Potencialidades transformativas do encontro estético: um estudo de caso
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- 28 de out.
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Este artigo foi publicado em 2025 na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
Autores: Janderson Farias Silvestre Ramos e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar, a posteriori, uma experiência clínica vivida em um contexto institucional. Trata-se de um paciente que frequentava um grupo centrado em torno da música e que apresentou transformações subjetivas e relacionais. Investigamos os elementos da experiência vivida com esse paciente, que propiciaram as transformações. Nossa hipótese é de que esses elementos são principalmente de caráter estético, de modo que consideramos que foram as experiências estéticas vividas por ele que levaram às transformações. Consideramos a dimensão estética da experiência musical e também aquela que faz parte do encontro interpessoal vivido entre o paciente e o coordenador do grupo. A estética é aqui compreendida não em seu caráter restritivo à filosofia do belo ou da arte, mas sim em seu sentido mais primário, isto é, como experiência vinculada ao campo do sensível.
Palavras-chave:Experiência estética; transformações psíquicas; Christopher Bollas; Michael Balint
Jorge, o desconhecido
“Nunca teve amor, não sentiu o calor de alguém/ Nem sequer ouviu a palavra carinho, seu ninho não existiu. Sinceramente eu chorei de tristeza ao ouvir/ Tanta coisa que a vida oferece/ Que a gente padece/ Sem querer”. Esse é o refrão da música A desconhecida, do cantor Fernando Mendes, uma das preferidas de Jorge [1], um paciente de uma instituição psiquiátrica na qual trabalhei durante algum tempo. Jorge era um homem sisudo, de quem pouco se sabia, um tipo de “desconhecido”. Falava pouco, e com muita resistência participava de qualquer grupo, dos diversos oferecidos na instituição. Caminhava lentamente com os braços flacidamente pendidos para baixo. Raramente sorria e podia passar horas dormindo, sentado em uma poltrona no saguão.
A instituição em questão era um Hospital-Dia no qual o paciente realizava tratamento. Ele lá permanecia durante o dia, de segunda a sexta-feira, do início da manhã ao fim da tarde, participando de atividades semanais, tais como ateliês de pintura de livre expressão, grupos verbais, visitas a instituições culturais como museus e cinemas, além das consultas psiquiátricas periódicas. Durante seis meses organizei [2] um grupo que se reunia em torno da música. Em cada encontro algum paciente propunha a música que cantaríamos na semana seguinte. A letra impressa era distribuída para cada um; uma caixa com instrumentos de percussão era colocada em cima da mesa, de modo que os pacientes podiam tocá-los, se quisessem, e cantávamos a música algumas vezes, acompanhados por um violão. Por fim, um espaço era aberto para que, quem quisesse, falasse sobre o que pensou ou sentiu ao cantar a música, ler a letra etc. Jorge não se empolgou inicialmente para participar dos encontros, cuja participação era voluntária. Durante as primeiras semanas eu ia encontrá-lo em “sua” poltrona e o convidava para se juntar ao grupo. Ele relutava, enquanto eu insistia argumentando que poderia ser uma boa atividade, que ele poderia gostar. Por fim, ele dizia: “Tá, daqui a pouco eu vou”, com um esboço de sorriso no rosto. Eu sorria de volta e dizia, num tom brincalhão: “Beleza, vou te esperar. Se você não for, eu venho te chamar de novo, heim?”. Alguns minutos depois, eu o avistava entrar no espaço onde o grupo se realizava. Após cerca de um mês, uma virada aconteceu. Quando o início do grupo era anunciado, Jorge aparecia, sem necessidade de ser chamado, sentava-se e pedia um pandeiro para tocar. Via-se a animação em seus olhos. Entretanto, quando eu lhe pedia que propusesse uma música para que cantássemos na semana seguinte, ele retrucava que não lembrava de nenhuma. Em certa ocasião, eu participava de um grupo diferente, o grupo de ateliê de pintura, coordenado por outra pessoa da equipe, quando Jorge, sentado ao meu lado, começa a cantarolar baixinho uma canção. Tratava-se de A desconhecida. Após perguntar o título da canção, eu lhe digo: “Vamos cantar essa no próximo encontro?” Ele concorda.
