa citação de Winnicott.Em primeiro lugar, se tudo corre bem, os objetos encontrados adquirem sentidos pessoais, o que significa dizer que “estar vivo” passa a fazer sentido.O sentido de estar vivo, portanto, é encontrado com os objetos, entre os objetos, na movimentação psíquica entre as imersões nos objetos (em estado 725 de self simples) e o retorno produtivo, isto é, enquanto self complexo (Bollas, 1992/1998). Em segundo lugar, é preciso destacar a relação entre o sentido deestar vivo e a experiência cultural. É utilizando a herança cultural que cadaum pode viver criativamente. No mesmo texto, Winnicott (1971/1975) afirma que “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição” (p. 158). A originalidade no campo cultural advém do uso criativo das obras culturais, que são expressões vivas de transformações produtivas vivenciadas por inúmeras pessoas ao longo do tempo. É assim que a centelha vital (Winnicott, 1957/ 1979) pode se tornar uma grande lareira, fortalecendo os laços do indivíduo com a vida. Basta um pequeno passo associativo para reconhecermos aqui o uso feito por James Rhodes da música e seus compositores. Considerações finais O poeta Charles Bukowski (2007/2015), no poema Um final plausível , diz o seguinte: deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir ou você cansou de ficar bêbado e a erva não funciona mais, e não me refiro a passarpara o haxixe ou cocaína, eu me refiro a um lugar para ir além da morte que está esperando ou do amor que não funcionamais. deveria haver algum lugar para onde ir quando você não consegue mais dormir além de um aparelho de TV ou um filme ou comprar um jornal ou ler um romance. é não ter esse lugar para onde ir que cria as pessoas agora nos hospícios e os suicídio. (p. 175) Para Rhodes, durante muito tempo esse lugar foi a música. Ele encontra nesse objeto estético um lugar seguro, que é, ao mesmo tempo, inquietante e acolhedor. A música se torna um lugar de vida e uma espécie de lugar de espera suportável,4 um lugar que permite a manutenção de um horizonte aberto no qual se vislumbre a possibilidade do encontro, e que possa se contrapor à repressão dos futuros. Pensamos que não é excessivo enfatizar novamente que não pretendemos fazer uma ode a um suposto poder milagroso da música e dos momentos estéticos em geral. Queremos apenas indicar que enquanto lugar de espera e promessa de futuro, os momentos estéticos devem ter sido degraus na escadaria pelo qual Rhodes passou (e ainda passa) para chegar a bons encontros humanos, aos quais ele mesmo se refere com muita gratidão. Notas *1 Universidade de Santo Amaro – UNISA (São Paulo, SP, Brasil). *2 Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Brasil) (1)Usamos aqui diretamente a palavra estupro, em vez de expressões como abuso ou violência sexual, para tentar preservar a força do próprio relato de Rhodes. O pianista não hesita em escancarar a violência atroz que sofreu. Ele diz, por exemplo: “Fui usado, fodido, quebrado, me fizeram de brinquedo e me estupraram desde os seis anos de idade. Repetidas vezes, durante anos e anos”. (Rhodes, 2014/2017, p. 10). (2) Link da entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mexr5UgYW60&t=389s (3) Deixamos de lado, nesta discussão, a regressão enquanto fator terapêutico, dimensão discutida por Winnicott (1954/2000) e Balint (1968/1993). Ideia que também está presente em Freud, como mostra Balint: “(...) aprendemos com Freud que, clinicamente, a regressão pode ter quatro funções: a) como mecanismo de defesa, b) como fator da patogênese, c) como uma potente forma de resistência e d) como fator essencial da terapia analítica” (p. 118). Para o objetivo deste artigo chamamos atenção apenas para regressão enquanto afastamento da vida, em contraposição à progressão. (4) Agradecemos ao nosso colega Péricles Machado Jr. pela sugestão desta metáfora tão pertinente. Referências Abraham, K. (1970a). Notas sobre as investigações e o tratamento psico-analítico da Psicose Maníaco-Depressiva e Estados Afins. In Teoria psicanalítica da libido (pp. 32-50) . Imago. (Trabalho original publicado em 1911). Abraham (1970b). Breve estudo do desenvolvimento da libido. In Teoria psicanalítica da libido (pp.161-173) . Imago. (Trabalho original publicado em 1924). Balint (1993). A falha básica . Artmed. (Trabalho original publicado em 1968). Bollas, C. (1992). Forças do destino: psicanálise e idioma humano. Imago. (Trabalho original publicado em 1989). Bollas, C. (1998). Sendo um personagem . Revinter. (Trabalho original publicado em 1992). Bollas, C. (2015). A sombra do objeto: a psicanálise do conhecido não pensado. Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). Boraks (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanal. 42 (1), 112-123. Bukowski, C. (2015). Um final plausível. In As pessoas parecem flores finalmente. L&PM. (Trabalho original publicado em 20072).Chirban, S. (2000). Oneness experience: looking through multiple lenses. Journal of Applied Psychoanalytic Studies , 2 (3), 247-264Dal Farra, M. L. (2002). Florbela, a inconstitucional. In F. Espanca (2002), Afinado desconcerto: contos, cartas e diário . Iluminuras Freud, S. (2013). O eu e o id. In Sigmund Freud Obras completas: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (pp. 13-75). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923). Lenine (2011). Chão [CD Recording]: Casa 9, Universal Music. Milner, M. (1987). O papel da ilusão na formação dos símbolos. In A loucura suprimida do homem são (pp. 89-117). Imago. (Trabalho original publicado em 1952). Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução . Escuta. Rhodes, J. (2017). Instrumental: memórias de música, medicação e loucura. Rádio Londres. 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Resumos (The aesthetic moment as a potentiality for life and the future) This paper is a theoretical re ection on some potentialities of the aesthetic moment: this is con gured, at the same time, as a refuge from the storms of the present, as a possibility to strengthen the individual’s ties with life, and as an opening to the future. The English pianist James Rhodes’s relationship with classical music, as narrated by him in his autobiography, is presented as an expression of such poten- tialities. During its argumentation, the text describes the aesthetic moment as a moment of loosening of the boundaries of the self, which updates, to a certain extent, the infant’s primordial relationship with the maternal object. The article emphasizes the limits of the aesthetic moment, as it does not replace the need for human interac- tion, while indicating its potential as a kind of bearable waiting place which keeps the horizon of the encounter open. Key words : Aesthetic moment, psychoanalysis, future, music(Le moment esthétique comme potentialité de vie et de l’avenir) (Le moment esthétique comme potentialité de vie et de l’avenir) Cet article est une ré exion théorique sur certaines potentialités du moment esthétique: celui-ci se con gure, à la fois, comme un refuge contre les tempêtes du présent, comme une possibilité de renforcer les liens de l’individu avec la vie, et comme une ouverture vers l’avenir. La relation du pianiste anglais James Rhodes avec la musique classique, telle qu’il la raconte dans son autobiographie, est présentée comme une expression de ces potentialités. Au cours de l’argumentation, le texte décrit le moment esthétique comme un moment de relâchement des frontières du soi, qui actualise, dans une certaine mesure, la relation primordiale du nour- risson avec l’objet maternel. L’article souligne les limites du moment esthétique, car il ne remplace pas le besoin de la rencontre humaine, tout en indiquant son potentiel comme une sorte de lieu d’attente supportable qui maintient ouvert l’horizon de la rencontre. Mots clés : Moment esthétique, psychanalyse, futur, musique (El momento estético como potencial de vida y futuro) Este artículo es una re exión teórica sobre algunas potencialidades del momento estético: se con gura, al mismo tiempo, como refugio de las tormentas del presente, como posibilidad de fortalecer los lazos del individuo con la vida y como apertura al futuro. La relación del pianista inglés James Rhodes con la música clásica, narrada por él en su autobiografía, se presenta como una expresión de tales potencialidades. En nuestro argumento, describimos el momento estético como un momento de a ojar los límites del yo, que actualiza, hasta cierto punto, la relación primordial del bebé con el objeto materno. Destacamos los límites del momento estético, ya que éste no sustituye a la necesidad del encuentro humano, pero indicamos que puede presentarse como una especie de lugar de espera soportable que mantiene abierto el horizonte del encuentro. Palabras-clave : Momento estético, psicoanálisis, futuro, música

  • Sobre reciprocidade e mutualidade no conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden

    Marina F. R. Ribeiro (...) Os dois inconscientes ajudar-se-iam mutuamente dessa maneira: até mesmo o "curador21" recebe algo de apaziguador daquele que ele cura, e vice-versa. (Ferenczi, 1932) Considerando que o conhecimento em ciências humanas é uma construção coletiva,22 podemos encontrar os pensamentos psicanalíticos em busca de autores possíveis além das fronteiras narcísicas dos proprietários de um conceito ou de uma teoria, levando em conta uma rede teórico-clinica intrincada e complexa e a cada momento da história da psicanálise. Os pensamentos não tem proprietários, mas surgem justamente pela continua interação entre as pessoas,23 sendo referidos a partir de seus autores. Dessa forma, os conceitos são criados, descobertos e nomeados em diferentes épocas e a posteriori de diversos textos, em complexa intertextualidade. No campo da psicanálise, um autor necessita ter habilidade de captar, conceitualizar e narrar fenômenos clínicos de modo a articulá-los com os paradigmas teóricos existentes, criando, novas tramas conceituais e expandindo a teoria e a técnica psicanalíticas. E, pois, fundamental para a psicanálise contemporânea a capacidade de historicizar e articular os conceitos, atravessando paradigmas24 com rigor e ética. Tenório Lima (2019), ao se referir ao livro A ética da terminologia, de Charles Sanders Peirce (1907), destaca a importância de se considerar e nomear os desenvolvimentos conceituais numa área de criação científica, pois essa atitude é expressão de gratidão e ética cientifica. Além disso, considerar essas transformações conceituais e técnicas favorece uma expansão e oferece consistência a psicanálise denominada contemporânea. Este texto parte de uma experiência de leitura em estado de atenção flutuante, na qual surge uma indagação. Ao reler o artigo de apresentação do conceito de terceiro analítico, ao final do capitulo, Ogden (1996, p. 90) apresenta a seguinte ideia entre parênteses: "Analista e analisando não estão envolvidos num processo democrático de analise mutua". No mesmo parágrafo escreve: "(...) o terceiro analítico é uma construção assimétrica, pois é produzido no contexto do setting analítico, que e for- temente definido pela relação entre os papeis de analista e analisando". A partir dessas duas frases, podemos construir outra: o terceiro analítico é uma construção produzida pela ética do setting analítico, no qual encontramos processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade, que são descritos detalhadamente nos casos clínicos apresentados por Ogden e em vários de seus textos como fenômenos produzidos pelo terceiro analítico. O termo assimetria, assim compreendo, refere-se a responsabilidade ética do analista na condução do processo analítico, sendo que podemos considerar, também, que ha uma simetria entre a mente do analista e a do analisando na sessão, no sentido de que a dupla esta imersa nas mesmas emoções no setting analítico. Em outras palavra5, o funcionamento mental do analista e do analisando na sala de analise estão em continua interação e são campos de observação para o analista, importante instrumento técnico na condução de uma análise. E, além disso, outro aspecto assimétrico á a formação25 do analista, uma espécie de treino e disciplina para entrar em contato com estados regredidos da mente e submergir destes com compreensões do funcionamento psíquico inconsciente do paciente e de si mesmo, e, também, ser capaz de formular uma construção e/ou uma interpretação a partir dessa experiência. Bion (1992) usou uma metáfora que penso ser pertinente ao considerarmos a responsabilidade assimétrica do analista: o analista esta no campo de batalha, assim como o paciente; pode matar ou morrer mas o analista tem a responsabilidade do comando, precisa manter a sua capacidade de pensar. Lembremos que Freud (1913) usou a metáfora do jogo de xadrez para se referir a situação analítica. Bion considera o paciente o nosso melhor colega, a única pessoa que estaria de posse da própria verdade emocional. A partir desse breve comentário de Ogden entre parênteses, citado acima, este texto evolui; tendo a intenção de construir desdobramentos para um pensamento ainda sem espaço no corpo do texto, mas que precisava estar presente, um pensamento expresso na negativa, talvez porque positivá-lo levantaria novas questões. Um pensamento que abriria uma ferida na história da psicanálise, especificamente o experimento da análise mutua e seu relato no Diário clinico (1933). No referido texto, Ogden (1996) estava apresentando pela primeira vez o conceito de terceiro analítico; seria muito delicado qualquer aproximação que pudesse gerar uma compreensão equivocada. Tentando trazer uma nova mirada sobre o que é mutuo ou reciproco entre analista e analisando, é importante considerar o aprisionamento negativo que imediatamente nos invade ao nos depararmos com a expressão "análise mutua". Mutualidade vem de "mutuo", que vem do latim mutuus, que significa reciproco, feito em troca; qualidade ou caráter do que e mutuo, reciprocidade. A expressão "processos assimétricos de reciprocidade entre analista e analisando" e menos saturada e possibilita outras conexões e pensamentos, seguiremos com ela. No livro Autenticidad y reciprocidad. Un dialogo con Ferenczi (2017) encontramos no prólogo de Bolognini o reconhecimento de que muitos conceitos teóricos e clínicos da psicanálise contemporânea advém dos textos de Ferenczi, que parte considerável da teoria e da técnica atual nascem do laboratório ferencziano. Mas como Ogden e Ferenczi se conectam? O que se segue ira apresentar algumas possíveis reverberações, presenças indiretas, sutis, do laboratório ferencziano no pensamento de Ogden, especificamente a questão da reciprocidade no conceito de terceiro analítico. Penso ser relevante dimensionarmos a presença do pensamento ferencziano na psicanálise contemporânea, o enfant terrible da psicanálise, cujas ideias começam a ser compreendidas e retomadas nos últimos anos. Ele era, de fato, um clinico genial, ousado e intuitivo, que teve a coragem de escrever sobre a afetação reciproca e inconsciente entre analista e paciente. Podemos dizer que Ferenczi ficou por décadas na latência da história da psicanálise, mas produzindo efeitos em seus sucessores, sendo os mais evidentes nos textos de Balint e Winnicott. Mas há também os efeitos silenciosos e não explicitados na obra de Melanie Klein. A influência do pensamento de Ferenczi na clinica de Klein e na postulação de seus conceitos é um campo de pesquisa ainda a ser mais bem desenvolvido. Klein foi sua paciente por alguns anos; no entanto, devido aos problemas políticos institucionais da época (a partir de 1930), nao era recomendado citar os textos de Ferenczi; diferentemente de Karl Abraham, seu segundo analista, que pode ser referido livremente. Nesse sentido, há uma construção teórica na psicanálise marcada pelas intensas paixões, amor e ódio no campo das transferências e contratransferências, a partir de diferentes gerações de analistas. Podemos refletir sobre a história da psicanálise a partir dessas forças transferenciais e contratransferências e seus efeitos na construção teórica da psicanálise, considerando que são conjecturas. Ogden (2010) escreve que não só as contribuições anteriores afetam as posteriores, seguindo uma ordem cronológica, mas também a leitura de autores contemporâneos altera a nossa leitura de textos clássicos da psicanálise. Ao revisitarmos Ferenczi, podemos encontrar o que estava lá, mas não estava, ideias que ainda não podiam ser pensadas, mas, ainda assim, se faziam presentes no texto para um leitor no futuro, no tempo do a posteriori, encontrando novos sentidos e ressignificando textos clássicos. Nessa direção, Coelho Junior (2019) escreve um artigo com o significativo titulo: De Ogden a Ferenczi: a constituição de um pensamento clínico contemporâneo/From Ogden to Ferenczi - the constitution of a contemporary clinical thought. O autor inverte a temporalidade a que estamos acostumados, sugerindo que, no a posteriori das construções teóricas psicanalíticas, podemos encontrar conexões e ressignificações, tanto no sentido da progressão temporal como no sentido inverso, dentro das inúmeras intertextualidades (Paz, 1984) possíveis. Faz então uma espécie de revitalização das possíveis conexões com o Iegado da obra de Ferenczi, do qual Ogden parece ter usufruído na construção do seu pensamento, provavelmente por meio dos textos de Balint e Winnicott. Sigo na mesma direção sugerida por Ogden (2010), um leitor no futuro buscando as ressonâncias do pensamento de Melanie Klein, autora estudada por Ogden, no que se refere especificamente ao conceito de identificação projetiva e seus aspectos de mutua afetação entre analista e analisando. O pensamento de Thomas Ogden encontra-se na interseção entre Bion e Winnicott, tomando então esse autor um dos psicanalistas representantes da psicanálise contemporânea, um autor transmatricial.26 Além das possíveis conexões com Klein, fiquei intrigada se Bion teria tido algum acesso as obras de Ferenczi. Bion fez sua formação psicanalítica justamente no período em que os textos de Ferenczi sofreram um tipo de desmentido pelas instituições psicanalíticas (Kupermann, 2019). Em um primeiro momento, não encontrei nenhuma conexão, a não ser o fato de que Bion fez sua análise de formação com Klein por 8 anos (1945-1953,27) lembrando, novamente, que Klein tinha sido paciente de Ferenczi por alguns anos. Para o leitor que não esta familiarizado com a sua obra, Bion considera o funcionamento tanto da mente do anaIista como do analisando na sessão em complexa interação. O conceito de Bion de transformação implica tanto as transformações do analisando como as do analista na sala de análise, transformações reciprocas, concomitantes e assimétricas. Surpreendentemente, encontrei uma nota introdutória escrita pelo organizador da coletânea de artigos de Ferenczi, John Rickman, no livro Further contributions to the theory and technique of psycho-analysis (1926), na qual ele escreve sobre a importância dos trabalhos de Ferenczi. John Rickman foi o primeiro analista de Bion (1937-193928), posteriormente um colega, também psiquiatra, durante a Segunda Guerra Mundial, e um interlocutor próximo. Trabalhou com Bion com grupos de soldados traumatizados de guerra, momento no qual Bion desenvolveu suas teorias sobre grupos. Rickman foi analisando de Freud (1920), de Ferenczi (1928) e de Klein (1934-1941),29 posteriormente foi aluno, tradutor e organizador da coletânea dos textos de Ferenczi (Rickman, 1957; King, 2003). Como organizador de uma coletânea, que não seguia uma cronologia, foram textos específicos escolhidos por Rickman; ou seja, seleção possível apenas para alguém que conhecia muito bem os trabalhos de Ferenczi, e, dessa forma, provavelmente algo do legado do laboratório ferencziano tenha sido transmitido a Bion por ele e por Melanie Klein conexões a serem mais bem desenvolvidas em outros trabalhos. Apresento a seguir uma analise textual da transformação do conceito de identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico. Considerando que parte da expansão da psicanálise contemporânea provem desses sutis deslizamentos teóricos (Cintra & Ribeiro, 2018). Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico Em entrevista a Luca Di Donna, em 2013 (publicada em 2016), Ogden fala acerca de uma possível linha de desenvolvimento ao longo da sua obra,30 uma questão difícil para um autor que escreveu acerca de tantos temas diferentes. Ogden (2013) relata que aquilo que primeiramente o intrigou foi como duas pessoas pensam; questão que já aparece nos seus artigos iniciais: On projective identification (1979), sendo republicado em 2012 no livro Projective identification: the fate of a concept. No seu primeiro livro, intitulado Projective identification and psychotherapeutic technique, de 1982, desenvolve mais amplamente as ideias que estão condensadas no artigo, trazendo várias vinhetas clinicas. Tendo sido marcante em sua obra a habilidade de narrar os detalhes da experiência emocional vivida na sessão analítica, e de forma imagética, em especial, como duas mentes pensam juntas. Ogden conduz o leitor a intimidade da sala de analise, fazendo com que a leitura seja, em si, uma experiência transformadora.31 Na entrevista de 2013, Ogden diz que raramente usa o termo identificação projetiva, pois cada um tem uma definição e uma compreensão do conceito. Prefere, então, descrever o fenômeno: trata-se da mãe e seu bebê criando uma terceira mente, sendo que a experiência emocional é transformada na vivência do terceiro. Aqui, temos a passagem do conceito de identificação projetiva para o conceito de terceiro; ou seja, como duas pessoas pensam a partir de uma terceira mente que se constitui no encontro. Ogden afirma: [...] o conceito kleiniano de identificação projetiva é um passo monumental na ampliação do entendimento analítico da natureza e das formas da tensão dialética subjacente a criação do sujeito. (Ogden, 1996, p. 7) Ogden inicia o artigo de 1979 destacando que a identificação projetiva é um fenômeno que ocorre tanto na esfera intrapsíquica quanto na esfera das relações interpessoais; ou seja, já na primeira frase do texto, ele deixa claro sua compreensão intersubjetiva do conceito. Trata-se, na perspectiva do autor, de um tipo de defesa, um modo de comunicação, uma forma primitiva de relação de objeto e o caminho para uma mudança psicológica. Nos textos clássicos de Klein, a identificação projetiva é compreendida como defesa e como forma primitiva de relação de objeto; já Bion a concebe como modo de comunicação e um caminho para uma mudança psicológica. Podemos dizer que, a partir dessa expressão, começa a aparecer a marca autoral de Ogden.32 As transformações conceituais estão nesses pequenos deslizamentos de sentidos, nas sutilezas do texto e no uso das expressões, como dito anteriormente. Destaco que esse texto foi escrito há 40 anos (Ogden, 1979), momento no qual a compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando era um tema pouco abordado, talvez de difícil aproximação, como ainda é atualmente. A liberdade de pensamento do autor permite que ele faça seus "atravessamentos de paradigmas" em uma época em que isso pouco acontecia. Movido por suas experiências clínicas com esquizofrênicos, Ogden busca uma interlocução com textos e autores33 nos quais encontra um sentido34 para o que experenciava com esses pacientes. Seus dois primeiros livros dão testemunho dessa trajetória de apropriação e apresentação de autores ingleses poucos conhecidos Estados Unidos: Klein, Winnicott, Bion, Balint, entre outros.35 Retomando, destaco algumas ideias presentes no artigo de 1979, no qual há varias conexões interessantes, apresentadas de forma condensada. Ogden faz articulações da identificação projetiva tanto com conceitos Winnicott quanto com conceitos e Bion. A partir de Winnicott, mesmo que esse autor pouco se refira ao conceito e identificação projetiva, Ogden escreve que se trata de uma forma transicional de relacionamento, constituindo um tipo primitivo de relação objetal, um modo básico de ser com o objeto ainda não separado. Em outras palavras, aloca de forma surpreendente o conceito kleiniano na teoria de Winnicott. Já no que se refere a Bion, Ogden (1979) destaca que o autor compreende o conceito como uma interação interpessoal, aproximando a experiência da identificação projetiva da ideia de um pensamento sem pensador, um pensamento em busca de um pensador: ser um continente e, pois, pensar um pensamento ainda não pensado. Afirma ainda que, na perspectiva bioniana, quando não há uma mente continente para a identificação projetiva, isso provoca um impacto desorganizador, tanto na relação mãe-bebê, como entre analista-paciente. Além de Klein, Winnicott e Bion, no artigo de 1979, Ogden cita Rosenfeld, Balint, Searles, Grotstein, Robert Langs, entre outros, reflexo da sua atitude investigativa e compromissada com os fenômenos clínicos que estava investigando. Ogden aloca o conceito de identificação projetiva fora dos limites dos autores kleinianos, e vai além, ao falar das implicações técnicas do conceito. Ogden (1979) aborda um tema ainda hoje delicado, justamente a mesma questão apresentada no Diário clínico de Ferenczi (1933): o analista é um ser humano, com passado, repressões, conflitos, medos e dificuldades psicológicas próprias.36 (...) Mas os pacientes recusam a falsa doçura do mestre irritado em seu foro intimo (...) E acaba-se finalmente por indagar: não será natural, e também oportuno, ser francamente um ser humano dotado de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que quer dizer: abandonar toda a "técnica" e mostrar-se sem disfarces, tal como se exige do paciente.(1932, p. 132) Para Ogden, quase 60 anos depois, a principal ferramenta do analista e sua habilidade em entender seus próprios sentimentos e, também, o que esta acontecendo entre ele e o paciente; ou seja, não é abandonar a técnica, mas é tomar a sinceridade e a verdade emocional elementos pertinentes a técnica. Para tanto, o analista necessita ter competência de formular de maneira clara e precisa sua compreensão, usando palavras que tenham um efeito terapêutico, afinadas com o tempo do paciente, o timing da interpretação. Futuros textos de Ogden se debruçam sobre a questão da interpretação,37ou, como ele nomeia, do dialogo analítico.38 Prosseguindo, destaco a compreensão de Ogden de que a identificação projetiva é um evento interpessoal, pavimentando o caminho para a construção do conceito de terceiro analítico. Essa maneira, evidentemente intersubjetiva, de entender a identificação projetiva já esta presente em outros autores, principalmente em Bion. O artigo (Ogden, 1994) em que postula o conceito de terceiro analítico foi escrito em comemoração ao septuagésimo-quinto aniversário do The International Journal of Psychoanalysis. Talvez devido a esse marco histórico, Ogden tenha iniciado o texto afirmando que já não e mais possível pensar analista e analisando como sujeitos separados, sendo então o movimento dialético entre as duas subjetividades um fato clinico importante. Questão essa que já intrigava Ferenczi no Diário clínico: É como se duas metades da alma se completassem para formar uma unidade. Os sentimentos do analista entrelaçam-se com as ideias do analisado e as ideias do analista (imagens de representações) com os sentimentos do analisado. Desse modo, as imagens que de outro modo permaneceriam sem vida tomam-se episódios, e as tempestades emocionais, sem conteúdo, enchem-se de um conteúdo representativo. (Ferenczi, 1932, p. 45) Ogden considera que analista-analisando também formam uma unidade que coexiste em tensão dialética. O autor compreende a dialética da seguinte forma: A dialética é um processo no qual elementos opostos se criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo. (Ogden, 1996, p. 12) Imagens de representações, como Ferenczi escreve (citado antes) lembra-nos o conceito de rêverie. Tempestades emocionais sem conteúdo evocam o conceito de elemento-beta; a experiência em estado bruto que por meio das imagens (imagens de representações), as rêveries do analista podem se transformar em algo com conteúdo representativo e dessa forma, podem ser narradas pelo analista. Impressionante Ferenczi descrever esse processo psíquico em 1932, uma intuição clinica genial, mas ainda sem conceitos, ou com conceitos pouco consistentes. O conceito rêverie é originalmente de Bion (1962), passa a ser a maneira como o analista apreende os objetos analíticos, uma criação, uma manifestação do sonho da vigília do terceiro analítico. Ogden (1994) escreve que a experiência intersubjetiva do terceiro é apreendida por meio das rêveries. Se nos inspirarmos na expressão paradoxal de Winnicott, de que a mãe é descoberta e encontrada pelo bebê, podemos pensar que a rêverie é criada e encontrada pelo terceiro analítico. Para apresentar brevemente o conceito de rêverie, retomo algumas ideias expressas em artigo (Ribeiro, 2019) anteriormente escrito: a rêverie, como o próprio sentido da palavra revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a rêverie; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional a comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de rêverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e intimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a rêverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerados pelo encontro de duas mentes: do analista e do analisando (Ogden, 2013). Dizendo de outra maneira, a rêverie é a maneira como é criado e encontrado o objeto analítico durante a sessão, uma criação do terceiro analítico. Em um artigo posterior ao de 1994, Ogden descreve o terceiro analítico da seguinte forma: Embora não possamos prever a natureza da experiência emocional que será gerada no trabalho com uma pessoa que nos consulta, nossa meta como analistas é quase a mesma com todo paciente: a criação de condições nas quais o analisando (com a participação do analista) possa ser mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados e interrompidos. Embora possa parecer que o analista inicialmente é usado pelo paciente para sonhar os sonhos não sonhados do paciente "por procuração", os sonhos do analista (seu devaneios na situação analítica) não são desde o princípio nem exclusivamente seus nem do paciente, e sim os sonhos de um terceiro sujeito inconsciente que é ambos e nenhum deles, paciente e analista. (Ogden, 2010, p. 23) Algo que é de ambos e de nenhum deles, algo que é experienciado por ambos de maneiras diferentes, algo mutuo, processos assimétricos de reciprocidade e mutualidade entre analista e analisando. Um leitor no futuro A reflexão feita aqui não diz respeito a análise mutua, como relatada por Ferenczi, mas a processos assimétricos de mutualidade e reciprocidade presentes no conceito de terceiro analítico, compreendido como uma transformação do conceito de identificação projetiva. É como se Ogden tivesse colocado o conceito de identificação projetiva em um microscópio potente - a capacidade de observação do analista - e tivesse observado fenômenos sutis e sofisticados envolvendo a dupla analítica e a formação de um terceiro sujeito inconsciente. Para finalizar, faço uma conjectura: será que esses fenômenos sutis do funcionamento do analista e do analisando na sessão, formando uma outra unidade, um terceiro, foram intuídos por Ferenczi no seu Diário clínico? Conjecturo que sim. Retomando a ideia de Ogden (2010) relatada acima, de que um leitor no futuro ira encontrar em um texto clássico o que estava lá, mas não estava, estava como uma potencialidade do pensamento. 0 Diário clínico é um texto no qual encontramos varias intuições de Ferenczi, mas ainda sem conceitos, ou seja, uma intuição cega. A intuição sem conceito é cega, o conceito sem intuição é vazio, a intuição precisa se associar a um conceito para que exista um pensamento39 (Bion, 1970). Podemos dizer que foram precisos quase 60 anos, vários textos sobre contratransferência, identificação projetiva, contraidentificação projetiva, inúmeras discussões e desmentidos nas instituições psicanalíticas para que chegássemos ao conceito de terceiro analítico, entre outros.40 O que é experienciado de forma mutua e reciproca entre analista e analisando passa a fazer parte da técnica, e o mais importante, um instrumento de observação analítica potente e transformador para a dupla analista e analisando. Agora temos a intuição de Ferenczi no Diário Clínico (1933) associada ao conceito de terceiro analítico de Ogden (1996); ou seja, um pensamento clínico sofisticado para um leitor no futuro, nós! -------------------- Notas: 20. Algumas ideias presentes neste texto também se encontram no artigo Da identificação projetiva ao conceito de terceiro analítico de Thomas Ogden: um pensamento psicanalítico em busca de um auto, (Ribeiro, 2020). Este texto foi produzido no âmbito do LIPSIC - Laboratório interinstitucional de Pesquisa em Psicanalise Contemporânea (IPUSP e PUCSP). 21. No texto de Ferencz! esta a palavra em inglês: healer. 22. "Lembro a concepção de Gadamer de que o modelo para o método de produção de conhecimento em Ciências Humanas e o dialogo, do qual participam os interlocutores em pé de igualdade, ou seja, sem que qualquer um deles tenha controle do intercâmbio. O conhecimento e construção coletiva (Mandelbaum, 2019, p. 99). 23. ideia de inspiração na obra de Bion, os pensamentos antecedem o pensador. Como escreveu Borges (1923/2007): Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstancia de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator". 24. Atravessamento de paradigmas é uma expressão de Figueiredo, LC. (2009). 25. A formação do analista, que consiste no tripé analise, supervisão e conhecimento teórico. Destaco a importância da analise do analista durante a formação analítica e, também, posteriormente, na condução de suas análises; questão cara a Freud e Ferenczi em vários textos. 26. Figueiredo e Coelho Junior (2018) postulam duas grandes matrizes para a psicanálise: a freudo-kleiniana e a ferencziana. As matrizes são formas de adoecimento, e a cada uma correspondera uma estratégia de cura. Ogden e considerado um autor transmatricial, pois seu trabalho parte de um estudo aprofundado tanto da obra de Winnicott, representante da matriz ferencziana, como da obra de Bion, representante da matriz freudo-kleiniana. 27. Bleandonu, G. (1993, p. 98). 28. Bleandonu, G. (1993, p. 55). 29. Bleandonu, G. (1993, p. 55). 30. A obra de Thomas Ogden abarca artigos publicados de 1974 a 2018. 31. A ideia do terceiro sujeito criado na experiência de ler esta presente no primeiro capitulo do livro Os sujeitos da psicanálise (Ogden, 1996). 32. Uma característica dos textos de Ogden e que ele usa o termo psicológico com certa frequência, especificamente no trecho referido: mudança psicológica. 33. Podemos conjecturar que o fato de predominar na psicanálise americana a psicologia do ego de Hartman fez com que Ogden buscasse os horizontes ingleses da psicanálise, continuando seus estudos na clinica Tavistock, em Londres. 34. Podemos pensar no sentido como uma verdade; verdade compreendida a partir de Bion (a verdade emocional como o alimento primordial da mente); ou seja, também buscamos, nos textos que escolhemos para ler, um sentido para a experiência clinica. 35. Ogden faz essa apropriação e apresentação desses autores para os americanos, principalmente nos meus primeiros livros: Projective identification and psychotherapeutic technique (1982) e The matrix of the mind: object relations and psychoanalytic dialogue (1986). 36. Sendo que a analise e a supervisão do analista o habilitam mas não o isentam da sua humanidade, muito pelo contrário, é a humanidade do analista que torna analista. 37. The transference is a topic of conversation, which at times is very helpful in understanding something of what it is that Is preventing the patient from 'speaking his mind'. I don't find that the term interpretation well describes how I speak to patients. I think the phrase 'talking with the patient better captures the feeling of the conversation I have with patients than does the phrase 'making an interpretation (Ogden, 2016, p/171) 38. O autor cria formulações técnicas sofisticadas, como a expressão "falar como se estivesse sonhando (Talking as dreaming, 2007). 39. Bion se inspirou na ideia kantiana de que a intuição sem conceito é cega, e o conceito sem intuição é vazio. 40. Cabe lembrar também do conceito de campo analítico: postulado pelo casal Baranger (1961- 1962/2010) na década de 1960, e internacionalizado na psicanálise por Antonino Ferro na década de 1990 e nos anos 2000. Trata-se de considerar o encontro das duas subjetividades, analista e analisando, em constante interação, sendo então gerados tanto novos pensamentos como, também, erguidas defesas inconscientes, os denominados baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em complexa interação. Estudiosos da obra de Melanie Klein, os Baranger estavam imersos no conceito de identificação projetiva; o que nos leva a pensar que a compreensão da situação analítica como um campo bi pessoal também seja um desdobramento do extenso conhecimento que esses autores tinham da obra de Klein, sendo difícil dimensionar essas intersecções teóricas. Referencias: BARANGER, M.; BARANGER, W. (1961-1962). A situação analítica como um campo dinâmico. Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanalise XXW. São Paulo: Escuta, 2010. BION, R. W. (1962) Learningfrom experience. London: Karnac, 1991. ___ . (1965) Transformation. London: Karnac, 2014. (The complete works of W.R. Bion). ___ . (1970) Attention and interpretation. London: Karnac, 2014. (The complete works of W.R. Bion). ___ . Conversando com Bion - Quatro Discussões com W. R. Bion - Bion em Nova Iorque e em Siio Paulo (Trad. Sandler, P.) Rio de Janeiro: Imago, 1992. BORGES, L. J. (1923). Primeira poesia. (Trad. 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  • Águas paradas, um rio que corre. A linguagem das tormentas