Na semana seguinte cantamos a música de Jorge. Depois disso ele se torna visivelmente o membro mais interessado e que conduz os outros participantes nos encontros posteriores, dando a deixa para iniciar a cantoria. Pouco a pouco Jorge vai revelando pequenas lembranças de sua vida: os bailes que gostava de frequentar, os shows de um cantor romântico que adorava, o fato de ter tocado violão na juventude e o desejo de voltar a tocar. Um dia ele me pergunta se eu poderia ajudá-lo a procurar escolas de música, pois queria fazer aulas de violão. Procuramos juntos, na internet, telefones de escolas próximas de sua casa. Ele anota alguns números, decidido a entrar em contato. Duas ou três semanas depois, ele revela o desejo de comprar um violão e fala do desânimo ao ver os altos preços daqueles que encontrou na internet. Eu digo: “Não, Jorge, têm violões muito mais baratos”, e indico um lugar onde ele poderia encontrar violões de menor custo. Ele pergunta se eu posso acompanhá-lo na procura. Como naquela mesma semana as minhas férias se iniciariam, eu lhe digo que quando eu voltasse eu poderia acompanhá- lo. Duas semanas depois, quando retorno, ele me diz que já havia comprado um violão e se matriculado numa escola de música perto de sua casa. Depois disso o grupo seguiu por aproximadamente dois meses, pois tive que encerrá-lo em virtude de minha necessidade de deixar a instituição. Nesse período, Jorge passou a trazer seu violão e muitas vezes o utilizei para acompanhar o grupo. Jorge observava, com expressão alegre. Eu o convidava a tocar junto comigo, mas ele recusava, tímido, dizendo que ainda não sabia. Quando precisei sair da instituição, eu lhe presenteei com um DVD do cantor romântico que ele gostava. Ele abriu um sorriso largo e me deu um abraço afetuoso.
O que pretendemos neste artigo é analisar alguns elementos da experiência com Jorge envolvidos nas transformações observadas. Nossa hipótese é de que a fenomenologia de sua condição psíquica se devia a falhas precoces de caráter estético e de que os elementos estéticos da experiência de Jorge com o coordenador do grupo e com as próprias músicas e instrumentos tocados (por ele e pelo coordenador) facilitaram o caminho de alguma reparação estética. Adiante procuramos refletir teoricamente sobre o que se passou nessa experiência. Antes, no entanto, é pertinente que apresentemos algumas considerações metodológicas, apontando de que maneira analisamos a experiência em questão.
Apontamentos metodológicos
A análise da experiência com Jorge foi realizada de acordo com o que Ribeiro, Flores e Ramos (2022) descrevem como a leitura de um fragmento intersubjetivo. Os autores pontuam que a pesquisa psicanalítica é sempre realizada a partir do que André Green (1987/2017) denomina o mito de referência do psicanalista, noção que se refere a um conjunto formado pela leitura dos psicanalistas que nos antecederam, pelos diálogos com os colegas, pela escuta dos pacientes, e pelos vestígios de nossa análise pessoal, aos quais os autores acrescentam as supervisões realizadas e as experiências de vida do pesquisador-psicanalista. Neste sentido, em qualquer tipo de pesquisa psicanalítica, este mito de referência que compõe a subjetividade do pesquisador precisa ser levado em consideração. Para exemplificar este modo de compreender a pesquisa em psicanálise, os autores refletem sobre a forma como Freud (1914/1996b) interpretou o Moisés de Michelangelo e como Ogden (2013) lê os poemas de Robert Frost. Tanto Freud quanto Ogden deixam-se afetar pelas obras, permitindo-se ser impactado por elas, para depois tentarem captar algo que expandirá a compreensão da obra e de si mesmos. Estes exemplos levam-nos a pensar na experiência com Jorge. O encontro com Jorge tratou-se de uma experiência de profunda afetação e, em grande medida, o que nos moveu na direção da produção deste texto foi o ímpeto de tentar compreender o que se passou.
Do ponto de vista das teorias utilizadas neste artigo, seguimos a proposição de Christopher Bollas (2007/2024) a respeito do modo de usar as teorias psicanalíticas. O autor defende uma visão pluralista da psicanálise, comparando as teorias a formas de percepção:
Uma teoria é um fenômeno metassensual. Ela permite que se enxergue coisas não vistas por outras teorias; para obtê-la como uma possibilidade inconsciente, é necessário que uma necessidade clínica surja. Se declarar contra uma escola de pensamento, é como afirmar que se é alguém de visão e não gosta do que ouve, ou dos dados sensoriais auditivos, ou alguém que declara que confia no que escuta, mas nunca confia no que fareja. (p. 62; nossos itálicos)
Sublinhamos um trecho da citação que consideramos importante para nossa justificativa metodológica. Bollas fala da emergência de uma necessidade clínica que evoca uma teoria capaz de explicá-la. No decorrer da análise da experiência com Jorge, fomos guiados, muitas vezes de modo tácito, por nossas experiências clínicas, pessoais e pela própria lembrança da experiência com o paciente, de maneira que as teorias foram se concatenando em virtude da necessidade de explicitar facetas dessas experiências, tal como ocorre em uma escuta clínica orientada pela atenção livremente flutuante (Freud, 1912/1996a). Considerando a complexidade da experiência, orientamo-nos na tentativa de construir um trabalho que respeite essa complexidade, transitando entre as diferenças e aparentes paradoxos das teorias, sem almejar necessariamente dirimi-los. Penso que, trilhando este caminho, seguimos uma diretriz proposta por Bollas, que considera um dever ético “que todos os psicanalistas tenham uma imersão na orientação teórica das maiores escolas de psicanálise” (Bollas, 2007/2024, p. 61), pois na visão do autor, “tal imersão pode aumentar a capacidade perceptiva, expandir a mente, para receber pacientes com uma sabedoria que apenas pode ser obtida pela passagem entre as diferenças” p. 61).