    Péricles Pinheiro Machado Jr. Marina Ferreira da Rosa Ribeiro São Paulo Resumo: Neste ensaio autoral, a experiência de descobrir e habitar uma linguagem inusitada e aberta a ressonâncias emocionais na clínica psicanalítica é apresentada em diferentes camadas textuais. O estilo da prosa poética convida à experiência de aproximação com a alteridade, emulando-se no próprio ato da leitura o objeto que se apresenta analiticamente como uma linguagem de reconhecimento. Palavras-chave: linguagem, realidade psíquica, intuição, turbulência emocional Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreiteza da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem nal. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. (João Guimarães Rosa) 1 O artigo é parte integral da tese de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. Junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp) sob orientação de Marina F. R. Ribeiro, realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecemos ao colega Arnaldo Chuster pela leitura atenciosa e comentários. 2 Membro liado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp) e pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Doutorando pela Universidade de São Paulo (usp), mestre em Psicologia Social pela usp & Birkbeck College, University of London. 3 Professora Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic) e membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Diante do Grande sertão: veredas , obra-prima de Guimarães Rosa (1967/2001), fiquei desconcertado. Profundamente desconcertado. Levava comigo as veredas na mochila, caminho à faculdade ou ao trabalho. Pegava aos poucos, parágrafo por parágrafo, linha por linha, palavra por palavra. Perdia-me na rudeza do sertão, que conhecia por cicatriz e desconhecia por falta de confiança. Andava com ele, caminhava pelas ruas de asfalto, calçadas de pedras portuguesas. Inquieto e em dúvida, não realizava o que lia. Parecia-me sempre um dialeto estranho, como provei certa vez no Museu da Rainha Sofia enquanto escutava um grupo de amigos que seguia na mesma parede de uma exposição. Comentavam as obras, falavam alto e eloquentemente. Sons diferentes do que eu estava acostumado. Não conseguia detectar a língua em que se comunicavam. Soava melodiosa, erudita, elegante, com tonalidades térreas, colorações antigas, rosa-chá. Captava aqui um acento, ali um monossílabo, a língua revirada tocando a boca por dentro. Flagrava-me imitando-os em silêncio. Via-me aflito em descompasso, um passo atrás do grupo de amigos. Invejei a tranquilidade, desejei gritar: socorro! Os sons incomodavam e atraíam, a curiosidade perturbava meu passeio pelo museu e me mobilizava a segui-los como um agente secreto, desejoso de decodificação e sossego. A certo ponto, um dos amigos lê em voz alta o pequeno texto acerca de um quadro. Pois retomam a prosa entre si e, então, levo um susto! Agora eu os compreendia! De repente, sem pensar e sem saber o ocorrido, eu os ouvia com clareza. Mergulhei na linguagem, respirava embaixo d’água! Era peculiar e inusitado o idioma, mas eu sabia perfeitamente bem o que estavam dizendo. As frases tornaram-se conversa e experimentei uma certeza de pertencimento. O que era aquilo? Como é que aquelas palavras de duvidosas passaram a precisas? Atrevo-me a lhes perguntar em espanhol aventureiro que idioma era aquele, ao que ouço da mulher a réplica: A estraña linguaxe que falamos chamáse galego . Segui distraído a contemplar a exposição, encantado com o súbito domínio de uma língua que até então eu ignorava. Meus já não tão desconhecidos companheiros de passeio prosseguiam proseando e eu, desconcertado e curioso, procurei me manter acompanhado por esse idioma estrangeiro que não conseguiria reproduzir, mas que se tornara pouco mais familiar. Temia perdê-los. Os sons dispersos e fonemas fragmentados de súbito organizaram-se em minha mente. Fato selecionado, de um fundo obscuro emerge a linguagem como figura que teima a desaparecer sempre que tento capturar. O estranhamento do dialeto, assim como o grande sertão, resultava a meu ver do hábito de buscar o conhecido, o aprendido, o já estruturado naquilo que em verdade é uma situação nova. Na leitura desse grande sertão, perseverei em desalento, captando aqui e ali a familiaridade das palavras que em minha mente mantinham-se em descompasso, em desencaixe, um constante solavanco de carro de boi trilhando por uma estrada de terra coberta de pedregulhos. Parte da viagem fiz nas páginas do livro, parte em uma viagem a Goiás com amigos da faculdade, o livro na bagagem. Numa caminhada à cachoeira das Carioquinhas em São Jorge, Guimarães veio comigo e deitei-me sobre uma pedra, solitário sob o sol quente, lendo sempre atentamente e me perdendo em suas potentes paisagens verbais. Como era possível aquele idioma? Soava natural e persistentemente inusitado. Via-me enganado, perseguindo trilhas que resultavam em rodeios. Desalento, solidão. Teimo. Seguia no empenho, e enfim despreocupei quando menos esperava. Que seja como quiser, não sou eu autor, mas ouvinte leitor, já demais encantado para desistir da vereda. Eis que do alto da pedra, acompanho Riobaldo em cavalgada com seus camaradas após uma noite de acampamento chegar ao alto do chapadão. O horizonte de repente explode! A amplitude ganha vista, o céu se revela inquestionavelmente azul, a relva quente do serrado com suas canelas-de-ema queimadas, caliandras secas, chuveirinhos em flor, pés de arnica aromáticos forram o solo e contornam o caminho dos amigos sobre seus cavalos. Daquele ponto em diante, a leitura do Grande sertão tornou-se fluida, inquietantemente íntima a despeito do constante vacilar das palavras do autor, o esvirar do redemunho, a vibrante ressemantização dos vocábulos que buscam sem cerimônia morada e correspondência, hospedagem e transição no pensamento do leitor. As palavras mutantes tocam e cumprem sua função, não carecem explicação ou entendimento, nem permanência nem dicionário. Elas são e vão embora. Uma amiga poetisa, versada na plasticidade das composições afetivas da língua portuguesa e um tanto afeita à mística, ao me presentear com os imensos sertões pelos quais fui devorado durante meses de leitura, disse-me que a travessia da obra de Guimarães Rosa era uma experiência alquímica. O viajante leitor, para atravessar o sertão, tornava-se relva, cavalo e vento, passeava-se Riobaldo, camuflava-se Diadorim, terrorizava-se Hermógenes, soprava-se o diabo brincalhante por entre as letras na rua, era penetrado pela brisa escura e ríspida, atormentado com o fascínio da rítmica doce, sincopada, incômoda e escapante da cartogra a da alma descuidadamente esculpida pelo autor em sua máquina de escrever. A alquimia consiste em efetuar uma transformação na matéria e no espírito, uma experiência não só emocional, mas fundamentalmente existencial. Em vez de traduzir para o conhecido, o leitor analisando mergulha em sua própria tormenta, convidado a reconhecer em sua vivência aquilo que ressoa misterioso e busca linguagem para habitar. Quando isso pode ser realizado de modo transiente, a travessia ocasiona-se em mundo vivo, cardinal, reconhecimento do solo do destino e do transeunte. Seu reverso é a desolação, linguagem de sobrevivência , os pontos fixos, o domínio da solidão, o adiamento do ser. Águas paradas do entendimento Traduzir o trabalho da psicanálise em linguagem compartilhada é tarefa difícil, como decerto somos testemunhas de próprio punho ou ao lado de analistas autores, cada um a seu modo, companheiros de jornada. Tentar traduzir o ser que eclode a cada sessão de análise é missão virtualmente impossível e que não nos compete, não por falta de ânimo, mas pela densidade inominável e inalcançável da realidade psíquica intuída furtivamente na espessura das palavras e emoções complexas, o que requereria a voz imaginária de infinitas bocas pronunciando versos em diversas línguas simultâneas e infinitos ouvidos para escutar e elaborar sensivelmente cada som e cada cor. Quando desavisada ou ingenuamente ensaiamos exprimir a pura intensidade desses instantes fugidios que nos visitam em análise, produzimos cacofonias incompreensíveis, relatos selvagens vertiginosos, restando-nos uma linguagem deteriorada e fragmentária. Nessa clave, o analista se desconcerta, o analisando titubeia, buscando apanhar no ar as palavras como objetos flutuantes para conter as emoções que transbordam em minúsculos pontos – poeira que se espalha pela sala de análise e ameaça a dupla com a aridez do sertão. Reconhecendo o impossível, buscamos o razoável e parte da elaboração de uma linguagem de reconhecimento em análise consiste em um recíproco alfabetizar-se, cada qual contribuindo com suas letras e sua disposição para produzir formas de comunicação exitosa que possam ser compartilhadas ao longo da travessia. Recorremos por vezes à literatura, à poesia, à música, ao cinema como formulações verbais, sonoras e imagéticas disponíveis para expressar aspectos evanescentes da realidade psíquica, uma necessidade já anunciada desde o texto seminal de Freud (1900/2001) que encontrou no mito de Édipo uma Linguagem de Alcance (Bion, 1970) apropriada para nos aproximar do campo infinito de experiências humanas que jamais se esgotam em sua potência para brotar pensamentos e produzir sentidos. Linguagem alguma é capaz de encerrar a magnitude da natureza ontológica, das vivências mutáveis e significados incessantes que germinam do solo desconhecido, desabrocham, florescem e fenecem sem que tenhamos qualquer ação ou forma de apreensão que se pretenda definitiva. Pegamos as trilhas de Guimarães Rosa a partir do chão conhecido. Não é de se estranhar que o leitor, ao adentrar as veredas do autor, tome o rumo da linguagem comum para fazer a passada do texto. São os hábitos que nos tornam familiar o diálogo cultural, pois aprendemos desde pequenos que para estabelecer relações com o ambiente que não dependam predominantemente da ação do corpo e da solidão da mente é necessário linguagem. Construímos nosso lugar no mundo e tornamos público nosso pensamento com o verbo recebido do seio. É preciso algum domínio da linguagem para haver comunicação com os outros, uma conquista lenta e sempre incerta pois língua se apoia no sistema convencional de símbolos heterônomos (Chuster, 2018) que nos precedem e são passe de entrada, ainda que não correspondam àquilo que no íntimo busca expressão. Algo fica de fora. A vida vivida penetra o espaço analítico distraidamente e lá se expande em busca de outros sentidos. O estranhamento do ser tão grande se dá justamente no encontro das águas, entre as correntes de pensamento e emoção que nos moram e aquelas que descobrimos na voz do outro. Soam coisas conhecidas que no processo de transcrição do idioma autoral para o idioma do leitor falham e escorregam. Oscilamos entre reconhecer e desconfiar, na experiência analítica, daquilo que se revela no contato com o outro na forma de emoções brutas, uma vez que o “‘desconhecido’ na vida real assume tanto formas infinitas como definidas, limitadas apenas pelas necessidades e oportunidades de cada pessoa” (Sandler, 2013, p. 104). Insistimos por vezes penosamente em buscar significados – isso eu conheço, eu sei o que é, quer dizer tal coisa. Mas o sossego é breve, não dá refrigério. Apela ao entendimento por correspondência, pelo valor de face da palavra. Entender é hábito mais insidioso do que podemos notar quando cremos falar a mesma língua. No contato com o plenamente estrangeiro por vezes abrimos mão das tentativas de entendimento por mera desistência, a exemplo do turista que viaja ao Japão e se encontra com um sistema de representações verbais para as quais não tem contrapartida evidente em português. Tentamos não a penetração no idioma desconhecido e sim um modo de tradução preferencialmente conciso e suficientemente confiável que resolva o problema. Mas quando estamos no mesmo sistema linguístico, a ânsia por entendimento alcança sua meta com agilidade instantânea, cavalo a galope, e se impõe sobre o verbo a partir dos signi ficados disponíveis para a palavra pretérita . Um equívoco? Nos solavancos de Grande sertão: veredas , caso o leitor conceda algum espaço para tolerar o não entendimento na manipulação da linguagem forjada e constantemente subvertida por Guimarães Rosa, o corpo per- corre imaginativamente as trilhas de Riobaldo e no lugar de entendimento pode-se ensaiar uma escuta sensível, um passeio a cavalo em que o trote, o chicote, o vento, os mosquitos e resvalos de plantas nas barras das calças podem ser alcançados como um caminho sonoro que se percorre distraídamente e que vai marcando ressonâncias afetivas vividamente intuídas, ainda que não possam ser reproduzidas a um terceiro se para tanto se recorre ao conjunto de letras que sinaliza cada ponto do trajeto no papel e no piso. O entendimento dá lugar a uma linguagem compartilhada que se tece à medida que insurge: vamos gerundivamente nos percebendo em movimento a cada passo com aqueles sons e imagens que nos comovem e nos afligem. Ainda que os motes sejam duvidosos, algo preciso nos alcança. Quem já passeou pelo grande sertão muito provavelmente sabe a que me refiro. Comunicamo-nos em segredo, portanto! Cabe a cada um confiar no texto emocional que se forma e desforma ao longo da travessia, que é compartilhada com uma certeza dolorosa pois verdadeira e não passível de reprodução. O texto emocional é descoberta e abandono, é vivência e esquecimento. É assim que experimento a linguagem no trabalho de análise e é assim que compreendo o que Bion (1970) procura nos chamar a atenção quanto às vicissitudes de memória, desejo e, sobretudo, entendimento. A linguagem quando arrogada como certeza reduz-se a um sistema de convenções de prateleira em que as palavras são tomadas por seu significado pretérito, o sentido do establishment . Isso é parte da vida cotidiana, é o preço que se paga pela dependência que temos do grupo como suporte imprescindível para a sobrevivência. E é uma característica da experiência psicossocial que tenhamos um vocabulário sistematizado em dicionários coletivos para dar nomes aos bois. Acontece que os bois que se revoltam no seio das emoções de cada pessoa não são passíveis de negociação como commodities , embora usualmente tomemos o atalho da simplificação ao aceitarmos o sistema de linguagem não como “a mídia pela qual a experiência é trazida à vida no processo de ser falada ou escrita” (Ogden, 2004, p. 201), mas como um repertório de objetos enganosamente fixos, signos saturados que marcam uma suposta correspondência estável entre o mundo animado e o mundo inanimado, o particular e o público, o singular e o universal. Essa diferença – que pode parecer sutil devido ao fato de que para ser enunciada esbarra justamente nos mesmos costumes de fala e na voracidade do entendimento – encontra-se nos vestígios do que em sua origem foi uma emoção: fragmentos de estranha civilização. No primeiro dos seminários de Nova York, Bion nos conta: Nossa linguagem, excessivamente desnaturada, ficou como se fosse uma moeda cujo valor apagou-se, tantas vezes submetida a atritos; ficou indistinguível de outras. “Estou terrivelmente assustado”, diz o paciente. Que tal? Terrivelmente assustado. Essas palavras são lugar-comum. Entretanto, fico alerta quando ouço a palavra “terrivelmente”; penso que está muito gasta. Está um tempo terrível; isto é terrível; aquilo é terrível. Falar essa palavra não significa mais nada. Quando o paciente se torna consciente da atenção do analista, descobre um modo ainda mais secreto de dizer “terrivelmente assustado” – talvez até um “modo psicanalítico”. (1980/2020, p. 25) Tal desnaturação da palavra equivale, a meu ver, à noção que pode ser comum ao analisando – e, por vezes, também ao analista – de que vida é coisa dada, é história mal contada que bastaria ser recontada e refabulada tanto quanto o necessário para se buscar em algum lugar do conhecido a chave que solucionaria em definitivo o mistério do sofrimento psíquico, a dor persistente que cala por palavras rasuradas e impulsiona via repetição a angústia do ser. O ponto que quero destacar não é propriamente a dinâmica pulsional ou a elaboração das resistências, o que extrapola o propósito deste ensaio, mas algo que se observa em análise como um esforço para engendrar a impressão de que a vida psíquica seria estática e controlável, fenômeno que ocorre sob a égide da alucinose em suas diversas expressões (Bion, 1965). É preciso desconfiar das palavras do senso comum quando o que buscamos no trabalho de análise é o senso singular, o particular de cada existência que por miúdos e breves momentos na amplidão de uma vida desdobra-se sob o testemunho do analista e se oferece para reconhecimento. No senso comum, as águas paradas que persistem pelo entendimento são o modo como os seres humanos nos acostumamos a criar ilusões de nexo que nos permitem aprender e domar as forças da natureza. E é uma necessidade de contenção dos excessos a que somos ininterruptamente submetidos pela realidade não sensorial que extrapola qualquer possibilidade de compreensão em palavras derivadas dos sentidos, da experiência senso- rial (Bion, 1970). Usamos o recurso simbólico dos conceitos para articular pensamentos operativos e estabelecer relações entre fatos que de outro modo permaneceriam desarticulados e incompreensíveis. A linguagem, assim como as convenções e regras sociais, como expressão do esforço empreendido pelo grupo humano para “preservar sua coerência e identidade” apoia-se em símbolos cujo significado “presume-se estar subjacente a uma conjunção constante pública, e não privada a um único indivíduo” (Bion, 1970, p. 63). Constituem o modo imprescindível de expressão social que nos localiza em relação ao outro e nos abre possibilidades de encontro e esclarecimento quando as condições são favoráveis, isto é, quando a linguagem pode evoluir de uma forma de ação para um modo de comunicação em que “a descoberta da verdade dos próprios sentimentos ou pensamentos, ou dos sentimentos e pensamentos do outro” são almejados (Meltzer, 1997). Mas são igualmente passíveis de juízos precipitados e insuficientes para designar aquilo que se passa no ambiente íntimo, na realidade psíquica que é sempre fluxo e ímpeto, corrente e tormenta, ritmo e som. A persistência do entendimento constitui um fator de tolerância à dor psíquica, na medida em que uma pessoa procura nas explicações conhecidas a cura para um sofrimento cujos elementos mais fundamentais lhe são desconhecidos. Sabemos que as formações defensivas do inconsciente existem para deixar de fora ou eliminar da percepção aquilo que não pode ser admitido no plano consciente. Portanto, não é a aquisição de respostas generalizantes ou o remanejamento de explicações racionais que efetuarão modificações significativas na maneira como uma pessoa dá conta de lidar com o desconhecido. Desesperados para encontrar soluções para o sofrimento, alguns analisandos chegam-nos por vezes com data de vencimento pré-anunciada e os vemos buscando incessantemente em símbolos fornecidos pelo consumo palavras e conhecimentos importados para designar aquilo que é da ordem inexorável da existência. Recordo-me de uma pessoa que logo após um insight em análise, decide encerrar o trabalho com receio de que um esclarecimento embrionariamente vislumbrado num instante pudesse, no momento seguinte, tornar-se questionamento e desassossegar o investimento feito ao longo de alguns meses. Despede-se, agradece contente, embrulha o pensamento em um jornal e segue seu rumo, deixando na sala um desconcerto solitário. É uma marca do nosso tempo a pressa do entendimento, excitação e agilidade que paradoxalmente nos dá notícias de um estado mental de paralisia e passividade, formas de desamparo, afetos desgarrados em busca de linguagem para habitar: São remanescentes, salvos de um naufrágio: o naufrágio do pensamento. Alguém quer nos contar algo, mas com frequência aquilo com que esse alguém tem de lidar não passa de remanescentes de um discurso articulado. A primeira coisa com a qual nos defrontamos são remanescentes de uma cultura ou civilização. Tentamos alcançar o máximo, segundo aquilo que conhecemos, em consequência, vigilância e lógica; tentamos nos apossar de todas as nossas aptidões, de toda nossa experiência, para fazer um trabalho de psicanálise. Mas será esse o estado de mente que tem o poder de contatar um estado de mente diverso? (Bion, 1980/2020, p. 35) A linguagem de sobrevivência (Machado Jr. & Ribeiro, 2019), despojada da potência de alcançar sentidos íntimos, equivale mimeticamente a uma transação burocrática que persevera pela manutenção de um entendimento meramente explicativo, um acordo com seus próprios cavalheiros para solucionar problemas e adiar tanto quanto possível o reconhecimento das paixões. Como então podemos no cotidiano artesanal, poético da relação analítica recuperar os sentidos naufragados, desertificados na poeira do grande sertão, e torná-los articuláveis e reconhecíveis como expressão mais verdadeira da experiência de ser? O que será que possibilita superar a linguagem de sobrevivência e adentrar um campo vicejante de uma linguagem de reconhecimento em que a potência de cada pessoa encontra possibilidades de realização e expressão? A disposição para as tormentas Vou pegar novamente emprestadas coisas minhas, mas depois devolvo. Iniciava análise com Pérsio Nogueira, pouco tempo se passava e seguia subindo a ladeira da Alameda Casa Branca até chegar a sua casa, lugar de trabalho. Tocar a campainha já era um estranhamento, pois lembrava ter sido informado para entrar sem bater. Era de verdade? Aguardava na cadeira do hall , depois entrava na sala que em minha memória era revestida de papel-de-parede cor-de-rosa. Que choque aquele pano de fundo para uma figura que eu supunha sisuda e atrevida. Sentado na poltrona ou deitado no divã à sua frente, eu falava copiosamente com voz de autoridade, pois conhecia de quem me tratava em se tratando de coisas minhas. Enquanto ele ouvia pacientemente, eu o pressentia com braveza e exigência. Apaziguava minha ansiedade com um tom de voz plácido que eu ouvia sair de minha garganta como um registro de fita cassete, ensaiado por repetições ao longo dos anos e desmagnetizado por persistência solitária num toca-fitas velho. Estava lá eu, tranquilo. Assustadoramente tranquilo. Mas benzadeus, nada que esse homem diz faz sentido! Falo uma coisa, ele responde outra? Pergunto de abobrinha, ele responde de chicória. Ouvia o Pérsio dirigindo-se vivamente ao nosso encontro enquanto eu desbotava com desencontro. Hoje sei, mas não na ocasião. Acreditei que se tratava de besteira minha, pois conhecia bem cada palavra pronunciada e ao buscar reorganizá-las em meus pensamentos cava tonto e surdo. Descia a ladeira de volta pra casa desolado e triste, com um sentimento de falta grave que eu tentava articular racionalmente com os recursos de que dispunha. Certa vez, cheguei decidido a desistir, sentei-me no divã e tirei os sapatos. Ele aponta a cena e eu desaponto com explicação: faço por cuidado para não sujar o tecido. Aliás, digo ao ilustre senhor em confissão de reverência que eu sentia que precisava aprender uma língua nova para conseguir me comunicar com ele. Ao que ouço com toque de bom humor impiedoso que porquanto tentasse resolver problemas pelos outros, arrumaria tantos mais para mim mesmo. Desconcerto? Nesse instante hesitava apavorado diante do que num primeiro vislumbre se traduziu como constrangimento . Como era possível que de um pequeno gesto se abrisse tamanho penhasco? Um momento de indecisão, uma fronteira avistada em que o cavalo refreia e tomba. Desconfiei, tomado de medo. Prosseguia ou partia? Sou arrebatado de uma tensão densa e vívida. De um lado, a tristeza solitária, linguagem de sobrevivência que servia para amparar quedas e remendar joelhos ralados, remédio conhecido e vencido que na falta de coisa melhor poderia seguir entoando explicações, deixando a dor pra depois. De outro, uma fresta pela qual se insinua uma voz que embora titubeante, temerosa está bem ao alcance. O que num ponto fez-se precipitar como constrangimento, daquele ângulo inusitado se apresentava sem cerimônia quando notei em mim mesmo: era reconhecimento . Decidi segurar a mão esticada em minha direção, retomei o cavalo e prosseguimos a travessia conversando diariamente e aproveitando cada momento do sertão como uma descoberta intraduzível e nítida, até que o tempo irrompeu com a extrema curva do caminho extremo. A linguagem de reconhecimento emerge nos momentos de tormenta, habita-nos nas fronteiras entre o conhecido e o a descobrir, apenas para depois submergir e aguardar outras águas e companheiros de viagem. Um rio que corre Realizamos aproximações com o objeto psicanalítico (Bion, 1962) a partir daquilo que nos ressoa significativo e verdadeiro, o testemunho e a contribuição de como cada analista apreende, elabora e concebe o exercício da função analítica na intimidade da clínica. Como atividade autobiográfica (Scappaticci, 2018), a análise é uma situação de abertura ao infinito de vivências que dependem de condições suficientes para serem reconhecidas, transformadas e aproveitadas para crescimento. A experiência em sua qualidade criativa e tempestiva convoca a comunicação no horizonte da esperança de ser alcançada por um semelhante aberto a recebê-la e compreendê-la dentro do possível. Penso que tais condições podem ser concebidas como expressões radicais da alteridade marcadas por cesuras eu/outro, finito/infinito, pré-verbal/pós-verbal, apenas para nomear algumas (Bion, 1977/2014b). O potencial criativo do par analítico (e da comunidade psicanalítica) demanda um contínuo trabalho de comunhão e transcendência nas fronteiras da alteridade, e de sensibilidade à natureza desconhecida da realidade que encontra em cada pessoa possibilidades únicas de captação e expressão. Nas fronteiras, uma área de turbulências se forma como no encontro de rios cujas origens e extensões não estão ao alcance da vista, mas nos mobilizam pela densidade da confluência. Da aridez do grande sertão somos inunda- dos pelo vigor emocional do desconhecido evocado pela presença do outro. Podemos nos tornar cientes e atentos a esse fenômeno, ou fazer um esforço para evitar a ciência desse contato. Aproveitar o momento de perturbação é uma escolha da dupla, assim como sua evasão. Em ressonância com a intuição de Freud e Klein, bem como o pensamento de Kant, Platão e Berkeley, Bion aponta que “uma cortina de ilusões nos separa da realidade”, uma cortina necessária e sem a qual estaríamos condenados à loucura da pura intensidade não sensorial que extrapola a capacidade humana de contenção e conhecimento, “salvo por conjectura” (1965, p. 147). Uma vez que a linguagem comum se organiza a partir de convenções simbólicas públicas – os símbolos heterônomos –, a vivência privada nos momentos de tormenta torna-se incomunicável ou demasiadamente es- treita em suas possibilidades expressivas, isto é, de se tornar uma comunicação que possa ser atinada pelo outro, preservando os elementos fundamentais do que se pretende expressar. Algo importante é intuído e represado, mas se esboça em palavras rasuradas, uma linguagem de sobrevivência ao modo de formulações vazias de sentido e plenas de vestígios de desamparo. O analisando pode suspeitar que é o carreador de um defeito que o impede de se desenvolver, tornando-se alheio àquilo que desconfia ser incapaz de acolher e modificar em si próprio. Diante da fragilidade para abrigar aquilo que é da ordem do inédito desconhecido, objetivado na presença do analista, o desentendimento e a desolação operam como forma de adiar o reconhecimento tanto do sofrimento emocional, como do potencial criativo do encontro analítico. “A desesperança é a perda da fala”, conta-nos Jean-Claude Rolland. E “a esperança nasce e renasce com a liberdade à enunciação. Lampejo do dizer, graças ao qual a coisa enfim se revela – ‘palha no celeiro, pedregulho no buraco’. Suspensão da insignificância” (2017, p. 16). Ao examinar a área das experiências não sensoriais como uma das interfaces fundamentais do ser humano aberto ao contínuo processo de constituição psíquica, Gilberto Safra discute as imagens da potência desmesurada como figurações da dimensão mítica do divino “resultantes de um profundo anseio de ser, que pode se manifestar como desejo do outro”. O analista é tomado como um referencial importante, porque necessário, da possibilidade de realização do potencial criativo, uma esperança de ser temperada pelo sentimento infantil e terrorífico de tudo ser : A perspectiva frequentemente observada é aquela na qual o outro representa uma possibilidade de ser que a pessoa crê ainda não ter alcançado. Há no desejo do outro não só a repetição de experiências do passado, mas também um anseio de futuro de si mesmo. (2013, p. 98) À medida que o vértice analítico se instala, o diálogo com o analista proporciona contraste a fragmentos da experiência do analisando até então desconhecidos ou impedidos. A presença e a sensibilidade de observação do analista, seu estado de atenção aberta à realidade que não se revela sensorialmente, mas que depende de um espaço negativo para penetrar, ocupar, ganhar dimensões reconhecíveis (Bion, 1970) coloca em marcha uma experiência de si que emerge na linguagem como expressão criativa da dupla. Mas o negativo como espaço aberto para receber aquilo que emana do encontro com o outro é potencialmente sentido como um lugar perigoso, um corpo estranho com objetos incógnitos e ansiados. O espaço interno receptivo que emerge na travessia do grande sertão pode despertar o sentimento de perigo iminente, um desvelamento convidativo que se expressa na linguagem em formulações oblíquas, palavras insaturadas que se dispõem ao intrigante. Pérsio Nogueira nos recorda ser característico do humano a busca de orientação no caos, uma angústia fundamental de interpretar o inusual, o inesperado a partir daquilo que se apropria como formas familiares: Parece ser uma característica essencial do ser humano ou, mais restritivamente, da mente humana, reagir com forte angústia à desordem no plano existencial e ao imaginário e sentido de infinito que a acompanham. Um sentido de ordem e de finitude (limite) parece ser fundamental e urgente ao aplacamento dessa angústia – espaços abertos parecem não ser do agrado da “natureza” do mundo mental, que continuamente parece estar em busca de se encarcerar no âmbito e limite de suas próprias respostas. (1993, p. 18) Espaços abertos preenchidos apressadamente constituem formas de obturação do pensamento verbal e modos de evitar contato com a realidade não sensorial e o senso de infinito que caracterizam a intuição do incógnito. Nas tormentas, a dupla se torna habitante de uma fronteira muito fecunda entre o conhecido e o desconhecido para o qual não temos referenciais pretéritos. É a percepção da fresta que conduz à interioridade do corpo, à concepção de um espaço para ser habitado e que se manifesta verbalmente como uma linguagem porosa e potencialmente poética. Inicialmente essa fresta é experimentada como um rasgo, encontrado distraidamente em um dia qualquer de análise. Não há solenidade que a antecipe ou possibilite sua previsão: somos pegos de surpresa, instigados pela estranha familiaridade dos sons e imagens evocados no diálogo analítico. Nesse ponto, a intuição nos põe em contato direto com vislumbres da realidade de uma forma extremamente inquietante, seja pelo temor de que o inusitado possa ameaçar os limites da razão, seja pelo aspecto numinoso e fascinante despertado por essas experiências. Há, como observa Bion (1970), um aumento da tensão quando o par analítico se aproxima do pensamento novo e desconhecido – o momento em que as fronteiras se tornam assustadoramente fluidas e a experiência de alteridade é vivida como uma vigorosa e misteriosa abertura. Ao emergir sem ser convocado, o pensamento novo carreia uma clareza inesquecível e fugaz que em seguida esvanece. Não podemos recapturar o que nossa intuição apreende nesses breves desvelamentos, mas temos a certeza de uma presença verdadeira. Havendo a nação, lampejos dessa experiência podem às vezes ser comunicados em poéticas e breves formulações verbais oblíquas, como ressemantizações de palavras inusitadas e formas estéticas singulares ao par analítico concebidas nos passos da vereda e colhidas no instante do redemunho – “o lugar em que o ser surge numa língua” (Rolland, 2017, p. 87). Na leitura do Grande sertão (Rosa, 1967/2001), a mudança de um estado de mente dominado pelo anseio desesperador de se possuir uma linguagem – o terrível Hermógenes que tudo devora – para o tornar-se a linguagem – um quem sabe Diadorim – sobrevém figurativamente na passagem do alto do chapadão, quando o horizonte se descortina e a leitura adquire um elemento de profundidade e amplidão inconfundíveis. Respiramos embaixo d’água, uma linguagem para habitar e pela qual sermos habitados. Na experiência analítica, o pensamento novo que revela um aspecto importante conquanto desprezado ou ignorado pelo analisando (ou grupo de referência) insurge desses pequenos e ordinários fragmentos da vida cotidiana que marcam as passadas do nosso grande sertão. São os pés de arnica adormecidos pelo sol, os galhos secos que balançam os movimentos da carroça, “a mobília do sonho” (Bion, 1957/1967, p. 51) que o analisando arrasta consigo para dentro da sala de análise como marcas obliteradas de sua história, que se reapresentam na sessão como supostas bobagens facilmente negligenciáveis pela dupla. O fato em si observado e apontado pelo analista – a exemplo do gesto de tirar os sapatos para se deitar ao divã – não tem qualquer significado específico do ponto de vista etiológico, mas serve de brecha para que o pensamento novo penetre a linguagem habitada pela dupla. O analisando pode eventualmente reconhecer naquele instante a pujante realidade da comunhão com um outro capaz de intuir o que lhe diz respeito e não lhe é conhecido, mas para o qual ambos temos evidências (Bion, 1976/2014a). O titubear do analista, caso não esteja familiarizado com a violenta corrente de emoções que inunda o espaço formado pela dupla, pode desaguar precipitadamente em forma de reasseguramento, a exemplo de falas que visam a tranquilizar o analisando ou talvez o próprio analista. Nesse aspecto, a volta abrupta ao conhecido, o apelo à memória e o desejo de entendimento matizado pela linguagem de sobrevivência turvam a experiência e, aí sim, um constrangimento pode se afirmar e ganhar consistência, uma vez que o retorno ao pretérito evoca o sentimento de desamparo justamente onde a esperança do novo começa a brotar. A tensão requer ser sustentada corajosamente para que a dupla efetue a travessia. Onde no cotidiano comum se experimenta uma urgência de ordem ainda que artificiosa, conforme destaca Pérsio Nogueira (1993), abre-se a possibilidade de uma vivência emocional de descobrimento do inusitado e surpreendentemente franco. Em circunstâncias favoráveis, a experiência de contato humano pode ser vivida como um momento estético singular, uma linguagem de reconhecimento que se organiza por breves lampejos de palavras e depois se despede. Muitas emoções podem passar pelos interstícios de formulações concebidas pela dupla, pois servem ao reconhecimento do solo emocional e não se fixam a coisa alguma. Tornam-se objetos insaturados que como cantis do sertanejo colhem água, arrefecem a sede e esvaziam. Não há última palavra. Restam os versos inquietantes de Vanessa Corrêa (2021), companheira psicanalista e poetisa audaciosa que habita águas profundas e sonha ter pernas para caminhar pelos sertões da cidade: era uma vez o que era ninguém sabe no coração da floresta uma fogueira quem viu de longe foi embora com diagnósticos apressados quem chegou perto morreu queimado Aguas tranquilas, un río que corre: el lenguaje de las tormentas Resumen: En este ensayo de autor, la experiencia de descubrir y habitar un lenguaje inusual abierto a resonancias emocionales en la práctica clínica psicoanalítica se presenta en diferentes capas textuales. El estilo de la prosa poética invita a la experiencia de aproximación con la alteridad, emulando en el acto mismo de leer el objeto que se presenta analíticamente como un lenguaje de reconocimiento. Palabras clave: lenguaje, realidad psíquica, intuición, turbulencia emocional Still waters, a river that runs: the language of the tempests Abstract: In this authorial essay, the experience of discovering and inhabiting an unusual language open to emotional resonances in the psychoanalytic clinical practice is presented in different textual layers. The poetic prose style invites the experience of approximation with otherness, emulating in the very act of reading the object that presents itself analytically as a language of recognition. Keywords: language, psychic reality, intuition, emotional turbulence Des eaux calmes, une rivière qui coule: le langage des tempêtes Résumé: Dans cet essai d’auteur, l’expérience de découvrir et d’habiter un langage inhabituel ouvert aux résonances émotionnelles dans la clinique psychanalytique est présentée dans différentes couches textuelles. Le style de la prose poétique invite à l’expérience du rapprochement avec l’altérité, émulant dans l’acte même de lire l’objet qui se présente analytiquement comme un langage de reconnaissance. Mots-clés: langage, réalité psychique, intuition, turbulence émotionnelle Referências Bion, W. R. (1962). Learning from experience . Karnac. Bion, W. R. (1965). Transformations . Karnac. Bion, W. R. (1967). Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 43-64). Karnac. (Trabalho original publicado em 1957) Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation . Karnac.Bion, W. R. (2014a). Evidence. In W. R. Bion, The complete works of W. R. Bion (Vol. 9, pp. 128-135). Karnac. (Trabalho original publicado em 1976) Bion, W. R. (2014b). Caesura. In W. R. Bion, The complete works of W. R. Bion (Vol. 9, pp. 33-49). Karnac. (Trabalho original publicado em 1977) Bion, W. R. (2020). Bion em Nova York e São Paulo (P. C. Sandler, Trad.). Blucher. 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  • A poética do luto: reflexão a partir do conceito de objeto transformacional

    Amanda Christina Victoria de Andrade Melani - Universidade de São Paulo Marina Ferreira da Rosa Ribeiro - Universidade de São Paulo Janderson Farias Silvestre dos Santos - Universidade de São Paulo RESUMO Partindo do conceito de objeto transformacional formulado por Christopher Bollas, discutimos o potencial transformador dos encontros estéticos. Apresentamos algumas reflexões sobre uma experiência clínica vivida com uma paciente atravessando um luto, e destacamos a marcante habilidade dela em se utilizar de músicas, imagens e metáforas para dizer de sua experiência emocional. A partir desta experiência clínica temos por objetivo, neste artigo, refletir a respeito da potência transformacional dos objetos estéticos no contexto analítico, que parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente. Por fim, fazemos alguns apontamentos sobre a importância do encontro analítico, na relação de transferência-contratransferência, para o potencial de transformação dos encontros estéticos vividos nas sessões de análise. Palavras-chave: luto; clínica psicanalítica; arte. THE POETICS OF MOURNING: REFLECTION FROM THE CONCEPT OF TRANSFORMATIONAL OBJECT ABSTRACT Starting from the concept of transformational object formulated by Christopher Bollas, we discuss the transformative potential of aesthetic encounters. We present some reflections on a clinical experience lived with a patient going through mourning, and highlight her remarkable ability to use music, images and metaphors to tell about her emotional experience. Based on this clinical experience, we aim, in this article, to reflect on the transformational power of aesthetic objects in the analytical context, which seem to have an important role in the process of elaborating the mourning of this patient. Finally, we make some notes on the importance of the analytical encounter, in the transference-countertransference relationship, for the potential for transformation of the aesthetic encounters experienced in the analysis sessions. Keywords: mourning; psychoanalytic clinic; art. LA POÉTICA DEL DUELO: REFLEXIÓN DESDE EL CONCEPTO DE OBJETO TRANSFORMACIONAL RESUMEN Partiendo del concepto de objeto transformador formulado por Christopher Bollas, discutimos el potencial transformador de los encuentros estéticos. Presentamos algunas reflexiones sobre una experiencia clínica vivida con una paciente en duelo, y destacamos su notable capacidad para usar música, imágenes y metáforas para contar su experiencia emocional. A partir de esta experiencia clínica pretendemos, en este artículo, reflexionar sobre el poder transformador de los objetos estéticos en el contexto analítico, que parecen tener un papel importante en el proceso de duelo de esta paciente. Finalmente, tomamos algunas notas sobre la importancia del encuentro analítico, en la relación transferencia-contratransferencia, para el potencial de transformación de los encuentros estéticos experimentados en las sesiones de análisis. Palabras clave: duelo; clínica psicoanalítica; arte. INTRODUÇÃO Há uma dimensão estética presente em todo encontro analítico, na medida em que o trabalho clínico se dá num campo de afetações mútuas que ocorrem primordialmente pela via sensível, antes de (e se) alcançarem o intelecto. Grande parte da potência transformacional do encontro clínico reside precisamente na disponibilidade do analista para ser afetado e, muitas vezes, perturbado pelo analisando. No entanto, no tratamento de alguns pacientes que apresentam uma relação particular com algum objeto artístico em especial, a dimensão estética do trabalho psicanalítico torna-se ainda mais evidente, já que, nestes casos, o encontro estético do paciente com o objeto transforma-se numa pauta compartilhada com o analista. É o caso da paciente que apresentamos neste artigo, que atravessava uma experiência de luto, e na qual o uso de músicas e imagens metafóricas é particularmente profícuo, abrindo ricas possibilidades de transformação. Antes de adentrarmos na questão da elaboração do luto, apresentaremos em breves linhas o conceito de objeto transformacional, cunhado pelo psicanalista Christopher Bollas (1987/2015), conceito que servirá de base para as reflexões posteriores. Em seguida, refletiremos sobre o uso e a importância das músicas e metáforas no processo elaborativo da paciente. Ao longo deste artigo, enfatizamos a relação da paciente com a música, a fim de mostrar a importância dos recursos artísticos na elaboração de suas experiências emocionais. Evidentemente, tratam-se de recortes do processo analítico e, ao escolher trilhar este caminho, inevitavelmente deixamos de enfatizar outros tantos aspectos do processo de atravessamento da dolorosa experiência de luto. Um destes aspectos é a própria relação de transferência-contratransferência. Assim, ao fim, faremos alguns breves assinalamentos sobre este ponto. Visto que este artigo objetiva refletir teoricamente a respeito de um fenômeno que emergiu espontaneamente na prática clínica psicanalítica, ele se baseia no método psicanalítico, que é definido por Freud (1923/1996) como um método de tratamento e investigação, consistindo numa atitude de atenção uniformemente flutuante (por parte do analista) e associação livre (por parte do paciente). Este tipo de pesquisa implica, por parte do analista-pesquisador, “uma atitude passiva de se deixar impregnar pelo outro, tanto corporal quanto espiritualmente, para depois destilar, das marcas desse encontro os ingredientes necessários à formulação do conhecimento buscado” (Naffah Neto & Cintra, 2012, p. 42). Quanto aos objetivos, este trabalho pode ser definido como um estudo exploratório, na medida em que objetiva “proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses“ (Gehardt & Silveira, 2009, p. 35). Nas palavras de Gil (2008): “as pesquisas exploratórias têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores” (p. 27). O OBJETO TRANSFORMACIONAL E O MOMENTO ESTÉTICO O conceito de objeto transformacional, cunhado pelo psicanalista Christopher Bollas (1987/2015), descreve o objeto primário a partir de uma perspectiva intersubjetiva, enfatizando a experiência vivida pelo bebê do encontro com este objeto. Para ele, o encontro primevo do bebê com a mãe é, antes de tudo, um encontro estético, de maneira que a relação do bebê com a mãe como objeto transformacional configura a primeira estética humana. Esse encontro entre o bebê e o objeto transformacional é, para Bollas, um momento estético. A mãe é percebida no início não como um objeto de representação, mas como um processo que o bebê identifica com as múltiplas transformações do self . Nas palavras de Bollas: “A dor da fome, um momento de vazio, é transformada pelo leite da mãe em uma experiência de plenitude. Esta é uma transformação fundamental: vazio, agonia e raiva se tornam plenitude e contentamento” (p. 68). Ao longo de toda nossa vida buscamos experiências como essa, que possam nos proporcionar transformação. Procuramos mergulhar no quadro, na música, na paisagem, na voz da pessoa amada ou em seu abraço, tal como um dia estivemos mergulhados na estética materna. Os encontros estéticos são, então, encontros transformacionais. É importante enfatizar, no entanto, que o momento estético não diz respeito a uma simples revivência da experiência com o objeto primário, como se o indivíduo estivesse fixado num encontro passado, mas sim a uma experiência com um objeto que, tal como o objeto materno, ressoa o idioma pessoal1 do indivíduo, permitindo-lhe apropriar-se de partes suas e de sua experiência emocional antes desconhecidas de si mesmo. Nas palavras de Bollas: É um prazer da subjetividade (jouissance) descobrir os meios de ser ‘sonhado’ até alcançar a realidade; é uma alegria verdadeira o encontrar de um objeto que contém uma experiência que é para nós transformacional, à medida que produz uma metamorfose de uma estrutura latente profunda para uma expressão superficial (1992/1998, p. 39, itálico do autor). O momento estético, portanto, é uma experiência que aponta para o futuro, para uma expansão e transformação da subjetividade. Este momento, segundo Bollas (1987/2015), pode ser pensado como a vivência de uma comunicação profunda e singular entre o sujeito e o objeto, em um encontro fusional que leva o indivíduo a experimentar a estranha sensação de estar sendo contido pelo objeto (como, por exemplo, um objeto artístico), que dá forma às suas angústias, desejos e medos. Assim, no encontro estético, vivenciamos uma espécie de cisão no tempo que nos arrebata e mobiliza aspectos muito íntimos, de modo a sairmos transformados deste encontro: No momento estético, quando uma pessoa se envolve em uma profunda ressonância subjetiva com um objeto, a cultura encarna nas artes vários equivalentes simbólicos dessa busca pela transformação. Na procura por uma profunda experiência subjetiva com um objeto, o artista nos lembra e nos fornece exemplos de experiência de memórias egóicas de transformação (Bollas, 1987/2015, p. 63-64). Assim, nos momentos de imersão, em que o sujeito é tomado pela obra, seja ela uma pintura, uma música ou uma produção literária, por exemplo, constituem-se ocasiões de grande densidade emocional e destituídas de palavras, que, segundo Bollas, atuam como “uma forma de déjà vu, é uma memória existencial: lembrança não representacional, transmitida por meio de uma sensação misteriosa” (1987/2015, p. 67). Logo, podemos pensar o encontro estético não como uma vivência passiva, mas como uma experiência de transformação do self . Neste artigo, tomando como ponto de partida a experiência vivida com uma paciente atravessando um luto, refletimos sobre a potência transformacional do encontro estético no contexto analítico, particularmente em pacientes que se utilizam de músicas, filmes, imagens ou metáforas, a fim de dizer de sua experiência emocional. Assim, a vinculação do sujeito a este objeto, mediada pela analista na relação transferencial-contratransferencial, pode ser experimentada como uma comunicação profunda que o leva a re-experienciar uma relação objetal transformacional, operando significativas transformações do self . O LUTO Adriana2 procurou a clínica-escola após a morte do marido, que ocorrera poucos meses antes do início dos atendimentos. Segundo ela, estava sendo muito difícil e doloroso aceitar essa perda, que se deu de modo inesperado em consequência de algumas complicações de saúde. Em seu relato emocionado, Adriana revelou o sentimento de não ter perdido apenas seu marido, mas também seu melhor amigo, já que estavam juntos há muitos anos e tinham um relacionamento de muita intimidade. Assim, ela diz que depois da perda o seu mundo parecia estar em “preto e branco”, apontando ter uma grande dificuldade em cumprir as obrigações do dia a dia e em seu trabalho. Ela destacou também a dificuldade que sentia frente à responsabilidade de criar os filhos sozinha, um menino e uma menina iniciando a adolescência. Apesar disso, Adriana reforçava que os filhos eram sua razão para seguir em frente, de modo a trazer um pouco do colorido para os seus dias. Nesse sentido, nas primeiras sessões, Adriana dizia se sentir deslocada, vivendo em um mundo que não parecia seu, tal como uma realidade virtual ou um sonho. Ela acrescentava ainda que se sentia incompreendida pelas pessoas que não lhe pareciam entender ou não estavam dispostas a ouvir sobre sua dor. Assim, a desorganização interna e externa provocada pela morte do marido fazia transparecer em sua fala uma sensação de não-pertencimento. É possível pensar que o caos interior decorrente da perda do marido parecia dificultar o restabelecimento de laços com o mundo externo, pois este lhe parecia hostil, tal como apontado por ela no início dos atendimentos. Assim, para além da perda concreta do objeto de amor, soma-se uma perda interior advinda da fantasia inconsciente de que o seu mundo interno parece correr perigo de desmoronar. Isto coaduna-se com a hipótese apontada por Klein (1940/1996), segundo a qual o luto é uma atualização da posição depressiva infantil, uma vez que o sujeito acredita ter perdido seus objetos internos “bons”, ao mesmo tempo em que tem a impressão de que seus objetos internos “maus” se tornaram dominantes. Nas palavras de Klein (1940/1996), “assim como a criança pequena que passa pela posição depressiva está lutando, na sua mente inconsciente, para estabelecer e integrar seu mundo interno, a pessoa de luto também sofre a dor de restabelecê- lo e reintegrá-lo” (p. 397). Ao longo das primeiras sessões, as falas de Adriana eram marcadas por essa sensação de desorganização interna, ao mesmo tempo em que a sensação de incompreensão das pessoas ao seu redor, no que se referia à sua tristeza, era percebida por ela como grande hostilidade. Isto se assemelha à experiência de luto da Sr. A, descrita por Klein (1940/1996): (...) ficou claro que a indiferença assustadora das pessoas era um reflexo de seus objetos internos, que na sua mente tinham se transformado numa multidão de objetos “maus” persecutórios. O mundo externo parecia artificial e irreal, pois a verdadeira confiança na bondade interna desaparecera temporariamente (p. 404). Embora na fala de Adriana comparecesse essa percepção hostil do mundo, era possível perceber em seu discurso a preservação de objetos internos bons, especialmente quando se referia aos filhos. Nesse sentido, é a partir deste contexto, muitas vezes ambíguo, que podemos pensar o movimento da experiência de elaboração desta paciente. Esse movimento ambíguo, com avanços e retrocessos, é próprio da experiência de luto. Mesmo no luto normal o indivíduo apresenta processos psíquicos próximos a uma experiência melancólica, engendrando uma identificação maciça com o objeto perdido, como maneira de negar a perda, de modo que há um desânimo profundamente penoso e a diminuição do interesse pelo mundo. Como observa Steiner (1994), o enlutado procura “apossar-se do objeto e retê-lo e um dos modos pelos quais o faz (...) é através da identificação com o objeto” (p. 68). Steiner (1994) propõe dividir a posição depressiva em duas fases. A primeira seria a fase de medo da perda do objeto e a segunda a fase de reconhecimento da perda, isto é, a verdadeira vivência da experiência da perda. Essas duas fases são atualizadas nas perdas posteriores, correspondendo às fases do trabalho de luto. Na fase inicial o indivíduo tenta negar a realidade da perda por meio de uma maciça identificação projetiva, esvanecendo a separação entre sujeito e objeto e abandonando todo o tipo de interesse que não tenha relação com o objeto perdido. Quando o indivíduo ultrapassa essa fase, podendo enfrentar a realidade, a desolação de seu mundo interno, isto é, podendo viver a experiência da perda, permitindo que o objeto morra, “a identificação projetiva é revertida e partes do self antes atribuídos ao objeto são revertidos ao ego” (Steiner, 1994, p. 68). Steiner destaca que, de certa forma, essa ideia já está presente em “Luto e melancolia”, quando Freud (1917/ 1996) refere-se ao fato de que, no luto normal, o confronto com o veredicto da realidade de que o objeto não existe mais leva a um gradual desligamento da libido desse objeto e o reinvestimento em outros. Esse é um processo que proporciona um enriquecimento egóico. No luto normal, portanto, é possível a ultrapassagem do caos interior e o restabelecimento de laços com o mundo externo. Nos relatos de sua história conjugal, Adriana compartilha com a analista experiências felizes que viveu com o marido, dizendo sentir falta de poder conversar com ele, ou apenas poder dividir os momentos do dia a dia com alguém. Contou também que costumava escutar músicas junto com o marido, porém, depois de sua morte, passou por um período em que preferiu “ficar em silêncio”. Segundo ela, a música os conectava, como se os diferentes álbuns contassem partes de sua história juntos, de modo que cada canção representaria um “pedaço” deles mesmos. Assim, escutá-las novamente implicaria no reencontro com sua própria história e com a falta do marido. Podemos conjecturar, seguindo a proposição de Steiner (1994) a respeito das duas fases da posição depressiva, que Adriana ainda estava vivendo a experiência de identificação projetiva maciça com o marido, experiência que o autor sugere que faz parte da primeira fase do luto e da posição depressiva. Deste modo, escutar sozinha as músicas que antes compartilhava com o companheiro talvez fosse confrontar-se com o vazio, enfrentar a perda, o fato de que seu parceiro não estava mais ali para viver com ela aqueles momentos de intimidade. Escutar música com o marido os conectava. Agora viver sozinha essa experiência, era dar-se conta da desconexão. A MÚSICA COMO OBJETO TRANSFORMACIONAL Logo nos primeiros atendimentos, alguns meses depois da perda, Adriana contou sobre o seu processo de ouvir músicas novamente. Ela relata, assim, uma sensação, em certo momento, de ser “chamada” pelos discos do marido, como se pedissem para ser ouvidos por ela. Ao se reencontrar com essas músicas, a paciente fala sobre uma experiência de identificação, em que as letras pareciam expressar com precisão os seus sentimentos frente ao luto. A partir disso, ela passa a recitar diversos versos de músicas ao longo das sessões, de modo a se comunicar por meio delas. ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM PSICOLOGIA Em uma das sessões, Adriana fala sobre sua experiência de solidão após a morte do marido, descrita por ela como uma sensação de estar só mesmo no meio da multidão. Neste momento, ela relembra a música “Metade”3, de Adriana Calcanhotto, e cita um dos versos, apontando se sentir “exatamente desse jeito”. A paciente conta ter se identificado com o trecho “Eu não moro mais em mim”, de forma que este verso parecia ser capaz de expressar sua experiência emocional, conferindo-lhe sentido. Ao se encontrar com a ideia de não morar mais em si mesma, ela revela se sentir desabitada, descrevendo uma sensação de vazio, em que não conseguia se reconhecer nela mesma, pois nada parecia ter restado de si depois da perda do marido. Retomando a proposta de Klein (1940/1996), no luto, a perda de um objeto bom externo provocaria uma fantasia inconsciente de perda dos objetos bons internos, de modo que o mundo interno do sujeito enlutado, em suas ansiedades persecutórias, pareceria correr risco de desintegração. Ao afirmar que não mora mais em si mesma, a paciente pode dizer do vazio provocado pela perda de seus objetos bons internos, que parecem não lhe fazer mais morada, após a morte de seu marido. Expandindo a análise da música para além do trecho citado por Adriana, é possível pensar que a questão da perda parece estar muito presente e evidente, quando, no decorrer da letra, é apontada a possibilidade de perder o chão, as palavras, a hora, o freio e as chaves de casa. Deste modo, são apresentadas na música ideias cujo campo semântico é capaz de aludir tanto a uma perda concreta, tal como a perda das chaves de casa, mas que também é acompanhada pela perda de objetos internos, simbolizada, por exemplo, na ideia de perda do chão, sugerindo uma profunda desorganização do sujeito. Logo, a música como um todo parece dizer de um processo muito semelhante à experiência de luto, em que há uma profunda desorganização interna e externa com a perda do objeto de amor. Ainda pensando no restante da letra da música em questão, os trechos “Estou em milhares de cacos” ou “Eu estou ao meio” parecem representar esses sentimentos caóticos. No luto, o indivíduo se defronta com uma nova realidade, que parece perder o sentido na ausência daquele que se foi, ao mesmo tempo em que uma espécie de caos interior se instaura. Na perspectiva trazida por Klein (1940/1996), com a perda da pessoa amada, o sujeito enlutado acredita ter perdido também seus objetos “bons” internos, e, com isso, tem a impressão de estar dominado por objetos “maus”, que ameaçam a integridade do mundo interno. A ideia de um risco de desintegração parece estar contida nas imagens da música, com a possibilidade de se estar em cacos ou cindido ao meio. Assim, a partir do trecho “Onde será que você está agora?”, também presente nesta música, é possível pensar na busca pelo objeto de amor perdido, durante o processo de elaboração do luto, na perspectiva de reinstalação deste objeto dentro de si. Ao mesmo tempo, este questionamento pode dizer também da procura deste sujeito por si mesmo, que depois da perda se torna um outro, transformado pela experiência. Vale destacar também, que, na música de Calcanhotto, o trecho “Eu deixo a porta aberta” parece apresentar uma possibilidade ou abertura para a elaboração deste caos. Nesse contexto, é importante destacar o fato de que a paciente trouxe essa música diversas vezes para as sessões, retomando sempre o trecho “Eu não moro mais em mim”. Ao fazer esta retomada, em outro momento na sua experiência de elaboração do luto, Adriana traz uma nova ideia, e aponta que sente que não mora mais em si, pois agora se percebia como outra, ou seja, sentia que não era mais a mesma, desde a perda de seu marido. A imagem trazida pela música, portanto, não dizia mais da experiência de sentir-se desabitada, mas traz a possibilidade de um (re)encontro consigo mesma, agora transformada no processo de reconstrução de seu mundo interno. Assim, Adriana tem a experiência de não morar mais em si, pois seu mundo interior, que fora destruído em sua fantasia com a perda do marido, agora pode ser restaurado pelo processo de introjeção não só do objeto de amor perdido, mas de reinstalação de todos os seus objetos “bons” internos. Logo, por meio da experiência de encontro com a música, a paciente pode pensar suas feridas e dar um passo na elaboração de sua perda. A partir deste encontro estético, é possível pensar no caráter transformacional da música em questão. Ao escutá-la, a paciente se identifica com um dos versos, e afirma que “era exatamente isso que sentia”, ou seja, diz de um encontro fusional, entre o ego e o objeto, da sensação de estar sendo contida pela letra da canção. Ao trazer este verso para a sessão, e partilhá-lo com a analista, Adriana parece experimentar uma sensação de transformação, com a mobilização de aspectos muito íntimos de sua subjetividade. Pensando no conceito de objeto transformacional, proposto por Bollas (1987/2015), o encontro estético com a música em questão parece caracterizar um processo que altera a experiência do self , transformando o mundo interno e externo da paciente. Além disso, em outra sessão, Adriana contou que, em um determinado momento daquela semana, enquanto escutava rádio distraidamente, ouvira a música “Aonde quer que eu vá”4, cantada por Herbert Vianna. No encontro com essa música, a paciente relata uma experiência afetiva intensa, pois percebera que tinha a mesma sensação do cantor, que compôs a referida canção após a morte de sua esposa. Adriana conta que se identifica com a história do cantor, assim como se identifica com os sentimentos cantados por ele, como se Herbert fosse capaz de traduzir em palavras aspectos da sua experiência subjetiva que ela mesma não tinha sido capaz de nomear até então. Aqui também Adriana tem um verdadeiro encontro estético com essa música, na qual re-experienciaria sua relação com um objeto transformacional, a partir da fusão do ego com o objeto estético. Como proposto por Bollas, na ocasião destes momentos. É comum que o indivíduo sinta uma profunda concordância subjetiva com um objeto (uma pintura, um poema, uma melodia ou sinfonia ou uma paisagem natural) e vivencie uma fusão misteriosa com o objeto, evento que evoca outra vez um estado do ego que prevalecia na vida psíquica precoce (1987/2015, p. 52). Assim, Adriana cita o trecho “Aonde quer que eu vá/Levo você no olhar”, e diz que sentia a presença do marido dentro de si, e não apenas nos objetos que lhe pertenciam. Deste modo, Adriana afirma não ser mais apenas uma pessoa, no singular, pois agora sentia que ela mesma era também o marido, levantando a possibilidade de que seu “eu” está dividido com ele. Assim, a paciente destaca o citado trecho, se referindo à ideia de uma ausência presente do marido, ou seja, da possibilidade de que ele viveria em suas lembranças e seria capaz de olhar o mundo pelos olhos dela. Logo, é possível pensar em um importante passo no processo de elaboração do luto, com introjeção do objeto de amor perdido. Segundo Klein (1940/1996): Quando o sofrimento é vivido ao máximo e o desespero atinge seu auge, o indivíduo de luto vê brotar novamente seu amor pelo objeto. Ele sente com mais força que a vida continuará por dentro e por fora, e que o objeto amado perdido pode ser preservado em seu interior (p. 403) . Deste modo, estendendo a análise da música em questão, para além do trecho citado pela paciente, a ideia de que “Não estou ao seu lado/Mas posso sonhar”, ainda presente na letra, traz a possibilidade de preservação do objeto perdido dentro de si. Assim, a morte impossibilita a presença física, mas a habilidade de sonhar permite a manutenção das lembranças do objeto de amor perdido, ao mesmo tempo em que pode pressupor uma abertura para a vivência de novas experiências. Além disso, seguindo na análise da música, no trecho “Meus sonhos vão te buscar/Volta pra mim/Vem pro meu mundo/Eu sempre vou te esperar”, é reforçada a ideia de internalização do objeto, de modo que podemos pensar no “meu mundo”, como o mundo interno da paciente, que passa a abrigar o marido na forma de um objeto interno “bom”. Ademais, retomando a fala de Adriana, depois de sua reflexão sobre a música, a paciente comenta que, apesar de levar a esposa no olhar, Herbert Vianna retomou sua vida e voltou a cantar e compor. A partir disso, Adriana disse ter se identificado com o cantor, pois agora também se percebia capaz de ver um futuro para si, no qual poderá voltar a criar e realizar coisas, para além de cuidar de seus filhos. Assim, a identificação com este objeto artístico parece transcender a obra, e alcançar inclusive seu autor. Encontrar-se com esta música, enquanto um objeto transformacional, parece ter tido um efeito de organização da experiência para esta paciente, oferecendo novos sentidos para a experiência traumática da perda. O seu movimento de elaboração do luto, inclusive, se torna bastante evidente quando pensamos na transformação do estilo das músicas trazidas por ela no decorrer dos atendimentos. As canções abordadas inicialmente, com letras muito intensas e tristes, foram se transformando em músicas mais leves, com palavras de esperança, acompanhando a experiência de elaboração da paciente. Adriana se utiliza das imagens representadas nas letras das músicas para dar sentidos a suas experiências emocionais e, ao mesmo tempo, é transformada no encontro com essas obras. Nesse contexto, sua capacidade expressiva metafórica parece ter um funcionamento semelhante. Durante as sessões, Adriana era capaz de criar imagens para expressar e dar sentido ao vivido, como forma de interpretação do mundo e de si mesma. Assim, a construção de suas metáforas se dava como uma espécie de pintura com palavras, repleta de formas, cores e profundidade, transformando sua experiência subjetiva em uma produção estética. Sua capacidade simbólica, por meio da criação de imagens metafóricas, parece dar forma para aspectos de sua subjetividade difíceis de serem representados. Nesse sentido, em uma das sessões, Adriana disse se sentir em um quadro, em que se via equilibrando-se em uma estreita canoa, em meio às ondas de um mar azul. Segundo ela, não seria possível ver as margens, mas tinha consciência de que elas existiam, em algum lugar, mesmo que não fosse capaz de enxergá-las. Sua descrição é bastante vívida e detalhada, como se, de fato, conseguisse sentir essa experiência enquanto a descrevia. Por meio dessa imagem, a paciente consegue expressar seus sentimentos, comunicando significados e dando sentido às suas vivências. Assim, a criação e descrição dessa pintura imaginária, parece dar conta de representar os sentimentos de ambiguidade de Adriana, naquele momento de sua vida. Se, por um lado, ela se encontrava à deriva no mar, tentando equilibrar- se frente aos desafios decorrentes da perda do marido, por outro, parece ser capaz de pensar na existência de margens, que dão continência para esse sofrimento, bem como dizem da possibilidade de pensar um futuro em terra firme, agora sem o seu companheiro. Essa metáfora, portanto, se mostra muito representativa de seu processo de elaboração do luto, uma vez que, apesar do momento presente de turbulência e sofrimento intenso, decorrentes de sua perda, parecia haver uma perspectiva de abertura para um segundo momento, de reconstrução, em que será possível seguir em frente. Após um ano da perda de seu marido, a ideia de seguir em frente parecia cada vez mais presente no discurso da paciente. Ao falar sobre o seu sentimento de tristeza, Adriana citou o trecho da música “Saindo de Mim”5: “Você foi saindo de mim/Devagar e pra sempre”. A partir desses versos, a paciente apontou que, tal como na ideia apresentada pela música, a tristeza da perda vai saindo dela aos poucos, abrindo espaço para novas experiências. Ao mesmo tempo, porém, ela indica que este movimento de aprender a lidar com a falta do marido acontece devagar e para sempre, assim como nos versos, por ser um processo que vivencia todos os dias, sendo alguns deles mais difíceis do que outros. Ela contou que percebe o luto como um processo que tem o seu próprio tempo, que não é linear e nem cronológico. Logo, a partir das ideias trazidas pelos versos da música citada, Adriana pôde comunicar aspectos importantes de sua subjetividade, se permitindo pensar o movimento na sua experiência de elaboração do luto. A partir desta reflexão, Adriana disse que não entendia a sua tristeza como se fosse um baú, pesado, e impossível de carregar. Nesse sentido, ela contou que se sentia como uma motocicleta, capaz de seguir, percorrer caminhos e resolver problemas, e sua tristeza seria como um carrinho acoplado a esta moto, um sidecar . Adriana acrescenta, então, que uma parte da sua tristeza pelo luto talvez sempre esteja com ela, acoplada à sua motocicleta, mas o conteúdo do sidecar pode mudar com o tempo, ficar mais leve, de modo que não a impediria de seguir adiante. Assim, por meio da criação desta metáfora, Adriana constrói e apresenta uma imagem dinâmica do seu sentimento de tristeza, que se transforma com o tempo, e não mais constitui um peso que a impede de prosseguir. Sua fala, portanto, parece revelar passos muito importantes no sentido da elaboração da perda e da abertura para novas experiências, indicando o processo de transformação desta paciente em seu trabalho de luto. O discurso de Adriana parecia estar preenchido de novas cores e possibilidades, muito diferente de sua fala nas primeiras sessões, que era marcada pela sensação dilacerante de desorganização interna e deslocamento em relação ao mundo. Assim, a metáfora construída pela paciente parece indicar sua transformação no processo de reconstrução de seu mundo interno, com uma abertura para seguir adiante, como proposto por ela. Enquanto a paciente construía esta metáfora, a palavra sidecar parecia ecoar de modo insistente pela mente da analista, provocando uma sensação de estranhamento. Nesse momento, ela tenta se lembrar de onde conhecia este termo, e imediatamente pensa em uma cena do livro “Harry Potter e as relíquias da morte”6. Nela, Harry é transportado no sidecar de uma motocicleta, em um plano de fuga que dá início a sua jornada final contra o vilão Lord Voldemort. Durante essa fuga, a coruja de Harry, símbolo de sua inocência e de sua ligação com o mundo mágico conhecido até então, é morta dentro do sidecar . Assim, mais do que apenas derrotar o vilão, a história nos leva a pensar sobre o amadurecimento de Harry, que se encontra com o desconhecido, enfrenta seus medos e luta bravamente por seus ideais. Nada mais será como antes, e após a batalha, surge um novo Harry, transformado pela experiência. A imagem que surge na mente da analista, em sua ressonância contratransferência, e as reflexões propostas a partir dela, parecem se relacionar com a história da paciente. Na metáfora criada por Adriana, a ideia de seguir adiante, de percorrer novos caminhos, parece indicar que, aos poucos, ela estaria se desocupando da realidade que construíra com o marido, de modo a partir para uma nova jornada de (re)descoberta de si mesma. Esta jornada não é fácil, assim como as batalhas enfrentadas por Harry, mas uma nova Adriana parece surgir desta experiência de elaboração. Bollas (1987/2015) afirma que muitas vezes o analista capta em sua própria subjetividade estados emocionais do paciente em statu nascendi . O autor chega a afirmar que frequentemente o processo de associação livre se dá dentro do analista, de maneira que este deve encontrar maneiras de relatar ao paciente seus processos internos, para “ligar o paciente a algo que ele tenha perdido em si mesmo” (p. 236). Deste modo, diz o autor: (...) os pacientes se beneficiam do enraizamento responsável e confortável do analista na experiência subjetiva. A avaliação do que é verdadeiro no paciente não brota inevitavelmente de uma seleção intelectualizada de temas inconscientes, lida pelo paciente e pelo analista, mas sim de um sentimento mútuo de ter tocado em um detalhe na sessão que dá a ambos uma sensação de convicção apropriada de que o self verdadeiro do paciente foi encontrado e registrado (p. 240-241). Desta forma, à medida que a analista permite-se ser habitada pelos estados emocionais da analisanda, ela pode sonhar o vivido, por meio de fenômenos estéticos, como as referidas associações com o Harry Potter, de maneira que tanto a analista quanto a paciente podem encontrar sentidos para a experiência compartilhada em sessão. A capacidade de metaforização dessa paciente permite transformar experiências emocionais em imagem, ao mesmo tempo em que a imagem criada pela analista parece ser capaz de captar significados que circulavam na fala de Adriana. Os objetos estéticos, portanto, parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente, auxiliando a expressão e a organização de suas experiências emocionais e conferindo novos sentidos ao vivido. Adriana relata a experiência de uma relação muito íntima com as músicas e metáforas trazidas ao longo das sessões, de modo a experimentar a sensação de estar sendo contida por estes objetos. Logo, é possível pensar esses elementos enquanto objetos transformacionais, que possibilitam experiências de transformação do self (Bollas, 1987/2015) . Como proposto por Figueiredo (2014), o sujeito entrega-se a esses objetos, para deles receber cuidados, experimentando seus efeitos de sustentação, continência e reconhecimento. Para o autor, a busca por equivalentes simbólicos para o objeto transformacional seria uma busca por cuidados, na qual o self “ora cria, ora descobre, ora recria objetos sob medida para suas necessidades de constituição, reconstituição e reparação narcísica” (p. 79). Experiência essa muito semelhante a que pode ser observada na relação de Adriana com as músicas. Ademais, o luto, enquanto uma experiência de alta densidade emocional, parece conter em si um potencial criativo. Assim, a dor da perda, que desorienta, que afoga, que dilacera, consegue encontrar voz na arte, que oferece meios para expressar o inominável, aquilo que escapa à razão. Por meio de objetos estéticos, esta dor pode ser pintada, nas diferentes cores da tristeza e da saudade, de modo a dar forma para os mares tempestuosos que podem tomar conta do mundo interno do sujeito enlutado. Assim, por meio de músicas e metáforas, Adriana pode contar, e de certo modo cantar, sua própria história, abrindo a possibilidade de transferir-se para essas obras, levando consigo suas memórias, medos, angústias e representações, de modo a nelas se deixar transformar. Logo, a capacidade de metaforização e de articulação de elementos simbólicos, tão marcante nesta paciente, promove uma abertura para sonhar o vivido, para organizar e refletir sobre sua experiência, na busca de sentido e elaboração para o seu sofrimento. Nesse caso, a elaboração implica encontrar novos sentidos para a vida, agora sem a pessoa que se foi, ou seja, diz da capacidade de pensar uma vida possível após a perda. O ENCONTRO ANALÍTICO COMO ENCONTRO ESTÉTICO As músicas e metáforas trazidas pela paciente foram viabilizadas no campo analítico, em um espaço potencial habitado por ela e pela analista. Deste modo, o processo de transformação não se dá apenas no simples encontro com os objetos estéticos, mas também na oportunidade de falar e refletir sobre eles, endereçando- os a uma presença disponível e continente. O potencial transformador não está apenas no objeto estético, mas também no encontro transferencial- contratransferencial. Assim, Adriana pôde encontrar um lugar de pouso para dar voz e espaço à sua dor, a fim de então pensar suas feridas por meio da linguagem poética. A importância do encontro intersubjetivo para a realização do potencial transformador do encontro estético é enfatizado por Safra (1999), segundo o qual o fenômeno estético só acontece quando uma presença humana devolve ao sujeito a melodia que outrora era emitida “para o espaço sem fim” (p. 35), pois de certo modo é somente neste momento que o sujeito pode ter um contato pessoal, subjetivado, com a realidade. Utilizamos acima a palavra melodia, fazendo referência a uma experiência clínica de Safra (1999). Aqui fazemos uso do termo como metáfora para qualquer aspecto do idioma pessoal do indivíduo, não apenas aquelas ligadas à musicalidade. Safra descreve a experiência com um menino, a quem ele dá o nome de Ricardo, que poderia ser diagnosticado como autista, com o qual somente após anos de análise foi possível estabelecer uma verdadeira comunicação a partir de uma melodia que o pequeno paciente entoava e que Safra começa a repetir. Nesse momento, pela primeira vez o menino o olha nos olhos, bate palmas e emite outra melodia para que Safra repetisse. O autor afirma: “Devolvi-lhe a melodia e, em resposta, ele pulou alegremente pela sala, criou uma outra melodia, e o jogo se repetiu. Estávamos nos comunicando!” (p. 34). No caso de Adriana, as melodias também constituem parte importante de seu idioma. Podemos dizer que o processo de transformação de Adriana se dá não apenas na projeção de partes suas no outro (o objeto artístico-musical), mas também na retomada das partes projetadas, com o auxílio da analista. Quando a analista pôde ressoar o idioma de Adriana, posto nas músicas que ela trazia, então ela pôde encontrar a si mesma nas músicas, reintegrar partes que haviam se perdido junto com o marido, e poder sonhar. Nas palavras de Cintra (2011): “deixar passar o passado e poder sonhar, eis dois critérios freudianos de saúde mental” (p. 5). Esse é, de fato, o percurso realizado por Adriana em seu atravessamento do luto. Segundo Bollas (1987/2015), a mãe atua como um ego suplementar, que permite a continuidade de ser do infante, dando forma a seu mundo interno. Assim, ao satisfazer as necessidades do bebê, ela transformaria seu ambiente exterior e interior, ou seja, a mãe, ainda não identificada como um outro, diferente do eu, é experienciada como um processo de transformação, como um objeto transformacional. Bollas (1987/2015) afirma que, de modo semelhante, o analista deve funcionar como objeto transformacional, na medida em que ele deve executar com o paciente (...) a mesma função da mãe com seu bebê, que não podia falar, mas cujos humores, gestos e necessidades eram expressões de algum tipo que precisavam da percepção materna (...), do acolhimento (uma disposição para lidar com o discurso infantil), da transformação em alguma forma de representação e, possivelmente, de alguma solução (o fim do sofrimento) (p.264, itálicos nossos). Bollas (1987/2015) afirma que cada paciente cria um ambiente a partir de seu idioma, de maneira que o analista é convocado a viver dentro do idioma ambiental do paciente. A este respeito é interessante observar que as músicas citadas e cantadas por Adriana, tão características de seu idioma, pareciam ecoar ao longo das sessões, de modo que suas melodias se mantinham como uma espécie de ruído de fundo nos encontros, habitando a mente da analista. No idioma ambiental do analisando somos usados por ele de modos diferentes e, muitas vezes, não sabemos porque sentimos o que sentimos e mesmo que papel somos destinados a desempenhar. Haveria, em todo processo analítico uma “incerteza inevitável, sempre presente e necessária” (Bollas, 1987/2015, p. 234). Nesse sentido, é emblemático certo momento no decurso do processo analítico de Adriana em que ao fim de uma sessão, ao se despedir, ela comenta não saber o que a analista fazia com todo o “lixo” deixado ali, mas agradecia por recolhê-lo para ela, deixando seu sidecar mais leve. Este comentário é representativo do uso que Adriana faz da analista em seu idioma ambiental e da inevitável e necessária incerteza do processo, pois muitas vezes a analista também não sabe o papel que desempenha e o que faz com o que é “depositado” pelo paciente: A capacidade de suportar e valorizar esta necessária incerteza define uma de nossas mais importantes responsabilidades clínicas com o paciente; e aumenta nossa capacidade de nos perdermos no ambiente em evolução do paciente, possibilitando que ele nos manipule pelo uso da transferência, transformando- nos em uma identidade objetal. Se estivermos seguros de nosso próprio senso de identidade, perdê-lo no espaço clínico é essencial para a descoberta que o paciente faz de si mesmo (p. 234). Na medida em que a analista pôde suportar a experiência de incerteza, ela pôde partilhar a dor, vivida em uníssono, e lançar-se com Adriana nas incertezas das águas do luto, navegadas por meio de músicas e metáforas que parecem funcionar como uma espécie de gramática afetiva para esta paciente, ou, como diria Bollas (1992/1998), como um léxico para o processamento das experiências do self . Assim, é por meio dessas construções estéticas que os sentimentos de Adriana podem ser expressos, ao mesmo tempo em que parecem constituir uma forma de elaboração de sua experiência. Nesse sentido, o luto ganha vida por meio da linguagem poética, criando a possibilidade de delinear novas formas e contornos para a dor. Dentro do contexto de intimidade do setting analítico, as experiências emocionais turbulentas podem ser apreendidas e expressas por meio das imagens criadas pela dupla analítica. Deste modo, o vivido ganha forma, a partir da qual pode ser digerido e transformado em uma narrativa elaborada, e geradora de novos sentidos. A imersão no contato com os objetos estéticos em sessão se dá, então, como uma experiência compartilhada. Assim, é no encontro de subjetividades da sala de análise que a experiência pode ser sonhada em conjunto, favorecendo o processo de transformação. CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência com Adriana permitiu-nos refletir sobre as possibilidades transformacionais dos encontros estéticos tanto no uso das músicas quanto na relação analítica. Pudemos pensar, então, os encontros estéticos no contexto analítico em seu potencial transformacional. Ao cantar e construir imagens metafóricas, compartilhando essa experiência com a analista, ela parece encontrar um lugar de abrigo e cuidado. Assim, Adriana pode habitar e ser habitada por esses objetos. Nas palavras de Figueiredo (2014), “É ‘de dentro’ que o sujeito pode vir a sofrer todos os efeitos deste encontro” (p. 79). Nesta experiência clínica, acompanhamos os efeitos do encontro com as músicas e com a analista, e destacamos a importância da habilidade da paciente de articular elementos estéticos, dando formas e encontrando sentidos para suas experiências emocionais. Para finalizar, assinalamos que além de refletir sobre a potência transformacional das músicas para a paciente, é importante enfatizar o quanto as canções tão caras para Adriana, servem elas mesmas como um tipo de representação plástica da teoria do luto, compreendida na perspectiva das relações de objeto, bem como como representação da dor e da travessia do luto feita pela paciente. Por fim, as músicas também indicaram novos sentidos (ou uma expansão de sentidos) para a analista. REFERÊNCIAS Bollas, C. (2015). A sombra do objeto São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1987). Bollas, C. (1998). Sendo um personagem . Rio de Janeiro, RJ: Revinter (Trabalho original publicado em 1992). Cintra, E. (2011). Sobre luto e melancolia: Uma reflexão sobre o purificar e o destruir . ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, 29 (1), 23-40. Figueiredo, L. C. (2014). Cuidado, saúde e cultura – Trabalhos psíquicos e criatividade na situação de analisante . São Paulo, SP: Escuta. Freud, S. (1996). Luto e melancolia . In Freud, S. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (pp. 245-265. Vol. XIV; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917). Freud, S. (1996). O ego e o id. In Freud, S. O ego e o id e outros trabalhos (pp. 15-87. Vol. XIX; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923). Gehrardt, T. E., & Silveira, D. T. (2009). Métodos de pesquisa. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS. Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo, SP: Atlas. (Trabalho original publicado em 1999). Klein, M. (1996). O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In Klein, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (pp. 385-412, Vol. I, Obras completas de Melanie Klein). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1940). Naffah Neto, A., & Cintra, E. M. U. (2012). A pesquisa psicanalítica: A arte de lidar com o paradoxo. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, 30 (1), 33-50. Safra, G. (1999). A face estética do self . São Paulo, SP: Unimarco. Steiner, J. (1994). O equilíbrio entre as posições esquizo-paranóide e depressiva . In Anderson, R. (Org.). Conferências clínicas sobre Klein e Bion (pp. 60-72). Rio de Janeiro, RJ: Imago. CONFLITOS DE INTERESSES Não há conflitos de interesses. SOBRE OS AUTORES Amanda Christina Victoria de Andrade Melani é graduanda em Psicologia no Instituto de psicologia da USP. Membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).E-mail: amanda.melani@usp.br https://orcid.org/0000-0003-2449-3420 Marina Ferreira da Rosa Ribeiro é psicanalista. Professora Dra. do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).E-mail: marinaribeiro@usp.br https://orcid.org/0000-0002-1601-4744 Janderson Farias Silvestre dos Santos é psicólogo. Doutorando e mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, na linha de pesquisa “Investigações em Psicanálise”. Membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC). E-mail: jandersonsilvestre@usp.br https://orcid.org/0000-0001-6318-9347 Notas: 1 Podemos pensar no idioma como uma forma primordial, como um traço formal primevo que só pode se articular e se fazer expressar pela recepção de conteúdos do mundo externo que são continuamente oferecidos, inicialmente, pelas figuras parentais. Bollas relaciona o idioma ao Id, dizendo: “A teoria do id foi um primeiro e crucial passo para conceituar essa importante estrutura psíquica (itness), algo próprio que está no nosso cerne, algo que dirige a consciência: uma figuração da personalidade que conjura objetos específicos para desfazer seu código por tais objetivações. Acima de tudo nossa itness, ou nosso idioma pessoal é o nosso mistério. Nós pensamos, sonhamos, abstraímos, selecionamos objetos antes de sabermos por que e mesmo quando sabemos tão pouco” (Bollas, 1992/1998, p. 37). 2 Nome fictício. Destacamos aqui que a escolha do nome Adriana faz referência à cantora Adriana Calcanhotto, que dá voz à música “Metade”. O verso desta canção, tão fundamental para a experiência de elaboração desta paciente, parece ser capaz representá-la. Assim, a Adriana, paciente, no encontro com as palavras de Adriana, cantora, pode dizer de sua experiência emocional. 3 Calcanhotto, A. (1994). Metade [CD Recording]. Sony Music. Eu perco o chãoEu não acho as palavrasEu ando tão triste . Eu ando pela salaEu perco a horaEu chego no fimEu deixo a porta abertaEu não moro mais em mim Eu perco as chaves de casa Eu perco o freio . Estou em milhares de cacos Eu estou ao meioOnde seráQue você está agora? 4 Vianna, H. (2000). Aonde quer que eu vá [CD Recording]. EMI. Olhos fechadosPra te encontrarNão estou ao seu lado Mas posso sonharAonde quer que eu váLevo você no olharAonde quer que eu váAonde quer que eu váNão sei bem certoSe é só ilusãoSe é você já pertoSe é intuiçãoE aonde quer que eu váLevo você no olharAonde quer que eu váAonde quer que eu váLonge daquiLonge de tudoMeus sonhos vão te buscarVolta pra mimVem pro meu mundoEu sempre vou te esperarLarará! Lararára! 5 Lins, I. (1979). Saindo de mim [LP]. EMI. Você foi saindo de mim Com palavras tão levesDe uma forma tão branda De quem partiu alegreVocê foi saindo de mim Com sorriso impuneComo se toda faca não tivesse Dois gumes Você foi saindo de mim Devagar e pra sempre De uma forma sincera Definitivamente Você foi saindo de mim Por todos os meus poros E ainda está saindo Nas vezes em que choro 6 Rowling J. K. (2007). Harry Potter e as relíquias da morte . São Paulo, SP: Rocco. ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM PSICOLOGIA Londrina, v. 11, n. 3 supl, p. 80-99, dez. 2020

  • “Vai passar!”: O lugar da esperança na constituição subjetiva e no encontro analítico

    Que nome dar à Esperança? Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida. No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante. Precisa-se dar outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra significa sobretudo espera. A esperança é já. Deve haver uma palavra que signifique o que quero dizer. Clarice Lispector Iniciamos com as palavras de Clarice Lispector que colocam a esperança no instante e que, tal qual substância preciosa, pode, correndo através de tudo, garantir, atingir, dar sustentação para o que se quer alcançar. Não está no futuro porque não é mero otimismo a olhar para frente, mas esperança profunda, densa, enraizada nos recursos anímicos, distinta da expectativa. Tão valiosa, que pertence à ordem do indizível, do inefável, ao mesmo tempo que é sustentação para o que se vai alcançar. Clarice dá um estatuto especial e distinto do esperar (será que espera é aqui equivalente a estado subjetivo?), sugere que a esperança se enraíza no profundo, na seiva que alimenta e é potência. Que nome dar, qual o significado possível para a esperança nessa dimensão tão constituinte do ser? Este é o clamor de Clarice. É em consonância com esse mesmo lugar tão fundamental dado à esperança no coração da vida e do acontecer humano, que seguiremos em nossa reflexão: Assim como a inserção da psique no corpo, a relação com a realidade e a integração, estes que seriam processos iniciais do desenvolvimento segundo Winnicott (1945, p.274) não são naturais, mas sim conquistas alcançadas a partir do encontro com o outro; a esperança não é algo com que se nasce. Ela é tecida no amor dos começos, advém de um encontro singular com o objeto primário. Ela é mais-além, não coincide com estado de ânimo - é algo da ordem essencial para a constituição psíquica e para a capacidade de crer, capaz de conduzir à confiabilidade pessoal assim como à crença em geral. Refletir sobre a esperança deve, portanto, conduzir-nos não para sentidos (rasos) de expectativa ou otimismo: não se trata de um sentimento ou de sensação. Esperar, como ressalta Ferraz (2019, p.110), é ontológico. Não é o esperar das superfícies a que se refere (e repudia) Clarice. Estar de posse da esperança, nessa dimensão constituinte do vir a ser do indivíduo, inaugura este como criador de si e do mundo-como um ser da ação. Tem assim um início e é iniciador de mundos, seguindo ainda o pensamento de Ferraz (2019, p.106). Lembramo-nos aqui de Winnicott que afirmava que “o mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento” (1988/1990, p.130). Devo aqui ressaltar que o presente texto muito se nutre do pensamento de Winnicott (embora não apenas dele); mas convido o leitor a iniciarmos com suas contribuições apoiadas no texto de Ferraz (2019) “A espera e o gesto: um olhar sobre a importância da esperança e sua psicopatologia a partir da obra de D.W.Winnicott”. Assim, retornemos a refletir sobre a ação: esta, no pensamento winnicottiano, tem relação não com o mero fazer, mas com o gesto, o qual funda o sentimento de que a vida vale a pena assim como a capacidade de estar vivo. Esperança e criatividade são dois pilares constituintes da subjetividade e são indissociáveis, tendo sua origem no encontro com o objeto primário: a mãe que vai ao encontro da necessidade de seu filho de modo a tornar real o que ele está pronto para criar. A partir desse começo, o infante pode vivenciar a experiência de tornar-se real, e seguir sustentado pela esperança: algo que move e movimenta, que ,caso se perca ou nem se tenha, resta ao ser, “sub-viver” à margem da vida, resta-lhe o adoecimento severo ou mesmo uma experiência de morte. A esperança como pilar fundante do “esperar” (aqui esperar só ganha espessura vital se ancorado na esperança), enquanto potência de vida, oferta abertura à espontaneidade que emerge do self verdadeiro. Se o gesto espontâneo, como diz Winnicott, é o self verdadeiro em ação (1988/1960, p. 135), este inaugura, seguindo ainda Ferraz, “a capacidade do indivíduo de esperançar” (2019, p.113). Quando acordamos, levantamos não apenas para o dia, mas para a vida, para a difícil tarefa de existir, para o enfrentamento dos desafios que o viver nos impõe e, é fundamentalmente a esperança que é motor, âncora e, simultaneamente, ponto de partida para cada amanhecer. No outro extremo, caso ocorra o desencontro do indivíduo (em seu início) com o ambiente ou no decorrer de sua infância; assistimos a uma dimensão catastrófica, a um fracasso de entrada na vida na medida em que se extravia ou nem se constitui a capacidade de “esperar” a partir do registro ontológico. Em sintonia com o que vem sendo apresentado até agora, acompanhamos as reflexões de Luís Cláudio Figueiredo (2003) em seu texto “O paciente sem esperança e a recusa da utopia”. Também este autor reconhece a esperança como condição imprescindível “ao bom funcionamento mental e que opera em planos profundos e inconscientes do psiquismo” (2003, p.160). Reconhecemos, portanto o mesmo status de fator estruturante e ontológico assinalados acima: a esperança como essencial na constituição da subjetividade. Destaco aqui a proposição de. Figueiredo de inserir um pensamento sobre a esperança na direção de um discurso metapsicológico, entretanto não dissociável da fenomenologia da clínica. De modo semelhante ao já discorrido, Figueiredo não pretende pensar a esperança como estado subjetivo, mas como “um princípio” decorrente de um encontro especial com o objeto primordial. Recorrendo a vários autores em seu texto, destacamos Ernst Bloch (1952-9) e seu livro intitulado “O princípio da esperança” – daqui Figueiredo ressalta a diferença entre a esperança como “estado subjetivo” e a Esperança a que Bloch dá um estatuto antropológico universal (1954). A partir daí, Figueiredo considerará a Esperança (esta que deveríamos manter como maiúscula) como um princípio fundamental na estruturação do aparelho psíquico. A esperança é proteção essencial, sustentação para o confronto com os percalços da vida e enfrentamento das tarefas do existir. O caráter protetivo da esperança é assim ressaltado por Figueiredo (2003): “A esperança cria uma defesa contra a queda no nada, nada de objeto, nada de relação e nada de self, funcionando então como a base para a reestruturação do psiquismo” (p.167). Retornando à esperança como princípio, esta diz respeito à expectativa de continuidade do ser e do self; uma continuidade não mecânica, não mesmificante. Possibilita, ao contrário; “a transformação e o encontro feliz do objeto e do si mesmo exatamente onde e quando eles precisavam se encontrar” (FIGUEIREDO, 2003, p. 171). A esperança possibilita trânsitos, liberta das paralisias que dominam os adoecimentos psíquicos, desde as anacrônicas formas do viver até o não-viver. E, se pensarmos que a saúde constitui o trânsito entre os vários estados do ser; a esperança é motor, tem função estruturante de dimensão primordial para a abertura a novos caminhos e enfrentamentos do existir. Aqueles que se estruturaram nas terras sólidas da esperança são capazes de “sonhar com uma vida melhor”, o que , segundo Ernest Bloch (1954) , constitui condição universal da condição humana. Aqui, como ressalta Figueiredo, embora o futuro esteja aí implicado, “não se trata de uma vivência ou fantasia de um tempo futuro, mas de uma abertura para ele, sobre o qual uma vivência temporal pode de fato se assentar sem, contudo, com ela se confundir” (p.160). Portanto, reafirmamos a esperança em sua espessura: esperança-abertura, esperança-fertilidade, esperança-fé; enfim, como já foi falado, como condição imprescindível para o bom funcionamento do aparelho mental e para a saúde psíquica. Esperança e sentido para a vida estão intrinsecamente ligados. As condições para a instalação de uma esperança fundamental dependem da alternância entre ausências e presenças, idas e vindas bem dosadas; o objeto primário não pode exceder em intrusões ou ausências, o que lançará o indivíduo a um funcionamento sob a forma de cisão, esta, por sua vez, evocadora de desesperança e andanças em terras movediças, barcos à deriva, naufrágios, instabilidade e extrema fragilidade frente aos desafios impostos pela vida. A desesperança congênita Quarta-feira de Cinzas Porque não mais espero retornar Porque não espero Porque não espero retornar A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto Não mais me empenho no empenho de tais coisas (Por que abriria a velha águia suas asas?) Por que lamentaria eu, afinal, O esvaído poder do reino trivial? ... T.S. Elliot E quando a esperança não se instala? Winnicott supõe uma falha grave na comunicação mãe-bebê que “aborta” o que seria a matriz básica da possibilidade de ter fé; em suma, da constituição da esperança. Consonante com o pensamento de Figueiredo ocorre nesses casos uma violenta ausência do princípio de esperança e daí constatamos uma série de adoecimentos. Destacamos os pacientes descritos por Winnicott em “O Medo do colapso” (1963), quando uma brutal desesperança associa-se a um medo da catástrofe lançado no futuro, entretanto já acontecido precocemente. Mas ainda os pacientes falso self , esquizoides, os narcisistas, os borderline e outros: aqui nos referindo a adoecimentos severos frutos da quase total ausência da Esperança. Entretanto, sempre que notícias de desesperança (provenientes de inícios marcados por alguma dimensão de desencontro com os objetos primários) nos chegam, ficamos também vulneráveis a paralisias e expectativas traumáticas. No texto de 1949 “Recordações do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade”, Winnicott apresenta o que ele denomina de desesperança congênita, assim como discorre sobre trauma precoce: “Pode-se ressaltar que o mais importante é o trauma representado pela necessidade de reagir. A reação neste estágio do desenvolvimento humano significa uma perda temporária de identidade. Isto faz surgir um sentimento extremo de insegurança e forma a base para uma expectativa de ulteriores exemplos de perda de continuidade do self e mesmo uma desesperança congênita (mas não herdada) com relação à conquista de uma vida pessoal’ (p.326) A desesperança congênita resulta de um fracasso de uma experiência extremamente precoce de mutualidade, esta capaz de constituir uma crença na confiabilidade, assim como a crença em: crença em Deus, na vida, no outro, na natureza humana. O indivíduo fica sujeito a uma base de uma desesperança congênita (mas não herdada), a qual o desacredita à consecução de uma vida pessoal. Figueiredo (2003, p.165) afirma que na desesperança congênita, algo do indivíduo foi desfalcado quando ainda não o pôde ter e usufruir e destaca esse conceito como mais adequado para o entendimento da esperança ou de sua falta como princípio de funcionamento psíquico. Assim como na desilusão precoce, descrita em texto homônimo de Winnicott (1949), o trauma primitivo está na base da vacilação extrema da Esperança ou mesmo de sua não instalação. Entendemos como trauma “aquilo contra o que o indivíduo não possui defesa organizada; daí advém um estado de confusão, numa reorganização das defesas primitivas” (1949, p.206). Vale ressaltar a noção paradoxal de desesperança congênita, mas não herdada, portanto adquirida: instalou-se num momento muito primitivo da vida, próximo ao nascimento ou mesmo no nascimento; entretanto, proveniente das condições ambientais. Já a desilusão precoce, noção próxima à mencionada acima, também provém de trauma precoce, mas num momento posterior à desesperança congênita. São situações que demandam uma regressão terapêutica, para que assim se constitua, como Figueiredo afirma, uma “esperança genuína ” (2003, p.166). Isso requer, entretanto, que um solo-forração de confiabilidade seja tecido ali onde as terras do porvir foram devastadas pelos traumas precoces. Aqui, adentramos nas questões técnico-éticas que envolvem o ser e o fazer do psicanalista na direção da tessitura da esperança, considerando esta essencial na oferta de impulsões vitais ao indivíduo, especialmente quando este se apresenta refém de experiências de quase-morte. “Vai passar”: o analista como sustentador da esperança do paciente desesperançado A afirmativa a partir da qual conduziremos uma reflexão de como se dará o trabalho clínico nessas situações é: “o paciente precisa do suporte da esperança do analista”, como destaca Ferraz (2019, p.110). Este autor acrescenta que isso precisa acontecer “enquanto (o paciente) só consegue esperar que em algum momento seu gesto espontâneo que o liga às raízes da criatividade primária, fonte da vida e do sentir-se vivo, possa acontecer sem que o mesmo se sinta no perigo de ser ultrajado” (p.109). Podemos pensar que o analista que se apropria de seus recursos psíquicos e é capaz trabalhar de modo suficientemente bom, precisa que (o princípio) Esperança nutra-o e o sustente tanto em seu ofício como em seu viver. Aqui lembramos as palavras de Winnicott: “é preciso que haja no analista uma crença na natureza humana e nos processos de desenvolvimento para que algum trabalho possa ser feito, e isto é rapidamente percebido pelo paciente” (1954-5, p.478). De posse dessa Esperança na natureza humana, que aqui Winnicott nomeia “crença”, o analista poderá sustentar o “vai passar” – uma expressão (tal qual a madeleine de Proust que convoca a aberturas e disseminações inconscientes) que remete ao ecoar da voz materna, da mãe que pôde assegurar à criança (no âmbito da ilusão constituinte) que nada iria lhe acontecer, que o mal que a invadia iria ceder espaço a uma bem-aventurança. O “vai passar” dirigido pelo analista ao paciente desesperançado nutre com brotos de esperança- mesmo que não precise ser verbalizado- os caminhos, por vezes árduos, que precisarão ser atravessados. Aqui situamo-nos numa direção clínica paradoxal: Podemos mesmo enunciar essa expressão-acalanto, mas de posse do reconhecimento do terror que habita o paciente. Figueiredo (p.167-168) destaca no texto que estamos acompanhando, a extrema importância de transmitir a segurança de que todas as manifestações de desesperança congênita encontrarão sustentação no setting e na pessoa do analista. Figueiredo afirma: “não se trata de combater a desesperança congênita com discursos otimistas e ‘esperançosos’, ilusórios ou evasivos, mas ao contrário, com a corajosa determinação de encarar e falar abertamente do mais difícil e menos esperançoso” (p.168). Lembramo-nos ainda da fala de um paciente a Winnicott (1960): “A única vez em que senti esperança foi quando você me disse que não podia ver esperança alguma, e você continuou a análise” (p.139). Esse reconhecimento-testemunho do sofrimento do paciente é o manejo adequado e necessário: o pior manejo seria “desmentir” a dor e sua desesperança. De posse dessa comunicação, que pode ser direta ou silenciosa, comunicação da verdade do que se assiste, podemos inclusive anunciar com todas as letras: “vai passar”. Esse é o paradoxo: poder dizer e simultaneamente sermos testemunhos da extrema dor. Não é um mero dizer, discurso otimista, mas a evocação da palavra materna de modo a temporalizar a dor que se apresenta como dor sem fim. O “vai passar” pode ser o modo de temporalizar o presente eterno de agonia, tanto da criança quanto do paciente adoecido, instalando uma linha sustentadora de início, meio e fim - de passado, presente e futuro. Winnicott também nos ensina isso com o jogo da espátula (1979/1957) assim como, a partir desta fundamental experiência, devemos conceber que cada sessão precisa de um tempo capaz de possibilitar que o paciente saia abrigado e apto a sustentar o intervalo (sem o analista) até o próximo encontro. O tempo, se não é só tempo-passado com seus grilhões paralisantes, se não é só presente sem perspectiva de caminhar, se não é só futuro quando corremos o risco de voos e devaneios sem pouso; constitui abrigo: sustenta-nos na esperança, na capacidade de esperar. E, enquanto analistas, precisamos cuidar/sustentar a esperança que se esvai no desespero do paciente. Um paciente com pânico vivencia sua crise de angústia como um morrer para sempre: é um mal infinito. Como afirma Winnicott: “Inerente a esse sentimento de desamparo é a natureza intolerável de se experimentar algo que não se sabe quando terminará” (1949, p.327). Entretanto, a crise dura alguns minutos, ele, como outros com outras modalidades de adoecimento recebem o “vai passar”, que pode ser que de nada adiante. De qualquer forma, insistamos, sejamos o outro-guardião da esperança - a evocação do materno cuidador. Uma das funções analíticas é de testemunho, de reconhecimento da dor e de oferta da esperança, desde que venha sob a forma de palavra viva e encarnada, guiada pelo princípio esperança do próprio analista. Um encontro entre o terror e a esperança “A análise exige, no mínimo, que busquemos juntos” Pontalis Por mais estranho que pareça, penso ocasionalmente que às vezes é mais fácil atender aqueles que chegam nos mostrando de modo explícita sua dor aguda, suas chagas abertas, sua vulnerabilidade: uma visível e temida ameaça de desmanchar-se em pedaços; a agonia fazendo sua aparição. Anestesiados ou lançando gritos lancinantes, seus pedidos de ajuda, mais que isso, de salvação, impregnam nosso corpo, as paredes, o quarto-consultório, lugar que abriga as mensagens que anseiam por serem decifradas. Dão-nos um tipo de trabalho, (porque não esquivemo-nos desta verdade), mas nos envolvem em furacão de dores e silêncios ardentes que obrigam que nossa loucura pessoal seja ativada, colocando-nos em posição de quem é convocado ao cuidado de sobreviventes de catástrofes. Mas, em outros casos, a calmaria oculta o perigo do mar. Inesperadamente somos arrastados por correntes, pegos em desespero por tormentas e ondas gigantescas, ali onde tudo parecia mansidão. É assim quando atendo Andréa, 70 anos, extremamente intelectualizada, organizada em torno da invulnerabilidade (engessada animicamente) de tal modo que mal posso avistar alguma dor mais severa, apenas o dia a dia: “o fazer análise para se conhecer e ter insights”. É algo que não me faz sentido, mas que a abriga de ameaças de deslizar da casca para o núcleo, este que precisa manter-se indecifrável. Fala com todas as letras que gosta de sua independência, não gosta de depender e eu desconfio que, oculta-se sob a superfície das palavras, uma fragilidade, solo instável, algo muito amolecido que se agarramos desastradamente pode esfacelar-se. Não anseio por sua dependência, mas toureio faz 5 anos para que não se assuste, porque um susto subjaz à tamanha rigidez – um íntimo frágil e delicado. Falo de sua delicadeza que é o atalho possível para comunicar que vislumbro sua fragilidade. Venho assim nesse tempo juntas tal qual Shererazade contando histórias para que não seja assassinada a possibilidade de encontro. Muitas vezes faltam-me fábulas, então escorrem águas turvas, paradas e sem vida –parece então, num extremo de desvitalização vivido pela dupla - que nada acontece. Nessas horas, ambas habitamos o nada. E a sensação de que não estou fazendo nada me invade. Gosta de assistir documentários sobre animais e me conta de uma veterinária especialista em tartarugas. Chega uma para ser cuidada, tem o casco rachado, profundamente ferida. Conta-me com assombro que com o casco aberto avista-se o pulmão da tartaruga. Compartilho de seu assombro, sem deixar de expressar num esgar de aflição e dizer em espanto: “que horror!” Pois é mesmo aterrorizante! Depois da sessão, lembro-me de uma paciente de Winnicott (1963, p.225) que, independente, se tornou em sonho, extremamente dependente. Sonha que tinha uma tartaruga com o casco mole, de modo que estava desprotegida e podia sofrer. Mata então a tartaruga para salvá-la do sofrimento intolerável que poderia ter. Desde sempre esse caso de Winnicott me impressionara: como conceber a existência de uma tartaruga sem casco? Que impensável! Que algo próximo da agonia primitiva! E que horror o pulmão revelado! Essa transparência aterrorizadora: essa ameaça de chegar ao núcleo inviolável do ser! Minha paciente me comunica sua necessidade de chegar a sua vulnerabilidade, mas que a deixa numa relação de dependência tão temida. No programa de TV, a veterinária consegue colocar num buraco do casco, que não conseguira emendar por completo, um pedaço desenhado numa impressora 3D. Minha paciente comunica assim também sua esperança de cura. Mas fico com isso, com todas essas associações e sonhos (dela, entretanto, por mim sonhados), me sinto aprisionada numa relação em que o mais vulnerável se protege de mil roupagens, cascas e cascos para não ser alcançado. Tocar nela é como esbarrar no pulmão: o respirar que mantém o ser vivo. Aguardo assim novos encontros, guardo em mim o que me viera como lembrança e compreensão: ficam como restos diurnos e espero que num sonho a dois algo mais próximo do essencial delicado seja alcançado. Andréa interrompe a análise. Brinco que vou buscá-la, caso não volte, luto por ela, talvez movida por comunicação tão sensível ao se aproximar do tempo de despedida. Saio de férias, antes ela já fora e quase me esqueço de minha “brincadeira” de reivindicá-la ao reencontro. Sou então surpreendida por seu chamado: quer conversar, assim, ela retorna. O casco ferido, a prótese 3D sustentou nosso vínculo e brotos de esperança a trouxeram de volta. Sem Esperança ela não voltaria, sem Esperança o pulmão exposto a levaria à morte. ...Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada está morto. O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera. Adélia Prado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOCH, E. The Principle Hope . Trad N. Plaice, St. Plaice e P.Knight. Boston: MIT Press, 1995 (1952-9). ELLIOT, T.S. Poemas selecionados. Trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. FERRAZ, R.J.F. A espera e o gesto: um olhar sobre a importância da esperança e sua psicopatologia a partir da obra de D.W.Winnicott. 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Dra. do IPUSP, professora do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica.