Evidentemente a sabedoria obtida e colocada em texto, é restringida pela limitação de nosso conhecimento das teorias psicanalíticas. Portanto, o que o leitor verá, é claro, não é uma passagem por todas as teorias psicanalíticas, mas por aquelas que conhecíamos e, especificamente, aquelas que foram surgindo em nossa mente evocadas pela experiência com Jorge.
Jorge, Balint e as três áreas da mente
A música que Jorge escolhe é bastante emblemática. Ela fala de desalento, falta de carinho, de amor e de ninho. Terá sido o grupo um novo ninho para Jorge? Michael Balint pode nos ajudar nesta reflexão.
Balint (1968/1993) propõe uma topografia da mente em que esta seria formada por três áreas: a área edípica, a área da falha básica e a área de criação. A área edípica se instaura com a emergência da triangularidade. A área de criação seria uma área em que não haveria objetos. Esta seria uma área difícil de observar ou descrever o que nela acontece, visto que nossos métodos analíticos seriam destinados à análise do que se passa no campo relacional. A área da falha básica seria relativa à relação dual. Deste modo, a fim de facilitar a compreensão dessas áreas, Balint associa cada uma a um número. A área de criação corresponde ao um, a falha básica ao dois, e a edípica ao três.
Expandiremos um pouco mais a definição e características de cada uma das áreas, mas primeiro queremos destacar um ponto da conceituação de Balint (1968/1993). Para o autor a primeira área a se constituir seria a da falha básica, visto que ela se estrutura logo após a ruptura provocada pelo nascimento. A área edípica se configuraria como uma complexificação da área da falha básica (do dois para o três), enquanto a área de criação se constituiria como uma simplificação desta (do dois para o um). Deste modo, entende-se que primeiro é necessário haver o encontro com o outro para que seja possível a constituição de um psiquismo capaz de criação.
Voltemos o olhar para a área da falha básica. Esta seria a área onde o bebê se encontra logo após o nascimento. Seria o campo de uma relação dual, no qual o outro começa a se apresentar ao bebê com seus contornos, sua diferenciação, o que cria no bebê o sentimento de uma falta, já que, cada vez mais, certas lacunas passam a limitar a sensação anterior de uma completude absoluta. A origem da falha básica seria uma discrepância entre as necessidades biopsicológicas do indivíduo em suas fases formativas mais precoces, e “o cuidado material e psicológico, e a afeição disponível em momentos relevantes” (Balint, 1968/1993, p. 20).
Balint (1968/1993) usa a palavra falha, pois, segundo ele, muitos pacientes utilizam essa palavra para se referir à sensação de uma falha dentro de si. Eles não a sentem como um conflito ou um complexo, mas sim como uma falha causada por alguém que falhou ou descuidou-se deles. A força dinâmica que se origina dessa área não tem a natureza de um conflito, mas sim de uma espécie de deficiência a ser corrigida. O acréscimo do adjetivo “básica” tem por objetivo apontar que essa área pertence a um nível mais elementar do que o edípico, fazendo parte do terreno da psicologia bipessoal. Além disso, o termo serve para marcar o fato de que essa área envolve tanto o corpo quanto a mente em diferentes níveis, de maneira que sua influência provavelmente se estende pelo todo psicobiológico do indivíduo. Em certo nível, a falha básica seria inevitável, pois após o nascimento haveria um desencontro entre a provisão ambiental e as necessidades do indivíduo. Do ponto de vista clínico, ao trabalharmos na área da falha básica de um paciente, não teríamos como objetivo criar canais de descarga para uma pulsão insatisfeita ou ajudá-lo a elaborar um conflito, como se daria no nível edípico. Ao invés disso, a função analítica deve se voltar a preencher uma lacuna, a oferecer os meios para que uma ferida cicatrize. Seria o conceito de falha básica um bom operador para pensar na vivência de Jorge?
Infelizmente meu trabalho com Jorge durou apenas seis meses, de maneira que não pude conhecer mais de sua história pregressa. O que soube, durante esse período, em uma comunicação a conta gotas, é que há muitos anos ele havia migrado do Nordeste, e que havia frequentado muitos bailes na juventude. Falava com saudade da música, da dança e das moças que conheceu. O que aconteceu que o teria feito sair dessa vida erotizada, vitalizada, para a imobilidade sonolenta nas poltronas do saguão?
Alguns aspectos da fenomenologia clínica de Jorge levam-nos a refletir que é pertinente pensá-lo como um paciente da falha básica (Balint, 1968/1993). Em primeiro lugar, a própria canção escolhida por Jorge aponta para uma fratura psíquica precoce. A composição fala de alguém carente de amor, calor, carinho e ninho, elementos que remetem às necessidades primordiais de um ser humano. Em que momento de nossa existência esses elementos estão mais vivamente presentes do que no estágio intrauterino? Qual o ninho mais caloroso do que o útero materno? Através dela parece que Jorge nos fala de uma perda e separação primitivas e fundamentais.
Figueiredo e Coelho Junior (2018) inserem a concepção de falha básica no que eles intitulam de matriz ferencziana, considerando-a uma noção que serve à compreensão de pacientes adoecidos por passivação. Os autores propõem a existência de duas grandes categorias de adoecimento. No caso dos adoecimentos por ativação, tratar-se-ia de um psiquismo experienciando angústias e se defendendo ativamente delas. Por outro lado, no caso dos adoecimentos por passivação, teria havido uma interrupção ainda mais precoce e radical dos processos de saúde. Neste caso, tratar-se-iam de
(...) traumatismos precoces, experiências de ruptura que produzem (...) uma verdadeira aniquilação das capacidades de defesa e resistência. As angústias não chegam a se formar, são liminarmente evitadas por uma verdadeira extinção de áreas do psiquismo que morrem, ou melhor, deixam-se morrer. (p. 15)
Essa situação provoca “no traumatizado um processo de passivação, evocando nele uma condição de passividade, inércia” (p. 16; itálicos dos autores). Nestes casos a situação de adoecimento leva ao entorpecimento, à paralisia, à anestesia, ao vazio e ao tédio.
A imobilidade de Jorge, a ausência quase completa de reações e de interesses, levam-nos a hipotetizar que ele faria parte do grupo desses pacientes precocemente traumatizados, adoecidos por passivação, em quem se inscreveu uma profunda falha básica. É neste contexto que consideramos que as transformações ocorridas se devem, em grande parte, aos elementos estéticos das experiências de Jorge na instituição, pois entendemos, seguindo concepções de Balint e Bollas, como apresentaremos adiante, que são as experiências de caráter estético que são capazes de propiciar transformações psíquicas em tais pacientes. Neste ínterim, a noção de uma área de criação também se apresenta como um bom operador para refletir sobre Jorge. Em certo sentido, a área de criação se constituiria num movimento que objetiva retornar ao ninho, ao carinho, calor e amor absolutos. A constituição da área de criação teria como passo inicial a retirada regressiva dos objetos, esses percebidos como desagradáveis e frustrantes, e, em seguida, haveria a tentativa de criar algo novo, melhor, mais amistoso e mais bonito do que a realidade frustrante (Balint, 1968/1993). Infelizmente, Balint ressalta, nem sempre essa tentativa é bem-sucedida, de modo que muitas vezes o que é criado pode ser pior do que a realidade amarga. As criações patológicas se situariam aqui. Balint chama atenção ainda para outros fenômenos próprios da área de criação, talvez não tão evidentes quanto as criações artísticas, como a matemática, a filosofia, o discernimento e a compreensão de algo (no qual podemos incluir os insights obtidos no tratamento analítico), as primeiras fases de ficar doente (física ou mentalmente) e as recuperações espontâneas da doença. Estes últimos exemplos são particularmente interessantes, pois associam criação e processos patológicos. A referência às primeiras fases da doença remete ao fato de que na área de criação o indivíduo pode criar uma patologia, um conjunto de sintomas etc. Teria sido este o caso de Jorge? Talvez, na tentativa de consertar uma falha que se tornou uma grande ferida, Jorge tenha regredido à área de criação. No entanto, não encontrando lá elementos que lhe servissem de matéria- prima para criações benignas, ele caiu no vácuo, o que, talvez, se apresente em sua passividade constante. É dos encontros com os objetos que o indivíduo retira os insumos para criar quando regressa à área de criação. Se o encontro é traumático, o retorno a essa área vai culminar em criações patológicas. Mas se é um encontro acolhedor, que repara em certo nível a falha básica ao invés de exacerbá-la, então o retorno ao Um pode levar à criação benigna, na forma, por exemplo, de obras de arte, mas não apenas. Balint compara a falha básica com a noção de falha na geologia (1968/1993), dizendo:
O termo “falha” tem sido utilizado em algumas ciências exatas para indicar condições que lembram o que estamos discutindo. Assim, por exemplo, em geologia e cristalografia, a palavra “falha” é utilizada para descrever uma súbita irregularidade na estrutura total, uma irregularidade que, em circunstâncias normais, estaria escondida, mas, se houver pressões ou forças, pode levar a uma ruptura, alterando profundamente a estrutura total. (p. 19)
Podemos pensar que também em um ser humano, se tudo corre bem, a falha básica está escondida ou não tão aparente, permanecendo como uma marca constitucional e não como uma grande rachadura. O excesso de pressões ou forças agindo sobre a falha leva ao alargamento patológico desta, de modo a transformá-la em um grande cânion psíquico. Talvez isto tenha se dado com Jorge. Talvez seu sono prolongado fosse uma maneira de tapar essa fenda ou, ainda, de retornar a um momento em que ela não existia.