  • The psychoanalytical intuition and reverie: capturing facts not yet dreamed

    Marina Ferreira da Rosa Ribeiro University of São Paulo, Psychology Institute, São Paulo Brazil ABSTRACT This article promotes a dialogue some of Bion’s concepts and those of post-Bionian psychoanalysts (Ogden, Ferro, Rocha Barros and Chuster), looking in particular at psychoanalytic intuition, reverie and the alpha function. How can we think about the connection between reverie and intuition? Could the analyst’s state of reverie have at its centre – before and beyond the sensuous, in the infra- and ultra-sensuous – the analyst’s capacity for intuition? The paper presents a disturbing experience of an analyst in her consulting room, looking at how the concepts work in the clinical material. The clinical material sustains the hypothesis that reverie is an evolution of psychoanalytic intuition, and that intuition occurs between caesuras, which is supported by Bion’s proposal of no memory, no desire, no prior understanding, that is, negative capacity. I suggest that somebody here should, instead of writing a book called “The interpretation of Dreams”, write a book called “The interpretation of facts”, translating them into dream language – not just as a perverse exercise, but in order to get a two-way traffic. (Bion 1977/2014, 262–263) When a concept is cited by several authors and present in a significant number of texts, we can say that it was a successful way of naming a clinical phenomenon in a given moment in the history of psychoanalysis. Reverie seems to be one of these concepts of contemporary post-Bionian psychoanalysis that has long been establishing this unanticipated destiny. Based on an understanding that psychoanalysis is a “pre-conception”1 in search of realization (Bion 1962), we can reflect that each written text is a possible realization at a given moment out of an intertextuality. Taking this into account, all we have is the experience, both in a session and in writing a psychoanalytic text; a mind producing effects on another mind, a text producing effects on other texts, containment and contained, reverie and the alpha function, a mental intercourse that promotes transformations and openings of new fields of inquiry. This text proposes to present, approximate and dialogue with some concepts, namely, psychoanalytic intuition, reverie and alpha function, in the work of Bion and, also, in the texts of post-Bionian psychoanalysts. For this purpose, I start by presenting a disturbing experience of the analyst in the consulting room, and continue by carrying out a metaphorizing exercise of approximation of the concepts with the clinical material. These are concepts and theories that will later be compared with new clinical experiences in a movement of constant return, expansion and creation – a dialogue that is intended to be open and complex. The understanding is momentary, provisional and always escapes us, because in the exact moment that we understand and are capable of narrating an analytic experience, the experience itself is already gone, it already belongs to the past, even if it is recent; the transformation has already occurred, the narrative become saturated, the text already been written, coming alive again for a future reader. The epigraph of this article is the inspiration for the reflection presented here. After all, what does Bion mean with interpretation of facts? Translating them into the language of dreams? I proceed with these inquiries, keeping in mind that Bion commented in several seminars and supervisions that he only asked his analysands questions in order to continually expand the field of investigation. The theoretical-clinical reflection presented below has the same intention: to expand the theoretical field being investigated, without resolute intentions. Walking in a dead man’s shoes2 When meeting Antônio for the first time, without any prior knowledge about him, I am uncomfortably focused on his shoes and think: these are the shoes of a dead man, how can someone walk in the shoes of a dead man? I find myself having almost a hallucinatory experience – the shoes produce the effect of a magnetic field from which I do not manage to distract my eyes and thoughts: I see death and I am paralysed. He starts to speak, I am divided, watching what is said and the intense feeling of death in which I am immersed, without understanding absolutely anything of what is happen- ing, being dragged by the disturbing experience. At the end of our meeting, Antônio distantly and briefly reports the facts of his life that needed to be dreamt together, facts that were contained and condensed in the image of a dead man’s shoes, a pictorial representation by which I was suddenly abducted when I met him. His only daughter had been born with several malformations, had gone through surgical interventions and had lived only a few years. Antônio came to me one year after the girl’s death, or after his own psychic near-death; he was walking in the shoes of a dead man, devitalized, a dead man who is still alive. His need for analysis manifested itself expressively, however, for other reasons: he was not able to find a place of financial and professional recognition. The profession – life – showed itself with an unparalleled brutality, and there he was, a man walking with death chained to his feet. And, in the same room, the analyst, attempting to dream the brutality of the facts of his life. In the vignette presented, the disturbing image that emerges in the analyst’s mind – the shoes of a dead man – emerges from the state of reverie,3 a state of loving receptivity, of hospitality, an opening to be inhabited by the other. Reverie also implies an imaginative capacity of the analyst’s mind, a capacity to dream the brutality of reality: a daughter born with malformations who passed away after only a few years. The receptivity of the reverie state appears to be, at first, a disorganizing state for the analyst. The analyst is abducted by the experience, completely adrift, pulled by the pictorial image4 that is similar to a magnetic field of sorts that exerts a force of attraction from which it is impossible to escape – the analyst can merely recognize it and observe how the session will unfold a posteriori. At this point, the analyst’s act of faith5 referred to by Bion (1970) is fundamental, so that some sense will emerge from this chaotic and disruptive state. Bion did not seem to be concerned with conceptual differentiations, which are uncertain and imprecise. Let us say that psychoanalytic concepts and people should be allowed a certain imprecision. Any resemblance to the emanations of the unconscious? The unconscious presents itself through shadows, beams of darkness, blurry and imprecise images. Ogden (1997/2013, 157) states that he believes “we do well in psychoanalysis to allow words and ideas a certain slippage”. Exactitude and precision are illusions of the conscience and of rational thought; the analyst works with impressions, approximations, with shadows and dim lights. The light of theory should not overshadow the enigmas of clinical experience, but favour the analyst’s mental capacity to navigate through uncertain, imprecise and volatile emotions. About this Bion (1992a/2014, 210) writes: I do in any case feel doubts about the value of a logical theory to represent the realizations of psychoanalysis. I think the “logical” theory and the “illogicalities” of the psychoanalytic experience should be permitted to coexist until the observed disharmony is resolved by “evolution”. This text does not intend to elect one vertex of understanding at the cost of another, or to attempt to solve the illogicality of theories, but to promote an exercise of conceptual and clinical reflection that aims to purify the technical tools of the analysts, their theoretical matrixes, to use the expression of Figueiredo (2020).6 Ogden (2016, 5) writes that even when theories are absent from the conscious thoughts of the analyst, as they ought to be during a session, they constitute a matrix, a psychic context, a metaphorizing containment. The analyst’s theory is part of their own unconscious collection; it needs to be embodied and forgotten, just like the technical exercises of a musician. Theories tune the analyst’s ability to observe, just as musicians tune their instruments. The analyst’s mind is their work instrument, which goes out of tune throughout the consultations, throughout what is lived in the office and also in one’s private life. The theoretical elucidation exercise would be one of the ways for the analyst to tune their instrument when not in session, and reflect about what happened in it using concepts in order to understand the encounter with the patient that already forms part of the past. In this manner, they put the theory and the concepts to work in preparation for tomorrow’s session, tuning their work instrument, their mind and their capacity for observation. I think that the theoretical containment of the analyst is an exercise that is conducted as a form of preparation for a session that is yet to occur. It is, also, a way of repairing their own mind after the sessions of a working day, or of years of clinical exercise. Thus, theory can play a role of containment for the analyst’s mind, in constant turbulence generated in the consulting room by the disorganizing encounter of two personalities, as Bion (1979) wrote. Starting from this vertex of the theory’s function as a metaphorizing containment for the analyst, I will now reflect on the concept of reverie, starting from Bion and going beyond, referring also to the post-Bionian authors. On reverie and alpha function in Bion and beyond The experience of reverie is always a disorganizing element for an analyst, which one tends to discard, which one is often ashamed of, considering it as inability or technical flaw, as in the clinical situation that inspires this text. And, at the same time, it is the emotional compass for the analyst, if one has the condition and the psychic liberty to con- sider it, being that this is no easy task (Ogden 2013). It is important that we have in mind that Ogden’s understanding of reverie described above is only one, among others, distinct from the original postulated by Bion in 1962. The term reverie gained more diverse and broad meanings in writings of post-Bionian psy- choanalysts such as Thomas Ogden, Antonino Ferro and, in Brazil, Elias and Elisabeth Rocha Barros, and Arnaldo Chuster, among others.7 I consider it a surprising phenomenon that an expression presented in a less evident way by its original author, almost en passant, gains diverse proportions in later texts. I believe this is due to its clinical relevance. The same occurred with the Kleinian concept of projective identification, which appeared discreetly in a text of 1946 “Notes on Some Schizoid Mechanisms”. Klein named this seminal text informally as her article about splits; unexpectedly, projective identification was, posteriorly, the Kleinian concept that generated countless resonances (Cintra and Ribeiro 2018). Considering that these are conjectures, what would have been, actually, the intention of these authors when naming these phenomena? It is impossible to say, but the expansion of the concepts in other psychoanalysts’ texts indicates that a concept’s destiny involves different understandings and apprehensions, as presented in the book Projective Identification: The Fate of a Concept (Spillius and O’Shaughnessy, 2012). The fact is that the concept of reverie has been making history in psychoanalysis, through different vertices of understanding, in the text of several psychoanalysts. The connection I make here between the destination of the concept of projective identification and reverie also has other links, in addition to Bion (1962/2014, 303) himself: The term reverie may be applied to almost any content. I wish to reserve it only for such content as is suffused with love or hate. Using it in this restricted sense reverie is that state of mind which is open to the reception of any “objects” from the loved object and is therefore capable of reception of the infant’s projective identifications whether they are felt by the infant to be good or bad. In short, reverie is a factor of the mother’s alpha-function. This short paragraph in the book Learning from Experience (Bion 1962) is almost all we have about reverie in Bion’s work. In this brief articulation that the author makes, we have two other concepts – projective identification and alpha function – reverie being then an alpha function factor, and, going on via projective identification, we will follow these clues or marks in Bion’s text. Along the same lines, Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) consider that the concept of reverie can be understood as a step in the history of psychoanalysis that is followed by the study of the concept of projective identification. Projective identification marked an intersubjective understanding of the constitution of the subject, which, especially in the light of Bion’s work, was considered a primitive form of communication, and, in addition, supported the understanding of the complexity of the interaction between the analyst’s and analysand’s minds in the session, as developed in previous works (Cintra and Ribeiro 2018; Ribeiro 2020). In other words, there is always communication that happens unconsciously, a question that intrigued Freud (1915) when he wrote about communication between unconsciouses, reverie being a way to capture these pro- cesses, as understood in Bion’s dream theory, briefly presented below. The term reverie appears for the first time in Bion’s works in 1959 when he writes that in psychotic patients we find no capacity for reverie (Sandler 2005). Bion (1962) refers to reverie in a passing way, as already mentioned, and linked to the mother–infant dyad and not directly to the analyst–analysand dyad. In a short note found in previously unseen annotations published in 2014,8 The Complete Works of W.R. Bion, he writes that thoughts are a nuisance and precede thinking, and that reverie is important to the analyst because it produces “thoughts”, that is, the thoughts that will be thought. In the clinical situation presented above, the image/thought that the analyst was seeing the shoes of a dead man was something disturbing and disorganizing, and a posteriori of the session it was possible to reflect that the image represented and condensed the psychic suffering of the patient. The analyst’s capacity for reverie “fabricated” or, better, generated the thought/image, remembering that we first think by images. Following this reference publication, The Complete Works of W.R. Bion (2014), we find a comment from the organizer André Green (2014) referring to the book Cogitations: One of the most enriching parts of these Cogitations must surely be Bion’s conception of the dream work (355). We find here the germ of what the author was later to call the capacity for reverie. What this means is that the dream work constitutes only a small part of this type of activity as found in the dreamer – that this work is a continuous process which also goes on during daytime activity, but remains unobservable (other than in conscious fantasy) except through its lack in the psychotic. The capacity for reverie is merely the visible aspect of a largely unconscious form of thought. Resuming, the image that arises from the analyst’s capacity for reverie is only the visible aspect of a widely unconscious way of thinking; in other words, it refers to the ana lyst’s capacity to make the invisible experience visible, to make apprehensible the dream thinking of the vigil, a diuturnal function of the mind. The reverie is the grasping of the unlistenable and imperceptible of experience, something grasped by the psychoanalytic intuition and transformed by the alpha function into a form, a sensorial image, a reverie. This is the theoretical argument that I am constructing in this text. The oneiric thoughts occur as much while awake as when dreaming during the night. Ferro (2003) expresses his understanding of Bion’s theory of dreams through the follow- ing analogy: during the day, we have a cameraman filming several scenes, captured through the continuous operation of alpha function. During the night we have a meta alpha function that is occupied with directing, organizing the scenes in an oneiric story- line, in a continuous work of metabolizing the emotional experiences. Ogden (2009), from his reading of Bion’s text, realizes that the vigil’s oneiric thoughts are like stars, always present, but only visible in the darkness of the night. According to Ferro (2003), we have two ways of grasping oneiric thought while awake: through the capacity for reverie and through a visual flash. For this author the pictogram is a visual fantasy that syncretizes what is being experienced in the session. The visual flash9 happens when the pictogram is projected to the exterior, outside of the mind, and thus it is “seen” almost in a hallucinatory manner. Figueiredo (2020) understands reverie as a state of receptivity of the analyst’s mind. The author follows Bion’s description of reverie as: “that state of mind which is open to the reception of any ‘objects’ from the loved object” (Bion 1962, 303). Figueiredo (2020, 1996) also makes an interesting connection by bringing together the Freudian concept of constructions in analysis (1937) and Bion’s concept of reverie in a text from 1996, that is, before the discussion about reverie became significant for modern psychoanalysis. The author writes: “What responds to the listening of the unhearable and to the vision of the invisible is the ‘phenomenalizing’ speech” (Figueiredo 1996, 85, translator’s translation). In addition, Figueiredo (2020) highlights Freud’s (1937, 268) analogy at the end of Constructions in Analysis: “But none the less I have not been able to resist the seduction of an analogy. The delusions of patients appear to me to be the equivalents of the construc- tions which we build up in the course of analytic treatment.” In other words, in one of his final texts, Freud wrote about the hallucinatory aspect of the constructions of the analyst. Civitarese (2016b, 298) has also made a comparison between reverie and the near-hal- lucinatory response of the patient to the construction of the analyst, described by Freud (1937) in the same text. In other words, Freud observed that something of the near-hal- lucinatory experience manifests itself in the session, be it in the construction of the analyst, or be it in the response of the patient to this construction. Along the same lines but through a different approach, Bion writes (1967a/2014, 200): The proper state for intuiting psychoanalytic realizations ... can be compared with the states supposed to provide conditions for hallucinations. The hallucinated individual is apparently having sensuous experiences without any background of sensuous reality. The analyst must be able to intuit psychic reality which has no known sensuous realization. ... I do not consider that the hallucinated patient is reporting a realization with a sensuous background; equally I do not consider an interpretation in psychoanalysis derives from facts accessible to sensuous apparatus. How then is one to explain the difference between an hallucination and an interpretation of an intuited psychoanalytic experience? Based on this question raised by Bion, I think that the sensation, in the analyst’s mind, produced by the emotive-sensorial pictogram (Ferro 1995) or the affective pictogram (Rocha Barros, 2000) generated from the state of reverie, is something that has aspects which are close to an experience of hallucination: the analyst “hallucinates” seeing the shoes of a dead man; there is no perceptible sensory support. The experience can only be understood a posteriori – the analyst needs to tolerate this state of disorganization and disorientation, having a kind of psychoanalytic faith that a sense will arise from the experience with hallucinatory aspects, in the session itself, or after several sessions. In other words, it is necessary to tolerate not knowing, involving the negative capability (Bion 1970) of the analyst, a virtuously expectant capability (Chuster 2019). A distinction should be made here regarding the reverie which occurred in the session that can be used to compose an interpretation or narrative construction, and that which is only an apprehension and understanding by the analyst of the patient’s unconscious psychic suffering, which will not be transformed in an interpretation. Reverie as a compass10 for the analytic process is exactly what happened in the session with Antônio; a “hallucinating” image of a dead man’s shoes condenses and reveals the most intimate and intense suffering of the patient. Reverie, in this case, served as a “north” for the analytic process that was beginning. When the reverie is used to compose an interpretation, the image can be revealed directly, although I would say that these situations are rarer, as the image produced by the reverie requires extensive elaboration work on the part of the analyst so that it becomes capable of being narrated for the patient in the form of an interpretation or analytical construction. Contemporarily,11 the term reverie has been used as much to refer to a state of mind of openness to the other, a state without thought, as considered by authors such as Ogden, Ferro and Rocha Barros among others, the product of this mental state, that phenomen- alizes itself based on this state, carrying emotional and/or affective pictograms, exemplified in this case by the shoes of a dead man. This understanding is also present in the unpublished notes by Bion (1968/2014); reverie would be a way of manufacturing a thought, still without a thinker. The thought/image of the shoes of a dead man could only be thought of at the end of the session and, also, after it had ended, at the moment of repairing the analyst’s mind, that is, the container function of the theoretical exercise mentioned at the beginning of this text. Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) understand that the concept of reverie is associated with the intersubjective understanding of the analytical process and the understand- ing of how unconscious processes are captured. I highlight that, according to these authors, reverie happens via projective identification; in other words, projective identification is the Kleinian intuition that there is a pathway that connects the unconscious of two minds and conveys proto-thoughts,12 caught initially as pictographic images (Bion 1992a), affective pictograms (Rocha Barros, 2000a) or emotive-sensorial pictograms (1995).13 Rocha Barros and Rocha Barros (2019a) bring conceptual specifications that signifcantly corroborate the understanding of reverie: they are the aspects of expressiveness and evocation: We ought to say something more about “expressivity” (109). This term is taken from R.G. Collingwood (1938) and Benedetto Croce (1925/2002), and it refers to an aspect of art that not only aims to describe or represent emotions, but also and principally to transmit them, producing them in the other, or in itself, based on an evocation of a mental representation coloured by emotion. This attribute of producing expressivity in the other seems essential to understanding not only art, but also the affective memory and the function of symbolic forms in psychic life and the process through which projective identifications operate. One of the functions of expressivity is that of activating the imagination. (translator’s translation)14 Based on these aesthetic aspects of expressivity and evocation, taking up again the clinical fragment, when I am captured by the image, all I see is death and I am paralysed. At that moment, the sensorial excess of the waking unconscious scene, the reverie, has an intense expressiveness and evocation (Rocha Barros, 2000b, 2011, 2015, 2019a, 2019b); at this moment a narrative is not possible. The sensation is of a “magnetic field”, something that evokes and calls, like a painting in an art gallery when we are abducted by an image, adrift in the experience, waiting for a moment a posteriori in order to understand what has happened, aware of the fact that this is not always possible. And when it becomes possible to narrate the experience, through a process of metabolization, the narrative is partial and we can only approximate the experience. For Rocha Barros and Rocha Barros (2019b), it is necessary to transform the analyst’s reverie into a symbolic form that can be communicated to the patient. Therefore, it is the beginning of a process of apprehension of a sensorial experience. After an auto-ana- lytic work of reflection on the part of the analyst, it is possible to transform the reverie into something that could be communicated; in other words, the analyst turns the experience of reverie into something that can be thought, and transforms it into a communication that may generate transformations in the analytic pair. This process demands from the analyst a great amount of ability and creativity in the construction of a communication arising from the experience of reverie, and, in addition, of a communication that favours the transformations in the analytic field (Ribeiro 2019). In the clinical situation presented above, reverie favoured the understanding of the patient’s psychic suffering and did not transform itself in an interpretation or construction by the analyst. Chuster (2019, 2020) presents another unique conceptual detailing as discussed in a previous paper (Ribeiro 2019); he understands reverie and the alpha function as vertices of a spectrum. The author shows that the concepts of reverie and alpha function make part of Bion’s contribution to the theory of dreams, as already stated above. Dreaming is a daytime function of the mind to process and metabolize emotional experiences, which has been termed waking dream thinking (a daydream). Reverie is predominantly sensorial, and the alpha function is predominantly symbolic; both are understood as vertices of an infinite spectrum of possibilities. Considering that when we understand a concept in a spectral manner, there is a point on the spectrum at which there is no distinction between one and the other, that is, a point at which we cannot distinguish reverie from alpha function, a point of undecidability. Chuster (2020) also privileges and highlights the term imagination “because it is lin- guistically closer to the term reverie (daydream) used by Bion, and for contemplating more adequately, in my opinion, the question of the caesura between two mental states”, the caesura (Bion 1976, 40) between waking dream thinking and the night dream state. In other words, reverie would be this penumbral state, this twilight of the mind, in which we are partially awake but still dreaming, a state of transition, as described Rocha Barros and Rocha Barros (2019a). Understanding reverie and alpha function as vertices of the same spectrum (Chuster 2018, 2019, 2020) seems to be a conceptual position that expands and specifies the discussion on clinical phenomena. What phenomenalizes in the clinical situation, which has the potential to become a narrative, construction or interpretation, runs the spectrum between predominantly sensorial experiences and predominantly symbolic experiences. We can think of a progression in the spectrum, beginning in the sensorial vertex, the pictographic image, and proceeding to the symbolic vertex, the narrative. The use of reverie in an analyst’s narrative or simply for one’s own understanding of the analytic process, like a compass, is the apex of a complex process of psychic work. In the clinical situation presented, it was possible to understand that the analytic process that was being initiated was a walk through dead lands, dead from the excess of psychic pain, devitalized, and one that required the analyst’s capacity for “dreaming”. However, what is this strange phenomenon of the analyst hallucinating the shoes of a dead man? Without any sensorial support? Below or beyond the sensorial, there is psy- choanalytic intuition. As Bion (1967b) writes, intuition is not sensorial but seems to find some indiscernible support that is not identifiable in the sensorial realm.15 Bion (1992a) writes about infra- and supra-sensual aspects, which means that the amalgamation of intuition and reverie opens up as a question to be addressed, even if briefly. Reverie: an evolution of psychoanalytic intuition? How can we think about the connection between intuition and reverie? Does the reverie state of the analyst’s mind have as its mainstay, beyond and below the sensorial, supra- or infra-sensual (Bion 1992a), the analyst’s capacity for intuition? In other words, psychoanalytic intuition seems to be a primordial factor of the psychoanalytic function of personality (Bion 1962), which does not phenomenalize itself, and which one cannot hear or perceive. This is the necessary ability of the analyst, to see and hear what is not visible to the eyes or audible to the ears, but is visible to the imagination – the analyst’s capacity for reverie sustained by psychoanalytic intuition. Starting from the etymology of the word intuition, according to Zimmerman (2012, 167): the “the word intuition is composed of the etymons ‘in’ (meaning from within) and the Latin verb “tuere” (“to look”, “to see”), and shows that the capacity of intuition consists in the fact that analysts manage to “look within themselves” with a sort of “third eye” that permits them to see beyond what our sense organs can capture”. (translator’s translation) What can be portrayed as psychoanalytic intuition occurs beyond and below any sen- soriality, or, in infra- or supra-sensual ways (Bion 1992a), as stated above. Anxieties have no smell, cannot be seen or touched – they are intuited by the analyst’s mind as described by Bion (1967b). A beam of intense darkness (Bion 1967b) is required in order to intuit in the here and now of the session, to make the invisible of the experience visible. And, from reverie and its imagery construction, the analyst still needs to be able to put the experience of reverie in a narrative, that is, to go towards the most symbolic pole of the function. It should be emphasized that the narrative is partial, uncertain and provisory, merely an approximation of the lived experience, for the experience or the fact itself are unknowable in their entirety. In this way, we have the possible narrative of each session, the emotions that may be contained, revealed, created by words: the shoes of a dead man, of someone alive who treads devitalized, dead psychic terrains, raw facts still not dreamt. Since what becomes a word is saturated and finite, and opens up again to the field of the unsaturated, of emotions that are not yet words, in an endless cycle, in the incessant search for the meaning and truth of experience, in the human search of the possibility of dreaming the enigmatic of the experience. Continuing with this reflection, the image produced by the state of reverie brings the inebriating sensation that we are almost hallucinating, for there is no identifiable sensory support. Reverie is an emotive-sensorial pictogram (Ferro 1995) or an affective pictogram (Rocha Barros 2000a, 2000b), first “hallucinated” by the analyst; however, our hallucination encounters a sense that rescues us from chaos, that is paradoxically both maddening and seminal. Keeping in mind that Freud (1937) made an analogy between the analyst’s constructions and the patient’s delusion, would this be a Freudian intuition? Perhaps it would. And what could favour the analyst’s intuition? Precisely the complex technical proposition of Bion (1967b): the mind of the analyst ought to be in a state of openness to the unknown, a state that implies the opacity of memory, desire and prior understanding. Bion (1967b) understands that memory and desire are derived from sensoriality, and are intensified by it, and they do not seem to favour intuition and reverie, which is why Bion makes this technical suggestion that is still difficult to grasp nowadays. An analogy made by Bion (1970) helps us to understand this methodological proposal. Memory and desire are like a leakage of light that rushes into the process of developing pictures, burning the exposed film. Memory and desire, the past and the future, make it impossible to develop images that can be dreamt in the here and now of the session, in the penumbra of the mind, in the twilight of the state of reverie, a transitionality state (Rocha Barros and Rocha Barros 2019b), revealed in the lived present, the only time of experience. Reflecting on Bion’s (1967b) “Notes on Memory and Desire”, Ogden (2016, 79) writes that it is an article about intuitive thinking in the analytic situation: For me, reverie ... , waking dreaming, is paradigmatic of the clinical experience of intuiting the psychic reality of a moment of an analysis. In order to enter a state of reverie, which in the analytic setting is always in part an intersubjective phenomenon, the analyst must engage in an act of self-renunciation. I mean the act of allowing oneself to become less definitively oneself in order to create a psychological space in which analyst and patient may enter into a shared state of intuiting and being-at-one-with a disturbing psychic reality that the patient, on his own, is unable to bear. I understand reverie as a state of mind, a loving opening to the other, a hospitality, which produces or favours the emergence of a pictographic image. I think that the image that emerges from the reverie is an evolution of the analyst’s intuition – and this is the hypothesis supported in this text. Reverie as a thought/image that up to this point was not thought, and that is favoured by psychoanalytic intuition. Intuition as some- thing non-sensorial, but with infra- and supra-sensuous elements (Bion 1992b/2000), as already said, an essential capacity of the human mind. Taking up the clinical fragment presented, the pictorial image that arises in the session (the shoes of a dead man) has as its support the psychoanalytic intuition and the analyst’s capacity for reverie. In addition, the image also has other meanings: the image becomes the selected fact16 (Bion 1963) of the whole therapeutic process that will unfold itself, a memory for the future of the analysis that is beginning. An analytic process in which the analysand and the analyst will walk through dead lands, devitalized terrains, without contact with emotional truth, in which the pain has not been yet suffered (Bion 1970), the facts were not dreamed, they remain meaningless, without narrative, just a blind and raw pain. Bion (1963/1967b/1992a/2014) proposes the name “selected fact” based on the work of the mathematician Poincaré (Science and Method; 1914). A selected fact would be some- thing that would install a certain order in the complexity of the elements, and in this way, it makes understandable what initially was a disorganized experience. Bion (1967b/ 2014) makes an analogy between the selected fact and an image that is fixed in a kaleidoscope, giving a momentary sense to the disorganized and moving elements, an image that evolves from the session. Britton (1998) will address in the text “The Analyst’s Intuition: Selected Fact or Overvalued Idea?” a discussion that is close, in some aspects, to what I am discussing: the selected fact, in the clinical fragment exposed, a reverie, evolves from the analyst’s capacity for intuition, and initially the sensation is of something hallucinatory. The selected fact guides the analyst in the session and brings them closer to the patient’s psychic reality. However, Britton (1998) problematizes: how to distinguish it from an overvalued idea? It is precisely in the posteriority of the session that we will be able to know if it is an intuition or a hallucination of the analyst. An overvalued idea is a pre-selected fact, and not something that evolves from the experience with the patient in the session. The theories of the analyst may be used as pre-selected facts, over- valued and hallucinated, that may make the analyst impermeable to the disorganized emotions generated by the turbulence of the encounter of two personalities, that of the analysand and that of the analyst. Britton (1998) writes that the emergence of a selected fact involves three transformational sequences: from the paranoid-schizoid to the depressive position; from the non- contained to the contained element; and from pre-conception to conception. The over- valued idea would be a pre-selected fact, that is, the psychic impossibility of the analyst to wait for the emergence of the selected fact, which implies patience and tolerance for not knowing – the negative capability of the analyst’s mind. The pre-selected fact may be the analyst’s attachment to psychoanalytic theory due to the predominance of memory and desire. Britton (1998, 108) concludes: “the problem is that the analyst will be encouraged to believe that his overvalued ideas are the selected fact, as consensual agreement is valued more highly than the truth”. In the clinical fragment, the selected fact is the reverie of a dead man’s shoes. A picto- gram that momentarily organized the emotional turbulence of the encounter with Antônio. Given that the image of the dead man’s shoes favoured the understanding of the patient’s psychic suffering, it did not transform itself into interpretation or construction. Besides, it was not merely a selected fact of this first encounter, it was an iconic pictogram of the entire analytic process that unfolded from that moment onwards. For years, the analysis progressed through dead and devitalized areas that were gradually coming back to life, making it possible for Antônio to have a fulfilling experience with himself and with the people he was connected to. I consider it to be something uncommon that a clinical fragment with these characteristics offers itself in a generous manner for the understanding of these complex mental processes that occur in the emotional turbulence of analytic encounters. It was not possible to highlight any identifiable sensorial support17 – the initial sensation for the analyst was of an image with hallucinatory characteristics, as already stated, and precisely for this reason it remained as a clinical fragment to be theoretically metabolized. Psychoanalytic intuition and reverie: some notes Having the work of Bion as a reference, how can we think of an immediate and intuited knowledge, which has characteristics that can resemble a hallucination, since it presents itself as a vision that does not go through the processes that we are accustomed to vali- date as thought processes (deduction, association, comparison, analysis, observation etc.), but as something that appears as an image, that we see, or better said, that we create in an imaginary way, without identifiable sensory support? The hypothesis that I raise is that intuition happens between caesuras in constant oscil- lation: finite/infinite;18 self/other; formation/deformation; transformations in K/transform- ations in O.19 Considering that, we may also think of the intuition/hallucination caesura,20 a construction that is made succinctly in this text. A caesura is a synapse, a connection, it is the link, as Bion (1977) writes. The term originally refers to a pause in a poem, in the stanza, a space that gives rhythm, that makes a connection, that generates rupture and movement. Bion (1977/2014, 49) writes: Rephrasing Freud’s statement for my own convenience: There is much more continuity between autonomically appropriate quanta and the waves of conscious thought and feeling than the impressive caesura of transference and counter-transference would have us believe. So ... ? Investigate the caesura; not the analyst; not the analysand; not the unconscious; not the conscious; not sanity; not insanity. But the caesura, the link, the synapse, the (counter-transference, the transitive–intransitive mood). We can think of the caesura between different mental states, for example, the twilight when we wake up, at which time we have a dream scene in mind and for a moment there is no differentiation between the scene and the waking world, we have the impression that it was lived, and suddenly we wake up and realize that the scene was experienced in a dream, and quickly evaporates in the light of day. In the caesura between dream and wakefulness, there is connection, there is both continuity and rupture between two mental states. From the understanding that the mind works in a continuous oscillation between mental states, I propose the intuition/hallucination caesura. Intuition is a kind of phenomenon, an enigmatic affectation, which takes place in the caesura; it happens in the oscillation between the undifferentiated area of the mind, still formless, and the differentiated area, evolving into a reverie, and for this reason we can have the impression of a hallucination, as it is an imaginative creation (Chuster 2019, 2020), and therefore a form, which finds meaning only a posteriori. It takes time to know on which side of the caesura we are, hallucination or intuition, as in the clinical fragment of the dead man’s shoes, which initially is lived as a hallucination, and later is realized as a reverie from the analyst’s mind. Intuition can be favoured by the analyst’s discipline of observation in the analytic field. The analytic observation is practised beginning with Bion’s (1965, 1967b) methodological proposal: suspending memory, desire and prior understanding. The experience is per- ceived, first of all, as a raw (beta), enigmatic element (Figueiredo, Ribeiro, and Tamburrino 2011). I think that Bion’s proposal in the 1967 article “Notes on Memory and Desire” may be understood as a caesura in the analytical methodology, that is, as representing as much a continuity of the Freudian proposal of free-floating attention as a rupture, for it summons the intuitive capacity of the analyst, not only their associative and analytic thought, but also their imaginative thought,21 the creative imagination (Chuster 2019), the capacity to be affected by enigmatic experience and to construct a thought: the reverie. Memory (past), desire (future) and prior understanding are opacities that obstruct the analyst’s capacity for intuition and psychoanalytically trained observation. Bion (1992a) writes that intuition operates between opacities and transparencies, that is, in the caesura between opacities and transparencies. Bion (1970)22 makes an analogy that helps us understand this psychic process already referred to in this text: the photographic negative before the digital era. I make a subtly diverse appropriation of this analogy: the negative is a transparent dark film that receives any impressions or, we could say, any enigmatic affectations. The analyst’s mind would require this negative quality, a quality of reception, of hospitality, of containment for any affectation. In the process of development the image, or rather realization,23 achieved through elements that need a period of time in order to produce an effect and a dark room so that the negative affectation can become realized as an image, that is, a beam of intense darkness that needs time and space. There is a unique and complex composition of elements so that the realization of the image may occur. Memory, desire and prior understanding may be the precipitous light that burns the film before the image is developed. The image is created from the affectation in the negative pole of the analyst’s mind, their negative capability, and by the psychoanalytic observation, under the aegis of the alpha transforming function that turns the enigmatic of the experience into a sensorial psychic element that can be thought, the reverie. Psychoanalytically trained observation is the analyst’s discipline in order not to burn the film with their own personal24 equation25 (Bion 1992a). Analysts’ training are their per- sonal analysis and their analytic ethic. From Bion onwards, concepts are understood in a spectral manner; as already said, in this way intuition would have both a pole in the capacity of psychoanalytic observation, and an unconscious pole, in which the alpha function does its work: the transformation of raw emotional experience, the enigmatic of the experience, into a dream-like element, the image produced by reverie, an imaginative thought. In other words, there is a constant transit, absurdly fast, fleeting and always unstable, between the caesura of the finite (con- sciousness, form, area of differentiation of the mind) and the infinite (unconscious, formless, area of undifferentiation of the mind). In the constant oscillation of the various caesuras, intuition emerges like lightning in a blue sky, the enigmatic affectation, inevitably turbulent. Intuition operates in constant transit between the caesura where the analyst’s capacity for reverie/alpha function sustains itself, a capacity to imagine and create psychic elements. In this manner, the psychoanalytic intuition is favoured by the analyst’s trained capacity for observation, the negative capability. In other words, psychoanalytic intuition happens between caesuras, a continuous passage between mental states: non-sensorial/sensorial; finite/infinite; transformations in K/transformations in O; known/unknown; self/other. Apart from considering a continuous oscillation, based on a spectral understanding of the concepts, there is always a point of undecidability, that is, a point in which it is not possible to know which of the two poles of the spectrum we are at. And, perhaps, the point may also be an area, a territory of con- ceptual and phenomenological undifferentiation. To put it in another way, imprecision and undecidability are part of the nuances of the caesuras that constitute the psyche, with their opacities and transparencies. Due to this, we need to put a certain imprecision on to the psychoanalytic concepts; that is, the concepts of intuition, alpha function and reverie are intertwined, a clear differentiation between these concepts being epistemologically unfeasible. If we think from the vertex of Bion’s (1965) theory of transformations, the intuition would be in “O”, at-one-ment with the patient, and the image produced by reverie would be a transformation into “K”, an imaginative thought in search of a thinker. The narrative that can be constructed from the reverie is the analyst’s construction. Returning to Bion, the origin of each and every transformation is unknowable, it is O shared equally, even if in a diverse way, by both analyst and patient in the session: “I therefore postulate that O in any analytic situation is available for transformation by analyst and analysand equally” (Bion 1965/2014, 169). The turbulence generated by the encounter with Antônio – as Bion (1979) writes, the encounter between two personalities is always a “bad job” – quickly evolves through a pictorial representation, a reverie in the analyst’s mind: the image of a dead man’s shoes, which also becomes the session’s selected fact, as explained above. The pictorial image is already a product of a process of transformation, from which we do not have access to the origin. The analyst in a state of negative capability is dragged by the emotional experience, momentarily without sense. The negative capability is the state of mind without memory, desire and prior understanding, a state of receptivity to O, and, also, favouring psychoanalytic intuition. It is necessary to have patience (a paranoid-schizoid state of mind) and faith – the act of faith (Bion 1970) that some sense will emerge in the posteriority of the situation – something that generates a state of security (a depressive state of mind), which provides an evolution in K, an understanding of the patient’s psychic suffering by way of a pictographic image, the reverie. Reverie can be understood as an imaginative capacity of the mind or a thought (Bion 1968/2014), a creative imagination (Chuster 2019) or an imaginative thought; are these all successful nominations and transformations based on the initial postulations by Bion (1959, 1962). From this perspective, we can think of the intuition/hallucination caesura, in that there is a point of undecidability, a moment in which we do not know whether the image that overwhelms us in the session, the reverie – the shoes of a dead man – is a hallucination or whether it is an intuition. By way of conclusion The facts, the experience in itself, what is unknowable, can be partially transformed into dreams, writes Bion in the epigraph of this text. The experience needs to be dreamt by the alpha function, this transforming and meaning-making function. The facts need to be dreamt, “unconscientized” – the other way of interpreting dreams. The dreams are a way of interpreting facts, the transformation of the brutality of life into dream-like elements, which find meaning through images, and afterwards in narratives, the interpretations and constructions of the analyst in the session. Intuition is not sensorial, but it holds some undiscernible support in the sensorial world, hardly identifiable. To use an analogy, we may understand the infra-sensuous and ultra-sen- suous elements referred to by Bion (1992b/2000) as the sounds that are not captured by the human ear, and also we can think of those people who have a “musical ear”, who hear musical notes in a way that few can hear. This is a good metaphor for the analyst: one who captures, through intuition, psychic elements that are inaudible and imperceptible to some, but to those with analytic intuitive ears and a trained capacity of observation it is possible to capture inaudible notes or the imperceptible silence between them. And if we are not hallucinating, we are intuiting psychic elements in a raw state. In conclusion, I believe that psychoanalytic intuition is an enigmatic affectation that occurs fleetingly in the continuous and oscillating transit between different caesuras, and that evolves into an image, a reverie, through creative imagination. The expression creative imagination (Chuster 2019) is successful: an image in action, in movement, a psychic element, a reverie, a thought (Bion 1968/2014) in search of a thinker in the analyst–analysand duo. Succinctly, I understand reverie as an imaginative thought that evolves in the session and occurs in constant oscillation between caesuras starting from the analyst’s capacity for intuition. I end this text with an epigraph from Ogden’s (1997/2013, 157) text Reverie and Interpretation, quoting novelist Henry James (1884), as I believe this to be a successful con- ceptual definition, seized by the mind’s capacity for poiesis, that is, reverie itself: Experience is never limited, and it is never complete; it is an immense sensibility, a kind of huge spider-web of the finest silken threads suspended in the chamber of consciousness, and catching every air-borne particle in its tissue. It is the very atmosphere of the mind; and when the mind is imaginative ... it takes to itself the faintest hints of life ... Notes: CONTACT Marina Ferreira da Rosa Ribeiro marinaribeiro@usp.br University of São Paulo, Psychology Institute, Prof. Mello de Moraes 1721 Bloco F, São Paulo, 05508030 Brazil 1. “Pre-conception, as I have placed it in row D of the Grid, is a term representing a stage in the development of thinking; preconception, in the sense of the analyst’s theoretical preconceptions refers to the use of a theory and so belongs to columns 3 and 4 of the Grid” (Bion 1963/2014, 64). © 2022 Institute of Psychoanalysis 2. This fragment was presented in two scientific meetings online (2020, 2021) available on Youtube: https://www.youtu- be.com/watch?v=jWHTWg-Gu9E and https://www.youtube.com/watch?v=Z01HZE_p8jo. 3. am circumscribing the discussion of the concept of reverie in this article as a pictorial representation, an image. Civi- tarese (2016a) refers to body reveries; however, due to the complexity of this debate, which would justify a separate text, I remain in the field of understanding reverie as a pictogram or ideogram, that is, as postulated by Bion. 4. use the expression pictorial image because it is an image that is “painted” in the mind of the analyst; its origin in Latin is pictōr, painter. In the book Cogitations, Bion (2000) uses the terms ideogram, pictorial representation and pictographic images practically as synonyms. 5. “The act of faith ... Thus he designates an act that is carried out in the realm of science and ought to be distinguished from its usual meaning with religious connotations ... It refers to the necessity of the subject to believe that there is a reality that is not known to them and is out of their reach” (Zimmerman 2004, 78, translator’s translation). 6 .Verbal communication (2020). 7. Bush (2019) published the book The Analyst’s Reveries: Exploration in Bion’s Enigmatic Concept, dedicated to the concept and its diverse understandings in three of the principal post-Bionian authors: Thomas Ogden, Antonino Ferro, and Rocha Barros and Rocha Barros. 8. In the original: “9. Thoughts. Freud on thinking (‘Two Principles’) ‘Thoughts are a nuisance’. Thoughts logically and epistemologically, prior to thinking. 10. Importance of Reverie. Importance for analyst because he thus manufactures ‘Thoughts’” (Bion 1968/2014, 76/77). 9. The visual flash is an expression of Meltzer (1984/2009), and refers to an image that is “seen” externally; in other words, it has a more intense hallucinatory component. What differentiates it from a hallucination is the sense of the image that emerges a posteriori. 10 .Ogden’s (2013) expression.11According to the book From Reverie to Interpretation. Transforming Thought into the Action of Psychoanalysis (Blue and Harrang 2016). 12 .Proto-thought is Bion’s (1948–1951) expression when referring to something that is not yet a thought, but has the potential to be one, an ideogram. 13 .Bearing in mind that discussing the distinction between these terms would require a separate work. 14. Original emphasis. 15 .In the book Cogitations (1992a) Bion uses the terms infra-sensorial and ultra-sensorial – we may make an analogy with ultraviolet rays that are imperceptible to the eye but nevertheless produce effects. 16. “Selected fact: this important concept – inspired by the mathematician Poincaré – refers to a search for a fact that gives coherence, significance and names to facts already known in isolation, but whose interrelations were not yet perceived” (Zimmerman 2004, 86, translator’s translation). 17. The actual shoes of the patient did not have any peculiarity that could have been a sensorial support for the image of the shoes of a dead man. In addition, there was no information about the patient prior to the meeting, which makes this clinical fragment interesting for the approximation of the concepts of intuition and reverie. 18 .Bion proposes the terms finite for conscious and infinite for unconscious. 19 .Later in the text I join intuition with Bion’s (1965) theory of transformations. 20. A suggestion made by Evelise Marra at a scientific encounter (2021). 21 .Imaginative thought is a term that emerged during the writing of this article. 22. Picked up on by Chuster (1996). 23. Realization in the sense of making the invisible visible – I am using the term in a lay manner. Realization is one of Bion’s concepts that has different understandings over the course of his work. 24 .Keeping in mind that, for Bion, countertransference is always unconscious. 25. Traits or characteristics. Translations of summary Intuition psychanalytique et reverie: saisir des faits non encore rêvés. L’auteure de cet article entreprend de faire dialoguer certains concepts de Bion avec ceux émanant de l’œuvre de psychanalystes bio- niens (Ogden, Ferro, Rocha Barros et Chuster), en privilégiant notamment les concepts d’intuition psychanalytique, de reverie et de fonction alpha. Comment pouvons nous penser la relation entre reverie et intuition ? L’état de reverie de l’analyste pourrait-il voir son centre être occupé – avant et au-delà du sensoriel, dans l’infra et l’ultra sensoriel – par la capacité d’intuition de l’analyste ? L’auteure décrit l’expérience troublante d’une analyste dans son cabinet, qui observe comment opèrent les concepts dans le matériel clinique. Le matériel clinique étaye l’hypothèse selon laquelle la reverie est un avatar de l’intuition psychanalytique et que l’intuition se produit entre les césures, comme le soutient Bion avec sa proposition : sans mémoire, sans désir, sans compréhension a priori, autrement dit la capacité négative. Die psychoanalytische Intuition und die Träumerei: Erfassen von noch nicht geträumten Tatsachen. Dieser Artikel stellt einen Dialog zwischen einigen Konzepten Bion‘s und denen post-Bionianischer Psycho- analytiker (Ogden, Ferro, Rocha Barros und Chuster) her, insbesondere über die psychoanalytische Intuition, Träumerei und die Alpha-Funktion. Wie können wir über den Zusammenhang zwischen Träumerei und Intuition nachdenken? Könnte die Intuitionsfähigkeit des Analytikers im Zentrum des träumerischen Zustands des Analytikers - vor und jenseits des Sinnlichen, im Infra- und Ultra- Sinnlichen - stehen? In dieser Arbeit wird eine beunruhigende Erfahrung einer Analytikerin in ihrem Behandlungsraum geschildert, um zu sehen, wie sich die Konzepte im klinischen Material zeigen. Das klinische Material stützt die Hypothese, dass die Träumerei eine Entwicklung der psy- choanalytischen Intuition ist und dass Intuition zwischen Zäsuren auftritt, was unterstützt wird von Bion‘s Vorschlag, keiner Erinnerung, keines Wunsches, keines vorherigen Verstehens, d.h. eine negative Fähigkeit. L’intuizione psicoanalitica e la reverie. Registrare fatti non ancora sognati. Il presente lavoro si propone di far dialogare alcuni concetti sviluppati da Bion con quelli utilizzati dagli psicoanalisti post-bio- niani (Ogden, Ferro, Rocha Barros e Chuster), concentrandosi in particolare sull’intuizione psicoanalitica, sulla reverie e sulla funzione alfa. Come si può pensare il rapporto tra reverie e intuizione? Ha senso immaginare che lo stato di reverie dell’analista abbia al suo centro - prima e al di là della dimensione sensoriale, e dunque nell’infra e nell’ultrasensoriale - la capacità di intuizione dell’ana- lista? L’articolo presenta la disturbante esperienza occorsa a un’analista al lavoro, osservando come i concetti qui in esame siano operanti nel contesto del materiale clinico. Il materiale clinico funge da appoggio all’ipotesi che la reverie costituisca un’evoluzione dell’intuizione psicoanalitica, e che l’intuizione abbia luogo tra cesure - un’idea, questa, supportata dall’invito bioniano a porsi in un assetto psichico senza memoria e desiderio e senza una comprensione precostituita dei fatti: vale a dire, in un assetto di capacità negativa. La intuición psicoanalítica y la reverie: la captación de hechos aun no soñados. Este artículo promueve el diálogo entre algunos conceptos de Bion y aquellos de los psicoanalistas posbionianos (Ogden, Ferro, Rocha Barros y Chuster), con especial atención a la intuición psicoanalítica, a la reverie y a la función alpha. ¿Cómo podemos pensar la conexión entre reverie e intuición? ¿Es posible que el estado de reverie del analista tenga como centro –antes y más allá de lo sensorial, en lo infra y ultra sensorial– la capacidad de intuición del analista? Se presenta una experiencia perturbadora de una analista en su consultorio, en la que se examina cómo funcionan los conceptos en el material clínico. Este material confirma la hipótesis de que la reverie es una evolución de la intuición psicoanalítica y que la intuición ocurre entre cesuras, lo cual se apoya en la propuesta de Bion de sin memoria, ni deseo, ni comprensión previa, es decir, la capacidad negativa. ORCID Marina Ferreira da Rosa Ribeiro http://orcid.org/0000-0002-2278-063X References Bion, R. 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  • XXY: o gênero nas malhas da pluralidade