A celebração do idioma
O que, no encontro de Jorge com o grupo de música, pode tê-lo despertado e feito consentir em movimentar-se, saindo do sono e indo ao encontro dos instrumentos, do grupo, das pessoas, das músicas, enfim, de tudo o que era disponibilizado naquelas reuniões semanais? Ferenczi (1924/2011) propõe uma relação entre o sono e a situação de nutrição. O autor afirma:
De dia os animais ocupam-se em obter alimento e em digeri-lo; mas a verdadeira absorção do alimento, ou seja, sua assimilação pelos tecidos, faz-se, a acreditar nos fisiologistas, mais durante a noite. Há um velho aforismo francês que diz “Qui dort, dîne” [Quem dorme, janta]. Assim, o sono daria a ilusão de absorção de alimento sem esforço, o que se assemelha ao modo de nutrição intrauterino. (p. 339; grifos do autor)
A relação entre o sono e a vida intrauterina nos aponta para a mais primordial das relações humanas: a da mãe com seu bebê; esse sendo nutrido por aquela desde o princípio. Algo da experiência de nutrição intrauterina é revivida quando dormimos, mas também, se tudo corre bem, em nossas experiências primevas com o objeto materno. Ferenczi (1913/2011) aponta que com o nascimento, tendo o bebê sido privado das condições ambientais do útero materno, restar-lhe-ia ansiar por um retorno a esse estado perdido. Assim, haveria um reinvestimento alucinatório nessa condição tão almejada. Se houver, nos termos posteriormente descritos por Winnicott (1971/2019), um ambiente suficientemente bom que se ocupe do bebê, essa condição alucinada realmente se efetiva. Dormimos na esperança de encontrar o regaço materno. Mas se esse está disponível também na vida de vigília, o sono não precisa tomar a totalidade da vida do indivíduo, já que a nutrição potencial está presente também no mundo desperto. Será que foi algo desta natureza que aconteceu com Jorge? Ele pôde encontrar no grupo de música a nutrição que precisava, o que lhe permitiu dirigir a esperança do sono para a vida desperta? Tendemos a responder afirmativamente a estas perguntas. No entanto, algumas questões permanecem em aberto: o que havia de diferente nesse grupo em particular? Se é de nutrição psíquica que estamos falando, que tipo de alimento psíquico Jorge pôde encontrar no grupo? Os conceitos de idioma e de objeto transformacional, de Christopher Bollas, podem nos ajudar na tentativa de resposta.