    Ivy Semiguem F. de Souza-Carvalho Marina Ferreira Rosa Ribeiro Um corpo corre pela floresta. De relance, vemos braços vigorosamente se mexendo e os pés descalços se movimentando rapidamente pelas folhas no chão. A floresta cerrada nos transporta ao cheiro da terra molhada, das folhas apodrecendo, a sensação fria da neblina. A natureza entra em cena com uma densidade quase palpável. É dela que o corpo corre? Ou é nela que ele se assenta? Nova cena, o corpo agora pode ser reconhecido como pessoa e suas mãos carregam um facão. Algo de violência grita, remete à agressividade, corte, rompimento. Trata-se de uma luta ou de uma fuga? Outra cena, alguém segue atrás. É uma perseguição? Não, espera!... alguém corre junto. Não é um percurso solitário, a pessoa tem companhia em seu frenético movimento. Sim, nenhum trajeto se faz sozinho. Sentimos a corrida, o movimento, o caos. Aos poucos percebemos que a marcha desordenada, alvoroçada e urgente é de um corpo adolescente, púbere, um corpo em fluxo. Tal corrida caótica das primeiras cenas do filme é emblemática deste momento de reveses da sexualidade, período de “confluência de dois rios com águas muito heterogêneas, sem nenhuma certeza de que chegarão a uma mistura harmoniosa. De um lado a pulsão e a fantasia infantil; de outro, o instinto pubertário” (LAPLANCHE, 2015a, p.42). É neste caldo plural entre instinto e pulsão, fantasmas e cultura, que gênero, sexo e sexualidade se entrelaçam, reabrindo enigmas e exigindo novos trabalhos de traduções. A proposta deste capítulo é discutir o complexo caminho da constituição da identidade de gênero, pensando-o em sua relação com o sexo, com a cultura e, principalmente, com o inconsciente. Para tanto, recorremos ao precioso filme XXY (Argentina, 2007), trama que nos convida a entrar na pele de Alex, a pessoa retratada acima, e reviver a estranha familiar pluralidade que pulsa em cada um de nós, em nossa constante ressignificação da sexualidade e identidade. Esta análise será fundamentada de modo determinante nos pressupostos da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, mais especificamente na tese apresentada no texto O gênero, o sexo e o Sexual (2015b), em que o autor retrabalha o conceito de gênero integrando-o à teoria psicanalítica, sem perder de vista o inconsciente e a noção de conflito. Afinado com a discussão sobre gênero desde a década de 70, Laplanche escreve que os gêneros antecedem a diferença de sexos. O gênero é plural, defende o autor, e a pretexto da protagonista, Alex1, propomos refazer essa sinuosa jornada que compreende o processo de gênero e sexuação. O drama, roteirizado e dirigido por Lucía Puenzo, é uma adaptação poética do conto Cinismo, de Sérgio Bizzio. Foi lançado na Argentina em 2007 e em 2008, nos cinemas brasileiros, recebendo inúmeros elogios da crítica. Venceu o Grand Prix da semana de críticas no Festival de Cannes e o prêmio Goy a de melhor filme estrangeiro de língua espanhola, além de ser indicado pela Associação Cronistas Cinematográficos da Argentina a oito prêmios Cóndor de Plata . Tal reação não surpreende, pois, além do elenco de peso formado por grandes nomes do cinema latino-americano (como Ricardo Darín, Inés Efron e César Troncoso), Puenzo coloca em cena uma narrativa dedicada ao polêmico tema da intersexualidade. Sem dúvida, o longa, com sua sensibilidade ímpar, oferece inúmeros fios que podem ser desdobrados nas mais diversas interpretações. A grandeza do filme, inclusive, está no modo sutil como a diretora aborda o sofrimento que todos passam. É cuidadosa em sua abordagem, na medida em que conduz a trama de uma forma empática (sem vilões ou mocinhos) e sem necessariamente nos dar uma resposta, deixando um convite à tradução em aberto. Ou, para aproveitar as palavras de Belo (2011): “criar uma obra é também renovar nossas experiências originárias: emitir uma mensagem para o outro, propor um enigma a ser decifrado” (p.72-73). Assim, qualquer leitura de uma obra é uma possível tradução que funda- mentalmente jogará luz em certos elementos ao mesmo tempo em que se reduzem outros. Neste sentido, o nosso recorte se justifica ao passo que o nosso objetivo, então, não é necessariamente fazer uma análise da história do filme, mas usá-lo a pretexto da teoria, propondo reflexões sobre a singularidade plural de cada um e problematizando a necessidade de encaixar seres humanos em definições inflexíveis. Assim, no que se segue, desdobramos a nossa discussão em três eixos de análises. No primeiro discutimos o filme pela perspectiva das mensagens enigmáticas emitida pelos pais e a pluralidade de gênero que elas comportam. No segundo, a tradução é colocada em destaque e exploramos como o sexo (código binário) e as narrativas que advêm do mito simbólico cultural operam como auxiliares de tradução. Por último, convidamos Butler e Bleichmar para dialogar, pensando a dimensão ética do reconhecimento, questionando a violência e a importância de ser reconhecido como uma vida que importa. Mensagem enigmática e pluralidade de gênero XXY carrega uma atmosfera de mistério. O filme não entrega os fatos de imediato. As imagens passam de relance, insinuando-se, e os diálogos mais aludem do que explicam, funcionando como verdadeiras mensagens enigmáticas a serem decifradas. O trabalho de tradução fica a cargo do espectador, que é impactado pela experiência e mobilizado a pensar. Vê- se um livro sobre a origem dos sexos em uma cena, tartarugas marinhas em outras, assim como uma boneca nua com o sexo marcado com papel no quarto da protagonista. Muitos silêncios. Tudo isso envolto em um tom de segredo e neblina. “Ainda não consegui falar com Kraken” confidencia a mãe da protagonista. “Como não?!”, surpreende-se a personagem recém-chegada. “Mas vou achar uma hora hoje”, promete em um tom aflito. E em seguida o pedido de sigilo: “O Ramiro não falou com ninguém, falou?”, “Não, não se preocupe, ele é muito discreto”. Captura-se a densidade da angústia, a sensação de uma espera, de pudor e expectativa! É nesta trilha dos afetos que vamos, aos poucos, construindo o mosaico do enredo do filme e sintetizando, ao nosso modo, o conflito que subjaz a sua trama. Na história temos Alex (Inés Efron), uma adolescente de 15 anos que rapidamente fisga o telespectador com sua aparência andrógina, com seus olhos extremamente expressivos e com sua personalidade paradoxal. É tão brava e ácida quanto esperta e sagaz. Alex é direta, sem meias palavras. Neste ambiente de nevoeiro no qual sussurros, expectativas subliminares e falta de clareza compõem um cenário de incertezas, as palavras da protagonista cortam o ar e funcionam como uma rajada de vento que clarificam as intenções numa concretude impactante: “Você se masturbou hoje!”, “Você transaria comigo?”, “Gosta de minha casa? (...) Não minta para mim!”, “Você gosta dos seus pais? (...) Não é porque eles são seus pais que você tem que gostar deles”. As suas palavras honestas remetem a uma pessoa corajosa que se coloca ativamente na busca de respostas aos seus enigmas em seu processo de traduzir-se . A história efetivamente começa com a visita dos portenhos, Ramiro (Guillermo Angelelli), de sua esposa, Erika (Carolina Pelleritti), acompanhados de seu filho adolescente Álvaro (Martín Piroyansky) ao lar de Alex, uma casa rústica situada numa pequena cidadezinha litoral uruguaia2. Como esperado, as intenções de tal encontro não são claras. É entre sus- surros que vamos entendendo aos poucos que Ramiro é um cirurgião interessado em corrigir casos de deformidades, sendo que parece especialmente entusiasmado pelo caso de Alex. A responsável por mobilizar tal encontro foi a mãe da protagonista, Sueli (Valeria Bertuccelli). A família é de antigos amigos dela, levando-nos a supor que existe uma expectativa de sua parte em discutir a possibilidade de uma operação para Alex. Na trama Sueli aparenta estar confusa, angustiada e com certa premência em resolver a situação. No entanto, o cenário é extremamente delicado, pois, ao que tudo in- dica, esta não é a posição de Kraken (Ricardo Darín), o pai de Alex. Este, por sua vez, parece veementemente resistir ao discurso médico vigente e normatizador3. À medida que o real propósito da visita vai ficando claro para todos, Kraken não hesita em provocar um desconforto geral ao se posicionar na mesa do jantar: “Não suporto gente arrogante. Saímos de Buenos Aires para nos vermos longe desse tipo de gente, se lembra? Agora parece que estamos sentados com ela na mesma mesa”. Coincidentemente (ou não), ele é um biólogo que trabalha com a preservação de tartarugas marinhas, espécies que, por conta do ambiente hostil, correm sérios perigos de extinção. Assim, se até então o casal estava de acordo sobre a mudança para o Uruguai – um “espaço de refúgio e de asilo ante situações de perseguição e de agressão” (JOHANSSON, 2018, p.104) – para poupar a filha dos preconceitos de terceiros, resistindo especialmente à prescrição médica de “correção” cirúrgica precoce; agora parecem divergir quanto ao o que deve ser feito. Enquanto Kraken ainda deseja esperar a filha crescer e fazer a sua própria escolha, Sueli, por sua vez, apresenta certa urgência em ver uma definição. Talvez por ter descoberto que a filha deixou de tomar remédios da terapia hormonal, que mantêm os efeitos biológicos de feminização, o que implicaria estar “perdendo” a sua menininha. Fica evidente que esses adultos que permeiam Alex também estão confusos e tentando não só ajudá-la a se constituir da melhor forma, mas também precisam dar conta daquilo que a ambiguidade da filha suscita neles, na medida em que reabre os seus próprios enigmas de gêneros. Ao observar este tipo de relação, Laplanche (2015b) afirma que a presença do bebê necessariamente convoca a sexualidade infantil presente nos adultos. Trata-se de uma relação assimétrica, do ponto de vista do Sexual, em que, de um lado, temos um bebê passivo e, do outro, um adulto ativo, clivado, isto é, dotado de um inconsciente sexual. Quer dizer, quando os adultos cuidam do bebê, eles não podem abrir mão de seu inconsciente. Por isso, no seu contato com a criança, diversas mensagens são transmitidas sem que nem eles próprios saibam. A princípio, o diálogo entre adulto e criança se fundamenta no plano do apego. A criança, com sua montagem comportamental inata, busca no corpo do adulto o calor, o alimento e a sobrevivência. O adulto, por sua vez, ao mesmo tempo em que despende os cuidados ternos e autoconservativos ao infante, inevitavelmente inocula a sua sexualidade na criança, propiciando os elementos para sua constituição psíquica. Por exemplo, ao amamentar uma mãe pode viver essa cena de inúmeras formas – pode se sentir gratificada, invadida, preocupada etc. – e as excitações produzidas por essas fantasias são transmitidas ao infante, restando a ele traduzi-las. Assim, o corpo da criança faz um apelo ao infantil dos pais, que, por sua vez, erotizam a criança. Não há amor desprovido de sexualidade. É neste inescapável contexto da sedução originária e do estabelecimento da tópica psíquica que se situam os conteúdos de gênero. De início, pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior4. Isso porque desde quando nascemos, junto com as mensagens de apoio – aquelas que recebemos dos cuidados corporais de limpar, alimentar, amamentar... –, recebemos também atribuições contínuas de mensagens de gênero por meio do socius, isto é, aquela pequena sociedade que permeia o bebê. Mãe, pai, avós, tios, babás, professoras da escolinha, todos eles realizam um conjunto de atos que se prolonga na linguagem e nos comportamentos, compondo uma verdadeira prescrição de gênero. “É uma menina! É um menino!”. Frente a tal constatação se coloca em marcha uma série de prescrições que envolvem desde o nome, o vestuário, as brincadeiras infantis e até a forma de levar a criança no colo. São mensagens contínuas que começam no dia em que nascemos e que aparecem até o último dia de nossas vidas. Desta forma, antes mesmo de a criança ser capaz de se identificar com os adultos em sua volta – por exemplo, “sou um menino como o papai” –, são os adultos que fazem uma “identificação por” ela – “você é um menino como o papai”. Com isso, Laplanche (2015b) reposiciona o pro- cesso de identificação presente na atribuição de gênero, transformando-o completamente ao inverter o seu vetor. Ao invés de pensarmos em “identificação com”, deveríamos pensar em “ser identificado por”, isto é, ser identificado pelo socius da pré-história individual. No entanto, este “bombardeio de mensagens de gênero” direcionado ao infante também não está imune do inconsciente dos pais. Quer dizer, as mensagens de atribuição de gênero não transmitem apenas os desejos e as expectativas conscientes dos cuidadores, mas carregam também o polimórfico perverso, os fantasmas, o resíduo plural composto pelos conteúdos conflitivos de gênero de cada um. Tudo aquilo que os adultos precisaram elaborar e recalcar para dar conta do próprio enigma dos gêneros é revisitado e passível de transmissão. A confusão que os próprios adultos apresentam em relação ao gênero é exemplificada pelas palavras de Dejours (2009): Quando os adultos atribuem um gênero a uma criança, eles mesmos não sa- bem exatamente o que entendem por macho ou fêmea, masculino ou feminino, homem ou mulher. É fácil significar a uma criança que ele é um homem. Mas, o que quer dizer ser um homem para o adulto que pronuncia esta atribuição? Quando um adulto diz a seu filho que ele é um menino, ele diz ao mesmo tempo tudo aquilo que pensa acerca dos meninos e das meninas, mas também todas as dúvidas que têm sobre o que esconde exatamente a noção de identidade de sexo e de gênero. Seguramente podemos afirmar que, por meio desta atribuição de gênero, o adulto, sabendo-o ou não, confronta a criança com tudo o que pode haver de ambíguo na diferença anatômica de sexos e no sexual, e isso por causa de suas próprias ambivalências, incertezas e conflitos internos (DEJOURS, 2009, p. 7). Justificar o que significa “ser um homem” ou “ser uma mulher” não é uma tarefa simples ou neutra, ela é mobilizadora de fantasias. Laplanche elucida essa confusão com o seguinte exemplo: um pai pode dizer conscientemente ao rebento que ele é um menino. Mas pode, inconscientemente, ter desejado uma menina e, mais, ter desejado penetrar uma menina. E estes ruídos não advêm de pais perversos, mas de pais “suficientemente bons”, que diante do corpo do bebê que cuidam, também são assaltados por aquilo que é estrangeiro a si: a sua sexualidade polimórfica perversa, o seu plural. No filme, Alex é tudo. Sua carne corporifica o plural. E, sem diminuir o peso do viés da intersexualidade – que é uma problemática importante5, Alex poderia ser pensada também como uma metáfora deste processo complexo de elaboração da identidade de gênero. Eixo que, em certo sentido, parece ser sustentado pela própria Puenzo ao dizer: “Havia o risco de as pessoas acharem que o filme é sobre uma anomalia. Não é. Essa é uma história de amor adolescente, algo que acontece a todo mundo” (apud ARANTES, 2007). Assim, para a cineasta, seu longa quer situar o tema da “liberdade de escolha no mundo de hoje” e a discussão sobre “a identidade” na fase da adolescência. Para nós, é o plural que grita e salta aos olhos do espectador. Apesar da atribuição consciente advinda dos pais “menino ou menina”, desde o início da vida já recebemos muito mais que dois: é com a multiplicidade do inconsciente que sobrevém, em forma de enigma, do resíduo tradutivo deles, que temos que nos a ver. Neste sentido é curioso que, por mais racional, lógico ou moral que seja o discurso de designação de um gênero dos adultos, no centro da transmissão de gênero encontramos o infantil inconsciente: o corpo da criança passiva que convoca a criança do adulto que, por sua vez, faz ruído nas mensagens de designação de gênero. Agora, se toda criança traz à tona o inconsciente do adulto, sendo que isso inevitavelmente já acontece diante de uma criança biologicamente “normal”, no filme vemos que a situação coloca um desafio maior para os pais (e para a própria Alex). Diante de um corpo ambíguo e pouco definido em termos biológicos, o que vem então à tona? Novamente, o plural! E em sua versão mais anárquica, pois a falta de clareza sobre a anatomia desorganiza as possibilidades de recalcamento. O sexo – como veremos adiante – funciona como um código que ajuda na tradução e recalcamento de tal pluralidade. Ele, juntamente com os auxiliares de tradução culturais, o mito simbólico, ajudam a dar contornos para o conteúdo plural e polimórfico de gênero, recalcando-o. A identidade do gênero é um processo que coincide com os processos de estabelecimento do Eu, fazendo parte do próprio originário. A pluralidade do gênero, portanto, constitui o próprio Sexual, é o próprio enigmático e remete à abertura caótica que nós fazemos de tudo para evitar. No filme, Alex mobiliza pontos do inconsciente dos pais. O que exatamente vai vir na mensagem a partir do que foi mobilizado é uma incógnita, mas podemos antever que há no mínimo duas reações, duas formas de lidar com o enigmático, sendo que o modo do pai não coincide com o da mãe. A princípio ambos concordam, pois, apesar de estarem confusos, foram contra a corrente do discurso social e médico e não lançaram mão de uma cirurgia de antemão. A proposta foi esperar o tempo de elaboração da própria Alex. Uma espera que evidentemente nunca será completamente neutra, uma vez que os adultos, querendo ou não, inconscientemente fazem uma identificação por ela, isto é, projetam inconscientemente elementos de sua sexualidade6, suas expectativas e confusão. Tanto que no filme, apesar de não operarem Alex quando pequena, estes pais não deixam de oferecer, de certa forma, alguns contornos e traduções. Assim, apesar de optarem por nome neutro, que suportaria uma mudança posterior se viesse ser necessário, a reconhecem como filha, pelo pronome feminino. Escolhem temporariamente por ela, até ela ser capaz de escolher por si só. Mas quando Alex, agora já adolescente, deixa de tomar os comprimi- dos, ocorre uma reabertura da situação originária para todos. A solução da mãe frente à angústia do plural é dar um contorno rápido e definitivo: a cirurgia. Pronto. Ufa! Estabelece uma definição, Alex é uma mulher. Solução esta que estaria em conformidade com o desejo da mãe, como foi revelado em um diálogo entre Érica e Alex “Quando éramos pequenas, sua mãe dizia que ela queria ter quatro filhas. Nós a chamávamos de Susanita”. E Alex, sagaz e aguçada com a expectativa implícita nesta mensagem, nem hesita em ironicamente se posicionar: “Parece que a Susanita ficou assustada ao longo do caminho”. O pai, por sua vez, também viu em Alex, uma menina. Dado que se insinua quando Alex lê, em alto e bom tom, a frase do livro “A origem dos sexos”, cujo pai é autor: “Em todos os invertebrados, incluindo os seres humanos, o sexo feminino é primário no sentido evolutivo e embriológico...”. Frase que, sem dúvida, compõe as mensagens enigmáticas com que ela tem que se haver. Entretanto, apesar de seu desejo frente à pluralidade enigmática que retorna na adolescência de Alex, este pai parece tolerar mais o ambíguo, o fluido, sem necessariamente se desorganizar a ponto de antepor uma definição a ela. Suporta manter a dimensão da alteridade interior, a relação com enigma, a relação com o desconhecimento, colocando-se suficientemente em suspenso para o bem da filha. Neste sentido parece que consegue ser “o guardião do enigma”7, na medida em que sua atitude remete à bienveillante neutralité do analista, isto é, “querer o bem do paciente, mas sem pretender jamais conhecê-lo, sem jamais manipular o paciente, mesmo que para seu suposto bem” (LAPLANCHE, 1993, p.80). Ao recusar saber o que é melhor para ela e manipulá-la, o pai oferece condições que permitem recolocar em movimento o processo de tradução e de simbolização. A tradução: do plural ao binário E em meio deste caos de mensagens temos a própria Alex, tentando dar conta de organizar e traduzir a sua identidade de gênero e o seu desejo sexual. É interessante como nessa dimensão intersubjetiva não existem vítimas ou algozes e nem uma solução correta, certeira e pronta, pois tudo se transforma em mensagens enigmáticas, em um a decifrar . Fazer ou não fazer uma operação é uma mensagem a ser elaborada, esconder sua condição do mundo é outra mensagem, assim como aguardar o tempo de se decidir também se transforma em mais uma mensagem. Alex captura tudo isso e precisa fazer uma simbolização própria, estabelecer ligações e atribuir sentidos. “Eu tenho pena dos meus pais” diz ela a Álvaro em um momento de confidência e cumplicidade, “eles estão sempre esperando algo”. É no encontro com Álvaro que se desenrola uma história de descoberta, sexo, amor, que abre possibilidades de novas significações. A princípio Alex se mostra arredia frente à chegada dos estrangeiros, es- conde-se sob a casa, observa-os à distância. A primeira pessoa de quem se aproxima é Álvaro. Um encontro só a dois, na praia, ao entardecer. Neste, acontece um diálogo inusitado, no qual Alex nem se apresenta e inicia a conversa com a temática da masturbação e termina convidando-o a transar com ela. O encontro entre Alex e Álvaro é um encontro de confusão. O enigma que remete a Alex está posto, é externo, explosivo, está revestido na própria carne. Desde à primeira vista o seu corpo plural evoca certa confusão. Álvaro, por sua vez, é o adolescente tímido, com seus inseparáveis fones de ouvido, que segue desenhando quieto, fechado em si. Aparentemente ele não causa confusão, ao contrário, poderia passar despercebido em um ambiente mais ruidoso. O encontro entre os dois parece a junção entre o mar e areia. O mar que remete ao caos, o fluido, a fúria, em contraposição à suposta uniformidade da areia, que, à primeira vista, supõe algo estável no horizonte. Mas que, de outro modo, é também fluida, amórfica, como se o caos estivesse socado em si. São o implosivo e o explosivo. Duas confusões diferentes, mas que não deixam de ser confusão, a da areia e a do mar. O que é genial é que tal encontro não é disruptivo. Apesar do tom de surpresa, Álvaro não a percebe como intrusiva ou repulsiva. Se até então ele havia se limitado a olhá-la com desconfiança, passa a ver sua sinceridade e valentia com certa admiração. Alex parece nos colocar à prova o sexo, desejo e genitalidade. Quer vivenciar e se redescobrir, ou talvez, se descobrir pela primeira vez. Isso porque, segundo Laplanche, para organizar os enigmas plurais de gêneros, a criança recorrerá a alguns recursos de tradução. Um dos recursos será o próprio sexo anatômico, que diz respeito àquele momento, ainda na infância, quando acontece a “descoberta dos sexos”. Antes disso, afirma o autor, a criança reconhece que o mundo se organiza em homens e mulheres, mas apenas no momento da fase fálica, em que “descobre” que os genitais são diferentes, que um dado se articula ao outro, sendo ressignificado. Por isso que Laplanche deixa claro que a identidade de gênero é primeira, ao passo que precede a descoberta do sexo e é, inclusive, organizada por ele. No entanto, a anatomia, da qual se trabalha o gênero, é perceptiva e ilusória, e não biológica. A simbolização das mensagens enigmáticas ocorre no seio de uma rede fantasmática, podendo ser traduzidas em termos de teorias sexuais infantis, como a da castração e as fantasias associadas a ela. Fica evidente que, na teoria de Laplanche, a castração não constitui uma categoria metafísica, não é filogenética ou universal, mas é um código tradutivo, um importante processo secundário. Ela seria a teoria que a criança consegue forjar para responder uma das três questões fundamentais e que todo indivíduo tenta compreender: a sua própria origem, a origem da sexualidade e a origem da diferença sexual: “A teoria da castração quer dar conta desse enigma e está simbolizando um sistema codificado. O código se baseia, por sua vez, na anatomia e funciona como um mito binário, mais ou menos” (LAPLANCHE, 2001, p. 205). Trata-se do primado fálico, que coloca em jogo um código regido pela presença ou ausência no qual se inscreve a diferença entre os sexos. Este código transforma diversidade (pluralidade) em diferença (fálico - não fálico). Logo, se a anatomia é o que impulsiona as fantasias infantis e estas funcionam como código para traduzir, como se estabelece este código em Alex? Afinal, ela teria um código tão enigmático quanto a própria mensagem. Seu corpo não faz parte da lógica binária. Ele carrega o masculino e o feminino juntos, o que nos permite inferir que, ao invés do corpo funcionar como código de tradução, ele poderia vir a potencializar a mensagem. Neste sentido, se a mensagem já é enigmática, pode ser “enigmatizada” ainda mais, sob o risco de seus conteúdos estarem fadados a permanece- rem congelados, sem tradução. Desta forma, sem o auxílio deste importante código tradutivo, resta à nossa protagonista buscar outros possíveis organizadores. E é aí que o complexo de Édipo entra em cena. Acontece que, primeiramente, a castração funciona como um código independente de presença e ausência, e, posteriormente, torna-se parte de enredamento com o complexo de Édipo, ressignificada como castigo ao crime. O complexo de Édipo é, segundo Laplanche, “um ‘esquema narrativo’ que remete a uma teoria da narratividade, submetendo esta a roteiros mais ou menos ricos, populares, flexíveis” (LAPLANCHE, 2015c, p.286). Pertencente ao universo mito simbólico, este processo não estaria ao lado do recalcado, mas do recalcamento, uma vez que sua trama e seus personagens (pai, mãe, filho, homem, mulher) já se relacionam com tudo aquilo que sua pequena sociedade coloca como parâmetro. É no entremeio do enredo edípico que se triangulam as relações, posto que ocorrem as identificações (quem eu quero ser?) e a escolha de objeto (quem eu quero ter?). Aos poucos, a identificação por aquela identificação que no primeiro tempo o bebê recebeu passivamente, conforme foi identificado como menino ou menina pelos pais, transforma-se em identificação a , fruto da atividade tradutiva da própria criança. E as fantasias edípicas auxiliam organizar, em forma e conteúdo, a profusão plural, estabelecendo a sexuação. Estas “novas descobertas” – a identidade sexual e escolha de objeto – são rearticuladas à identidade de gênero (sou menina ou menino), que vinha sendo elaborada no primeiro tempo, atribuindo novos sentidos a ela. Sobre isso, Silvia Bleichmar (2009) afirma que o gênero é organizado a partir do lugar que o sujeito tem instituído no sistema simbólico. Dentro dessas categorias identitárias, a posição sexuada é um importante ele- mento que conjuga e articula o que será e o que não será recalcado. Afinal, toda afirmação identitária – sou mulher, sou brasileiro, sou generoso – opera em forma de um centramento do Eu que, necessariamente, deixa do lado de fora o que se quer excluir. No caso da sexuação, Bleichmar (2009) entende que o núcleo da identidade sexual, que tem relação com a “descoberta dos sexos”, exerce um peso. Ele recolherá certos atributos de gênero, que vão funcionar como contra investimento, em particular, dos desejos homossexuais que foram sepultados a partir do recalcamento dos elementos do “Édipo invertido”8. É certo que os desejos qualificados pelo Eu como “homossexuais” só terão o estatuto estabelecido a posteriori , após terem sido qualificados pelo pré-consciente. Como os desejos se constituem antes da descoberta das diferenças, a relação com os objetos não estará atravessada pelas preocupações que vai assumir a identidade sexuada, de modo que ela irá organizar tanto o Eu quanto a diferença anatômica. Por isso, Bleichmar (2009) exemplifica que, no contexto de pré-sexuação, o garotinho pode sustentar certos desejos pulsionais em direção ao pai sem entrar em contradição com o fato de se reconhecer como menino. No entanto, este mesmo garotinho já não consegue se vestir de mulher sem entrar em conflito com sua identidade de gênero. Não se trata simplesmente do polimorfismo infantil, mas de processos complexos que operam concomitantemente. Agora, ciente destes marcadores – ‘sexo, fantasias e cultura’ – responsáveis por recalcar a pluralidade em torno de uma binaridade dos gêneros, voltamo-nos ao percurso de nossa protagonista e, tentando compreender o desafio identitário que ela se vê às voltas, perguntamo-nos: a quem Alex se identifica (pai ou mãe?) e quem Alex deseja? Mistério que a trama mantém em suspenso até que um dos momentos mais surpreendentes do filme talvez nos dê uma pista: o encontro sexual de Álvaro e Alex. Após um desentendimento entre os dois, Álvaro procura Alex que está chorosa num galpão na parte externa da casa. Rapidamente a suposta tentativa de desculpas se transforma numa cena de sexo, guiada afobada- mente por Alex. O elemento surpresa é quando, no ato, ela vira Álvaro de costas e assume a posição penetrante. E Álvaro, por sua vez, não recua e demonstra sentir prazer na posição penetrada. É um momento de descoberta e experimentação para ambos. A cena é subitamente interrompida quando se dão conta que Kraken, sem querer, testemunha a cena. É algo disruptivo para todos, onde cada um a seu modo tenta dar conta da confusão que o episódio gerou. Alex, se afasta de todos, chora nua em frente ao espelho e se refugia na casa de uma amiga que sabe o seu “segredo”. Dormem juntas, banham- se juntas, mas nada de teor efetivamente sexual acontece. Ficamos em sus- penso, esperando o tempo de Alex para entender como a nova experiência sexual ecoou em sua tradução identitária. Álvaro, por sua vez, se apaixona perdidamente e passa a perseguir Alex, tentando compreender o que realmente ocorreu: “Alex! Me explique algo... Você não ...”, pergunta Álvaro, ainda recuperando o fôlego, após alcançá-la em sua fuga furiosa pela floresta. “Eu sou os dois”, responde Alex aflita. Ele, em tom surpreso: “Não pode ser!”. Ela esbraveja “você vai me dizer agora o que eu posso ser ou não posso ser?”. Confuso ele continua: “Mas você gosta de homens ou mulheres?”. E ela simplesmente diz: “Não sei”. É interessante que, mesmo sendo considerado fisicamente “normal”, Álvaro também tenta organizar, compreender e dar lugar ao seu próprio desejo. Como Alex, ele também está adolescendo, vivendo e arriscando suas primeiras experiências9. “Perdoe pelo o que fiz com você” diz Alex envergonhada ainda neste diálogo na floresta, “Você não me fez nada. Não me machucou. Eu gostei” responde Álvaro. “S rio? Eu também!”. No filme, mesmo vivenciando algo inusitado, ele não recua frente à experiência e, ao contrário, se apaixona pela pluralidade de Alex, a ponto de querer levar o romance adiante, enquanto ela se afasta irritada. Este emaranhado tradutivo que busca assentar a questão identitária “quem eu sou” (mulher ou homem) diante “de quem eu gosto” (mulher ou homem), torna-se especialmente mais complexo quando lembramos que o filme trata de jovens adolescentes, momento em que o instinto sexual urge. Para Laplanche instinto e pulsão coexistem no homem, mas não é uma coexistência tranquila. O instinto é aquilo que é hereditário e adaptativo, que apresenta uma tensão somática inicial, uma ação específica e o objeto de satisfação que leva a um relaxamento duradouro. Está associado às montagens de autoconservação. A pulsão, por outro lado, não é necessariamente adaptativa e o modelo fonte-meta-objeto mal se aplica a ela. Laplanche questiona: por acaso pode-se dizer que o ânus é a fonte da pulsão anal? Ou que a pulsão escopofílica teria fonte na “tensão ocular?”. Economicamente também há diferença entre os modelos, pois, enquanto o instinto busca o alívio, o retorno à homeostase, a pulsão busca a excitação, às vezes, às custas de um esgotamento total do sujeito. Isso por- que o objeto fonte da pulsão é intersubjetivo, é o resto não traduzido dos enigmas, os significantes dessignificados que pulsam incessantemente no inconsciente, sem conhecer o apaziguamento. “Ela [a pulsão sexual infantil] não conhece o apaziguamento pelo objeto adaptado complementar, falta-lhe sempre ligação, ela é ambivalente” (LAPLANCHE, 2015a, p.40). Na adolescência, quando o instinto sexual finalmente chega, correspondendo à maturação genital com sua busca inata pelo complementar – a pessoa do sexo oposto -, ele chega em ruptura com o funcionamento pulsional. Assim, todos os prazeres pré-genitais nos quais se inclui o genital infantil, são na puberdade confrontados com o genital pubertário. Trata-se de modelos heterogêneos que nunca chegam a uma mistura harmoniosa: “O que a psicanálise quer nos ensinar é que, no homem, o sexual de origem intersubjetiva, portanto o pulsional, o sexual adquirido vem, muito estranha- mente, antes do inato. A pulsão vem antes do instinto, a fantasia [fantasme] vem antes da função; e quando o instinto chega, o assento já está ocupado” (LAPLANCHE, 2015a, p.41, grifos do autor). No filme nossos jovens estão diante deste conflito, pulsão mais instinto, pulsão versus instinto. A retradução edípica aqui é a principal tentativa de ligação e apaziguamento, uma tentativa sempre insuficiente. Temos ainda a reação de Kraken diante do testemunho da cena de sexo. Certamente, deparar-se com sua filha num papel penetrante deixa- o confuso, na medida em que provoca os conteúdos enigmáticos deste pai. Desorganiza-o, não por conta de um moralismo, mas principalmente por- que vai de encontro com a construção mito simbólica dos gêneros que a cultura faz: homem-ativo-penetrante, mulher-passiva-penetrada. Kraken pressupõe que se a filha estava “por cima”, logo, isso quer dizer que ela “escolheu” a masculinidade. Curioso que, desde os Três ensaios sobre a sexualidade (1905), as noções freudianas de pulsão, identificação e sexualidade infantil já trabalhavam a disjunção das categorias de sexo, gênero e modalidades de prazer, rompendo com a ideia de dois conjuntos coerentes e fixos (CAFFÉ, 2009). Mas, Kraken, este pai preocupado, não sabe nada disso e, movido pelo seu legítimo desejo de fazer o melhor por sua filha, segue em busca de atribuir sentido para sua nova descoberta. Na mesma noite, ele dirige sozinho ao encontro de uma figura misteriosa. Descobrimos que se tratava de uma pessoa intersexo, a quem não foi dada a chance de escolher por si. Em sua tentativa de tradução, Kraken escuta atentamente o tortuoso caminho de jornada dos gêneros desta pessoa. Descobre que após ter sido submetido à cirurgia pelos pais, ainda na tenra idade, ele cresceu e não se identificou com a atribuição feminina que recebeu. Restou recomeçar na adolescência os procedimentos e as cirurgias para se transformar, agora, em homem. Sua identificação a não correspondeu sua identificação por . Nas entrelinhas desta conversa, Kraken parece querer compreender se, como pai, está sustentando o caminho certo. Será que foi um erro não ter submetido Alex a uma cirurgia? Como aguardar o tempo de ela escolher? Reconhecimento, violência e ética A relação que se estabelece entre Kraken e Alex é sem dúvida o eixo mais sensível e delicado do filme, que apresenta uma beleza ímpar. Enquanto o pai de Álvaro faz a linha dura, normatizadora e intolerante – um pai que por intuir uma possível escolha homossexual no filho, não hesita em dizer a ele que não o admira –, Kraken faz a vez de um pai compreensivo, como dito, o guardião do enigma. Ele tolera desorganizar-se, permite-se repensar seus ideais totalizantes sobre homem e mulher e se dispõe a (re)enfrentar o próprio caos da pluralidade originária, mirando o bem da filha. Neste sentido se mostra aberto para entender questões que até então ignorava, inclusive, repensando a organização do mundo entre feminino e masculino. Interessa a ele permitir o processo, em seu tempo, da própria Alex. O reencontro entre pai e filha, depois do susto da cena de sexo, carrega exatamente este tom de confiança e intimidade. O pai a espera na frente da casa de sua amiga. Em silêncio sentam-se um ao lado do outro. “Você está me olhando diferente?” pergunta ela. “Você já é crescida”, res- ponde ele em tom terno. O olhar cúmplice paira entre ambos e o reconhecimento transborda! Como pontua Péret (2009): “O silêncio, entrecortado apenas pelo barulho do vento (sempre presente) e do mar, é um elemento fundamental no filme. É ele que permite que a comunicação formal e o diálogo sejam substituídos pela cumplicidade silenciosa e implícita entre as personagens.” (p.859). Nada precisa ser dito, desculpado ou explicado. Ele simplesmente está ali com ela e por ela. Por fim, oferece uma carona para casa, mas Alex anuncia que quer caminhar... sozinha. E é respeitada! Nesta caminhada a nossa protagonista passa por um episódio indigesto de violência, algo próximo de um estupro. Alguns rapazes da comunidade em que vivem descobrem o seu “segredo” e a encurralam para ver se isso era verdade. Uma cena intrusiva segue, na qual Alex é violentamente segurada por quatro rapazes e tem sua calça abaixada sem seu consentimento. “Nossa é verdade! Ela tem os dois!”. “Que nojo”, diz um dos rapazes. E o outro: “Nojo nada que legal, será que funciona?” e passa a tocá-la contra a sua vontade. Neste momento, um amigo de Alex aparece e impede que o pior aconteça. Quando o segredo de Alex é descoberto pela comunidade, somos levados a pensar sobre o impacto de seu corpo pelo viés cultural. De acordo com Butler (1993), o sexo de um indivíduo tem fundamental importância e centralidade, visto que ele não seria apenas um atributo de adjetivação, mas uma marca necessária para a humanização. Em suas palavras: “Sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem, ou uma descrição está- tica do que alguém é: ele será uma das normas pelas quais o ‘algum’ torna-se simplesmente viável, que qualifica um corpo para a vida dentro do domínio da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 1993, p. 2). Acontece que o corpo de Alex não é um corpo binário, ele transita entre um eixo e o outro, sem se assentar em um dos polos, mas nossa organização social é. Na binaridade não há lugar de compreensão dos sujeitos que vivem desprezando as normas regulatórias da sociedade, porque o que escapa ao binário rapidamente torna-se ininteligível (LOURO, 2008). Quer dizer, para a sobrevivência, o corpo precisa contar com o que está fora dele, precisa encontrar condições e instituições sociais que o legitimem. A capacidade de sobrevivência de alguém não se sustenta por vias meramente intrapsíquicas, depende também do social e do fato de contar como um corpo que importa. É esta ideia, inclusive, que a própria autora coloca no cerne de sua teoria “se poderia dizer que todo meu trabalho gira ao redor desta questão: o que é o que conta como uma vida? E de que maneira certas normas de gênero restritivas decidem por nós? Que tipo de vida merece ser protegida e que tipo de vida não?” (BUTLER apud BIRULÉS, 2008). Quer dizer, em uma ponta desta lógica temos os corpos que se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade social e, na outra, os corpos que não importam e que são tomados como abjetos. Tais corpos não são inteligíveis, não têm uma existência legítima. Normatizar, materializar, importar... uma cadeia de associação que atribui significados a um pedaço de carne, concedendo (ou não) o direito de um corpo existir. Isso pode ser observado na sequência do filme. Frente ao ocorrido Kraken, furioso, fisicamente avança nos garotos responsáveis por abusar de sua filha. Quer assegurar a sua importância e o seu direito de existir. Nesta busca de justiça, dirige ele até a delegacia. Mas, ali em frente, prestes a entrar na instituição, se percebe de mãos atadas. O que significa entrar? No mínimo todos vão descobrir a condição de sua filha e o que vai acontecer a partir daí? Ela terá apoio legal? O sistema judiciário abarcaria e protegeria seu corpo abjeto? O mesmo acontece quando o pai sugere levá-la a um hospital. Para tanto, novamente está implicado a descoberta de um segredo e os limites do sistema médico. Frente essas dúvidas Kraken recua e volta para casa. O que resta fazer então? Érica angustiada, insiste para Sueli que apresse logo a cirurgia e opere a filha, assim poderá protegê-la e evitar que este tipo de coisa aconteça. Basicamente, encaixá-la rapidamente ao sistema binário e garantir a sua inteligibilidade dentro dos moldes culturais. Por outro lado, a cultura não é uma entidade fixa, ela também tem seus movimentos e segue, vagarosamente, em transformação. Vemos isso, por exemplo, quando pensamos que os parâmetros do que entendemos por perversão vêm sendo redefinidos. Bleichmar (2009) questiona quem ainda hoje poderia considerar de ordem perversa as práticas nas quais um casal, em seu relacionamento amoroso, reúne formas pré-genitais e genitais, ou modos de produção mútua de prazer sob formas não tradicionais? Assim, a autora propõe tirar a perversão de uma questão moral e transpô-la para uma questão ética. Ela diz: “Redefinamos então a perversão como um processo no qual o gozo está implicado a partir da dessubjetivação do outro. Não se trata de transgressão de uma zona, nem do modo de exercício da genitalidade, mas na impossibilidade de articular na cena sexual o encontro com o outro humano” (BLEICHMAR, 2009, p.102). Esta nova definição da autora é generosa posto que a construção da ética transcende a moral. A criança, por sua vez, só poderá incorporar a lei através do amor ético do outro. O sentido ético funciona como uma construção. Para a criança se permitir introjetar a lei, ela tem que viver com o outro essa dimensão ética. Precisa, primeiramente, ser colocada no lugar de sujeito e ser identificada como sujeito pelo outro. Isso transmite mensagens impregnadas de senso de valor: “Você merece os nossos cuidados”, “Sua existência é significativa”, “Você importa”. Receber um lugar valorizado no olhar dos pais, funciona como um “sopro de vida narcísico” que faz frente aos efeitos desagregadores provenientes dos excessos inoculados pelos adultos e coloca o movimento de fechamento do Eu para funcionar. E neste sentido se constrói um senso ético. Como se dissesse “Se o outro for ético comigo, aceito esse modelo de ética e este modelo identitário que ele está me passando”. Isso nos leva aos momentos finais do filme. Em casa, depois do abuso, Alex é abraçada e recebe apoio da mãe, dos amigos e do seu pai guardião. Um diálogo interessante acontece entre eles. Ela acorda e vê o pai sentado ao lado da cama olhando para ela: - O que está fazendo?- Cuidando de você.- Não vai poder cuidar de mim para sempre.Ele concorda com a cabeça e diz:- Até que possa escolher...-O quê?- O que vai querer.Alex se vira na cama pensativa. Olha para cima, suspira e diz: - E se não houver o que escolher?Se entreolham em silêncio. Talvez seja isso. Talvez Alex simplesmente quer ser. Sem remédios e sem cirurgia. É possível que, diante do reconhecimento e da ética exercida por seu meio familiar, Alex queira arriscar sustentar uma tradução de gênero mais flexível e plural, sem necessariamente recorrer a uma solução taxativa delimitadora. Percebemos o quanto as mensagens e o auxílio deste meio são importantes para ela elaborar alguma coisa por si. Tanto que decide prestar queixa, bancando o que isso significa: “que descubram”. Talvez se trate disso, de “descobrir” a pluralidade encoberta, desvelando- a e tentando sustentar outros contornos identitários. O próprio Laplanche (2015b) se interroga se o complexo de castração e a sua lógica fálico-castrado seria mesmo incontornável: “não existem modelos de simbolização, mais flexíveis, mais múltiplos, mais ambivalentes?”10 (2015b, p.171). As- sim, talvez o olhar tolerante dos pais, somada a experiência de aceitação que viveu com Álvaro, deu condições para Alex formular alguma tradução própria. Na despedida chorosa e doída que faz de Álvaro, esse surpreendente “amor de verão” que Alex jamais pensou se apaixonar, ela mostra a ele os seus genitais. Assim, àquilo que até então deveria manter-se obstruído, recalcado e sob segredo, pode ser enxergado e vir à luz. Referências ARANTES, S. "XXY" dá ênfase aos dilemas de amor e sexo. Folha de São Paulo. out. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2410200720.htm BELO, F. O inconsciente como produtor de impossibilidades. In: BELO, F. (Org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2011. BIRULÉS, F. Entrevista con Judith Butler: “El género es extramoral”. Metrópolis, Revista de información y pensamiento urbanos, jun.-set. 2008 BIZZO, S. Cinismo. In: GUSMÁN, L. (Org.) Os outros: antologia de narrativa argentina contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2010. BLEICHMAR, S. La identidade sexual: entre la sexualidade, o el sexo y el género. 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SBPH, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 17-28, jun. 2004. Filmografia XXY . Direção: Lucía Puenzo. Pyramide Productions, Argentina, França e Espanha. colorido, 1997, 87 minutos. Notas 1 A escolha de Puenzo em nomear a protagonista de Alex não se faz por acaso. Além deste nome remeter à ideia de ambiguidade, ele também faz uma referência explícita à obra de Foucault. “No prefácio do livro Herculine Barbin – O diário de uma hermafrodita , o filósofo francês questiona de forma categórica a criação dos gêneros sexuais como imposições socioculturais e, principalmente, políticas. Ao relatar o drama vivido por Herculine – (...) [cujo] os familiares e amigos a chamavam de Alexine –, Foucault revela a violência de sistemas discursivos (o sistema médico e o sistema jurídico) que reivindicam “a verdade” do sexo em detrimento da ética e do respeito à vontade dos indivíduos. Herculine Barbin, hermafrodita francesa, que viveu toda sua infância e adolescência como mulher, matou-se depois de ser obrigada legalmente a mudar de identidade” (PÉRET, 2009, p. 856-867). Por opção metodológica mantemos neste capítulo o pronome feminino ao se referir a Alex, seguindo a mesma orientação que aparece na composição geral do filme. 2 Johansson (2018) faz uma interessante análise da geografia ficcional do Uruguai, criada pela literatura e cinema argentinos e afirma que, em XXY, a configuração das paisagens das praias, desdobra a potência de corporalidades e formas de vida alternativas: “O olhar da câmera sobre a jovem não pretende interiorizar, mas seguir uma forma, a de um corpo em devir que é exposto como uma imagem de um trajeto desde o interior da casa para o exterior da orla costeira: mar, areia, florestas de praia delineiam um ambiente natural solidário à imagem do corpo da protagonista. A paisagem da praia se configura então como uma superfície material na qual se inscreve o corpo de Alex, uma poderosa imagem liminar detida no tempo da decisão sobre seu gênero” (JOHANSSON, 2018, p. 103). 3 Ainda hoje a meta principal das equipes de saúde que lidam com casos de intersexo é fazer a designação sexual, geralmente conduzida por meio de intervenção cirúrgica e/ou terapia hormonal antes dos 24 meses de idade. Santos e Araújo (2003) criticam que tanto a proposta que enfatiza intervenção precoce ou adiamento da cirurgia, parecem insistirem no “quando” intervir cirurgicamente, adotando, assim, “uma perspectiva de desenvolvimento apoiada exclusivamente na noção de idade cronológica e biológica, minimizando a importância de outras dimensões como aquelas vinculadas aos planos subjetivo, social e cultural” (SANTOS & ARAÚJO, 2003, p.19). 4 Segundo Jô Gondar (2019), Laplanche escreve que “antes da diferença de sexos, a psicanálise admite sem teorizar uma diferença de gêneros. Uma criança recebe a oposição social entre masculino e feminino sem questioná-la. O problema é que a psicanálise, diz Laplanche, também retoma essa oposição sem questioná-la. Essencializa essa oposição, situando-a como uma distinção à qual naturalmente se chega. Pensamos que construímos o gênero a partir do sexo, mas na verdade o gênero é anterior. Nesse ponto, Laplanche concorda com Judith Butler, e é surpreendente que tenha dito isso bem antes de qualquer movimento queer” (p. 2-3). 5 De acordo com Fausto-Sterling (2000) estima-se que 1,7 % da população mundial apresenta algumas das variações intersexo, que são caracterizadas como incompatibilidades entre órgãos e cromossomos sexuais, alterações hormonais e, em menor número, ambiguidades sexuais. Como comparação, essa é mais ou menos a porcentagem de pessoas ruivas na população geral. 6 O tema é polêmico, já há relato de pessoas que se propõem criar os filhos de um modo completamente neutro. Negam dizer o sexo da criança, atribuem um nome neutro, evitam tudo aquilo que numa cultura se diz “de menino” ou “de menina”. Tudo isso numa expectativa de criar a criança verdadeiramente livre, deixando-a escolher por si só. Entretanto, pela perspectiva psicanalítica laplancheana isso não se sustenta, pois a inoculação dos fantasmas dos adultos sob forma de enigma, inevitavelmente acontece. Podemos nos perguntar, inclusive, se tais atos não potencializam o enigma, sob o risco de ele se tornar paradoxal. Afinal, retira-se da criança importantes códigos tradutivos que vão auxiliá-las na elaboração da pluralidade originária. 7 No artigo Da transferência: sua provocação pelo analista (1993), Laplanche discorre sobre três dimensões, três funções do analista: o analista como responsável da constância; o analista como piloto do método e acompanhador do processo primário e o analista como guardião do enigma e provocador da transferência. 8 É importante ter em mente que o Édipo infantil é sempre, ao mesmo tempo direto e invertido. Isso porque as identificações são sempre substituições de amor, são, basicamente, interiorizações do objeto perdido. “A identificação com o objeto e não com o rival é indispensável para qualquer abordagem da homossexualidade” (p.41), relembra- nos Laplanche (2015a). E continua “O homossexual (..) identifica-se com o objeto de amor: mãe. E, do mesmo modo, o heterossexual deve ter amado intensamente e com um amor homossexual o pai para se identificar com ele” (LAPLANCHE, 2015a, p.41-42). Assim, as monções positivas e negativas estão sempre presentes em qualquer identificação. 9 No conto Cinismo , o percurso deste personagem foi mais bem explorado, revelando que ele já estava às voltas da descoberta de algum prazer anal via masturbação. 10 A sua defesa é que há uma oposição entre o simbólico pensado como mito único e as simbolizações plurais. Em suas palavras: “Com efeito, se a castração é uma lei culturalmente inculcada, continente em relação ao que constitui o mais profundo dos nossos desejos, nada impede que se indague se ela não estará vinculada a um certo tipo de sociedade ou a certos tipos de sociedade ou mesmo, mais além, a uma sociedade mais radicalmente falseada, uma sociedade androcêntrica, centrada, portanto, no primado da problemática masculina, do falo e de sua supressão” (LAPLANCHE, 1988, p.164).

  • Posfácio: O texto que ainda não foi escrito e aquilo que ainda não foi vivido

    ...temos às vezes a sensação de que um pensamento foi dito, não substituído por índices verbais, mas incorporado às palavras e por elas tornado possível, e há enfim um poder das palavras, pois que operando umas contra as outras são atraídas, visitadas a distância pelo pensamento, como as marés pela lua, ... (Merleau-Ponty, 1960/1980, p. 145) Se ao apresentar a capacidade negativa Bion (1977/2019) propõe pensarmos na sessão de amanhã, ou em um evento que ainda não ocorreu (Bion, 1965/2014), penso ser também necessária uma capacidade negativa diante do texto em via de se escrever. É preciso sustentar a sensação de que nada foi escrito antes, mesmo existindo livros que testemunham o contrário, e de que tudo aquilo que julgávamos saber, de repente, pudesse desaparecer. Então, novamente, nos tornamos crianças diante da imensidão do mar, encantados com toda aquela grandeza e assustados com a nossa pequenez. E, se o tempo, o sem pressa de que nos fala Bion (1977/2019), puder ser tolerado, surgirá, talvez, o prazer da sensação de que somos novos num mundo nunca antes visto. O que nos conduz é a curiosidade de tocar a água, a espuma, o ímpeto de mergulhar no movimento único de cada onda, a entrega e abertura a uma experiência acerca da qual ainda nada sabemos. Assim comecei a leitura deste livro - por Bion, imersa em capacidade negativa ou, como escrevem os autores, em uma capacidade virtuosamente expectante. E usufruindo da liberdade e do privilégio daqueles que chegam ao fim de um percurso traçado com maestria por outros, permito-me uma escrita mais livre, um ensaio psicanalítico inspirado nos ecos gerados na leitura e no diálogo com o texto, com as presenças de pensamentos nele contidas e reveladas. Seguindo a sugestão de Bion (1977/2019), de dizer “do nosso jeito” [1], sigo com a inspiração, já antes delineada, de uma criança pequena que vê o mar pela primeira vez: não há memória, não há desejo, não há necessidade de compreensão, apenas a abertura à experiência surpreendentemente nova. E como seria difícil para uma criança descrever o que viveu no dia seguinte... Provavelmente, ela teria ficado imersa em sensações ainda sem palavras. Será que um adulto teria capacidade de elaborar uma narrativa comunicável acerca dessa experiência tão sensorialmente marcante? Será essa a função psicanalítica da personalidade[2]? A capacidade humana de transformar as experiências emocionais, inicialmente em estado bruto (não sensório) em uma imagem sensória, e, posteriormente, ser capaz de transmutar essa imagem em palavras, na busca pela verdade e pelo sentido daquilo que é vivido. Habitamos um mundo linguageiro - mesmo considerando que as palavras são apenas uma aproximação e uma revelação parcial da experiência, é o que temos, e isso não é pouco. Bion (1977/2019) diz: “...falamos através de uma linguagem que está relacionada com experiências que são sensíveis, que você pode experimentar com seus sentidos. Mas o que estamos lidando aqui é uma outra questão.” Bion parece se referir ao fato de que o analista está diante do desafio de lidar com o não sensorial, a outra questão, como ele diz: a ansiedade não tem cheiro, não tem cor, não pode ser tocada, não tem forma, etc. O elemento não sensorial é captado pela intuição psicanalítica - o terceiro olho da mente, a maneira como um inconsciente capta outro inconsciente[3]. Além disso, lidamos com o sensorial, com aquilo que pôde ser transformado em um pictograma pela reverie/função alfa[4]. E, também, precisamos nos defrontar com a sofisticada, plástica e estética capacidade de transformar em palavras as imagens; e de gerar imagens a partir das interpretações ou construções[5], em uma circularidade que favorece a intimidade com a nossa própria mente e a de outros. Bion (1977/2019) nos fala de jogos infantis, de transformar em palavras uma imagem visual. Compreendo a imagem visual como uma construção imagética onírica, uma captação do pensamento onírico da vigília, por meio de um pictograma emotivo-sensorial (Ferro, 1996) ou afetivo (Rocha Barros e Rocha Barros, 2016) da experiência. Em outras palavras, trata-se de uma primeira forma de organização da experiência emocional, o pictograma, ou como Bion descreve: uma representação pictórica ou sensorial. Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo, em 1965 (publicado como texto em 1967), nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz: Nevertheless, as analysts we do know – and I think it is borne in on us more and more as experience builds up – that we really do deal with something; that the psychoanalytic experience, however sceptical we may be, is really an emotional experience and it really exists, even if we shall never know or be in a position to give even an approximately correct description of what takes place. For this reason, I think – and find it most useful to do so – of any clinical description as being by nature of a pictorial representation, or, shall we say, a sensuous representation (because I am thinking of what takes place in an analytic situation).I transform that situation into visual images and then a further transformation into verbal formulations, such as those with which we are familiar here. (Bion, 1965/2014, p.10) Não obstante, como analistas nós sabemos - e acho que isso fica cada vez mais claro, à medida que a experiência se amplia - que realmente nós lidamos com algo; que a experiência psicanalítica, por mais cépticos que possamos ser, é realmente uma experiência emocional e existe de verdade, mesmo que a gente nunca saiba ou esteja em uma posição de dar sequer uma descrição aproximadamente correta daquilo que acontece. Por esta razão, eu penso - e acho que é mais útil fazê-lo – em qualquer descrição clínica como sendo da natureza de uma representação pictórica, ou, digamos, uma representação sensorial (porque estou pensando naquilo que acontece em uma situação analítica). Eu transformo essa situação em imagens visuais e então uma outra transformação em formulações verbais, como aquelas com as quais estamos familiarizados aqui. (Tradução livre) Transformar em palavras é, pois, o jogo da plasticidade da língua, da narrativa, que contém e revela a experiência como um conhecimento (K). São jogos infantis, diz Bion (1977/2019), ousadamente, para uma plateia de analistas britânicos. Estaria ele sugerindo que o analista precisaria se abrir para a liberdade do infantil (do inconsciente) brincando com imagens que se transformam em palavras? E com palavras que se transformam em imagens? Além de transitarmos por esse já complexo campo sensorial, precisamos, ainda, captar o não sensorial pela intuição psicanalítica, o terceiro olho. Os autores deste livro compreendem que, quando Bion (1977/2019) fala de ‘direção’, refere-se a consciente e inconsciente. Seguindo esse pensamento, penso que se trata do ‘jogo’ da visão binocular, da oscilação entre as duas posições, esquizoparanóide e depressiva, as duas formas de apreensão do mundo descritas por Melanie Klein[6]. Situando as imagens em um gradiente, de modo a acompanhar o que este livro propõe, temos: o paciente que arranha os pulsos, o relógio que gera um edema, cicatrizes consideráveis nos pulsos e, por fim, o paciente que tenta o suicídio. Pequenas ondas em um mar calmo, seguidas de aumento gradativo da turbulência (ansiedade) gerando ondas cada vez maiores, até o tsunami da tentativa de suicídio. Tanto as imagens quanto as narrativas percorrem o espectro esquizoparanóide e depressivo, parte psicótica e parte não psicótica da personalidade, inconsciente e consciente. Gradientes de comunicação entre mentes: “O paciente conseguiu fazer uma comunicação violenta desse tipo porque é a única maneira de penetrar nas mentes das pessoas em torno dele” (Bion, 1977/2019). Uma mente em busca da mente de outra pessoa, alguém que possa conter e construir um sentido para o sofrimento, tornar a dor pensável, sofrer a dor (Bion, 1970), por meio da continência e da capacidade imaginativa. Retomando uma analogia feita por Chuster (1996, p.19): “Memória e desejo são como intrusão de luz num filme dentro de uma máquina fotográfica, destroem o valor do que pode ser retratado psicanaliticamente”. Precisamos de um quarto escuro, um facho de intensa escuridão para que as imagens se revelem gradativamente. Se precipitarmos o processo, por intolerância ao tempo necessário, a necessária paciência de se manter no escuro para que a imagem surja, o pensamento se perde. Memória e desejo compreendidos como fachos precipitados de luz que queimam o filme, impossibilitam que as imagens sejam reveladas na escuridão, a partir do estado regressivo da mente do analista e do analisando, como também da capacidade de reverie/função alfa. Chuster relata em vários textos que a proposta de Bion na publicação de 1967 - sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão - é uma ampliação da proposta freudiana da atenção flutuante. Tenho a mesma impressão, de que Bion colocou a atenção flutuante em uma microscopia, descrevendo minuciosamente a intensa disciplina necessária ao trabalho do analista. Receber o paciente sempre como se fosse a primeira vez requer um esforço no sentido de nos mantermos em um estado infantil (inconsciente) de descoberta e abertura ao mundo, como se nada conhecêssemos antes (memória e passado) e nem depois (desejo e futuro). É algo tão inédito como conhecer o mar com olhos de criança. A questão do tempo abre outra instigante discussão: qual é o tempo daquilo que é vivido na sessão? O tempo da sessão, o aqui e agora, é o tempo do vivido, o ‘presente radical[7]’, sem memória e sem desejo, no qual passado e futuro são intencionalidades (Merleau-Ponty, 1945/1971). Em outras palavras, memória e desejo geram compreensões lógicas, fazem parte de uma racionalidade. O tempo retalhado em passado, presente e futuro é o tempo dos processos conscientes. O ‘presente radical’, como estamos sugerindo, é o tempo dos processos inconscientes, contém as intencionalidades do passado e do futuro. A experiência da sessão de hoje é tudo o que temos, a criança diante da imensidão do mar, o tempo das transformações, o tempo do vivido. A potencialidade da intuição e sua evolução em um pictograma, uma representação sensorial e, posteriormente, em uma narrativa, acontecem no aqui e agora da sessão. O tempo dividido em passado, presente e futuro é nivelado. O tempo vivido é o tempo do ‘presente radical’ da sessão, lugar onde mora a expectação da intuição, da capacidade negativa e da possibilidade de tornar visível o invisível da experiência. Em outros termos, de tornar sensório o não sensório da intuição psicanalítica, de transformar em um pictograma a experiência, e transformar o pictograma em uma narrativa de êxito. No entanto, durante essa longa trajetória de transformações, que pode durar instantes, podemos ter interferência de memória e de desejo, obstrução que pode se dar, inclusive, por meio das próprias teorias psicanalíticas quando usadas de forma inadequada ou defensiva pelo analista. Antonino Ferro, acompanhando Bion na sua crítica ao uso indevido das teorias, escreve que estas podem se tornar como um avental de chumbo quando o analista tem receio das radiações emocionais presentes na sala de análise. Um analista angustiado ou cansado busca as teorias como bóias ‘salva psiquismos’, como proteção que o impossibilita de flutuar e ser arrastado pelas águas turbulentas das emoções que circulam no campo analítico. Se lermos tratados sobre o mar, sobre a sensação de estarmos imersos em águas calmas e mornas, ou frias e turbulentas, isso em quase nada servirá para nos aproximarmos da experiência desse encontro. Assim se dá com a mãe que gesta seu bebê: em quase nada lhe servem os manuais, os cursos, as instruções dos médicos e enfermeiros, ou até mesmo um primeiro filho - o encontro com o bebê que está sendo gestado será único. Por que com um paciente seria diferente? A teoria precisa estar incorporada na mente do analista, para que, na sessão, ele possa esquecê-la, e estar à deriva na experiência emocional com aquele paciente, naquele encontro único. Bion (1977/2019) nos adverte que o procedimento sugerido, sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão, é possível para o analista que já foi analisado; ou seja, a experiência de entrar em análise, assim como se entra no mar, não é passível de substituição por uma compreensão teórica do que é o mar, um entendimento racional do que é o inconsciente. Porém, quando usadas de forma adequada, as teorias psicanalíticas podem ser compreendidas como exercícios técnicos de um pianista - é preciso ter a técnica incorporada com maestria, e esquecida sem indulgência, condição para interpretar. Nesse sentido, qual seria a interpretação possível? Se a psicanálise é uma profissão impossível, como escreveu Freud (1925/1980), o que seria o possível de cada sessão? Ou como conseguimos transformar em palavras a imagem que emerge no encontro, o pictograma, e como podemos nos tornar capazes de narrar a experiência que evolui na dupla analista e analisando? Precisamos fazer uma interpretação que o paciente veja[8], escreve Bion. Construir uma narrativa que o paciente veja: a imagem se faz palavra, a palavra gera novas imagens; o contínuo formar e desformar da experiência. O paciente vê o que o analista interpreta, o analista vê o que o paciente ainda não pode sonhar, aquilo que ainda não se transformou em um pictograma, necessitando, pois, da capacidade transformadora da reverie/função alfa do analista. Bion (1977/2019) diz: “Se a interpretação for correta, então o paciente pode ‘ver’ ”. Chuster apresenta um detalhamento conceitual importante, parcialmente diverso de outros autores[9]: compreende a reverie e a função alfa como pólos de um espectro. Para o autor, os conceitos de reverie e função alfa fazem parte da contribuição de Bion para a teoria dos sonhos. O sonho é uma função diuturna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais, o que foi denominado como pensamento onírico da vigília (day-dream). Seguindo a descrição de Bion, Chuster compreende que a reverie diz respeito à díade mãe-bebê e a função alfa, à díade analista-analisando. A reverie é predominantemente sensorial, e a função alfa é predominantemente simbólica; ambas são compreendidas como pólos de um espectro de infinitas possibilidades. Chuster enfatiza a ideia de Bion sobre a função alfa ser uma expressão epistemologicamente mais adequada para a observação da complexidade da vida mental, pois permite ampliações e aplicações detalhadas em vários níveis da experiência humana. Retomando, o analista sonha a sessão por meio de sua função onírica alfa (Bion, 1992/2000), que é uma função transformadora da experiência em estado bruto: o elemento beta. Em espanhol, temos o expressivo termo ‘ensoñación’, um estado de ‘ensonhamento’, de transformar em sonho a experiência vivida. Bion sugere algo que revela o sentido inverso da proposta freudiana, sem abrir mão do que Freud postula (tornar consciente o inconsciente); propõe que precisamos tornar inconsciente o vivido. A reverie e a função onírica alfa são constitutivas da capacidade de ‘ensonhamento’ da experiência vivida em estado bruto. Antonino Ferro (2017) expressa de forma simples e poética o que seria uma análise: como nós, estando juntos, podemos metabolizar a brutalidade da realidade (p.153). Essa metabolização da brutalidade da experiência se dá pela função psicanalítica da personalidade e sua capacidade imaginativa, é o que constrói o sentido, na busca humana incessante pela verdade e pelo conhecimento de si (K) e do tornar-se (O). Esse processo acontece por meio da transformação constante da experiência emocional, que primeiramente se apresenta em estado bruto: o enigmático do elemento beta[10] que é transformado, pela função onírica alfa, em uma imagem onírica e, posteriormente, em uma narrativa. Bion (1992/2000) escreve que o elemento alfa pode ser processado em forma narrativa, necessitando ter essa qualidade para ser compartilhado; utiliza-se então das expressões “forma narrativa” e “qualidade narrativa” (p.158). Sobre a função da palavra na sala de análise, a narrativa do analista que pode ser ‘vista’ pelo paciente, acompanhando a epígrafe de Merleau-Ponty (1960/1980) que inspira este ensaio, Chuster (2018, p.76) escreve: .... Assim, na análise a palavra não é simplesmente uma abstração, mas um estado específico da linguagem derivado de transformações. A potência intrínseca da palavra, deriva, portanto, da capacidade de integração da reverie/função alfa, e daí pode ser veículo do pensamento que atesta o encontro das mentes. Trata-se, pois, de uma narrativa visitada e habitada pelo pensamento e pelo encontro entre as mentes. Nesse sentido, a linguagem é como um ser que contém vestígios da presença do pensamento; ou seja, linguagem é criação. Será essa a linguagem do homem de êxito[11] expressa por Bion? O analista não precisa ser um poeta ou escritor, mas precisa ter essa habilidade para a sessão de amanhã, precisa ter essa capacidade negativa como característica para aguardar que algo evolua, no presente ‘radical’ da sessão, e se torne um fato selecionado[12] a ser narrado. Bion (1977/2019) diz que a capacidade negativa seria uma característica da mente do analista, e não um estado de mente do analista. Uma característica de habitar e ser habitado por outras mentes? Uma abertura infantil (inconsciente) para a experiência: a sessão de amanhã, aquilo que ainda não foi vivido. Mia Couto (2012, p.101) escreve: “O segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades”; e construirmos uma narrativa inédita e transformadora, poiesis[13], a palavra visitada à distância pelo pensamento, como as marés pela lua (Merleau-Ponty, 1980), o infinito da linguagem como sustenta Chuster em vários textos. Por último, gostaria de destacar uma instigante aproximação feita pelos autores do livro da capacidade negativa com o termo ‘serendipidade’, que significa algo encontrado de forma agradavelmente inesperada. Nessa direção, da serendipidade, Freud dirige a Ferenczi (1993) um comentário em uma das várias cartas trocadas entre eles (1908-1914): não se deve fazer teorias - elas devem cair de improviso em sua casa, como hóspedes que não foram convidados, enquanto você está ocupado examinando detalhes. Penso ser esse um excelente estado de mente sugerido por Freud e expandido por Bion: andarmos um pouco distraídos, em estado de atenção flutuante e de capacidade negativa, uma capacidade virtuosamente expectante, de modo a encontrarmos o que não estávamos procurando. E essa descoberta nos torna outros, nos transforma. Se a criança que fomos um dia, diante da extraordinária experiência de ver o mar pela primeira vez, permanecer vitalizada em nós, com sua capacidade negativa viva[14], torna-se possível a experiência de que somos novos no mundo e podemos ver algo nunca antes visto: um paciente pela primeira vez, a nós mesmos pela primeira vez. Considerando esse breve ensaio psicanalítico realizado - o trem da partida é o mesmo da chegada, posso agora nomeá-lo: la mer, la mère et l'inconscient. [15] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BION, R. W. (1977/2019) Capacidade Negativa. In Capacidade Negativa. O caminho da luz. (trad. Anie Stümer) São Paulo, SP: Ed. Zagodoni. BION, R. W. (1970/2014). 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The function of evocation in the working-through of the countertransference; projective identification, reverie, and the expressive function of the mind. Reflections inspired by Bion`s work. The W.R. Bion tradition. Edited by Howard Levine and Giuseppe Civitarese. London: Karnak. NOTAS [1] “Procuraremos dizer do nosso “jeito” aquilo que Bion traz de seu pensamento, tecendo ideias que poderão se acrescentar às ideias do leitor que por sua vez, poderá criar seu próprio texto. ” Citação deste livro, sigo por esse caminho sugerido, buscando criar um ensaio psicanalítico. [2] Remeto o leitor interessado ao texto: Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico. A narrativa do analista e a do escritor. (Ribeiro, M.F.R., 2019). [3] “É muito digno de nota que o Ics de um indivíduo possa, contornando o Cs, reagir ao Ics de outro. Esse fato merece investigação mais aprofundada, em especial para saber se a atividade pré-consciente é aí excluída, mas como descrição é algo incontestável.” (Freud, 1915/ 2010, p.136). [4] Acompanho a forma específica como Chuster escreve e compreende a reverie/função alfa, como polos de um espectro que vai do mais sensorial (a reverie) para o mais simbólico (a função alfa). [5] “O trabalho do analista passou a ser visto como algo que não pode ser descrito simplesmente pela interpretação. Tornou-se necessário valorizar o potencial da experiência emocional e seus significados para o desenvolvimento do pensamento em si. Deste modo, o processo analítico passou a usar mais construções e descrições para lidar com a complexidade dos processos mentais. O processo de “sonhar” (função-alfa) o material da sessão tornou-se central no trabalho analítico” (Chuster e colaboradores, 2011, p.29). [6] Por que Klein? Cintra & Ribeiro, 2018. [7] Sugiro a expressão ‘presente radical’ inspirada no uso que Chuster faz do conceito de imaginação radical de Castoriadis em vários textos. Uma imaginação originária, um tempo originário. É claro que isso exige uma discussão mais extensa que foge ao escopo deste ensaio. [8] Destaco que na gravação das apresentações de 1965 e na de 1977, na Sociedade Britânica, Bion usa o verbo ver, o que é interessante, pois a experiência da reverie é comumente relatada como algo que é visto pela capacidade imaginativa da mente. [9] Tais como Antonino Ferro, Thomas Ogden e o casal Rocha Barros. [10] O enigmático do elemento beta é uma expressão presente no livro Bion em nove lições. Lendo transformações. (Figueiredo, Ribeiro, Tamburrino, 2011). [11] Mia Couto (2012a, p.52) descreve o que poderíamos entender como uma linguagem de êxito: “Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei. Como perfurme em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.” [12] “O fato selecionado realiza uma determinada combinação ou agregação de conjuntos de alta intensidade sensorial, embora, ele por si mesmo, não seja apenas sensorial. ” Citação deste livro. [13] “A pergunta parece sugerir que nós psicanalistas devemos buscar dizer algo para os pacientes que tem um valor poético, no sentido da força das palavras poéticas, que possuem durabilidade no tempo, e não se saturam com explicações e racionalismos. ” Citação deste livro. [14] Compreendo dessa forma o prelúdio para a sessão (Bion, 1977/2019). [15] O mar, a mãe e o inconsciente (a pronúncia das palavras mar e mãe em francês é praticamente idêntica). Meltzer (1995) escreve que todas as mães são belas, o encontro com a mãe/mar é a experiência estética que nos constitui na nossa humanidade, seres capazes de imaginar. Em outro texto, escrevi que o nosso primeiro encontro é com o inconsciente materno (Ribeiro, M.F.R., 2011). Chuster escreve em vários textos que a primeira triangulação é o bebê, o seio e a mente da mãe, e que o bebê busca a mente da mãe. Penso que estamos sempre buscando outras mentes para realizar novas formas de ser, por meio de uma capacidade negativa lúdica e infantil (inconsciente), os jogos infantis de que nos fala Bion (1977/2019) em vários momentos da sua apresentação de 1977. A escrita deste ensaio psicanalítico é o testemunho do prazer de encontrar aquilo que não estávamos procurando, mas nos transforma, serendipidade.

  • A Poética do Luto: Reflexão a partir do conceito de objeto transformacional

    Amanda Christina Victoria de Andrade Melani (IPUSP); Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (IPUSP); Janderson Farias Silvestre dos Santos (IPUSP) Resumo: Partindo do conceito de objeto transformacional formulado por Christopher Bollas, discutimos o potencial transformador dos encontros estéticos. Apresentamos algumas reflexões sobre uma experiência clínica vivida com uma paciente atravessando um luto, e destacamos a marcante habilidade dela em se utilizar de músicas, imagens e metáforas para dizer de sua experiência emocional. A partir desta experiência clínica temos por objetivo, neste artigo, refletir a respeito da potência transformacional dos objetos estéticos no contexto analítico, que parecem ter um papel importante no processo de elaboração do luto desta paciente. Por fim, fazemos alguns apontamentos sobre a importância do encontro analítico, na relação de transferência-contratransferência, para o potencial de transformação dos encontros estéticos vividos nas sessões de análise. Palavras-chave: luto; clínica psicanalítica; arte. Link para acesso ao texto: https://www.researchgate.net/publication/348947843_A_poetica_do_luto_reflexao_a_partir_do_conceito_de_objeto_transformacional/fulltext/6018bf49299bf1b33e405814/A-poetica-do-luto-reflexao-a-partir-do-conceito-de-objeto-transformacional.pdf

  • Notas sobre o objeto psicanalítico na obra de Wilfred Bion

    Anne Lise Di Moisè S. Scappaticci,1; Marina F. R. Ribeiro, 2. Resumo: Este artigo trata da evolução do conceito de objeto psicanalítico no decorrer da obra de Wilfred R. Bion, trazendo questionamentos clínicos e ilustrações com trechos de sua autobiografia e uma vinheta clínica. Palavras-chave: metapsicologia, autobiografia, experiência emocional, psicanálise 1.Analista didata e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Doutora em saúde mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (epm-Unifesp). Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Roma La Sapienza. Pós-doutoranda pelo programa de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Editora da revista Ide. 2.Psicanalista. Professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), orientadora no programa de psicologia clínica e coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic). De que se ocupa o psicanalista? Qual é o objeto psicanalítico? É científico? Físico? Matemático? Estético? Poiético? Hoje em dia (e no passado), várias correntes dentro da psicanálise focalizam o objeto psicanalítico percorrendo um espectro que vai desde a psicopatologia, o caso clínico e a transferência – em que prepondera única e exclusivamente uma abordagem do psiquismo do paciente – até a investigação da contratransferência, das identificações introjetivas e projetivas, do campo analítico, da relação e, finalmente, da inclusão da personalidade do próprio analista. As abordagens psicanalíticas parecem ter enfoques diferentes. Algumas privilegiam a neutralidade do analista, as manifestações inconscientes do paciente, o intrapsíquico do analisando, enquanto outras se voltam para as experiências emocionais do analista no setting como principal ferramenta de trabalho. Objeto psicanalítico é um termo utilizado por Freud inicialmente no artigo “Os instintos e suas vicissitudes”, de 1915. Considerando a teoria pulsional, ele a forma que se constitui como objeto da pulsão todo objeto no qual ou através do qual a pulsão consegue atingir seu alvo. O objeto não é fixo nem previamente determinado; é o que há de mais contingente no conjunto de elementos e processos presentes nos atos pulsionais.3 Já em uma leitura mais sutil na obra de Freud, podemos conceber essa primeira experiência de satisfação como mítica, uma ficção, isto é, como uma situação que nunca existiu concretamente, mas que é postulada por ele como construção teórica necessária para alicerçar suas hipóteses. Daí a infinidade de objetos empíricos que se prestam a substituir esse lugar vazio, em uma busca vã e inesgotável, na saga pessoal de cada sujeito. Melanie Klein associa os objetos internos à fantasia, tornando o objeto psicanalítico ainda mais inefável e inerente ao modo singular de internalização e de projeção das experiências emocionais. Bion expande essa ideia distanciando-o do biológico, assim, atribui ao objeto psicanalítico a própria vivência emocional. Em Elementos de psicanálise (1963/2004) afirma que esse objeto tem a dimensão dos sentidos, dos mitos e da paixão. Focaliza o psíquico, o desconhecido, o incognoscível no inapreensível, que é, consequentemente, difícil de ser compartilhado. Bion parece alertar o psicanalista a observar seu próprio envolvimento mental na experiência da sessão, como diz o título escolhido para seu último trabalho, “Como tornar proveitoso um mau negócio” (1979). Este artigo pretende acompanhar o movimento metapsicológico em parte da obra de Bion, visualizando as mudanças no enfoque do objeto psicanalítico. Frequentemente esse autor se valeu do fato selecionado de Henri Poincaré para descrever o valor epistemológico da experiência de descoberta de uma configuração que une elementos há muito conhecidos, embora até então dispersos e aparentemente estranhos um ao outro, além de subitamente introduzir ordem onde reinava a aparência de desordem. Ele assim nos permite ver, de relance, cada um dos elementos no lugar que ocupa no todo. Não só o fato novo é valioso por si, mas ele, sozinho, confere valor aos fatos velhos que une. Nossa mente é frágil como nossos sentidos. 3. “O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou por meio da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação”. (Freud, 1915, citado por Rezze, 1990) Perder-se-ia na complexidade do mundo, se essa complexidade não fosse harmoniosa. Como míope, ela veria apenas os pormenores, e se condenaria a esquecer cada um deles antes de examinar o seguinte, por se mostrar incapaz de considerar o todo. São dignos de nossa atenção somente os fatos que introduzem ordem na complexidade, tornando-a, assim, acessível a nós. (Poincaré, citado por Bion, 1962, p. 90) Em sua escrita, Bion não classificou os diferentes períodos de interesse em sua obra. Na introdução do livro O aprender com a experiência (1962), orienta o leitor quanto ao método de realizar a leitura de seus textos. Ele parece até preconizar que o objeto irá surgir durante a própria leitura, em que o leitor se torna autor, assim como na experiência analítica: O livro foi projetado para ser lido diretamente, sem conferir partes que a princípio parecem obscuras. Algumas obscuridades se devem à impossibilidade de escrever sem pressupor familiaridade com certos aspectos de um problema que só será trabalhado depois. Se o leitor fizer uma leitura direta, essas questões se esclarecerão na medida em que ele prosseguir. Infelizmente, as obscuridades também existem devido à minha incapacidade de torná-las mais claras. O leitor pode considerar recompensador o esforço de esclarecê-las por si próprio, e não vê-las simplesmente como tarefa a que foi forçado por eu ter deixado de fazê-la. (Bion, 1962, p. ii) Contudo, vários autores se debruçaram em organizar a posteriori o desenvolvimento do pensamento de Bion, entre eles Bléandonu (1993), Braga (2018), Chuster (2018), Chuster et al. (2011), Meltzer (1998) e Rezze (2018). Segundo esses estudiosos, no primeiro período destaca-se o interesse pelo grupo, no livro Experiências com grupos (Bion, 1961). O objeto psicanalítico, nesse sentido, é o funcionamento grupal em dois níveis: o grupo de trabalho – um nível psicológico, em que há colaboração – e o grupo dos pressupostos básicos. Nesses últimos, “a potência não decorre da ciência, mas da magia. ... Os indivíduos não acreditam em sua aptidão para aprender com a experiência; ao contrário, tudo isso representa o ódio de toda a aprendizagem pela experiência” (Bion, 1961, p. 28). Essa dimensão grupal continua como proposição germinal por toda a obra do autor. Bion não descarta compreensões que teve na origem; ele parece voltar a elas. Os pressupostos básicos, por exemplo, seriam nossos estados alucinatórios, dimensão sempre presente. Um fulcro do pensamento bioniano é a tensão perene entre o indivíduo e o stablishment, o místico/gênio e o grupo, os personagens do grupo interno da mente descritos no final de sua vida na trilogia Uma memória do futuro (1979/1990a, 1975/1990b, 1977/1990d). No livro Experiência com grupos, ao descrever um espaço imaginário no parágrafo intitulado “Tensões intragrupais”, ele comenta: Achei útil visualizar a organização projetada da ala de treinamento como se se tratasse de uma estrutura encerrada dentro de paredes transparentes. Nesse espaço, o paciente seria admitido em um determinado ponto, e as atividades em seu interior seriam organizadas de maneira que ele pudesse movimentar-se livremente em qualquer direção, de acordo com a resultante de seus impulsos conflitantes. Seus movimentos até onde possível não seriam deformados por interferência externa. Em resultado disso, poder-se-ia confiar que seu comportamento proporcionasse uma indicação direta de sua vontade e seus objetivos efetivos, em oposição aos objetivos por ele próprio proclamados ou àqueles que o próprio psiquiatra desejaria que ele tivesse. (Bion, 1961, pp. 14-15) No segundo período destaca-se o interesse pelo pensamento psicótico (1950-1960). Em 1967, Bion reuniu sete trabalhos no livro Estudos psicanalíticos revisados. O objeto psicanalítico está dimensionado sob a influência do pensamento kleiniano em “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946/2006), cujas ferramentas principais são a identificação projetiva, as posições esquizoparanoide e depressiva e os objetos parciais. Nesses artigos, como em “Ataques à ligação” (1962/1967a), a mente é concebida de modo espectral; sua manifestação não é apenas uma relação verbal, mas algo na tensão entre uma mente e outra, uma função. Bion está interessado nos primórdios da capacidade de pensar, no que ocorre no contato do aparelho psíquico do bebê com o aparelho psíquico da mãe, na exposição da mente do analisando à mente do analista. O progressivo enfoque nos processos de pensamento, no método do pensar, e não somente no conteúdo do pensamento, culmina no artigo “Uma teoria sobre o pensar” (1962/1967b), que prepara para a fase sucessiva, a epistemológica (1962-1979). Bion expande a teoria freudiana da consciência como órgão perceptivo das qualidades psíquicas, presente no artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911/1996a), e a teoria kleiniana da identificação projetiva, que é a fantasia primitiva onipotente e inconsciente na qual se pode projetar dentro do objeto partes ou sentimentos indesejados de si mesmo. Como decorrência, o objeto psicanalítico é investigado por meio da participação do próprio sujeito – princípio da incerteza de Heisenberg (1927) – e pode ser visualizado através de vários vértices. Trata-se, portanto, de um objeto complexo e não linear. O autor propõe a função alfa e seus fatores, os elementos alfa e beta – algo que não tem existência na realidade –, a relação entre continente e contido, e o pensamento sempre ligado à emoção por meio dos vínculos de conhecimento (K), ódio (H) e amor (L) e da oscilação ps1 d. Sua descoberta é um processo de investigação na experiência emocional em curso. Ilustro essa ideia com uma passagem de sua autobiografia, escrita no fim de sua vida. Nela o pequeno Wilfred explora o funcionamento mental dos adultos, e assim particularmente seu próprio método de exploração: Examinei essa questão por completo – e outras como “O xarope dourado é mesmo de ouro?” – com minha mãe, e depois com meu pai, mas sem me satisfazer com nenhum dos dois. Concluí que minha mãe de fato não sabia; embora se esforçasse muito, ela parecia tão intrigada quanto eu. Foi mais complicado com meu pai; ele começava, mas parecia se cansar quando eu não entendia a explicação. O clímax veio quando eu fiz minha pergunta sobre o xarope dourado pela “centésima vez”. Ele ficou muito bravo. “Uau!”, disse minha irmã com apreciação. ... Mais tarde, quando eu quis saber o significado de “persona non grata”, guardei a pergunta e outros problemas similares apenas para mim. Eu desenvolvi um sexto sentido sobre “a centésima vez” muito antes de aprender matemática suficiente para contar até cem. Já naquela época eu parecia ter estabelecido tamanha distância entre a matemática aplicada e a matemática pura que não me dava por satisfeito – nem naquela época, nem agora – com a conexão entre cem e a “centésima vez”. (Bion, 1982, p. 9) O objeto psicanalítico é pensado por meio de uma fórmula que salienta a preconcepção (Ψ (ξ)) inata da personalidade em busca de uma realização, e assim uma atitude socrática do analista, que como a parteira estimula emergir algo que já existe dentro da própria pessoa. No capítulo 22 de O aprender com a experiência, Bion propõe uma fórmula para representar o que seria um objeto psicanalítico, um objeto complexo holográfico: {Ψ (ξ) ± Y M}. Chuster esmiúça as ideias contidas na fórmula: “A preconcepção Ψ (ξ) busca uma reali- zação (R) que dê luz a uma concepção no espectro de possibilidades que vai do -Y (narcisismo) ao +Y (socialismo) sob a égide constante da complexidade (M) inerente a um organismo biológico”. (2018, p. 48) Em Elementos de psicanálise (1963/2004) Bion elabora a grade como instrumento para a observação psicanalítica, de mapeamento do pensamento – um eixo horizontal para aplicações e um vertical para o desenvolvimento genético. Estuda o objeto psicanalítico, inicialmente considerado nas dimensões dos sentidos, do mito e da paixão. Até esse momento a experiência emocional é O, a origem do encontro da sessão, o desconhecido. O pensar é do pensador, embora os pensamentos não sejam criados pelo pensador, mas pré-datem platonicamente sua recepção. Entram no interior da mente que desenvolveu um aparelho para pensar: “Este vem a ser o jardim metafórico da ‘Ode à Psique’” (Williams, 2018, p. 160). Assim, o desejo de contar o sonho se transformou na experiência do sonhador que pode ser vivida pela dupla na sessão. A teoria do pensamento e a ideia do aprender com a experiência, ligada ao pensar simbólico e ao aprender (ou não), são bastante assimiladas entre os psicanalistas. A teoria do pensar se inscreve como uma teoria do conhecimento cuja finalidade é epistemológica. Portanto, à medida que nos aproximamos do final de O aprender com a experiência, uma graduação entre a ideia de aprender e a de transformações fica mais clara e culmina no foco da proposta do último capítulo, o conhecimento (K) e o não conhecimento (-K). A grade 4 – e os pensamentos que consubstanciam na apresentação do trabalho – pode ser vista como estruturante em sua metapsicologia, já deixando entrever os próximos passos, Transformações (1965). Alguns autores consideram haver uma ruptura entre o aprender e a ideia de transformações; outros, não. De qualquer maneira, a realidade psíquica, aos poucos, aparece mais incluída na observação do analista; focaliza-se uma situação que ultrapassa o aprender com a experiência. No capítulo 9 de Transformações, Bion salienta a diferença da natureza das transformações pelo conhecimento, passando pela experiência emocional e pelas transformações em O, pelo ser, entrando em contato direto com a realidade. Existiria uma continuidade ou uma mudança de vértice? A teoria do pensar poderia ser estendida para a dimensão do ser? Diz respeito ao analista decidir qual dimensão eleger para trabalhar? A concepção do mental é expandida, é multidimensional, comporta tanto uma dimensão como a outra. Em Transformações, o autor explora as transformações em alucinose, fronteira entre a capacidade de pensar e a psicose.5 Há um nível crescente da presença de algo imaterial, psíquico ou menos sensorial. Não basta passar pela experiência, já que é possível não aprender com ela. Assim, o eixo do objeto psicanalítico é a transformação em níveis psíquicos, únicos e inefáveis, infinitos, no sentido de expansão sem fim do repertório vivo. Para alguns, Bion estabelece a mudança de paradigma. O conceito de transformações carrega em si a ideia do novo, e não só do que é repetido. Bion parece não descartar suas concepções originais de que Ψ era a função psicanalítica da personalidade, algo desconhecido que nos habita, e a função alfa um fator dela. O objeto psicanalítico privilegia aquilo que está evolvendo da origem, do desconhecido, buscando existência, uma preconcepção dessa origem desconhecida (Bion, 1962). Nos últimos três capítulos de Transformações (1965), Bion propõe um percurso além do âmbito do conhecimento, dos desenvolvimentos do simbólico e do aprender com a experiência – um plano fora do conhecer. Nesse novo período, denominado ontológico, o objeto psicanalítico está no gerúndio, do ir sendo ou de tornar-se a realidade, de posicionar-se em sintonia ou de evitar a realidade psíquica não sensorial. Algo de que não se pode aproximar pelo conhecimento, que jamais será alcançado. Assim, o autor cria um alerta aos analistas: não interpretar de modo precipitado o que pode não ser analisável pela representação. Além disso, as transformações em O instauram a instigante questão de se podemos mudar sem conhecer, ainda presente em muitos autores (Marra, 2021). Enfim, caminhamos do analista tido como neutro para o reconhecimento de um analista inevitavelmente implicado na sua função psicanalítica (Ribeiro, 2017). 4. Essa comunicação é de 2 de outubro de 1963 e foi publicada posteriormente por Francesca Bion no livro Taming wild thoughts (1997). Em 1977, Bion publica o segundo artigo sobre a grade no livro Two papers: e grid and Caesura. 5. Não no sentido de uma divisão entre psicótico e não psicótico, mas do que pode ser conhecido, simbólico, ou não conhecido, não simbólico. Para Bion, o cerne da questão é a decisão do analista a respeito de qual dimensão da mente abordar, se estará disponível a estados não acessíveis pelo caminho simbólico ou do pensamento e disponível a um estado de comunhão, algo que atinge o outro de forma direta. “Por que você está triste mamãe?”, perguntei-lhe mais tarde; ela riu, dispensando a sugestão. “Sim”, eu insisti, “você sabe – as surpresas de luz”, eu lembrei a ela. “Algum dia você vai entender – quando você for adulto”, disse ela. “Mas”, eu insisti, “você é adulta e disse que não entendeu.” Ela corou um pouco e riu. Aquela risada desconfortável! (Bion, 1982, p. 24) Em “Notas sobre memória e desejo” (Bion, 1967/1990c) focaliza-se o objeto psicanalítico por meio daquilo que é desconhecido, do qual nada deve distrair o analista. Essa postura facilita o contato com a realidade psíquica, que é inefável, inapreensível; podemos apenas descrevê-la de modo absolutamente pessoal. O vértice do objeto psicanalítico vai se tornando o viver a experiência na clínica. De fato, suas supervisões demonstram que, do ponto de vista clínico, Bion continua a valer-se tanto da teoria do conhecimento (1962-1965) quanto da proposta de contato direto com a realidade. (transformações em O, a partir de 1965) Segundo Bion (1970), o analista deveria, durante as sessões, tentar estar nesse ponto em que o indiferenciado toma forma finita, ou seja, um ponto no infinito em que é possível “ver” os pensamentos à medida que surgem. Bion passou a considerar que cada pensamento seria “conquistado do infinito escuro e sem forma”. Nesse sentido T(O) seria caracterizado como algo novo acontecendo, algo diferente de T(K), que é o processar e pensar as experiências emocionais existentes na área do princípio prazer-dor. ( Vermote, 2011) Nos últimos anos de sua vida, após 1976, em artigos, seminários e supervisões, assim como em Uma memória do futuro, Bion focaliza as manifestações de estados primordiais da mente. São vestígios arcaicos e pré-natais, não passíveis de ser registrados pelo córtex cerebral, mas que deixam marcas em órgãos como o tálamo, as adrenais e as gônadas. Eles estarão presentes no resto da vida do ser humano, na manifestação de terrores de ser só e dependente, de uma consciência moral primitiva (Braga & Matos, 2009), assim como nos impulsos que urgem por existir. Gostaria de concluir este artigo com um caso clínico em que o registro da sessão é a busca do vértice com base na descrição da experiência do analista em termos psíquicos. As transformações ocorridas também parecem variar entre transformações em conhecimento (K) e em ser (O). A partir do pressuposto da importância da observação do analista, penso que a comunicação se estabelece dependendo do vértice pelo qual se faz essa observação, isto é, do que é sensível à lente do analista, à sua personalidade, ou seja, a “publica-ação” se relaciona e está determinada pelo pano de fundo da observação. Alguns analistas se atêm a dados de anamnese, diagnósticos, a lógica de causa-efeito, enquanto outros estão mais disponíveis para descrever a experiência psíquica que podem apreender, mesmo que de forma inexoravelmente subjetiva. Nesse caso ouvem os sons dos silêncios, sentem a ansiedade, visualizam fantasmas e precisam “pagar o preço” da decisão de sua “autopublicação”, ou seja, de uma escrita na qual o analista está inevitável e inteiramente comprometido. Seria essa escrita a de um xamã? Será que o analista escreve o que absorve com sua sensibilidade talâmica ou subtalâmica? Será que está em alucinose? Eva ou Evita Aguardo um bom tempo. Evita chega correndo. Quando entra, não me olha e casualmente diz: “Teve a festa. Foram todos, menos você e o papai”. Continua num clima muito dramático, descrevendo a situação. Do seu modo firme e claro, automático, sinto aumentar a distância entre nós. O clima é árido. Um discurso muito articulado e vazio. Quase uma encenação?! Sem emoção. Procuro por mim, procuro não “des-existir”, partir dali. Encontro-me sem energia para repetir a argumentação de que não poderia ir ao seu aniversário para preservar nossa relação. Aquele pensamento soa como uma ladainha. Uma reza?! Seria fácil, penso, resolver essa minha angústia simplesmente dizendo que ela está se vingando de mim (de nós, de nosso tempo juntas), já que não pode dizer ao pai aquilo que sente ou pensa dele. Mas será que é o que sente? Sentimento? Pensamento? Decido permanecer em silêncio. Evita continua seus lamentos espalhando todos os brinquedos de sua caixa pelo chão. Não tem parada nem sossego. Não para de falar e não para de atirar coisas para lá e para cá, como quem rapidamente não vê interesse algum por nada. Os brinquedos, espalhados, perdem sua finalidade, sua discriminação. Destroços. Parece que estamos numa espécie de lixão. Permaneço num espaço muito restrito da sala, atrás do pequeno divã. Diz que não pode gostar de C (o companheiro da mãe) para não desagradar o pai. Seu discurso é adulto, sem emoção. Sinto que participo de um teatro, como se ela fosse um papagaio repetindo frases que ouviu de outras pessoas. Uma matraca? Não eram as matracas que faziam barulho para imitar as metralhadoras? Estaria minha paciente impondo medo para não sentir sua fragilidade? Será que tenta me paralisar, ilhada como estou neste cantinho? Mergulhada em meio a tantas frases repetidas, penso que já não sei mais do que se trata. Comento: “Que pena! Tua cabeça está tão ocupada com tanto barulho que não consegue nem brincar, ou pensar, estar aqui comigo”. Ela para e olha para mim. Continuo ilhada no cantinho. Como consigo sua atenção, insisto: “Olha só a nossa sala. Ficamos sem nada: sem brinquedo, sem brincadeira, sem encontro e sem conversa...”. Nesse momento parece que surge algo nela. Uma espécie de ternura. Recolhe todos os brinquedos parecendo muito preocupada e cuidadosa. “Preciso colocar tudinho no lugar!” Logo depois pede um copinho e começa a picá-lo em pedacinhos. Conta que seu pai disse que não virá mais buscá-la, mas que ela acha que ele estava brincando. “Ouço” o tom sofrido da fala. Num relance, olho para o chão da sala e sou tomada por uma forte emoção. Não sei explicar, é um mistério para mim. Os pedacinhos de plástico espalhados pelo chão da sala, que os reflete como numa superfície espelhada. É muito belo. Parece-me uma “instalação”. Decido comentar minha impressão: “Puxa, você espalhou seu choro por toda a minha sala!”. Eva diz: “É, tenho medo de machucar meus pés!”. Sugiro: “É como caminhar em caquinhos de vidro?”. Sinto seu olhar profundo apoiado em mim. Saímos ambas impactadas... Algumas reflexões a respeito das teorias e do caso clínico O objeto psicanalítico parece ser um conceito abstrato que depende da teoria adotada, da formação e, sobretudo, da personalidade de cada analista. A experiência reportada com a pequena analisanda está no limite do descrito, fruto da vivência emocional que tento comunicar. Evelise Marra (2021) propõe “pensar o objeto psicanalítico, ou mais estritamente o que fazemos, como o que se passa quando na oportunidade de construção de uma relação pessoal-emocional, onde a sinceridade, franqueza, intimidade, alicerçadas na fé de que algo surgirá do encontro, evolva”. Cecil Rezze destaca: O essencial é um estado mental do paciente com o qual o analista pode se conectar e, reciprocamente, uma produção mental do analista que o paciente pode usar para suas necessidades de crescimento mental – amor, ódio, refutação, agressão, enfim, qualquer uso que lhe seja pertinente. (1990) Percebo que na sessão utilizo minha intuição e que privilegio as transformações em O. Entretanto, podemos pensar nas transformações em O sem o corolário das transformações em K, ou da intermediação do uso dos sentidos? Ou ambas as transformações, em O e em K, embora de natureza diferente, estariam sempre entrelaçadas e presentes em nossas apreensões (Scappaticci, 2017)? Parece que trabalhamos na cesura, no trânsito K1 O. Ainda acerca da natureza do objeto psicanalítico, este seria um dado a priori, e assim a dupla analítica se debruçaria em sua investigação, ou algo criado (Frochtengarten, 2021)?6 Podemos supor um trabalho “poiético” da dupla, a recriação desse objeto sempre subjacente e aguardando realização? Notas sobre el objeto psicoanalítico en la obra de Wilfred Bion Resumen: Este artículo trata sobre la evolución del concepto de objeto psicoanalítico en el trabajo de Wilfred R. Bion, trayendo preguntas clínicas e ilustraciones con extractos de su autobiografía y una viñeta clínica. Palabras clave: metapsicología, autobiografía, experiencia emocional, psicoanálisis Notes on the psychoanalytic object in the work of Wilfred Bion Abstract: is article deals with the evolution of the concept of psychoanalytic object during the work of Wilfred R. Bion, bringing clinical questions and illustrations with excerpts from his autobiography and a clinical vignette. Keywords: metapsychology, autobiography, emotional experience, psychoanalysis Notes sur l’objet psychanalytique dans l’œuvre de Wilfred Bion Résumé : Cet article traite de l’évolution du concept d’objet psychanalytique au cours des travaux de Wilfred R. Bion, apportant des questions cliniques et des il- lustrations avec des extraits de son autobiographie et une vignette clinique. Mots-clés : métapsychologie, autobiographie, expérience émotionnelle, psychanalyse Referências Bion, F. (Ed.). (1997). 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  • Ressonhando sonhos na Pandemia: Em busca de um continente psíquico

    Marina F. R. Ribeiro35 Elisa Maria Ulhoa Cintra36 Carla Penna37 35 Psicanalista, professora doutora do IPUSP, coordenadora do LipSlc (Laboratório interinstitucional de Estudos da intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea IPUSP-PUCSP). 36 Psicanalista, professora doutorada PUC-SP, coordenadora do LipSic (Laboratório interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanalise Contemporânea IPUSP-PUCSP). 37 Psicanalista, doutora em psicologia clínica pela PUC-RJ, psicanalista do Circulo Psicanalítico do RJ, membro da Group Analytic Society International. "Sonhar é acordar-se para dentro." Mario Quintana A noite passada eu sonhei... Ao ouvir estas palavras, rapidamente a atenção do interlocutor se aguça; se é um analista, ainda mais. O que será que acontece? Freud elaborou as premissas da escuta psicanalítica que tomaram forma através do setting analítico: o analisando é convidado a fazer associações livres e o analista a entrar em estado de atenção livremente flutuante. Depois de Freud, um número incontável de psicanalistas deu inicio a diferentes praticas clinicas que ampliaram e diversificaram esse modelo original e fundante da psicanálise. A escuta de pacientes psicóticos e traumatizados obrigou a diversas adaptações do modelo originário, especialmente na pratica da psicanálise extramuros fora do setting clássico. A descoberta da análise infantil por parte de Melanie Klein (Cintra e Ribeiro, 2018) e de Anna Freud, e as incursões na psicose por parte de Bion, Winnicott e Lacan, além de todas as experiências de trabalhos com grupos, levaram a transformações na prática psicanalítica e ampliações do método psicanalítico. Em todas estas demarches um elemento permanece constante: o insight fundamental de que o funcionamento psíquico se baseia uma associatividade entre ideias, afetos e memórias, e na construção de relações de vínculo afetivo entre as pessoas, gerando novos efeitos intersubjetivos e transferenciais, ampliando sempre as redes associativas. Podemos ainda afirmar, en passant, que até mesmo o funcionamento cerebral pressupõe uma rede neuronal que funciona através de circuitos associativos. Os novos problemas clínicos e a necessidade de levar a escuta psicanalítica para territórios diversos daquele que a originou exigiram renovação e expansão, favorecendo, dessa forma, expansões do método, da teoria e da pratica psicanalítica. Surgiram a clinica psicanalítica ampliada e a exigência de pensar os fundamentos de novas praticas, o que vamos encontrar em muitos autores na psicanálise contemporânea, especialmente no livro Manual da pratica clinica em psicologia e psicopatologia de R. Roussillon (2019). Durante a pandemia, a clinica psicanalítica tem enfrentado desafios que, se por um lado demandaram mudanças no setting analítico, por outro deram espaço para importantes inovações. Na psicanálise clássica, o sonho é considera como via regia de acesso ao inconsciente. Seu relato, as associações livres e sua interpretação no seio da relação analítica permitiram o acesso a conteúdos recalcados, levando a insights e a elaboração das experiências traumáticas. Contudo, apesar de as considerações freudianas sobre o sonho terem sido transformadoras para a psicanálise, a importância do sonho permaneceu incialmente restrita a ideia do sonho como acesso ao inconsciente, através do universo intrapsíquico do paciente em analise. Ferenczi (1933) foi o primeiro psicanalista a compreender os sonhos dentro de um contexto relacional localizando sua gênese no espaço intersubjetivo (Neri, Pines & Friedman 2002). Para Ferenczi, o relato de um sonho é sempre uma tentativa de comunicação: "uma pessoa pode sentir-se impelida a relatar um sonho para a pessoa a qual o sonho encontra-se relacionado” (Ferenczi, 1913/1992, p. 112). Anos mais tarde no Diário Clinico (1933/1990), Ferenczi acrescentou que "o paciente percebe que o fragmento de seu sonho e uma combinação de conteúdos inconscientes da psique do analisando e do analista". (1933/1990, p. 35) Atualmente, as investigações sobre a função dos sonhos na psicanálise envolvem uma miríade de autores, tais como Bion (1962), Meltzer (1984), Ogden (2001), Ferro (2001) e Grotstein (2010), que permitiram não apenas a ampliação do conhecimento sobre questões traumáticas e diferentes estados de consciência, mas que também, em maior ou menor grau, apontaram para a interface do sonhar com a experiência intersubjetiva. Desde 1937, Ella Sharpe já apontava para o fato de que o trabalho do sonho e o sonho revelavam o "não conhecido implícito no conhecido", e que esse processo permitia ampliação da experiência da linguagem e do pensamento. De uma forma particular, tanto o sonhador quanto o poeta ou o artista seriam capazes de transcender o cotidiano e, associando livremente, ampliar de forma infinita as palavras e os sentimentos. (Sharpe, 1937/1961) Para Resnik (1987), o contar o sonho na sessão analítica é sempre um evento transferencial. A análise do sonho e desenvolvida através da compreensão de sua gramática e de seu teatro de significações. O sonhar é uma forma especial e complexa de pensar, e um tipo de experiência no espaço e no tempo que, governada pelo processo primário, recria experiências primitivas. A partir da teatralidade psíquica característica dos processos inconscientes, permite confrontar expressões oníricas infantis as experiências cotidianas da vida adulta. Contudo, o relato do sonho não é apenas um trabalho de construção e elaboração conjunta da dupla analítica, ele pode nascer também das experiências com grupos e com a sociedade. Nesse sentido, a abordagem intersubjetiva do fenômeno do sonho permitiu que sua apreciação se deslocasse da perspectiva meramente individual/intrapsíquica para a dimensão Interpsíquica/intersubjetiva, permitindo valorizar a ideia do grupo como um sonho, sua polifonia e a existência de espaços oníricos comuns e compartilhados. (Kaes, 2004). Na Inglaterra, em 1982, Gordon Lawrence criou no Tavistock Institute of Human Relations a técnica do Social Dreaming Matrix. Inspirado no livro de Charlote Beradt e apoiando-se em teóricos das relações objetais, especialmente em Bion e Bollas, Lawrence (2010) desenvolveu uma metodologia que, ao se afastar dos aspectos individuais do sonho e do sonhador contidos em seu relato, facilitou a exploração do sentido social dos sonhos, enfatizando sua dimensão social e coletiva. (Penna, 2013). Investigações sobre sonhos e relatos de sonhos fora da sessão analítica tem ainda permitido a utilização do sonho como uma via regia em que a relação com "o outro" toma-se fundamental para a elaboração de sonhos em contextos traumáticos. Em uma pesquisa realizada na Universidade Haifa em Israel, com 200 participantes, Friedman (2002, 2004) investigou aspectos interpessoais com envolvidos no relato de sonhos/pesadelos, especialmente na relação entre pais e filhos. Verificou-se que o relato dos sonhos não consistia apenas num esforço de eIaboração inconsciente de conteúdos ameaçadores ou excitantes que invadiam a subjetividade das crianças pesquisadas. O material onírico não pertencia somente a criança, mas também apontada para a relação com os pais, remetendo ainda a excessos da ordem do traumático provenientes tanto de questões transgeracionais quando do contexto sociocultural. Para Friedman (2004), a experiência de contar o sonho – Dreamtelling - permite, portanto, através da intersubjetividade, a criação de uma "royal road through the other/ uma estrada real através do outro". (Penna, 2013, p. 21). Assim, o relato de um sonho, tanto na sala de análise, quanta na dimensão interpessoal ou mesmo em uma plataforma on-line, promove a criação de um espaço potencial, entre o eu e o outro, fundamental para a elaboração de processos inconscientes e afetos ainda não digeridos e/ou representados. Contar um sonho é, portanto, uma "busca por continente", e sua narrativa revela um desejo do sonhador de que alguém sonhe com ele seu próprio sonho, isto e, "re-sonhe" com ele o sonho. Em termos bionianos, o contar o sonho facilita a expansão da função alfa do sonhador, ampliando suas possibilidades de autocontenção. Considerando os aspectos intrapsíquicos e intersubjetivos envolvidos, a narração do sonho promove o desenvolvimento do pensamento (Meltzer, 1984), a interiorização da função alfa (Bion, 1963), permitindo o pensar, o devanear, ampliando, ainda, a capacidade de conter afetos e emoções. Bion (1962) formulou, a partir do texto freudiano "Os dois princípiosdo funcionamento mental" (1911), que somos sonhadores em dia, que, além do sonho da noite, temos o pensamento onírico da vigília, que é captado pela capacidade de rêverie do analista, a capacidade imaginativa do analista. Bion (1992) usa a metáfora das estrelas: durante o dia não vemos as estrelas, mas elas estão lá, ou seja, o pensamento onírico de vigília é invisível á consciência, captando as mais tênues emoções, que serão processadas no sonho á noite. O pensamento onírico de vigília é, portanto, uma função diurna da mente para processar e metabolizar as experiências emocionais. (Ribeiro,2019) Muito tempo antes da chegada de um analista na vida de alguém, temos a mãe e o bebê. Bion (1962) descreve a capacidade de rêverie como uma amorosidade da mãe para com o filho. Além de uma boca que encontra o seio, o psiquismo incipiente do bebe busca a mente da mãe. Bion propõe a existência de um movimento em direção a algo que seria uma "preconcepção" de um objeto/seio. O encontro com o seio se realiza, dando origem ao mundo psíquico, colorido pelas emoções. A mãe, narcisicamente apaixonada por sua criação, se oferece como possibilidade da experiência de satisfação e dai decorre o sentimento de plenitude que Freud descreveu em "Sua majestade, o bebe" (Freud, 1914). Desse primeiro investimento narcísico e libidinal tem inicio a constituição, atravessada por emoções, sempre intensas e paradoxais. Quando o bebe encontra a mãe, capaz de sonhar, com capacidade para a rêverie, essa função transformadora e imaginativa atribui qualidade psíquica as sensações e percepções. Surge uma capacidade nascente de sonhar a nossa própria vida. Antonino Ferro (2011) faz outra interessante analogia: durante o dia temos um cameraman (o pensamento onírico da vigília), que vai captando varias cenas vividas; a noite temos o diretor, que vai compondo essas imagens dentro de um enredo fantástico, com todos aqueles mecanismos descritos por Freud: deslocamentos, condensações, simbolização, dramatização, elaboração secundaria. Vários analistas estudiosos da obra de Bion recomendam que o analista sonhe a sessão, que ele possa ouvir o relato do seu paciente como um sonho. Isso soa enigmático? Pode ser, mas é, na verdade, um convite para entrar em contato com o mais intimo e verdadeiro em nós mesmos: o pensamento onírico, a inquietante realidade que nos habita, as emoções que se expressam intensamente através de imagens. Em termos bionianos, o analista sonha a sessão por meio de sua função onírica alfa: uma função transformadora dos elementos beta, que compõem as sensações, os sentimentos e as imagens em fragmentos que surgem da experiência em estado bruto. Esse sonhar analítico da sessão se elucida se recordamos o expressivo termo ensoãcion, da língua espanhola. O analista entra em um estado de ensonhamento, uma atividade que transforma em sonho a experiência vivida. Bion sugere algo que revela o sentido inverso da proposta freudiana, sem abrir mão do que Freud postula (tomar consciente o inconsciente); propõe que precisamos tomar inconsciente o vivido. A rêverie e a função onírica alfa são constitutivas da capacidade de ensonhamento da experiência vivida em estado bruto. (Ribeiro, 2019) Ogden (2019), em sua apresentação da teoria do pensar de Bion, destaca que são necessárias duas mentes para pensar pensamentos perturbadores. O pensamento perturbador é aquele que ainda não foi pensado não encontrou um continente, uma outra mente que o contenha e possa torna-lo pensável. No entanto, podemos refletir que qualquer pensamento novo é perturbador, inquietante e enigmático, Justamente por ser novo. (Ribeiro, 2019) O pensamento perturbador passa ser contido na mente a partir de sua função onírica alfa. As impressões sensoriais brutas não podem se ligar entre si, não podem ser utilizadas para pensar, sonhar ou serem armazenadas na memória. Elas precisam se inscrever psiquicamente. A função alfa realiza essa inscrição psíquica, transformando os elementos beta em elementos alfa, que podem se ligar entre si e dão origem ao pensar. No inicio, Bion falava em rêverie, e, com o tempo, preferiu a noção de função alfa, que poderia reunir diversas funções mentais que, juntas, transformam impressões sensoriais brutas em elementos alfa. A rêverie é um fator função alfa, como escreve Bion (1962). Os ele- mentos beta que são contidos manifestam-se primariamente através de imagens e, posteriormente, chegam a ser narrativas. Para Bion, pensar em sua origem é sonhar; o sonho é o pensamento inconsciente. (Ribeiro, 2019) Estamos sempre buscando o sentido da experiência vivida; essa busca de sentido é o que nutre a mente. A experiência em estado bruto produz impacto, susto, assombro e perplexidade. Sobre isso opera a função onírica alfa (Bion, 1962, 1992), que coloca o vivido em uma imagem, pois pensamos inicialmente por imagens. Ha uma exigência de nos tomarmos "alfa-beta-zadores" das emoções vividas em estado bruto. Criamos, então, imagens, narrativas. As palavras expressam sempre parcialmente o vivido, as emoções "em bruto", por isso precisamos contar e recontar nossos sonhos e precisamos ser ouvidos. As palavras são sempre aproximações que contem rastros do vivido; a experiência como um todo sempre nos escapa; é incognoscível. Ressonhando os sonhos na pandemia Neste memento da pandemia, percebemos no mundo inteiro o movimento de contar sonhos uns aos outros como se estivesse nascendo um grande desejo - ate mesmo uma exigência - de expressar e comunicar algo do sofrimento de cada um, colocando-o ao lado do sofrimento e dos desejos e esperanças da humanidade inteira. Para esta reflexão, escolhemos alguns sonhos que nos parecem exigir novas associações e outra rêveries. Sonho 1. Sem calcinha, sem máscara. Sonhei que ia a uma festa com alguns amigos que não vejo há muito tempo, e no meio do caminho percebi que estava sem calcinha e precisei ir ao shopping. Lá me deparei com 100% das pessoas sem usar máscara e fiquei irritada e com medo de me contaminar, Eu também tinha esquecido a minha, mas estava usando um casado para cobrir minha boca/nariz. Grande parte das lojas estava fechada e não consegui encontrar uma calcinha para comprar (sendo que seja algum comum para comprar). Lembro também que, quando estava na presença de meus amigos, estava muito feliz e animada. A vida nua e crua no desamparo pandêmico Neste sonho, aparece um sinal da angustia humana mais fundamental, que Freud denominou de desamparo (hilflosigkeit); angustia que emergiu com tanta nitidez na pandemia, com suas ameaças de contagio mortífero, adoecimento, perdas em vários níveis e mortes. O adoecimento pela Covid ataca o aparelho respiratório e pode nos privar desse elemento fundamental: o ar, o sopro vital, que inalamos pela primeira vez ao nascer e que nos deixa para sempre ao morrer. Associamos um corpo vivo, animado, a esse sopro que anima, a alma do corpo. A pandemia nos deixou ameaçados de perder o sopro vital. No sonho, estar sem mascara pode ser uma forma de falar da perda fundamental do sopro de vida, ao nos deixar expostos ao vírus, em dois sentidos: tanto de sermos contagiados e então privados do sopro vital, quanto de contagiarmos os outros, tirando a sua vida. Nos sonhos de sair a rua sem roupa aparece tão bem o nosso desamparo: desnudos, diferentes dos outros, sozinhos. Freud incluía esses sonhos entre os sonhos típicos da humanidade, universais. Aqui aparece uma dupla nudez: sem calcinha e sem mascara. Durante a pandemia a mascara se tornou uma barreira fundamental, sair de casa sem ela equivale a sair sem roupas, sem as proteções mínimas para a vida social. De forma semelhante e ao mesmo tempo diferente, estar sem calcinha evoca imediatamente um estado de maior exposição ao encontro sexual - encontra eco na imediata associação ao "estar sem mascara" um sentido aumentado de desproteção, de vulnerabilidade, de
estar entregue as invasões. A vida nua e crua, sem e defesas, sem mascaras: de um lado, à mercê a invasão estrangeira pelo vírus; do outro estar com os genitais desprotegidos. A nossa sonhadora - uma figura agora coletiva, que poderia representar qualquer um de nos - vai ao shopping e lá se encontra com as pessoas sem mascara, como nos tempos pré-pandêmicos! O desejo de andar nos lugares públicos vendo as pessoas sem mascara se expressa nessa cena onírica: o mundo que perdemos e não sabemos se vamos recuperar, a liberdade de sair por ai sem mascaras. Essa liberdade censurada se liga a perda da liberdade dos encontros sexuais, em que a entrega ao outro não representa um perigo mortal. A referencia um pouco cômica e irônica ao genital sem proteção sugere já não estarmos mais sob o domínio do medo e do desamparo; evoca uma entrega sem mascaras e sem calcinha aos perigos do amor e do sexo. Nossas associações são apenas um convite as associações do leitor. Sonho 2. Os psicólogos na pandemia Sonhei que os psicólogos do Brasil haviam sido convocados pelo Ministério da Saúde para trabalhar em atenção básica em áreas de contaminação de Covid-19 durante a pandemia. Sonhei que havia sido convocada para trabalhar na favela da Rocinha do Rio de Janeiro. Lá andava destemidamente e sem máscara em meio a um grande número de moradores do local. Sonhos de estar sem mascara durante a pandemia vem sendo relatados por pessoas em todo o mundo. Sua frequência, como apontamos anteriormente, evoca as considerações de Freud na Interpretação dos Sonhos (1900) sobre sonhos típicos, especificamente sobre o sonho de nudez, como se sonhos com o uso de mascaras fossem os sonhos típicos da pandemia. No primeiro sonho, o medo da contaminação mútua se fez presente na relação ambivalente com a ausência da máscara e da calcinha. Já no segundo, o medo em relação à exposição e à contaminação pelo vírus desencadeado pela experiência real da convocação dos psicólogos pelo Ministério da Saúde brasileiro, transformou-se em uma reação defensiva, marcada por uma experiência de onipotência, de triunfo maníaco diante do medo da contaminação e da morte. A sonhadora trabalhava alegremente, sem máscara, junto à população da maior favela da América Latina. De fato, como Freud (1915) pontuou, em nosso inconsciente não há lugar para a morte, ela e sempre a "morte de outrem" (p. 327). Contudo, como Ogden (1997) recorda, e impossível manter a sanidade e ao mesmo tempo experimentar a própria mortalidade sem recorrer a um certo grau de negação da morte, e a onipotência encontra-se sempre presente. Nesse sentido, a pandemia trouxe uma enorme ruptura na confiança e na onipotência exagerada que depositávamos na continuidade da vida em sociedade. Quando a onipotência se despedaça, a impotência e uma perigosa vulnerabilidade se instalam, exigindo a restauração da lei do inconsciente. Foi isso que aconteceu conosco, uma dose coletiva de onipotência foi destruída (Hinshelwood, 2020). Assim, diante do desamparo e da vulnerabilidade, defesas maníacas, como o triunfo onipotente diante do medo da morte presente no segundo sonho, procuram evitar a dor psíquica e o contato com ansiedades depressivas. (Klein, 1935) Nesse sentido, na pandemia de Covid-19 defesas maníacas, como a onipotência e o triunfo sobre o "outro" que contamina, tem sido utilizadas para se contrapor ao fundo depressivo coletivo que predomina na sociedade atual (Figueiredo, 2017) e que durante a pandemia recrudesceu. Experimentamos hoje, em nosso cotidiano traumático, um apelo a fugir em direção a realidade externa, através de fantasias e ações onipotentes, para escapar da realidade interna e negar a morte que hoje parece sempre avizinhar-se. (Winnicott, 1935) Antonino Ferro (2017) descreveu de uma forma simples e bela a experiência analítica: quando duas pessoas se juntam para elaborar a brutalidade da vida. Quando a brutalidade da vida se intensifica, precisamos ainda mais desse outro para elaborar a dureza da experiência, buscamos apoio nos grupos, ainda que aconteçam de forma virtual. Sentimos a necessidade de sonhar juntos para tentar metabolizar tanto susto, tanta perplexidade, tanto assombro. Sonhar o redemoinho da pandemia, seu excesso, e suas descobertas também. A experiência nos atendimentos on-line favoreceu algo que estávamos antes um pouco tímidos para reconhecer: que a realidade psíquica e virtual, de uma natureza intangível e insondável. A pandemia nos ensinou que a voz e a imagem dos analistas continuaram a oferecer hospitalidade ao outro, e receber dele também a sua presença viva, ainda que on-line. Grupos de pessoas aconteceram on-line, e em muitos momentos desapareceram as fronteiras de separação e de isolamento. No entanto, estamos ainda um pouco atordoados com a novidade, ainda buscando palavras par uma experiência desorganizadora e diferente do já conhecido e instituído. O redemoinho que aparece neste sonho parece nos arrastar e tragar por uma imensa força centrípeta e sem limites, como se um grande volume de terra desabasse arrastando a tudo e a todos, através do contagio crescente e irreversível. Alguém tenta salvar o outro e se afoga, mas no final todos se salvam, surge a esperança tingida de onipotência, o desejo de que tudo se resolvera. Onipotência e desamparo são as duas faces humanas da mesma moeda; onde um aparece, a outra é sempre evocada para compensar. Precisamos construir cenas, narrativas, que contenham, mesmo que parcialmente, o transbordamento da experiência. Isso e uma imperiosa exigência do momento: encontrar a outra realidade psíquica, agarrar-se a esperança de que juntos não vamos nos afogar. A estratégia de sonhar coletivamente Uma imagem onírica capta não somente o sofrimento pessoal, mas também o trauma coletivo. Bion dizia que um sonho pode ser compreendido em duas dimensões: o eixo do narcisismo e o eixo do social-ismo: “Poderíamos empregar esses termos para descrever duas tendências, uma egocêntrica e a outra sociocêntrica (...). As duas devem andar juntas: se uma estiver operando, a outra também estará". (Bion, 1992/2000,p.133). Ou seja, alguns sonhos captam o sofrimento psíquico de uma coletividade, o sonho do redemoinho tem essa característica. E, ao serem relatados em um grupo, fornecem sustentação e expansão ao sonhar de todos, favorecem a metabolização da experiência avassaladora da pandemia. O que nos afoga e o excesso e a falta. O excesso da brutalidade da experiência, a falta de sentido, a ausência de imagens, a ausência de narrativas, que tragam alguma inteligibilidade e a falta de um continente que contenha o absurdo da doença e da morte. Não ha continente psíquico para tanto, precisamos nos juntar, o sonhar e narrar de um estende aos outros alguma estratégia de salva-vidas. Os analistas foram convocados a oferecer e precisaram também receber alguma forma de continência psíquica, através de formas singulares e coletivas de rêverie. A dor partilhada e sonhada nunca mais e a mesma. Encontra guarida em imagens, palavras e no olhar do outro; bem abrigada, essa dor pode, então, ser verdadeiramente sofrida. É Bion (1970) que nos fala a respeito da necessidade de sofrer a dor, de adentrar nela, sem fugir; a dor não sofrida e não sonhada transforma-se em ódio, vazio e arbitrariedade. Depois de contida por um outro, ou muitos outros, a dor toma-se pensável e elaborável: toma-se psíquica por ter "morado" em outras realidades psíquicas. Será que podemos nos perder ao salvar o outro? O sonho evoca o perigo de oferecer um continente psíquico para a loucura do semelhante e ser com ele arrastado pela força irracional da loucura. A partir das suas experiências na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, Bion (1992) afirmou que o analista e um comandante no campo de batalha: pode matar ou morrer, mas a sua responsabilidade e manter com serenidade a sua capacidade de pensar - isto e, "sua capacidade de pensar sob fogo/think underfire" (Bion, 1961) - , lembrando que, para Bion, pensar é sonhar. Perder a cabeça é um risco real: é preciso coragem para frequentar a morte psíquica da falta de sentido, de não conseguir mais sonhar, de sentir o vazio e a falta de vida psíquica do outro, e a falta de consistência de nos mesmos. Bion (1992) afirma que precisamos ser apresentados a nos mesmos, a pessoa com quem iremos conviver ao longo da vida. O redemoinho que aparece no sonho seria essa perda de qualquer sentido, o absurdo da morte, do desamparo humano, da doença, que nos contamina psiquicamente, em uma ciranda macabra: excesso e falta. Estaríamos todos sujeitos a esse redemoinho mortífero, e isso e inédito; o mundo inteiro sob o mesmo vendaval, que vai nos sugando. A única resistência possível é estabelecer vínculos e laços: estender as redes do sonhar e do narrar o mais longe possível, soltar do porto a embarcação ao mar alto. Só assim pode ser domesticada a brutalidade da experiência: buscando novas figura-se novas palavras para o desamparo humano, que está em carne viva na pandemia. Referencias BION, W. R. (1961) Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, _ 1990 BION, W. R. (1962) Learning from experience. The complete works of W.R.B. London: Karnac, 2014. BION, W.R. 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  • Os dias têm uma diferença que ainda busca palavra Uma experiência de cesura.