O conceito de idioma é central na metapsicologia de Bollas, que o define como “um conjunto das possibilidades pessoais únicas, específicas desse indivíduo e sujeitas, em suas articulações, à natureza da experiência vivida no mundo real” (Bollas, 1989/1992, p. 22). Ele aponta, por exemplo, como cada bebê é orientado para diferentes formas sensoriais, o que tem a ver, em parte, com predisposições inatas determinadas fisiologicamente. Nettleton (2018), ao discutir esse conceito, comenta:
Alguns bebês podem ter uma tendência a responder aos estímulos visuais, sua atenção é mais facilmente atraída por cores e formas em movimento. Outros podem ser mais intensamente auditivos, ficando perdidos no som de um eletrodoméstico, de vozes humanas ou de música. Outros respondem quimicamente, seu humor transformado pelo balançar, revirar ou dançar nos braços de sua mãe. Assim, as crianças naturalmente ressoam com formas particulares de experiência. (p. 40; grifo no original)
Uma parte importante da tarefa materna é oferecer ao bebê objetos (entre os quais a própria mãe se inclui) com os quais ele ressoe instintivamente, de modo que “à medida que a mãe oferece a seu bebê objetos e estes atraem o interesse dele e lhe dão prazer, ela dá forma ao idioma da criança” (Nettleton, 2018, p. 41). Em um ambiente facilitador, a criança é, por um lado, protegida das intrusões do mundo exterior e, por outro, é oferecida a ela objetos por meio dos quais ela pode elaborar seu idioma pessoal. A mãe suficientemente boa se deixará ser usada pelo bebê conforme a necessidade desse, propiciando, gradualmente, a formação da estética do ser do indivíduo, isto é, seu modo de ser e se relacionar. A maneira de ser e de se relacionar, de cada um, com os outros e consigo mesmo, levará, portanto, vestígios do idioma de cuidados materno. Deste modo, na concepção de Bollas (1987/2015) os pais transmitem ao bebê certa estética de cuidados, e este, ao internalizar a lógica de cuidados dos pais, passará a cuidar de seu próprio self tal como outrora foi cuidado.
A confiança básica no mundo e na vida se desenvolve não apenas à medida que a criança é atendida em suas necessidades físicas, tais como sono e alimentação ou quando recebe continência às pulsões agressivas e sexuais, mas também à medida que seu idioma é reconhecido e celebrado. Isto vai depender de que a mãe esteja em sintonia com as expressões idiomáticas da criança. Neste cenário, a mãe sente “os gestos expressivos de necessidade e desejo” do bebê e, a partir disso, fornece objetos que servem “como elaboradores experienciais de seu potencial de personalidade” (Nettleton, 2018, p. 41). Esses gestos expressivos são, muitas vezes, sutis como o cantarolar de Jorge ao meu lado. Talvez, quando me surpreendi e me alegrei com a cantoria de Jorge, e transpareci a ele meu estado de animação, ele tenha sentido que um traço de seu idioma pessoal foi reconhecido e celebrado.
Esta situação nos traz à mente uma experiência semelhante relatada por Safra (1999). O autor narra uma experiência vivida com um menino a quem ele chama de Ricardo, que poderia ser diagnosticado como autista. Ele conta como depois de anos de análise foi possível estabelecer uma comunicação com Ricardo a partir de uma melodia que ele entoava e que Safra começa a repetir. Nesse momento, pela primeira vez, o menino olha em seus olhos, bate palmas e emite a melodia para que o analista repetisse. Safra prossegue: “Devolvi-lhe a melodia e, em resposta, ele pulou alegremente pela sala, criou uma outra melodia, e o jogo se repetiu. Estávamos nos comunicando! Estabelecia-se o objeto subjetivo” [3] (p. 34).
Para Safra (1999), cada pessoa constitui os fundamentos de seu self a partir de determinadas formas sensoriais que foram predominantes em seu mundo enquanto bebê. De acordo com o autor, é pela forma sensorial específica que se abrirá para cada um a possibilidade de constituição do objeto subjetivo e seu estilo particular de ser. No caso de Ricardo (e, arriscamos dizer, também no caso de Jorge) a sonoridade era sua forma particular; para outros é a visão, o tato, o olfato, a musculatura, dentre outros. Quando a pessoa cria formas sensoriais que veiculam sensações diversas, como agrado ou terror, e essas formas são atualizadas por um outro, como nas experiências com Ricardo e Jorge, surge o fenômeno estético e constitui-se o objeto subjetivo. Cria-se, na visão de Safra (1999), a possibilidade de o indivíduo conhecer, de uma só vez, a si mesmo e ao outro. Assim foi com Ricardo, que após ter sido reconhecido em sua estética própria, passou a procurar, nos momentos de angústia, outras pessoas com quem pudesse realizar o jogo da melodia. Safra descreve que isto indica a saída do menino de um funcionamento autístico para a consciência de si e de seu sofrimento.
Parece-nos que algo desta natureza aconteceu também com Jorge. Quando não deixo que a canção balbuciada se perca no espaço vazio, eu a reflito a Jorge, funcionando como uma espécie de caixa de ressonância, ao tacitamente reconhecer em seu cantarolar o tremular da vida. Não há neste encontro entre nós, nenhum tipo de interpretação, o que se passou não foi da ordem da representação, e sim um encontro estético, na medida em que pela via da sensibilidade, da aisthesis, o reconheço em sua estética particular. Talvez tenha sido esta a nutrição psíquica que Jorge recebeu neste grupo, não apenas nesse momento específico, mas também nas ocasiões em que ele podia escutar e cantar as músicas escolhidas pelos outros membros, quando tocava o pandeiro, quando falava de seu interesse pelo violão e de seu cantor favorito.