    Somos animais extremamente perigosos; de todos os animais ferozes que habitam esta terra, o ser humano conseguiu matar todos os seus rivais – exceto o vírus. No fim da Primeira Guerra, a gripe espanhola matou um número maior de pessoas do que a própria guerra. Mesmo levando em conta a nossa maravilhosa destrutividade, não somos tão eficientes quanto o vírus. (Bion, 1977/2014b, p. 273) Marina F. R. Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062020000100010

  • Sobre o potencial transformador da experiência com a literatura junto a adolescentes na escola

    Celina Diaféria ; Luis Cláudio FigueiredoII; Marina F R RibeiroI RESUMO A leitura, a escrita e as artes podem vir a proporcionar transformações da experiência do self, ampliando as possibilidades de interpretação da realidade, que se torna mais diversa, rica e complexa. Este artigo apresenta um trabalho na interface da literatura com a psicanálise de D. W. Winnicott, tendo ainda como referência ideias de Marion Milner. De modo a compreender como se dá o processo de elaboração da experiência vivida por meio da leitura mediada e criação de textos ficcionais, foram selecionados alguns episódios vividos junto a alunos de treze e quatorze anos na escola. A partir da apresentação de objetos culturais em propostas com a leitura e a escrita, o educador cria um ambiente de confiança, favorável ao gesto criativo dos jovens. Algumas experiências vividas junto a adolescentes no contexto escolar permitem ao leitor ver como as angústias podem ser elaboradas em produções criativas, desde que sejam ofertados aos jovens meios maleáveis aos quais eles possam imprimir seu estilo pessoal e pelos quais possam expressar sua singularidade. Palavras-chave: literatura, psicanálise, teoria geral do cuidado, educação. Link de acesso ao texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-69542020000100007

  • A linguagem perdida das gruas

    Péricles Pinheiro Machado Jr.2 Marina Ferreira da Rosa Ribeiro3 Resumo: Neste ensaio discutimos a concepção de linguagem de sobrevivência para designar o modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo. Partimos de uma discussão sobre os limites da linguagem como fenômeno paradoxalmente impessoal e interpessoal, que introduz no campo analítico uma dialética fundamental para engendrar com cada analisando uma linguagem de reconhecimento capaz de veicular a intimidade da experiência. Para isso, propomos um diálogo com textos de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira e Tomas Ogden acerca das possibilidades da comunicação analítica nos limites próprios das formulações verbais. Palavras-chave: linguagem, comunicação, singularidade, reconhecimento, interpretação . 1 O artigo é parte da pesquisa de doutoramento de Péricles P. Machado Jr. no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp), sob orientação de Marina F. R. Ribeiro. Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de doutorado que financia o projeto de pesquisa. . 2 Psicólogo e psicanalista. Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Pesquisador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Doutorando pela Universidade de São Paulo (usp). Mestre em psicologia social pela usp e pela Birkbeck College, Universidade de Londres. . 3 Professora doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro fundador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (Lipsic). Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. No livro e lost language of cranes (1986), do qual extraio o título deste artigo, o escritor norte-americano David Leavitt narra os conflitos familiares vividos por um jovem de classe média, Philip, que certo dia, acidentalmente, assusta-se ao se dar conta da força impetuosa de suas paixões e de sua inca- pacidade de encontrar palavras para descrever a tempestade emocional que o aflige.
Outra personagem desse romance, Jerene, doutoranda em filosofia da linguagem na Universidade de Stanford, também se depara acidentalmente com algo que afeta radicalmente o rumo de sua vida e a direção de suas investigações acadêmicas. Durante uma pesquisa na biblioteca da universidade, Jerene encontra um artigo psicanalítico que descreve o caso de uma criança chamada Michel. À medida que lê a síntese do relato, ela sente despertar dentro de si uma angústia que a toma de assalto e a faz mergulhar no texto como se adentrasse um universo paralelo, que guarda inúmeras semelhanças com algo que ela mesma intuía silenciosamente sobre si. Filho de uma adolescente com histórico de problemas mentais, Michel vive abandonado em um cubículo nos subúrbios de Nova Iorque enquanto a mãe vagueia pelas ruas da cidade, imersa em sua loucura privada. Sobre o pai, nada sabemos. Os cuidados para com o bebê eram precários. A despeito dessa precariedade, Michel sobrevive. Ele chega aos 2 anos de idade sem aprender a falar: grita, berra, chora, emite sons apavorantes, que atravessam as paredes e chegam até os vizinhos, os quais frequentemente tentam intervir, embora sem sucesso. Certa vez, a mãe sai de casa e desaparece por dias, deixando Michel à própria sorte. Assolado pelo terror do desamparo, ele grita a plenos pulmões. Os vizinhos batem à porta, ninguém responde. Queriam, a princípio, que o garoto se calasse e deixasse de importuná-los. Depois de muito chorar e per- turbar longamente o sossego dos vizinhos, em determinado momento Michel emudece. O som é interrompido subitamente. Nada mais ecoa de dentro do cubículo sujo e precário. Os vizinhos estranham. O silêncio ensurdecedor torna-se então motivo de inquietação e alarme. Desconfiam que o garoto esteja desacompanhado, talvez morto. A polícia e a assistência social são acionadas. Encontram Michel esquálido, absorto, não obstante vivo. Sozinho em uma espécie de berço mal-ajambrado, ele se segura na grade e parece envolvido em uma espécie de transe. De vez em quando, seu rosto se volta para a janela e ele emite grunhidos que soam como arranhões metálicos. A assistente social observa com curiosidade. Ao olhar através da janela, ela vê um pátio de construção onde estão instaladas gruas gigantescas, das quais pendem bolas de demolição. Conforme as gruas acendiam os faróis, basculavam os eixos metálicos, produziam sons ferozes dos motores e arremessavam as bolas contra as ruínas de um prédio antigo, o pequeno Michel as imitava com movimentos bruscos de braços, pequenos guinchos estridentes produzidos por entre os dentes e sons de estalo feitos com a língua. Michel é levado para um abrigo. Os anos passam, e ele chega à adolescência sempre imerso em um estado de selvagem isolamento. É nesse ponto que ele começa a ser acompanhado pela psicanalista que havia publicado o artigo encontrado acidentalmente por Jerene. Michel não interage com outras crianças, não se interessa por outros brinquedos. O mundo que ele conhecia limitava-se aos movimentos robóticos dos braços e aos sons de apelo às gruas que, tal qual um útero metálico, lhe haviam fornecido um ponto de apoio e provido um contorno sensorial para seu terror sem palavras. À medida que Jerene lê o trabalho, algumas perguntas lhe vêm à mente: “Como eram esses sons? Como será que ele se sentia?” A linguagem pertencia unicamente a Michel e agora estava para sempre perdida para ela [Jerene]. Quão maravilhosas, quão grandiosas aquelas gruas devem ter parecido a Michel em comparação com as pequenas e desajeitadas criaturas que o rodeavam. Pois cada um, a seu modo, ela acreditava, encontra aquilo que deve amar e o ama. A janela se torna um espelho. Seja lá o que amamos, isso é quem somos. (Leavitt, 1986, p. 177). Valho-me dessa recordação literária como prelúdio para delinear o território em que desenvolvo este trabalho. Tenho em mente o impacto que a leitura do romance de Leavitt teve em minha vida, especialmente por haver nela encontrado ressonâncias de uma experiência que me parecia bastante familiar durante a adolescência: as sensações de inundação passional e o sentimento de frustração ao tentar me expressar em um idioma sem referências conhecidas, uma língua que em grande medida não encontrava tradutores nem intérpretes com quem fosse possível desenvolver uma conversa verdadeira. A breve descrição de uma personagem que acredito ser fictícia, Michel, o menino das gruas, oferece imagens que nos servem para pensar o trabalho psicanalítico como processo de (r)estabelecimento de vínculos humanos, intra e intersubjetivos, por meio da linguagem. Vejo Michel como uma metáfora para o sentimento de solidão, isolamento e sofrimento que acompanha todo aquele que busca na análise um outro que seja capaz de compreender sua linguagem perdida das gruas. Costumo designar esse fenômeno como linguagem de sobrevivência, para indicar um modo de comunicação singular e solitário que uma pessoa produz para dar conta de turbulências emocionais vividas em estado de desamparo, isto é, nos limites do quanto se pode contar (ou não) com a presença do outro. No contato cotidiano, essa linguagem passa despercebida. As pessoas conversam entre si, aprendem expressões, slogans, usam palavras da moda, dos memes, dos posts de Facebook e comentários de Instagram. Falam o que ouviram dizer e se expressam por meio da repetição mimética como modo de aplacar o vazio que ameaça se revelar nos momentos de descuido. Podem falar aquilo que os outros querem ouvir, contam sobre seus fins de semana com amigos, falam com os pais por telefone, descrevem seus sintomas quando vão ao médico. A linguagem a que me refiro é útil para as operações fundamentais da vida prática, mas carece da vitalidade necessária para formar vínculos emocionais entre elementos e engendrar novas concepções mobilizadoras de sentido, para si e para o outro. A linguagem de sobrevivência recorre à paralisia de formulações prontas e encapsuladas para dar conta da oscilação que se agita silenciosamente no íntimo de suas palavras. Nesse sentido, ela revela o “sentimento de desespero que influencia a vida de uma pessoa” fadada a buscar na reorganização incessante de esquemas de linguagem um senso de pertencimento por meio da adesão ao conhecido, com “um sentido muito restrito de futuro que essas representações carregam com elas” (Bollas, 1992, p. 56). A língua vernácula é aprendida e pode mesmo ser dominada com maestria. Mas quando uma pessoa chega ao consultório para uma primeira conversa com o psicanalista, acontece algo que parece iluminar os contornos dessa linguagem única. Nela detectamos os vestígios de uma linguagem mais primitiva, cujas manifestações soam como palavras, mas carecem do poder e do significado das palavras que auxiliam no pensamento e na comunicação. Elas não são produtos da mente (elementos alfa), mas se parecem mais com algo viscoso, como lágrimas ou outras excreções corporais, ou mesmo o ar quente e vazio de um suspiro pesado. (Reiner, 2018, p. 51) Os primeiros indícios são percebidos em sua atitude diante do desconhecido da sala de análise. Certas pessoas chegam e falam sem parar. Algumas falam como se estivessem na farmácia, pedindo um remédio para tosse. Outras pronunciam palavras trêmulas, sedutoras, enigmáticas e sem destino. A linguagem de sobrevivência vai aos poucos emergindo no contraste com a sensibilidade do analista, que pode escutar naquele que o busca vestígios de palavras malformadas, murmúrios interrompidos, sons errantes em busca de abrigo. Há que ter respeito pela linguagem de sobrevivência, pois é no limite desta que se move o ímpeto que leva a pessoa a mais uma vez buscar ajuda, ainda que seja sua primeira experiência com um analista. Como a personagem Jerene, pergunto-me com frequência quais seriam os sons originais, a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que pronuncia, seus maneirismos idiossincráticos, suas entonações (que talvez sejam vestígios de identificações remotas), suas formas narrativas, suas conjugações pouco usuais, suas figuras de linguagem, ora brutas, ora mais sofisticadas. Como será que suas emoções são vividas, quando a linguagem disponível para o analisando naquele momento parece ser insuficiente ou demasiadamente rasurada para dar forma a suas experiências mais íntimas? Os limites da linguagem Ruth Malcolm enuncia de maneira extremamente simples que “o processo analítico é um processo de comunicação” (1989, p. 103). É certo que se trata de uma modalidade peculiar de comunicação, atravessada pela situação transferencial, pelas teorias que o analista tem em mente, pelas condições particulares de cada analisando. Como a personagem Michel, a pessoa que busca análise chega até nossos consultórios com uma organização linguística à qual temos acesso somente por meio de sua apresentação fenomenológica. Somos apresentados ao mundo interno do analisando por meio de suas verbalizações, mas também somos afetados por seu contexto extraverbal (Bakhtin, 2011), aqueles elementos singulares que caracterizam a estrutura de significação desse mundo interno com sua gramática afetiva particular. Por outro lado, a fala do analista desperta no analisando respostas e reações emocionais às quais igualmente teremos acesso somente pela linguagem própria daquele que nos procura, uma linguagem que frequentemente se organiza como meio de resistência para dar conta de uma agitação emocional que se apoia no que for possível para encontrar alguma vazão. Como então estabelecemos com o analisando um canal de comunicação que possibilite o reconhecimento de sua singularidade a partir do estranhamento e das limitações próprias dessa mesma singularidade? Como podemos aprender a linguagem de sobrevivência do analisando para engendrarmos uma linguagem de reconhecimento que seja igualmente única mas compartilhada pela dupla analítica? Em um texto sobre a ética dos relacionamentos humanos, Stephen Frosh propõe um delineamento da experiência psicanalítica pelo vértice da dinâmica do contato entre duas mentes, analista e analisando, e de como as sutilezas que percorrem a formulação dessa dinâmica se revelam através da linguagem. Segundo o autor, a psicanálise em suas formas contemporâneas se interessa em como a fantasia adentra as relações humanas, como o sujeito pode se tornar um outro amado ou odiado para o outro, o que significa (ou como se sente) uma pessoa ao estar em conexão próxima e ao mesmo tempo conturbada com um outro, e em modos de articular e aliviar o mal-estar através da construção de relacionamentos que sejam abertos e, em importantes sentidos, verdadeiros. (2010, p. 127) Nessa perspectiva, o reconhecimento do outro é tomado como um evento que envolve uma dinâmica ativa do encontro de duas pessoas, em que o movimento mútuo de se estender em direção ao outro tem o potencial de viabilizar a emergência ou a manifestação de algo que pode ser experimentado como verdade. O vocabulário do reconhecimento do outro perpassa a compreensão dos limites da linguagem como meio de expressão da experiência íntima de cada pessoa. Dentro do que chamei de linguagem de sobrevivência, encontramos com cada analisando o desafio de perscrutar as raízes de seu idioma pessoal, ao mesmo tempo que (delicadamente) fornecemos insumos para que seus recursos de comunicação se expandam, tendo o cuidado de não provocar uma perturbação além do que pode ser suportado no campo engendrado pela dupla. Frosh traz para o debate a função que a linguagem desempenha na própria configuração da relação eu-outro. Desde sua fundação com Freud, a psicanálise reconhece a potência da palavra como elemento que ao mesmo tempo constitui e perturba a dinâmica intrapsíquica, mas também está interessada naquilo que fica de fora das possibilidades de simbolização, isto é, no “contínuo murmúrio do não linguístico ..., naquelas experiências que parecem nos escapar justamente quando estamos prestes a enunciá-las” (2010, p. 139). Fico pensando no modelo do menino das gruas para refletir sobre os aspectos da linguagem própria do analisando, que derivam não apenas de suas possibilidades expressivas, no sentido de traduzir ou comunicar seus movimentos emocionais, mas também, em alguma medida, de algo que poderíamos designar como impessoal. Nascemos em um tecido linguístico que nos antecede e extrapola os limites de nossa compreensão, transcende tempo e espaço, lança-nos em contato direto com o desconhecido. Arnaldo Chuster introduz a discussão de que o campo das trocas simbólicas é mediado por símbolos heterônomos e símbolos autônomos. Os primeiros incluem toda a gama de “símbolos adquiridos da cultura dentro da qual o sujeito habita” e na qual “encontra ferramentas comuns a todos: os conceitos”. Por sua vez, “os símbolos autônomos são os criados pelo indivíduo ou o resultado do processamento psíquico que marca a subjetividade”. (2018, p. 55) A apropriação daquilo que advém da cultura revela-se no fenômeno social que denominamos língua materna, nas malhas de significados linguísticos infinitos, nos signos e conceitos que organizam a dimensão impessoal da vida psíquica, visto que decorrem de sistemas que precedem a existência de cada indivíduo humano. Mas é nessa e através dessa malha que extraímos elementos para formular nossa linguagem pessoal, sempre de forma incompleta e precária. Frosh relaciona essa interface simbólica com o elemento impessoal a que aludi metaforicamente quando da apresentação da narrativa do menino das gruas: Aquilo que é silenciado sustenta a fala, mas também é por ela excluído. É ainda a impessoalidade da fala que é importante aqui, pela qual se entende o modo como a linguagem funciona como um sistema que não está simplesmente à disposição dos falantes individuais, mas tem suas próprias regras, sua própria maneira de fazer as coisas. (2010, p. 139) Somos produzidos pela palavra. Com a palavra precisamos nos articular, encontrar meios de expressão subjetivos (a dimensão dos símbolos autônomos, discutida por Chuster), mas para tanto precisamos recorrer a esse sistema com vida própria que independe e extrapola o desejo dos seres falantes. Frosh cita a poetisa inglesa Denise Riley para discutir esse núcleo impessoal que atravessa os sistemas linguísticos e cujas repercussões podem ser captadas na maneira como cada pessoa experimenta conexões e rupturas afetivas no contato com o outro. A exemplo disso, Riley observa “como a mais profunda intimidade junta o supostamente linguístico ao supostamente psíquico” (citada por Frosh, 2010, p. 11). Ambas as dimensões são indissociáveis, porém operam a partir de conjuntos infinitos com sucessões de signos, ou “protossímbolos individuais que vão sofrendo transformações até emergirem no campo de trocas simbólicas” (Chuster, 2018, p. 35). Mais que um antagonismo entre a linguagem que deriva das formas impessoais e aquela que decorre da experiência viva do sujeito humano, Riley propõe uma concepção de “palavras afetivas que nos habitam”, isto é, que possamos apreciar o fato de que “a linguagem se insinua dentro das pessoas e impõe a impessoalidade no coração de cada sujeito humano” (citada por Frosh, 2010, p. 139). O elemento impessoal se revela na obra de Leavitt (1986) pela imagem da criança movimentando os braços e emitindo grunhidos como uma metáfora para os conflitos internos vividos pelas personagens Philip e Jerene, aprisionadas em um sistema linguístico insuficiente para traduzir as correntes emocionais que os arrastam para cada vez mais longe de seus anseios por afeto. Philip havia aprendido a falar coisas que as pessoas falam quando querem dizer o que pensam, mas não o que sentem. E percebe, para sua desgraça, mas também para sua eventual libertação, que passou a vida inteira reproduzindo uma linguagem extraída de um seio familiar árido e sem vida, uma fala incapaz de estabelecer vínculos afetivos. A linguagem como meio de comunicação supõe o reconhecimento da presença de duas pessoas abertas ao encontro. O analisando que se expressa em linguagem de sobrevivência pode ser capaz de dar indícios de seu sofrimento sem que isso represente para si, do ponto de vista emocional, uma experiência de comunicação – de troca com alguém percebido como outro. Segundo Anne Reiner, uma vez que a linguagem capaz de preencher a lacuna entre duas pessoas com mentes únicas e independentes reflete a capacidade de desenvolvimento da individuação, o paciente que não possui essa capacidade não sabe que está falando com um indivíduo separado fora do eu. (2018, p. 46) O ofício psicanalítico nos coloca em condição de nos depararmos com as fronteiras, os limites e suas simetrias eu/outro, dentro/fora, intra/intersubjetivo, inconsciente/consciente, finito/infinito, isto é, o trabalho na cesura, conforme propõe Bion (1989). A dimensão da impessoalidade atravessa os processos de expressão humana, dado que estamos inseridos em um sistema linguístico que opera não apenas por sons, mas por silêncios, por afirmações e murmúrios, por elementos verbais, pré-verbais e não verbais. Ainda que impessoal, é somente por meio da linguagem que podemos experimentar a potência do acontecimento humano em suas expressões mais singulares e criativas. A intuição analítica traz consigo a possibilidade de auxiliar o analisando a navegar pelas imprecisões da linguagem para encontrar em sua própria voz algo que lhe comunique a mais íntima experiência de ser. A comunicação analítica nos limites da linguagem Como humano que somos, também o analista precisa se valer das possibilidades e limites da linguagem para estabelecer com cada analisando um idioma próprio, que ao mesmo tempo seja o meio de conexão afetiva e o indutor de novas conexões afetivas. Entre sons, palavras e pausas, algo se insinua a despeito do que poderíamos designar como uma intencionalidade da consciência no sentido fenomenológico. As experiências pessoais do analista em contato com o universo das expressões estéticas proveem elementos que podem sensibilizar e facilitar a captação de imagens e movimentos afetivos que se imiscuem na linguagem falada do analisando. A proposta freudiana de associação livre visa a introduzir no espaço analítico um elemento de liberdade radical. De nosso ponto de vista, tudo aquilo que o analisando diz e faz e a forma como o diz e o faz são recebidos como precipitações do inconsciente – portanto, fundamentais para o trabalho da escuta e do pensamento onírico. Na condição de um diálogo ativo, o analista recorre predominantemente à linguagem verbal para se comunicar com o analisando, “mas sabemos também que esse ideal nunca é completamente atingido, pois o tom de voz do analista muda, ele se movimenta ou fala de maneira que pode comunicar ao paciente mais do que ele gostaria”. (Malcolm, 1989, p. 110) As inflexões, as modulações, a respiração, o barulho de objeto manuseados durante a sessão (como um lápis ou um copo), os goles d’água tomados para arrefecer ou fluidificar os pensamentos, os sons emitidos pelo corpo do analista, enfim, podem ser escutados pelo analisando como ruídos persecutórios ou provas flagrantes de elementos da verdade emocional que ainda não alcançou o estatuto representacional de palavra enunciada. Em todos os casos, esses elementos extraverbais se inscrevem na partitura da música que está sendo composta pela dupla analítica, alternando entre a harmonia e a cacofonia para dar contorno à experiência emocional vivida na sessão. Em um trabalho recentemente publicado, Thomas Ogden discute a maneira como ele conversa com seus pacientes, pondo em pauta também os limites da linguagem e a função dos mal-entendidos como o elemento que, de um lado, desorganiza e, de outro, favorece o contato com a verdade emocional do analisando. Ele parte da constatação de que, “em todos os momentos de seu trabalho juntos”, analista e analisando “esbarram no fato de que o imediatismo de suas experiências vividas é incomunicável” (2018, p. 400). Aquilo que se experimenta nos limites da linguagem marca, portanto, uma hesitação inevitável: estamos ambos diante um do outro para desenvolver uma conversa a partir de elementos que de antemão são incomunicáveis. Ogden cita William James para descrever a paradoxal experiência de isolamento e abertura que caracteriza o contato entre duas mentes humanas: Cada uma dessas mentes guarda seus próprios pensamentos para si mesma. Não há concessão ou intercâmbio entre elas. Nenhum pensamento sequer chega à presença direta de um pensamento em outra consciência pessoal que não a sua. Isolamento absoluto, pluralismo irredutível é a lei. ... As lacunas entre tais pensamentos [de duas pessoas] são as fendas mais absolutas da natureza. (James, citado por Ogden, 2018, p. 400) Penso nessas fendas como um equivalente daquilo que assinala os limites da linguagem como meio de comunicação entre as pessoas. A distância que marca a separação entre analista e analisando é a premissa fundamental para que haja o encontro e o reconhecimento do outro em sua expressão mais radical. A separação, a distância entre a experiência vivida por cada pessoa na dupla analítica, não representa algo a ser superado, mas a própria condição para que desse encontro nasça a experiência de contato genuína. Penso nessa fenda como o espaço em que se pode acolher a experiência criativa por meio da construção de uma linguagem comum à dupla analítica, de tal forma que analista e analisando “sejam capazes de comunicar alguma coisa parecida com nossas experiências vividas através da reapresentação da experiência”. (Ogden, 2018, p. 400) O que pode sustentar uma parceria criativa na sala de análise, considerando-se que estamos sempre nos limites da linguagem, nos limites da experiência emocional e nos limites da interpretação – essa curiosa tradução que opera na voz do analista e que vive ameaçada de causar perturbações cujos efeitos por vezes demoram a ser captados? Dito de outra forma, aquilo que o analisando nos apresenta em linguagem de sobrevivência tem sua razão de ser. Os mal-entendidos, os sub-entendidos e os não-entendidos revelam no diálogo analítico os vestígios de experiências que levaram uma pessoa a organizar por reflexo, instinto ou reprodução aquela linguagem que lhe é peculiar. Como no caso do menino das gruas, são as idiossincrasias e os sons imitativos que serviram um dia de ponto de apoio para dar contorno a uma experiência sem nome. Como as bolas de demolição que ganhavam impulso ao serem movimentadas pelas gruas para investir ferozmente contra os edifícios a serem destruídos, também a linguagem de sobrevivência do analisando abriga em sua estrutura uma força bruta que persiste a qualquer ameaça de desmonte. O núcleo que deve ser protegido é protegido a todo custo. É tanto o que impulsiona quanto o que refreia a possibilidade de contato com a verdade. Ogden descreve algo semelhante ao afirmar que “‘a indisposição’ ou ‘a incapacidade’ de fazer o trabalho analítico quase sempre reflete o equivalente transferencial/contratransferencial do método desenvolvido na infância para proteger sua sanidade e sua própria vida, método que vejo com reverência e até admiração” (2018, p. 402). O respeito à linguagem de sobrevivência do analisando é, a meu ver, a condição mais fundamental para que sejam mobilizados os recursos necessários para escutar, através das idiossincrasias e maneirismos, os sons originais e a vivência emocional mais bruta e verdadeira daquilo que o analisando expressa na forma das palavras que consegue pronunciar. Nos limites da linguagem, o analisando experimenta a dor que muitas vezes não pode ser vivida, que se expressa em terminologias imitativas em busca de uma escuta que reconheça nessas limitações “as forças subjacentes que levaram o paciente a buscar ajuda na análise”. (Ogden, 2018, p. 402) Nos limites da árida e por vezes desértica linguagem de sobrevivência do analisando, a fala do analista tem a função de reconectar fragmentos de sons originais, restituir-lhe pouco a pouco o orvalho emocional que poderá eventualmente evoluir para uma experiência de contato verdadeiro. As falas do analista designam sua escolha em lançar luz sobre determinado fragmento do encontro analítico em detrimento de outros, revelando, portanto, nossa condição de interlocutores nada isentos. Pérsio Nogueira, ao discutir o problema da comunicação no trabalho psicanalítico com adultos, adverte que as interpretações revelam uma intencionalidade do analista. ... Qual seja ela, não importa, no momento, para nosso problema. O significativo é que ela está presente, e pela sua presença dará significado e direção a todo o processo comunicativo que se estabelece. Por assim dizer, abrirá alguns canais de comunicação e simultaneamente fechará outros; remeterá as palavras e leituras a dado contexto e afastará de outros. (1993, p. 134) A advertência enunciada por Pérsio Nogueira vai no sentido de explicitar a complexidade da situação analítica, dado que, no cruzamento das enxurradas transferenciais que atravessam e precisam ser acolhidas com a chegada do analisando, o analista é primordialmente colocado no lugar das figuras de autoridade que levaram o analisando a engendrar sua linguagem de sobrevivência. Ou seja, temos o desafio de desconstruir e reconstruir o tecido linguístico que envolve o analisando, tomando o cuidado de primeiro aprender os signos, os sintagmas, o léxico e a gramática característicos de sua língua estrangeira singular. O exercício da dúvida sistemática diante da fala do analisando pode auxiliar o analista em seu laborioso ofício de recuperação dos sentidos de cada linguagem de sobrevivência que lhe é apresentada a cada sessão de análise. Evocando mais uma vez as palavras sinceras de Pérsio Nogueira, possivelmente inspiradas em Bion: O importante é fixar-nos no fato de que o universo emocional onde está inserida a palavra e o discurso podem contribuir para uma alteração marcante em seu significado e ser reveladores das mais diversas ansiedades. Isso nos deve levar a um extremo cuidado pelas consequências que se estabelecem para o lado da comunicação; ou seja, devemos ser cautelosos em acreditar que quando conversamos com alguém na mesma língua estamos falando das mesmas coisas. (1993, p. 144) A dúvida como método de indagação dos sentidos produzidos pelas palavras do analisando pode aos poucos explicitar a experiência emocional a que tais formações linguísticas se referem, cuidando para preservar os radicais que conferem ao analisando seu senso de individualidade. Quando a fala do analista pende para tonalidades de afirmações certeiras, corre-se o risco de retirar do analisando a possibilidade de caminhar em direção ao encontro com sua verdade emocional: Existe o perigo de enquadrar o paciente em um conjunto de interpretações. A capacidade de não saber é uma realização, e a função de não saber precisa desempenhar um papel explícito nas interpretações, transmitindo um elemento da sensibilidade analítica. Esse aspecto da técnica, descrito em termos da dialética da diferença, mitiga o perigo de a interpretação interferir na associação livre. (Nettleton, 2018, p. 139) A dialética da diferença mencionada por Sarah Nettleton refere-se à proposta de Christopher Bollas de que a função de não saber também precisa alcançar representação psíquica na experiência com o analisando. Quando a dupla se apega apaixonadamente a um ponto de vista, ainda que este tenha sido a resultante de uma experiência emocional captada e reconhecida por ambos em determinado momento, enfatiza-se o corolário em detrimento do laborioso processo que possibilitou sua realização. Nesse sentido, Bollas propõe que se dê atenção e se enuncie ao analisando todo o espectro de fenômenos experimentados no campo analítico como recurso para dar representação àquilo que constitui a linguagem viva em pleno ato de ser concebida na sessão de análise. As concordâncias e discordâncias entre analista e analisando revelam os movimentos imprecisos engendrados pela fala, estabelecem um espaço de liberdade de expressão em que a dúvida tem a função de desvincular aquilo que a interpretação vincula. Nessa melodia singular entoada pela dupla, as tensões das certezas rígidas cedem lugar às palavras errantes. A livre associação, “que se situa em algum lugar entre o saber e o não saber”, poderá ganhar voz e abrir espaço para que a palavra seja experimentada em sua potência viva mais genuína, isto é, como linguagem de criação: Como as palavras são usadas para expressar o que se passa na mente de uma pessoa, é possível considerá-las como uma forma de saber e como um procedimento vinculador. Mas quando alguém se propõe a dizer o que quer que lhe venha à cabeça, indiferente a quanto isso possa parecer bobo ou sem sentido, essa atitude evoca um princípio diferente: o do não saber e do desvincular. Talvez o pensamento influenciado, a reflexão profunda, o desreprimir de uma memória surjam de um estado de tensão mais favorável entre o processo de vincular e desvincular. (Bollas, 1992, p. 84) Em linhas paralelas, Ogden (2018) nota que as falas que procuram descrever aquilo que se observa na sessão podem ajudar o analisando a ter sua atenção despertada para elementos desprovidos de significados predefinidos, elementos vazados que poderão ser ocupados com expressões da experiência própria do analisando naquele instante, no imediato da experiência vivida. Como no caso do menino das gruas, penso que a linguagem de sobrevivência desenvolvida pelo analisando serve à função de uma segunda pele (Bick, 1968) que fornece algum nível de proteção contra o abissal do contato direto com as emoções. Ogden ressalta que as falas do analista que apontam para uma decifração da experiência do analisando convocam a atividade mental passiva do entendimento, o que pode facilmente tornar a possibilidade de encontro um jogo monótono, que leva a ainda mais retração. À guisa de inconclusão A experiência de reconhecimento da singularidade como fator fundamental para o encontro vivo entre duas pessoas implica a capacidade de lidar com as diferenças e as semelhanças, com a aproximação e o distanciamento, cuidando para que os contornos psíquicos sejam preservados e não ameaçados por esse contato. Slavoj Žižek destaca a função do não conhecer como essencial para que a experiência intersubjetiva de reconhecimento se realize: Se eu tivesse a pretensão de “realmente conhecer” a mente do meu interlocutor, a intersubjetividade propriamente dita desapareceria; ele perderia seu status subjetivo e se transformaria – para mim – em uma máquina transparente. Em outras palavras, não ser conhecível aos outros é uma característica crucial da subjetividade, do que queremos dizer quando atribuímos aos nossos interlocutores uma “mente”: você “realmente tem uma mente” apenas na medida em que esta é opaca para mim. (2006, p. 178) Na experiência psicanalítica, o não ser conhecível se entrelaça com a emergência da necessidade de ser reconhecido, de viver experiências que ajudem uma pessoa a se deslocar de uma linguagem com componentes frios e metálicos de sobrevivência para uma linguagem possível de reconhecimento e encontro com o outro. Ogden intui que a maneira como falamos reproduz simultaneamente “o desejo de ser entendido [to be understood] e de ser desentendido [to be misunderstood]” (2018, p. 412) o que se reflete também na maneira como escutamos as outras pessoas. Há algo essencial por trás da linguagem de sobrevivência que precisa ser preservado a todo custo, ainda que o sentimento de isolamento necessário seja, em alguns momentos, o motor do sintoma que conduz uma pessoa à busca da análise. A aventura de aprender a linguagem de sobrevivência de cada analisando coloca-nos diante do mistério de seus sons primordiais, das experiências infantis, de encontros e desencontros, do desassossego em que foram erigidas suas formas de expressão. Em certas ocasiões, podemos intuir alguma sensibilidade protegida sob as formulações esdrúxulas, os cacoetes verbais empregados por uma pessoa que se dirige ao analista em busca de algo que ela chama de análise, ou terapia, ou mesmo coaching, aconselhamento, conversa, bate-papo, consulta ou qualquer outra designação disponível em seu léxico pessoal. Em outras ocasiões, salta aos olhos (e aos ouvidos) o temor com que um pedido se esboça nas palavras escolhidas. Em qualquer que seja o caso, em quaisquer que sejam as formas e os alcances expressivos da linguagem possível do analisando, temos sempre o incomensurável desafio o de buscar estabelecer com ele uma linguagem capaz de forjar uma troca genuína entre dois seres humanos. Não raro escutamos de nossos analisandos a constatação de que a linguagem que usamos na sessão psicanalítica é de natureza diversa, não obstante as palavras e a língua utilizada serem velhas conhecidas. É nos interstícios da linguagem comum, nas microscópicas fendas que simultaneamente unem e separam as palavras e as organizações verbais, que se capta o elemento essencialmente vivo da experiência emocional, aquilo que jaz protegido por trás da ampla murada erigida para conter a violência das emoções e o ímpeto das paixões. Se nos pusermos a escutar por entre as frases mecânicas, por através das construções brutas e por trás dos silêncios que brotam dos ruídos metálicos que movimentam as gruas da linguagem de sobrevivência, poderemos encontrar a matéria viva que mobiliza uma pessoa a buscar – da forma como pode – a ajuda possível da análise. A potência criadora das palavras perdidas revela-se nos vacilos da linguagem, na possibilidade de desentender as certezas, desvincular as narrativas e desencapsular os sentidos aprisionados. Finalizando com uma providencial citação da historiadora Arlette Farge, ao discutir as relações do historiador com o jogo de aproximações, oposições, encontros acidentais e sentidos singulares despertados pelas falas que se extraem do trabalho vivo com os arquivos históricos, deixo aberta a palavra para buscar, em breve, novas realizações: No murmúrio de milhares de palavras e frases, poderia ocorrer de se buscar apenas o extraordinário ou o resolutamente significativo. Isso, sem dúvida, seria um erro: o aparentemente insignificante, o detalhe sem importância traem o indizível e sugerem muitas formas de inteligência viva e de entendimentos refletidos que se misturam a sonhos frustrados e a desejos adormecidos. As palavras traçam figuras íntimas e expõem as mil e uma formas da comunicação de cada um com o mundo. (2009, p. 89) El lenguaje perdido de las grúas Resumen: En este ensayo discutimos la concepción de un lenguaje de supervivencia para designar un modo de comunicación singular y solitario que una persona produce para hacer frente a la agitación emocional experimentada en estado de impotencia. Partimos de una discusión sobre los límites del lenguaje como fenómeno paradójicamente impersonal e interpersonal que introduce en el campo analítico una dialéctica fundamental para engendrar con cada paciente un lenguaje de reconocimiento capaz de transmitir la intimidad de la experiencia. Proponemos un diálogo con las obras de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira y Thomas Ogden sobre las posibilidades de comunicación analítica dentro de los límites inherentes a la formulación en lenguaje verbal. Palabras clave: lenguaje, comunicación, alteridad, reconocimiento, interpretación The lost language of cranes Abstract: In this essay we discuss the conception of a language of survival to des- ignate a singular and solitary mode of communication that a person produces to cope with emotional turmoil experienced in a state of helplessness. We begin by discussing the limits of language as a paradoxically impersonal and interpersonal phenomenon that calls for a fundamental dialectic in the analytic eld for the en- gendering of a language of recognition capable of conveying the intimacy of expe- rience with each analysand. We propose a dialogue with the works of Christopher Bollas, Pérsio Nogueira and Thomas Ogden on the possibilities of analytical com- munication within the limits inherent to formulation in verbal language. Keywords: language, communication, alterity, recognition, interpretation Résumé: Dans cet essai, nous discutons la conception d’un langage de survie pour désigner la manière de communication singulière et solitaire qu’une personne produit pour faire face aux troubles émotionnels vécus dans un état d’abandon. Nous commençons par une discussion sur les limites du langage, en tant que phénomène paradoxalement impersonnel et interpersonnel, lequel introduit dans le champ analytique une dialectique fondamentale, à n d’engendrer un langage de reconnaissance capable de transmettre l’intimité de l’expérience à chaque analysant. A cet e et, nous proposons un dialogue avec les travaux de Christopher Bollas, Pérsio Nogueira et Thomas Ogden sur les possibilités de la communication analytique dans les limites inhérentes à la formulation en langage verbal. Motsclés: langage, communication, singularité, reconnaissance, interprétation Referências Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.a ed., P. Bezerra, Trad.). São Paulo: wmf Martins Fontes. Bick, E. (1968). e experience of skin in early object relations. e International Journal of Psychoanalysis, 49, 484-486. Bion, W. R. (1989). Two papers: e grid and Caesura. London: Karnac.
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Reiner, A. (2018). Bion and being. Abingdon: Routledge. Žižek, S. (2006). e parallax view. Cambridge: mit. Recebido em 2/9/2019, aceito em 17/9/2019 Péricles Pinheiro Machado Jr. Alameda Jaú, 72, conj. 92 01420-000 São Paulo, sp
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  • Filhas da PUC