Encontro estético e objeto transformacional
Na primeira fase da vida da criança a relação desta com o mundo é primordialmente de caráter estético, isto é, da ordem do sentir (do grego aisthesis, conforme aponta Santaella, 1994), da “sensação ou percepção sensível” (Vázquez, 1999, p. 8). Indo nesta linha de leitura, Nettleton (2018) aponta que nessa fase
a realidade da criança é governada principalmente pela forma como o meio ambiente responde a ela (...). Os atos cotidianos de cuidar de seu bebê — a alimentação, a limpeza, o ninar, as brincadeiras — podem transmitir reciprocidade ou desconexão, incentivo ou embaraço. Uma extensão do conceito de Winnicott de “mãe-ambiente”, Bollas sugere que esses atos diários comuns produzem alterações no estado de self do bebê. (pp. 40-41)
Na extensão da concepção winnicottiana, à qual Nettleton se refere, Bollas (1987/2015) cunhou o conceito de objeto transformacional. No início da vida o bebê passa por muitas transformações, que ele identifica com a mãe:
Este conceito de mãe sendo vivenciada como uma transformação é sustentada em diversos aspectos. Em primeiro lugar, ela assume a função de objeto transformacional porque modifica constantemente o ambiente do bebê para ir ao encontro das necessidades dele. (...) ela transforma o mundo dele. Em segundo lugar, as próprias capacidades egoicas emergentes do bebê — de motilidade, percepção e integração — também transformam o mundo dele. (p. 51)
Bollas (1987/2015) argumenta que no início da vida o bebê não percebe o outro como um objeto propriamente dito. Embora o autor utilize o termo objeto transformacional para descrever a experiência que o bebê tem do outro, essa experiência é, na verdade, de caráter processual. Trata-se de experiências estéticas, não representacionais. Isto é, não se trataria, na perspectiva do bebê, da relação com um objeto de representação e sim de um processo que ele identifica com as múltiplas transformações do self. Uma comparação com a experiência que temos do sol pode nos auxiliar na compreensão. Imaginemos alguém que nunca tenha olhado para o sol ou mesmo soubesse de sua existência. Ainda assim, essa pessoa saberia da existência de algo que a transforma, algo que está fora dela, pois sente diuturnamente as variações de temperatura. Tratar-se-ia, portanto, de uma relação de caráter estético com o objeto-sol. De acordo com Bollas (1987/2015) as experiências primordiais de transformação se inscrevem em nós e nos impulsionam para a busca de experiências semelhantes ao longo da vida. No entanto, não se trata apenas de nostalgia. Não se trata somente de um anseio de retorno a uma experiência passada. Essas experiências primevas inscrevem em nós a esperança de sermos novamente transformados. E, de fato, vivemos tais transformações no encontro com a arte, com a natureza, em viagens que fazemos, e, também, na relação com os outros. O cerne de tais experiências transformacionais reside no encontro com um objeto através do qual possamos progredir na infinda articulação de nosso idioma pessoal. A busca da pessoa, portanto, não seria por um retorno à experiência primeira com o objeto materno, e sim pela continuidade da elaboração do idioma com os objetos do mundo, processo iniciado na díade mãe-bebê e que se estende por toda a vida.
Consideramos que a falha básica, quando muito severa, interrompe o vir a ser do indivíduo. A articulação do idioma, este potencial da personalidade, depende do encontro com objetos, mas para que esses possam ser usados eles precisam estar disponíveis em um ambiente que ofereça segurança para que o indivíduo se abra à exploração deles. Isso permite que o indivíduo use tais objetos para, através deles, transformar-se.
A falha básica como falha estética e a possibilidade de reparação estética
Segundo Balint (1968/1993), a área edípica e a área da falha básica estariam no fundamento de dois níveis de trabalho analítico. Os acontecimentos relativos à área do conflito edípico seriam trabalhados principalmente por via indireta, por meio dos relatos verbais dos pacientes. Nessa área, paciente e analista estariam interagindo no mesmo campo: o da linguagem simbólica. Assim, mesmo que o paciente se incomode com uma interpretação do analista, a rejeite, se assuste ou se magoe, ainda assim, ele compreendeu que foi uma interpretação, pois ambos estariam falando a mesma linguagem.