    Para início de conversa sou filha da PUC com muito prazer e orgulho. E isso vem antes de qualquer agradecimento, mas já se trata de vários reconhecimentos gratos pertencentes há uma sucinta frase. Primeiro ao Luis Cláudio, meu orientador de doutorado, mas não apenas. Para quem ainda não sabe, encontramos em vários textos seus a expressão: para início de conversa! Que também se tornou um pouco minha e tem momentos que me recordo disso, outros que esqueço, porquê já faz parte do meu acervo como pessoa. Assim como um certo modo de pensar a psicanálise, uma certa liberdade ousada e consistente de fazer atravessamentos de paradigmas que sempre apreciei e admirei. Ao Renato Mezan gostaria de agradecer pelo que você provavelmente ainda não sabe, mas que vou contar agora. Um dos meus primeiros trabalhos no doutorado, fiz para a sua disciplina, e veio a se transformar em um dos capítulos da minha tese. Apreensiva ao receber seus comentários encontro um bilhete simpático de alguém que leu, apreciou o texto e considerou-o criativo. Aquelas folhas de papel ficaram guardadas por um bom tempo, como um tipo de talismã que me dizia: continue! Nos encontramos novamente na defesa do doutorado e foi um trajetória marcante e realizadora como pesquisadora, e que continua, agora na USP. No entanto, mesmo estando na USP, sou filha legítima da PUC, também porque sou filha do Walter Ribeiro; que fez PUC no final da década de sessenta, uma das primeiras turmas da psicologia, e foi um dos pioneiros da Gestalt Terapia no Brasil. A infância tem esse poder de deixar marcas nas quais passamos a orbitar sem nos darmos conta. Lembro de aos oito anos estar com meu pai na clínica da PUC fazendo testes psicológicos e, depois, conhecer seus colegas. Não entendia absolutamente nada do que estava ocorrendo, mas me senti importante, e isso era tudo. Entrei pela porta das Ciências Sociais na graduação da PUC em 1981. Na época, fazíamos o curso básico no primeiro ano e naquele momento a psicologia do curso básico colocou abaixo a minha rebeldia de final de adolescência de não seguir a profissão do meu pai, naquele momento todas as minhas identificações edípicas ganharam espaço dentro de mim, criaram raiz sem pedir licença, simplesmente existindo. A experiência da graduação foi uma espécie de anos dourados. E, tenho deles, um tipo de memória de viagem, daquelas que você se lembra da bisteca fiorentina que você saboreou em Firenze naquele restaurante, atravessando a ponte vecchia do lado esquerdo. Exatamente em qual ano...já se perdeu, mas a cor e o sabor do prato permanecem vivos. Durante a graduação fiquei dividida entre a Gestalt Terapia que meu pai tanto amava, e a psicanálise que já me encantava, mas que seria uma traição a lealdade paterna, assim como o primeiro namorado. Em meados da década de oitenta quem se formava e queria trabalhar em consultório fazia cursos de especialização no já reconhecido Instituto Sedes Sapientiae, instituição também filha da PUC, mas que tomou rumos próprios. E lá estava eu recém- formada atendendo em consultório e fazendo a especialização em Gestalt Terapia. A transição para a psicanálise foi por meio da análise; a melhor e a mais consistente maneira de nos tornarmos psicanalistas. Lembro de uma situação emblemática dessa transição da Gestalt para a psicanálise. Em 1993 eu era professora no curso de especialização em Gestalt Terapia no Sedes, ministrava o curso sobre Abordagem Dialógica de Martin Buber, e era aluna no curso de Formação em Psicanálise, o que sempre deixava confuso o manobrista do estacionamento, afinal eu era professora ou aluna? Reencontrei Martin Buber depois de muitos anos no texto de Bion e isso fechou uma Gestalt de forma impressionante. Penso que o interesse pelas teorias que habitam a mente de nossos pais e depois de nossos analistas é uma herança inescapável. Encontrei Klein e Bion na análise, nos pacientes, na vida. Se não é como a vida não é psicanálise, disse Bion em uma das suas visitas ao Brasil na década de setenta. Antes do mestrado fiz a minha Formação em Psicanálise no Sedes. Lá encontrei colegas que me apresentaram teoricamente Melanie Klein, e essa foi outra forte identificação clínica e teórica. Será que os autores psicanalíticos se tornam objetos internos que nos habitam? Penso que sim. Klein e Bion são o casal parental psicanalítico amoroso e criativo enraizado em mim. Freud reencontrei de forma mais vitalizada nos dez anos que acompanhei presencialmente as aulas do Luís Cláudio na PUC, marcantes como as memórias de viagem. Fui ser filha do mestrado na PUC depois de quinze anos exclusivamente como psicóloga e psicanalista clínica. Nesse momento estava interessada em Bion e nos trabalhos dos sonhos, exatamente onde estou agora! O trem da chegada é o mesmo da partida, e por esse motivo retomo o nome do meu projeto inicial de pesquisa na época: uma investigação sobre o relato de sonhos na sessão como algo promovedor de mudanças psíquicas. O pensamento onírico já me interessava muito. O texto de base era A vida onírica de Donalt Meltzer que tinha estado no Brasil em meados da década de noventa. E, além disso, encontrei o livro de Maria Emília Lino da Silva, Pensando o pensar com Bion, fruto de uma consistente tese de doutorado defendida na USP. Maria Emília foi minha orientadora de mestrado, com ela comecei meus estudos teóricos sobre Bion. O primeiro texto que escrevi no mestrado em 1999 para disciplina da Maria Emília foi A Conversa Analítica. As palavras são as pessoas que as pronunciam. Texto que continua a ter desdobramentos nas minhas pesquisas; também os textos têm uma invariância, algo que permanece ao longo do tempo e que reconhecemos como próprio, assim como as fotos da infância. Mas os ventos sopraram e fui passear como pesquisadora por outras cearas que também faziam parte de um território sempre desconhecido chamado Eu. No meio do mestrado resolvi fazer um outro tipo de trabalho: fui pesquisar os sofrimentos psíquicos na maternidade, ou no caso, na sua ausência, na infertilidade. As mudanças de rumo fazem parte do processo de pesquisa, mas são trabalhosas e precisam ser sustentadas com consistência. Hoje comento no meu grupo de pesquisa: iniciamos com um projeto que será desmontado e remontado algumas vezes, e, na melhor das hipóteses saímos transformados por uma experiência como pesquisadores, sempre no enfrentamento de angústias. Se temos bons parceiros no trajeto isso facilita, mas um projeto de pesquisa, que seja um mestrado ou um doutorado, é sempre um processo de elaboração. Escrever e pesquisar é uma forma de pensar. A psicanálise é indissociável da atitude de pesquisador, escreveu Freud a quase cem anos. Submeti meu mestrado para publicação na antiga Casa do Psicólogo, e lá também tive uma experiência semelhante aos comentários do Renato Mezan ao meu texto. Quem leu o texto, gostou e quis publicar. Coincidência ou não, ou trama inconsciente, Flávio Ferraz foi quem me convidou para publicar o mestrado, e, anos depois, participou da minha defesa de doutorado. Logo após o término do mestrado, fui ser ouvinte das aulas do Luis Cláudio e Nelson Coelho na USP. Adorei o lugar, todo arborizado, me lembrava Brasília, cidade da minha adolescência. O primeiro contato que fiz com o Luís Cláudio já foi preciso e sucinto: A sua pesquisa é clínica? Respondi que sim. Vá para a PUC. E essa foi minha brevíssima passagem pela USP, um semestre. Iniciei o doutorado em 2005. A forma de orientar em grupo do Luis Cláudio foi algo extremamente produtivo e marcante para mim, tanto que atualmente no meu grupo de pesquisa fazemos um trabalho semelhante. Todos leem e colaboram com a pesquisa e com o texto dos colegas, o que tem tornado os trabalhos gerados consistentes e de qualidade. Além de criar uma cumplicidade fraterna que favorece o enfrentamento das angústias que são inerentes a trajetória do pesquisador. Como fruto do doutorado publiquei o livro De mãe em filha. A transmissão da feminilidade. No mesmo ano que iniciei o doutorado comecei a ministrar aulas regularmente no Instituto Sedes Sapientiae em um curso que durou muitos anos e que estava vinculado a minha pesquisa de doutorado: Entrelaces psíquicos entre mães e filhas. Concomitante a esse primeiro curso iniciei em conjunto com Gina Tamburrino o curso Para além da contratransferência: o analista implicado, que em 2017 se transformou no nome de uma coletânea. Nesse curso ministrávamos aulas com os textos de Antonino Ferro, Thomas Ogden e Bion. Meus estudos sobre a obra de Bion continuaram paralelamente a pesquisa de doutorado sobre a feminilidade. Ainda no doutorado, Gina Tamburrino e eu apresentamos a teoria das transformações de Bion em um curso do Luis Cláudio. Usamos nessa apresentação as anotações do LC. Suas anotações de aula eram um estudo minucioso, reflexivo, desconstrutivo do difícil livro de Bion Transformações. No intervalo, em um descontraído café (isso perdemos no modo online), comentamos: Luis Cláudio seria muito bom publicar esse material, não há nenhum livro com essas características, de uma leitura tão próxima desse enigmático livro de Bion. Na ocasião ele comentou que seriam necessárias muitas horas para fazer a revisão e a organização do material. Gina e eu nos prontificamos a fazer isso, e Luis Cláudio generosamente nos acolheu como coautoras. O livro sobre Balint teve uma trajetória parecida. Em 2012 recebo um @ do Luís Cláudio com suas sucintas e consistentes frases: veja se você se anima! Percorro o @, era o edital de concurso na USP para as disciplinas de Melanie Klein, Bion e Winnicott e para as disciplinas de Atendimento Clínico, ou seja, indubitavelmente meu número. Li aquela lista enorme de documentos e procedimentos e a frase do Luis Cláudio ficou ecoando em mim: veja se você se anima, e acabei me animando a enfrentar um concurso árduo, mas que valeu o esforço. Hoje, olhando de forma um pouco mais distante no tempo, penso que foi uma situação de serendipidade (Chuster): quando encontramos o que não estávamos procurando, mas esse encontro faz toda a diferença. A USP entrou assim na minha vida, encontrei o que não estava procurando, mas esse encontro fez toda a diferença. Outro significativo encontro foi com Elisa Cintra; primeiramente na qualificação do doutorado, depois na defesa, e um pouco mais adiante no partilhar dos prazeres e dos desafios da vida acadêmica. Nossos interlocutores de pesquisa podem no futuro tornarem-se nossos melhores parceiros de trabalho. Encontros criativos estão em constante expansão. Com Elisa publiquei em 2018 Por que Klein? Além de duas coletâneas em 2017 e 2019, e, também eventos internacionais que deram muito trabalho e satisfação, além da parceria em bancas e artigos. Também do encontro com Elisa surgiu o sonho de uma ponte imaginária entre a PUC e a USP. O risco de sonhar é que alguns sonhos se realizam, e foi esse o caso: a ideia de um laboratório entre dois criativos centros de produção de pesquisas em psicanálise aconteceu. Em outubro de 2019 tivemos o lançamento do Lipsic com a participação de sessenta pesquisadores. LIPSIC: Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea. PUC (5): Luis Cláudio, Renato, Alfredo Naffah, Elisa e Rosa Tosta. USP (4): Nelson Coelho, Pablo Castanho, Ana Loffredo e eu. Com a pandemia aceleramos a inserção do LipSic no mundo online. Agora temos as Reuniões Científicas acontecendo no YOUTUBE - LipSic psicanálise; programação no Instagram. Já temos seis reuniões científicas programas para o segundo semestre, confiram a programação! Para finalizar, sempre momentaneamente a conversa, sou filha da PUC, já tendo perdido a dimensão dos contornos do que isso significa, e agora, na maturidade, sou caloura na USP. É muito bom quando a vida nos surpreende de forma favorável. Obrigada!

  • Ser mãe, ser pai: desafios na contemporaneidade.

    Observa-se que no contexto cultural da atualidade, com a quebra dos valores rígidos, estáticos e a abertura para as múltiplas possibilidades de subjetivação, de modos de existência, o vir a ser mãe e pai precisa ser criado, inventado a cada nova experiência. Este artigo se propõe a discutir essas questões, a partir de um recorte psicanalítico - especialmente o conceito de Preocupação Materna Primária, de Winnicott - bem como das contribuições de Gilles Lipovetsky e Joel Birman, teóricos que estudam o mundo contemporâneo. Rachele da Silva Ferrari e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952020000100014&lng=pt&nrm=iso

  • Alguns apontamentos acerca da função psicanalítica da personalidade no campo analítico.

    A narrativa do analista e a do escritor. A partir do relato da experiência do escritor turco Orhan Pamuk (2010) com uma de suas leitoras, o artigo propõe uma analogia com o campo analítico, em que se faz presente a intersubjetividade analista-paciente. É apresentado o contexto teórico dos conceitos de reverie, função alfa e função psicanalítica da personalidade, criados por Bion e discutidos por autores contemporâneos. Compreendida na perspectiva de autores pós-bionianos como um campo do sonhar do analista e do analisando, a situação analítica é sempre complexa, nela podendo ser realizada a função psicanalítica da personalidade. O artigo finaliza considerando que tanto a experiência entre autor e leitor, como entre analista e analisando, em especial, a relação de intimidade e proximidade que acontece nesses dois diferentes contextos é favorecedora de transformações. Tais transformações se dão por meio da função psicanalítica da personalidade: a capacidade humana de transformar as experiências emocionais, inicialmente em estado bruto, em narrativas, a do analista e a do escritor, na busca humana incessante pela verdade e pelo sentido daquilo que é experienciado. Mariana F. R. Ribeiro Link do texto: http://cprj.com.br/ojs_cprj/index.php/cprj/article/view/74

  • Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment. O analista implicado.

    O artigo é uma reflexão teórica sobre os conceitos de identificação projetiva e enactment. Alude-se que a identificação projetiva é um conceito de transição entre a primeira geração (Freud-Klein) e a segunda geração (Bion-Winnicott) da psicanálise, divisão sugerida por Ogden (2014). A primeira geração se debruça mais intensamente sobre a questão do que pensamos; segue-se a geração que se dedica à maneira como pensamos. Considerando esta organização temporal, o termo enactment pertence ao que é conjecturado aqui como a terceira geração de conceitos na psicanálise: aqueles que abordam de que forma analista e analisando pensam juntos. Marina F.R.Ribeiro Link do texto: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952016000200001

  • Rêverie e Enactment na situação de supervisão. O campo do diálogo clínico

    Marina Ferreira da Rosa Ribeiro - Profa. Dra. IPUSP O artigo apresenta uma síntese dos conceitos de rêverie e enactment, destacando a utilidade de ambos na clínica psicanalítica contemporânea e, especificamente, no contexto de supervisão. Quando ocorre o enactment, situações de impasse eclodem, podendo, inclusive, gerar o rompimento do processo analítico. Contudo, também podemos estar diante da oportunidade de transformação dos conteúdos mentais inconscientes presentes na sala de análise, a partir da capacidade de continência psíquica do analista, com a colaboração do supervisor, que pode ser um professor durante a formação ou um colega consultor. Nessas situações, em que o analista é tomado pela intensa turbulência emocional que se faz presente no campo analítico, torna-se fundamental a capacidade de rêverie do supervisor, de modo a possibilitar a compreensão de angústias ainda não passíveis de serem narradas na sala de análise. De modo a aprofundar ainda mais o tema, além da discussão conceitual, são também apresentadas neste texto duas situações de supervisão que ajudam a esclarecer os fenômenos de rêverie e enactment. Por fim, sugere-se um novo termo para a situação de supervisão: campo do diálogo clínico, de maneira a precisar a inter-relação entre o conceito de campo analítico e o contexto de supervisão. 1 Agradeço a prestimosa contribuição de Darlene Ferragut e Edilaine Pugliese para a construção deste texto. Palavras-chave: enactment, rêverie, supervisão, campo analítico, continente-contido, Bion. ABSTRACT This article shows a synthesis of the rêverie and enactment concepts, emphasizing the usefulness of both for the contemporaneous psychoanalytic clinic, especifically in the context of supervision. When enactment occurs, situations of impasse arise, even making it possible the rupture of the analytical process. However, we can also be in front of the opportunity for transformation of the unconscious mental contents, which are present in the analysis room out of the analyst’s capacity for psychic continence, together with the cooperation from the supervisor, who can be a professor over the formation period or else a colleague consultant. In these situations, when the analyst is taken by intense emotional turbulence which takes place in the analytical field, the supervisor’s capacity for rêverie becomes fundamental, so that it endows him or her with the understanding of the states of anguish that are not yet liable to be narrated in the analysis room. In order to deepen still more the theme, besides the conceptual discussion, two situations of supervision are presented in this text. They help clarify the rêverie and enactment concepts phenomena. Finally, a new term is suggested for the situation of supervision: field of the clinical dialogue, in order to state exactly the interrelationship between the analytical field and the supervision context. Key words: enactment, rêverie, supervision, analytical field, continent-contained, Bion. Introdução Freud (1925/1980) escreve que a psicanálise é uma das profissões impossíveis, conjuntamente com educar e governar, ou seja, estamos diante de um desafio considerável, admitido desde o início por seu fundador. Em razão disso, faz parte da formação de um analista o tripé análise, supervisão e teoria psicanalítica - três campos consagrados há muitas décadas, mas com intersecções nem sempre fáceis de discernir (Zaslavsky & Nunes, 2006). Sabemos, também, que essa tríade permanece presente ao longo do exercício profissional de um psicanalista, mesmo que de maneira descontínua. Não há dúvidas de que, somadas aos outros campos, as horas de supervisão, tema deste artigo, contribuem significativamente para o enfrentamento dessa profissão que tentamos, a cada sessão, tornar possível. Contudo, não deixam de ser, também, desafiadoras para todos os implicados: aqueles que estão em formação, os analistas mais experientes e, obviamente, para os próprios supervisores. De modo a aprofundar a discussão, trago aqui, sucintamente, os conceitos de rêverie (Bion, 1962/2014), de campo analítico (Barangers, 1961/1962/1993) e de enactment (Ellman e Moskowitz, 1998; Cassorla, 2015). Parto da compreensão, consagrada na psicanálise contemporânea, de que na situação analítica os processos mentais do analista também estão implicados e devem ser considerados como um importante instrumento de trabalho. Vale dizer, considero tanto os aspectos intrasubjetivos, quanto os intersubjetivos, sempre indissociáveis. Ao final, apresento então duas breves situações de supervisão. A primeira evidencia o conceito de rêverie e sua importância na compreensão de elementos ainda não passíveis de uma narrativa pela dupla analítica em questão. A segunda, a importância da continência emocional do supervisor quando ocorre o fenômeno do enactment entre analista e analisando, para que os conteúdos emocionais encenados na dupla encontrem um percurso de transformação e não de paralisação do processo analítico. A necessidade de continência psíquica por parte do supervisor Começar a atender pacientes implica em uma tensão inevitável, mesmo quando o profissional foi bem preparado para essa atividade. Mas o que seria alguém bem preparado para atender um paciente? Faço uma analogia com uma situação comum: uma mãe primigesta com seu bebê recém-nascido. Por mais que ela tenha se ‘preparado’ - lido muitos livros, conversado com outras mães, se dedicado a outras crianças, feito cursos sobre os cuidados com bebês, além do fato de ter sido filha de alguém -, a maternidade introduz uma situação experiencialmente ainda inédita na vida daquela pessoa, e corriqueiramente, vivida com angústia e desamparo. Uma mãe de segunda viagem, ou terceira, pode estar um pouco mais segura das suas capacidades maternas; no entanto, a nova dupla mãe-bebê que se constitui será, também, um novo desafio. Da mesma forma, um analista, por mais experiente que seja, quando recebe um paciente, encontra-se diante de uma situação nova e desafiadora. Ainda que os anos de atendimento lhe ofereçam um acervo internalizado da função analítica, não evitam a angústia diante do que ainda não é conhecido. Dessa forma, a abertura e disponibilidade ao desconhecido são habilidades fundamentais. Bion (1970/2014), inspirado no poeta Keats, aconselhou que o analista deve manter uma atitude de reserva diante do conhecimento, do já sabido, não sendo recomendável que ele se precipite em buscar fatos ou encontrar razões para compreender o material compartilhado pelo analisando. Essa disposição analítica foi nomeada pelo autor como capacidade negativa. Trata-se, pois, da capacidade de permanecer na turbulência emocional2 (Bion, 1976/2014) da sessão, confiante de que o sentido do material surgirá com o tempo e de acordo com a capacidade de transformação da dupla analítica. 2 Turbulência emocional é um termo usado por Bion (1976/2014), significando que o encontro entre analista e analisando deve gerar turbulências, indicando que o processo analítico não está estagnado em um conluio de acomodação da dupla. Podemos conjecturar então que, para o analista com muitos anos de prática, a capacidade negativa pode ser um exercício ainda mais desafiador do que para o analista iniciante, justamente porque já cumulou muitos anos de exercício clínico, e, além disso, apegar-se ao conhecido parece ser uma disposição comum3, no sentido de evitar as turbulências geradas pelo encontro analítico. Em relação a esse aspecto, cabe lembrar da insígnia sugerida por Bion (1967/2014), de que o analista precisa alcançar a disciplina mental de estar em um estado sem memória e sem desejo. Aqui, o autor sublinha o legado freudiano, de que a atenção do analista necessita se manter realmente flutuante. De fato, é condição psíquica importante para o processo analítico essa capacidade do analista de não se apegar a fatos, razões, desejos ou memórias, de modo que sua atenção possa flutuar pelas turbulências emocionais presentes na sala de análise, tolerando não saber, para, assim, ser permeável ao novo, e ao novo paciente, a cada sessão. A esse respeito, escrevem Gabbard e Ogden (2009) que temos a responsabilidade de nos tornarmos com cada paciente o analista que antes nunca fomos. Devemos, pois, receber um paciente como se fosse sempre a primeira vez, aconselha Bion (1967/2014), de maneira que analista e analisando não se apeguem ao conhecido e ao familiar, podendo então se lançar em busca do desconhecido, da transformação emocional que ainda não ocorreu. Essa ideia tem como referência a compreensão de que faz parte do funcionamento psíquico ‘saudável’ uma mente em constante expansão - há sempre um pensamento novo no horizonte, uma transformação emocional que ainda não ocorreu. Para Bion (1990/2014), devem existir, na sala de análise, duas pessoas amedrontadas - caso não estejam, será que ambas estão ali, apenas, para conversar sobre o que já sabem? O encontro humano gera turbulências emocionais e, apesar da aparência geralmente confortável da sala de análise, ali é o lugar no qual o desconforto psíquico precisa se apresentar. O trabalho do analista é se ater aos elementos enigmáticos da sessão, aqueles que ainda não puderam ser pensados, simbolizados e, então, narrados - a emoção em seu estado bruto, portanto, ainda enigmática. 3 A necessidade de segurança, de não se arriscar ao novo, parece ser uma disposição comum, que tende a se acentuar com o passar dos anos. A situação de supervisão, tanto para iniciantes, como para analistas mais experientes, deveria ter a qualidade de continência às angústias despertadas durante os atendimentos. O leitor poderia perguntar: mas o analista se angustia? Não seria o paciente o angustiado? Digamos que as angústias dos pacientes precisam ser contidas na mente do analista para serem transformadas. Em outras palavras, a mente do analista precisa ter uma qualidade de permeabilidade às angústias dos pacientes para que a análise aconteça, e isso não é tarefa fácil. E, justamente, pelo fato de o analista estar exposto às inéditas situações de angústias durante seus atendimentos, sua capacidade de continência psíquica precisa ser constantemente cuidada e, em algumas situações, também reparada. Cabem aqui algumas breves pontuações conceituais. A expressão capacidade de continência psíquica surge dos conceitos de Bion (1962/2014) de continente e conteúdo. A partir do conceito de identificação projetiva de M. Klein (1946/1991 e 1955/1991), Bion postulou que deve haver outra mente que contém um conteúdo projetado e, ao fazê-lo, o transforma (elabora) e o devolve de forma mais assimilável. Para o autor, esse é o modelo de funcionamento mental usado tanto na compreensão da relação mãe-bebê, como entre analista e analisando. Bion (1959/2014) escreve que a identificação projetiva do analisando lhe possibilita investigar seus próprios sentimentos dentro de uma personalidade forte, a do analista, o suficiente para contê-los4. A capacidade de continência emocional do analista – capacidade de ser continente às angústias dos pacientes - pode ser experienciada e reconhecida por meio da rêverie do analista. Suscintamente, a rêverie5 é o sonho acordado, o devaneio. Consiste na capacidade imaginativa da mente do analista, e também da mãe com seu bebê, que capta as emoções em estado bruto, o enigmático do material clínico, transformando-as e metabolizando-as em representações imagéticas e, posteriormente, em narrativas6. A rêverie é a manifestação do ‘sonhar’ do analista, e, também, do supervisor. Segundo Ogden (2005), na tradição bioniana, o ‘sonhar’ é o trabalho psicológico inconsciente de elaboração da experiência emocional, ocorrendo tanto na vida de vigília, como durante o sono. A partir desta compreensão, na situação de supervisão, o supervisor colabora, favorece, ajuda, o supervisionando a sonhar os elementos ainda não elaborados da sua experiência emocional com o paciente. 4 Para um aprofundamento do tema ver o artigo de minha autoria: Uma reflexão conceitual entre identificação projetiva e enactment. O analista implicado, 2016. 5 Palavra francesa, mantida sem tradução nos textos originais. Em inglês a tradução seria day-dream. 6 Zimerman (2004, p. 231) considera que a rêverie é uma ampliação e complementação do que Freud denominou como a atenção flutuante do analista, aspecto já citado anteriormente. Considerando esse mesmo enfoque continente-contido na situação de supervisão abordada neste texto, encontramos a publicação das psicanalistas argentinas Ungar e Ahumada (2001). Para as autoras, a sessão analítica e a sessão de supervisão são áreas interatuantes, ou seja, áreas paralelas que se influenciam. Ao favorecer a continência das ansiedades presentes na sessão de análise, a supervisão possibilita que o supervisionado sustente, da melhor forma possível, o processo analítico. Como sugerido no clássico artigo de Fleming e Benedek (1964), usado como referência no trabalho dessas psicanalistas, elas concluem que a supervisão facilita o desenvolvimento da personalidade do analista como principal instrumento de trabalho. Nesta mesma direção, privilegiando o enfoque continente-contido, Gabbard e Ogden (2009) consideram que o continente é um processo de elaboração dos pensamentos perturbadores e o contido, a representação psíquica dos pensamentos ligados à experiência perturbadora. Faz parte da disposição de continência do analista a capacidade de pensar/sonhar as experiências emocionais trazidas pelo analisando. Para Bion (1962/2014), pensar é sonhar a experiência emocional e, dessa forma, ser capaz de aprender com a experiência. Porém, é preciso considerar que a experiência vivida costuma exceder nossa capacidade de pensá-la ou sonhá-la. De fato, o analista é, no cotidiano da clínica, inevitavelmente colocado em situações que excedem a sua capacidade de metabolização do vivido. Em Análise terminável e interminável, Freud (1937/1980) orienta os analistas que, a cada cinco anos, submetam-se a um novo período de análise, devido à força das exigências pulsionais7. Hoje, podemos considerar que o analista está exposto, durante os seus atendimentos, a uma considerável cota de sofrimento psíquico, além do fato de que uma análise é interminável, de que não há a possibilidade de alguém ser completamente analisado. 7 Freud (1937/1980, p. 284) escreve: “(...) Não seria de surpreender que o efeito de uma preocupação constante com todo o material reprimido que luta por liberdade na mente humana despertasse também no analista as exigências instituais que de outra maneira ele é capaz de manter suprimidas. Também esses são ‘perigos da análise’, embora ameacem não o parceiro passivo, mas o parceiro ativo da situação analítica, e não deveríamos negligenciar enfrentá-los. Não pode haver dúvida sobre o modo como isso deve ser feito. Todo analista deveria periodicamente – com intervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais uma vez à análise, sem se sentir envergonhado por tomar essa medida. Isso significaria, portanto, que não seria apenas a análise terapêutica dos pacientes, mas sua própria análise que se transformaria de tarefa terminável em interminável”. A esse respeito, Bion (1990/2014) expressa que, ao final de uma análise, poderíamos considerar ter alcançado o melhor que se pode com quem se é, ou seja, com as incontornáveis idiossincrasias do funcionamento psíquico de cada um. Como o funcionamento mental do analista é o seu instrumento de trabalho, o compromisso de estar mentalmente disponível para o seu paciente é um desafio a cada sessão, ano após ano. Essas considerações tornam ainda mais significativo o trabalho de elaboração psíquica que ocorre nas situações de supervisão, como um forte aliado no enfrentamento dessa profissão que tentamos tornar possível a cada sessão. A supervisão como campo de diálogo clínico Penso, porém, que o termo supervisão pode gerar alguns equívocos, favorecendo idealizações, principalmente para o iniciante. A principal idealização é de que o analista mais experiente não sofre angústias e apreensões nos seus atendimentos, que está sempre conduzindo a análise com tranquilidade, supostamente gerada pela posse de um conhecimento psicanalítico constituído ao longo de seus anos de prática e estudos. No entanto, parece que o analista experiente também não escapa dos desafios dessa profissão impossível: há o esforço para desapegar-se ao conhecido, intento necessário para que a análise seja um espaço de criatividade e vitalidade. Um exemplo amplamente conhecido desse desapego do conhecido é a atitude investigativa de Freud, sempre disposto a olhar o fenômeno clínico de uma nova maneira, muitas vezes, abrindo mão, textualmente, do que já havia dito. Porém, desapegar-se do já conhecido não significa deixar de lado o acervo teórico existente na psicanálise hoje; muito ao contrário, trata-se de considerar que o setting analítico é o lugar no qual as articulações conceituais devem estar incorporadas na mente do analista, permanecendo apenas como um fundo que sustenta a técnica e o processo analítico. Situação similar ocorre em relação às normas que regem a língua falada: não precisamos lembrá-las para nos fazer entender. Ao entrar na sessão, é recomendável então que o analista não use suas teorias como uma proteção indevida às angústias provocadas pelos aspectos enigmáticos do material clínico. Do contrário, a análise pode se tornar um lugar de apego e comprovação da teoria, e não de realização da função analítica do analista em prol das demandas psíquicas do analisando. Gabbard e Ogden (2009) sugerem que, para um analista já formado, a supervisão seria uma situação de diálogo clínico com um colega mais experiente e parceiro, e não uma conversação com alguém com uma ‘super-visão’ diante de outro alguém desamparado, sem essa condição ‘super’. O colega mais experiente escuta de outro lugar, no qual há um arrefecimento das turbulências emocionais presentes no campo analítico durante a sessão. Penso que a principal função dessas conversas sobre atendimentos clínicos seja favorecer e amplificar a capacidade de continência psíquica do analista às angústias que circulam na sala de análise. Essa condição de diálogo clínico parece ser, também, pertinente àqueles que estão em formação. Mas há também outro aspecto a ser pontuado em relação à supervisão clínica: a possibilidade de esse espaço de troca acabar por favorecer paralisações, decorrentes de críticas autocondenatórias do analista. Assim, se a autocondenação prevalece, o analista pode ficar preso à interpretação supostamente “correta”, aos erros e acertos, se deveria realmente ter feito dessa forma, ou de outra, etc. Penso que a função analítica do analista é uma condição psíquica que se torna precária diante de críticas excessivas; aliás, estas costumam comprometer a capacidade de continência emocional do analista às angústias do paciente. Refletir, mesmo que de modo crítico, sobre uma sessão, favorece o processo, mas as críticas excessivas podem gerar paralisações. Nas situações clínicas em que ocorre o que se denomina hoje de enactment, o analista comumente se sente cometendo uma falha grave, o que pode dificultar ainda mais a compreensão e elaboração da situação, ocorrendo impasses ou interrupções abruptas da análise em função dessa dificuldade. É habitual ser esse o momento em que o analista busca a colaboração de um colega; ou seja, o analista está geralmente exposto nas suas fragilidades e dúvidas, precisando da capacidade de continência psíquica do colega que está fora da situação analítica turbulenta. Mas a que se refere o conceito de enactment, precisamente? Ainda que tenha entrado no vocabulário psicanalítico há relativamente pouco tempo, devido a sua utilidade clínica, o enactment tem sido citado em vários textos e discussões. Alguns autores (Mclaughlin, 1998; Bohleber et al., 2015) retomam a história do conceito, localizando sua primeira aparição no título de um trabalho de Theodore Jacobs (1998), originalmente publicado em 1986: On couter-transference enactments, que se tornou então referência para o entendimento do termo. Para explicitar uma compreensão do enactment, uso a descrição de Cassorla (2015, p.47): (...) fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficiente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada. Destaco que essa compreensão está acoplada a outro conceito que vem sendo discutido na psicanálise contemporânea: a compreensão da situação analítica pertencendo ao campo analítico. O casal Baranger (1961-1962/1993, p. 145) define originalmente o campo analítico da seguinte maneira: O campo bipessoal da situação analítica está constantemente orientado por três (ou mais) configurações: o contrato básico, a configuração aparente do material manifesto, inclusive a função do analista nele, e a fantasia inconsciente bipessoal, que é objeto da interpretação. Essa estrutura é constituída pelo interjogo de processos de identificações projetivas e introjetivas e de contraidentificações, com seus limites, funções e características diferentes no paciente e no analista. A partir de um estudo aprofundado da obra Melanie Klein, o casal Baranger faz contribuições originais para a compreensão da situação analítica. A fantasia inconsciente8 passa a ser compreendida como uma fantasia inconsciente bipessoal, ou seja, se insere na compreensão da intersubjetividade entre analista e analisando e seus efeitos no processo analítico. Parto da ideia de que, no diálogo clínico na supervisão, o fenômeno de campo analítico também acontece, porém com algumas especificidades. A assimetria da relação analítica se modifica - são dois colegas de profissão trabalhando, considerando- se as distintas experiências, tanto clínicas como teóricas. O foco de atenção no campo do diálogo clínico costuma ser a dupla analítica, sendo o colega mais experiente um terceiro na situação, o que favorece o que o casal Baranger (1961-1962/1993) denominou um segundo olhar. Trata-se, como o próprio nome diz, de olhar novamente o material clínico e tentar identificar novos vértices de compreensão. O segundo olhar pode advir do analista auto reflexivamente e/ou conjuntamente com seu supervisor. 8 Fantasia inconsciente é um conceito central na teoria kleiniana, refere-se à representação psíquica da pulsão, e constitui o conteúdo básico da vida mental. O colega consultor9 ou o professor na formação ocupam, pois, um lugar privilegiado. Ambos estão fora da sala de análise, ocupam um lugar não tão próximo, não tão imerso nos conteúdos emocionais presentes no atendimento. Trata-se de um posto de observação mais elevado, com vista panorâmica e ainda portando um binóculo potente. O horizonte se torna mais amplo, e a capacidade de analisar os detalhes também. Além das diferenças quanto ao tempo de experiência clínica e domínio da teoria, o lugar ocupado pelo supervisor é, portanto, favorável. Se pensarmos essa situação como uma visão ‘super’, no sentido de ampliada, saímos da área de risco dos autojulgamentos do analista, os quais podem comprometer sua capacidade de continência, especialmente nas situações de enactment10. Considerando os conceitos expostos, apresento a seguir duas vinhetas clínicas, nas quais a capacidade de continência psíquica do supervisor favoreceu a transformação da situação analítica incialmente apresentada na supervisão, promovendo uma expansão do campo analítico. Diálogo clínico na situação de supervisão I 11: o ilusionista Alice12, uma adolescente, inicia a análise com uma queixa trazida pelos pais, de baixo limiar de tolerância à frustração. Sempre que era frustrada no que queria, tinha um acesso de raiva e destruía objetos. Nos primeiros encontros, a analista observou um funcionamento psíquico que a preocupou. Era muito difícil distinguir, na narrativa de Alice, o que era factual do que era apenas invenção. A sensação na sala de análise, que se manifestou na rêverie da analista, era de um espaço de nebulosidade e nuvens de fumaça. Não era possível enxergar o que estava acontecendo. Nas sessões, com certa propriedade, Alice discursava sobre patologias psíquicas e seus sintomas, sugerindo que sofria deles, e gerando a impressão de ter estudado minuciosamente cada uma dessas doenças. Em outros momentos, descrevia como faria para executar um animal, e observava as reações da analista. 9 Gabbard e Ogden (2009) usam o termo consultor, e, também, usam a expressão um colega mais experiente. Fiz a junção colega consultor a partir deste texto. 10 Para um aprofundamento sobre os impasses gerados pelo enactment, consultar o livro: Enactments e transformações no campo analisante (Tamburrino, 2016). 11 Destaco que todo e qualquer material clínico é passível de diferentes apreensões, o apresentado na situação I e II de supervisão é apenas um vértice de compreensão possível.
12 Nome fictício. Nesses momentos, a sensação da analista era de estar embriagada, inebriada, capturada em um estado de confusão mental, o que foi inviabilizando, paralisando sua capacidade de pensar. Confusa e angustiada com a situação, preocupada se não estaria diante de uma adolescente em estado grave, em risco, solicitou um diálogo clínico ao colega consultor, que, após a exposição do que estava acontecendo, por meio da sua capacidade de rêverie, comentou que Alice parecia ser uma ilusionista. Ao conseguir narrar as emoções presentes na sala de análise, por meio da imagem de um ilusionista – essa é a rêverie -, o colega consultor nomeou o torpor, a confusão mental gerada pelo ataque à capacidade de pensar da analista. Lembremo-nos, diante desse quadro, de quando Bion (1959/2014) se refere ao ataque aos elos de ligação: o paciente ataca o próprio pensamento e a capacidade de pensar do analista, provocando, justamente, uma espécie de torpor. A compreensão, manifestada por meio da narrativa do consultor, transformou o estado mental da analista: foi como se a neblina em sua mente se desanuviasse, e ela conseguisse, nesse momento, enxergar e compreender o que estava acontecendo no campo analítico. Aqui, fica então evidente a estreita conexão entre o campo analítico e o diálogo clínico com o supervisor. A partir desse momento, houve uma transformação na mente da analista – deixando de permanecer imersa e perdida nas turbulências emocionais do campo, pôde encontrar um sentido, uma narrativa que a habilitou a estar com Alice em outra condição mental, mais disponível para o encontro analítico. A capacidade de refletir e pensar sobre o que acontecia na sessão foi retomada, ou seja, a função analítica voltou a se disponibilizar para Alice. Com isso, a escuta clínica deixou de ser capturada por preocupações psicopatológicas, o que tornou possível à paciente trazer para as sessões outros conteúdos, ou seja, o campo analítico mudou, se expandiu. Eis que, em um determinado momento, Alice trouxe à sessão um jogo de baralho, dizendo que gostaria de mostrar sua habilidade para a mágica. A analista refletiu, então, que ela já estava mostrando essa sua capacidade, fazendo mágica na sessão: promovendo uma sensação de estar inebriada, e de confusão mental, talvez decorrente de um sistema defensivo para evitar frustrações. Quando a mágica passou a ser narrada na sessão, foi possível o trabalho com elementos simbolizados, situação alcançada com a colaboração da experiência de rêverie do supervisor – o ilusionista – no campo do diálogo clínico. Diálogo clínico na situação de supervisão II: o enactment e a continência do supervisor Quando Natália13 era ainda uma criança, sua família entrou em contato com a analista pedindo orientações sobre como conversar com a filha a respeito de sua condição de adotada. Com uma riqueza psíquica surpreendente, em pouco tempo de análise, a menina não apenas verbalizava e detalhava a história contada e recontada pela mãe sobre sua adoção, o estado onde havia nascido, os costumes de lá, sua localização no mapa, como também brincava durante as sessões de ‘nascer’: passava por debaixo da cadeira onde a analista estava sentada, aparecendo do outro lado e dizendo: ‘nasci! O vínculo transferencial e contratransferencial, presentes no campo analítico, estava bem estabelecido. Após o tema da adoção ser falado e atuado em inúmeras sessões, a pequena Natália passou a trazer então seus questionamentos sobre a sexualidade. Temas como de onde vêm os bebês e as diferenças sexuais anatômicas passaram a fazer parte dos encontros. Porém, para a mãe, o trabalho analítico que ela havia solicitado - abordar e tratar a adoção de Natália - estava concluído, o que parece ter levado à decisão de determinar o fim da análise. O tema da separação da dupla analítica não foi tarefa fácil. Então, na tarde que antecedeu a última sessão, certo acontecimento fez com que a analista experimentasse muita estranheza e angústia. No início do segundo ano de análise com Natália, os pais decidiram mudá-la de colégio e ela acabou indo estudar na mesma escola das filhas da analista. Como as crianças estavam em períodos diferentes, essa situação não alterou o processo de análise, o setting analítico estava preservado. No entanto, na tarde que antecedeu a última sessão, a analista foi buscar sua filha em uma aula extra. Quando entrou pelo corredor por onde circulam as crianças, no exato momento em que elas aguardavam para serem conduzidas pelas assistentes às suas respectivas salas de aula, de repente, ficou diante da pequena Natália, que a olhou fixamente e disse: “Oi, tia, você também vem aqui? ” A reação imediata da analista foi cumprimentá-la e dizer: “sim, Natália, às vezes eu venho até este colégio também! ”. E seguiu adiante até a sala da filha, sentindo-se atônita e confusa, com mal-estar e taquicardia, e apenas conseguindo se auto recriminar: como não havia lembrado que aquele era justamente o horário de entrada das crianças do período da tarde? Por que havia utilizado aquele corredor e não a outra entrada? A analista sentia como se tivesse sido levada, simplesmente conduzida a estar ali e a criar uma situação tão inesperada e surpreendente para ambas. Naquela mesma tarde, felizmente antes da tão esperada despedida da última sessão, a analista procurou o colega consultor para entender o que estava acontecendo. Então, o acolhimento, a capacidade de continência da angústia por parte dele favoreceu a reflexão e compreensão do ocorrido. O primeiro aspecto cuidado pelo consultor foi a sensação de ter sido levada, conduzida, sem o menor controle sobre a situação. Tratava-se, portanto, do que a analista nomeava uma atuação, não havia elaboração, apenas uma ação sem reflexão. A analista estava transtornada e aprisionada em pensamentos autocondenatórios. Após essa primeira continência por parte do colega consultor, que promoveu outro estado de mente na analista, um estado mais disponível para compreender o que havia ocorrido naquele “colocar em cena”14, foi possível buscar o sentido daquele acontecimento, um autêntico enactment. A compreensão surgiu na mente da analista a partir da lembrança da fala da pequena Natália quando a viu parada à sua frente, no corredor do colégio: “Oi, tia, você também vem aqui? ” A partir da continência psíquica do colega consultor diante da situação apresentada, a analista pôde pensar sobre o que ambas sentiam frente à despedida, que aconteceria naquele mesmo dia, dentro de poucas horas. E apesar da dor da separação após um trabalho analítico extremamente intenso e produtivo, a analista disse à Natália e a ela mesma, através de um enactment, que encontros do jeito que estavam acostumadas a viver na análise não aconteceriam mais. Porém, outros encontros, de outra forma, e em outros lugares, poderiam sim ocorrer. 14 Nas considerações finais, há uma discussão sobre a diferença entre um acting-out, ou atuação, e um enactment, colocar em cena. Todas essas emoções que puderam ser contidas no espaço do diálogo clínico, um pouco antes da sessão da despedida, apareceram no último encontro com Natália. O encerramento da análise foi vivido por ambas como o início de outras possibilidades de encontros, em outros lugares. O conceito de enactment – uma ação na qual o analista é inconscientemente arrastado a colocar em ato – tornou-se, a partir da supervisão, um elemento importante da análise. A escuta de um terceiro, o colega consultor, pôde transformar aquilo que foi vivido através de um enactment em uma elaboração da dupla analítica. Dois anos após o término da análise de Natália, a analista estava em um teatro esperando o início de uma apresentação, quando escutou uma voz: “oi, tia!”. Quando virou para trás, lá estava Natália, que se debruçou sobre a poltrona, deu-lhe um forte abraço e voltou correndo para sentar-se ao lado de sua mãe. A analista apenas sorriu, as palavras, ali, já não eram mais necessárias. Considerações finais No momento da supervisão, o analista, menos ou mais experiente, está exposto nas suas dúvidas e angústias acerca do atendimento; poderíamos dizer que o analista está ‘nu’, desvendado. A capacidade de continência psíquica do supervisor é, pois, fundamental como um fator transformador na compreensão do que está presente no campo analítico. Quando o analista solicita uma supervisão, trata-se, geralmente, de uma situação na qual sua mente não está em condições de metabolizar as angústias presentes na sala de análise - há um transbordamento, como na vinheta dois, ou um estado de confusão mental, como na vinheta um. O supervisor faz uso de sua função analítica, a partir de outro lugar, de um posto de observação privilegiado, no qual é possível avistar tanto o panorama, quanto os detalhes. Ele está em outro campo, que denomino aqui o campo do diálogo clínico, está parcialmente distanciado das turbulências emocionais da dupla analítica. Lugar que torna possível outra visão, não ‘super’, mas um segundo olhar sobre o enigmático do material clínico, um olhar ampliado, a partir da sua capacidade de continência psíquica. Essa situação favorece uma transformação na mente do analista, possibilitada pela rêverie do colega consultor e/ou professor, que pode transformar as situações de confusão mental, nas quais a capacidade de pensar do analista pode estar prejudicada, ou nas situações em que ocorre o enactment: o colocar em cena, da dupla analista- analisando, os conflitos ainda inconscientes presentes no setting. Penso ser necessário uma breve pontuação sobre as diferenças entre o conceito de enactement e de acting-out discutido na vinheta dois. Cassorla (2015, p.44), autor que tem se dedicado ao conceito de enactment, ressalta que acting-out diz respeito a algo que acontece com o analisando, sendo o analista apenas um observador. Freud (1914) utiliza o termo agieren para se referir a fatos que não podem ser lembrados e são, então, encenados na transferência. Cassorla também destaca que o termo acting-out ou atuação passou a ser usado de forma moralista por vários psicanalistas, como se atuar fosse uma opção consciente. Precisamos considerar que o conceito freudiano de acting- out é anterior à concepção intersubjetiva da situação analítica; trata-se, ainda, de uma perspectiva unipessoal analista e analisando. A colega da vinheta dois, que solicitou a supervisão, estava imersa em um processo autocondenatório que a estava impossibilitando de pensar a situação de enactment. A analista está paralisada na sua capacidade de refletir sobre o que estava se apresentando na cena analítica daquela forma, provavelmente, a única possível para a dupla analista-analisando. No enactment, o analista é coparticipante, ele é convocado inconscientemente a colocar em cena as angústias da separação iminente. A continência psíquica do supervisor foi importante para que a analista pudesse pensar que era essencial ter a experiência de que outros encontros ocorreriam fora do setting, que aquele não seria um vínculo que desapareceria para sempre, como com a mãe biológica, mas poderia ser transformado. Natália poderia encontrar a analista em outros contextos. Nas duas vinhetas podemos evidenciar a inter-relação entre o campo analítico e o campo do diálogo clínico. Se há uma transformação na mente do analista, resultante da capacidade de continência psíquica do supervisor às angústias apresentadas, há, como decorrência, uma expansão do campo analítico. Finalizando, o que aqui denomino diálogo clínico com um professor ou com um colega consultor me parece ser uma respeitável colaboração, no desafio de tornar essa profissão impossível, o possível de cada sessão. Referências bibliográficas Baranger, Madaleine. & Baranger, Willy. (1993) La situación analítica como campo dinâmico. In: ______. 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Zimerman, David. (2004). Bion da Teoria à Prática. Uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed.

  • Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto

    O artigo apresenta alguns conceitos de Bion, tais como: função α, elemento α, pensamento onírico da vigília, fato selecionado e rêverie, a partir das expansões de dois psicanalistas contemporâneos: Antonino Ferro e Thomas Ogden. O conceito de derivado narrativo de Ferro é colocado em destaque como uma expressão privilegiada na sessão analítica do pensamento onírico da vigília. Finalizo o texto com uma interlocução com o conto de Mia Couto, de modo a iluminar os conceitos apresentados, em articulação com o ofício do analista, que é comunicar e transformar as experiências emocionais; a imagística das interpretações narrativas é acesso privilegiado ao pensamento onírico da vigília. Palavras-chave: Função α; pensamento onírico da vigília; reverie; derivado narrativo Link de acesso ao texto: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/WYfqg66Z9B3LgRxPttyfV7k/?lang=pt

  • De mãe em filha: a transmissão da feminilidade

    O objetivo principal desta pesquisa é fundamentar e sustentar, pela literatura psicanalítica, a existência de vicissitudes psíquicas específicas na trajetória bebê- menina-mulher. Investigo e analiso as concepções levantadas por alguns psicanalistas sobre tão intrincada relação, e seus efeitos no contínuo desafio de tornar-se mulher, assim como na transmissão da feminilidade. Parto das observações de Freud sobre o recalque inexorável que encobre os primórdios da relação de uma mãe com sua filha. Busco explicitar as nuances dos vestígios dessa relação arcaica com a mãe, que é, para a menina, tanto o objeto de identificação primário quanto o secundário. É a mãe quem erotiza seu bebê menina, deixando marcas sensuais para o futuro desfrutar adulto da sexualidade feminina. Há nessa relação do mesmo que engendra o mesmo, um risco pontecializado para a cilada narcísica e a ilusão simbiótica. A hostilidade entre mãe e filha é compreendida como uma busca de diferenciação psíquica, sempre presente, em maior ou menor intensidade. Apresento a paixão entre mãe e filha, primeiramente no mito de Deméter e Perséfone; abordo a tragédia de Electra como a outra face da paixão – o ódio. Investigo e articulo a trama conceitual que cerca a concepção da feminilidade em psicanálise, e faço uma explanação da origem e desenvolvimento dos seguintes conceitos: identificação feminina primária (Paulo de Carvalho Ribeiro) homossexualidade primária (Jacqueline Godfrind), posição feminina primária ou fase da feminilidade (Melanie Klein) e, o materno primário e o feminino primário (Florence Guignard). Analiso o filme Sonata de Outono de Ingmar Bergman, sob o enfoque da insustentável nostalgia do encontro com a mãe, sempre sonhado e jamais alcançado. Na continuidade da reflexão a respeito do filme, coloco em evidência o olhar masculino e sua indissociável e dialética articulação com o olhar feminino. Essa aproximação – entre o feminino e o masculino – traz à tona o conceito de bissexualidade psíquica. O estatuto diverso da mãe e do pai como objeto também é discutido. Apresento duas construções clínicas: Zoe e Liz. Enfim, investigo o precioso e o tanático ou a força e a vulnerabilidade da transmissão da feminilidade de mãe em filha. Palavras-chave: mãe e filha, feminilidade, identificações, transmissão, sexualidade feminina, bissexualidade psíquica. Link de acesso ao texto: https://tede.pucsp.br/handle/handle/15873

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