No nível da falha básica, contudo, as palavras estariam despidas de sua camada simbólica e passariam a ser apenas transmissoras de sensações. Assim, podem ser sentidas como ataque, insinuação, insulto ou, ao contrário, serem experimentadas como algo de natureza muito prazerosa, gratificante, confortante, ou como sedução. O paradigma aqui é o do bebê no colo da mãe, em uma relação dual, ainda sem compreender o simbolismo das palavras pronunciadas por ela, mas profundamente afetado pela tonalidade, o ritmo, o timbre etc. Podemos dizer que a relação primordial do bebê com seu objeto primário é de caráter estético.
Nesse sentido, acreditamos que não é incorreto afirmarmos que no nível da falha básica, as experiências fundamentais são de caráter estético. Estamos no terreno das sensações, da aisthesis. Bollas (1987/2015) afirmara que o estilo materno de transformar o bebê constitui a primeira estética humana. A transformação, nesse nível, portanto, não advém da linguagem e sim da forma como a mãe afeta seu bebê. A partir dessa lógica, consideramos que a falha básica é uma falha estética. Essa expressão é utilizada por Bollas em um sentido que a aproxima do conceito de falha básica.
Bollas (1987/2015) relata a experiência com um paciente a quem ele chama de Jonathan. Esse era um jovem de 23 anos, primogênito entre quatro filhos, que nasceu em uma família de intelectuais que o entregaram aos cuidados de uma babá enquanto estudavam. Ele desenvolveu um self precoce que deixava seus pais satisfeitos com seu progresso escolar e com o que eles consideravam um “caráter pessoal cativante” (p. 108). Na visão de Bollas, Jonathan só conseguiu esse feito, pois cindiu de seu caráter “os aspectos de sua vida de fantasia que expressavam sua necessidade desesperada ou uma raiva aguda” (p. 108). Essa cisão se expressava em sua vida onírica, de maneira que recorrentemente aparecia em seus sonhos uma contradição entre a temática e a estética. No seguinte sonho vemos essa contradição:
Jonathan pegou um objeto antigo quebrado, embrulhou-o em um saco de celofane e o colocou delicadamente em um pequeno lago. Isso foi feito em seu jardim. Depois desse ato, sentiu que as sementes que tinha plantado no jardim iriam crescer e que ele seria incluído em sua família. (p. 109)
Bollas (1987/2015) diz que interpretou para o analisando, ligando esse sonho a anteriores em que ele se representava como o “discriminado”, que parecia que Jonathan queria colocar seu self em um recipiente que se assemelhava a um útero, de modo que lá ele seria curado. No entanto, chama a atenção de Bollas o “ato quase autista dentro do sonho, ato que não foi apoiado pelo contexto do sonho” (p. 109). O analista percebe que uma característica dos sonhos de Jonathan é que ou ele “simbolizava sua necessidade em um ambiente que não lhe oferecia apoio” (p. 109), ou o “Outro lhe oferecia um bom contexto de socorro, mas ele não podia participar” (p. 109).
Em uma série de sonhos semelhantes essa segunda característica mostrava- se evidente. Por exemplo, Jonathan sonhava que estava no deserto, próximo de um lago, algumas vezes ele estava com sua irmã, outras com sua mãe ou sua esposa. Ele não parecia prestar atenção no lago, ele apenas relatava sua presença, mas nunca bebia água dele. A interpretação de Bollas é que a mãe, a irmã ou a esposa representavam uma nutrição potencial que ele não poderia aproveitar (o que é representado pela ausência da ação no sentido de beber a água do lago), transformando-a em experiência onírica (uma característica desse paciente é que ele nunca fazia associações aos seus próprios sonhos, de modo que Bollas precisava depreender interpretações a partir da estrutura ou estética do sonho como um todo [4]). É nesse contexto que Bollas (1987/2015) afirma que a falha na estrutura do self de Jonathan era uma “falha estética” (p. 109), pois essa falha “muito mais do que um tema de uma fantasia específica — surgiu no cenário do sonho como um problema estético: sua experiência onírica estava fora de sincronia com o contexto do sonho” (p. 109).
Apresentamos agora brevemente a relação que pensamos existir entre essa ideia de Bollas e o conceito de falha básica. Essa última surge de uma discrepância (até certo ponto inevitável) entre o que o ambiente pode oferecer e as necessidades do indivíduo. No caso de Jonathan essa discrepância é clara. Ele consentiu com a ausência parental arcando com o custo de uma cisão psíquica, deixando parte de suas necessidades insatisfeitas. Podemos pensar, então, que em Jonathan (assim como em Jorge, como parece, embora em níveis diferentes e se expressando de modos diversos) a falha básica se expandiu para além do inevitável. Jonathan internalizou uma estética de cuidados parentais que exclui uma parcela de suas necessidades, inclusive a necessidade de expressar e elaborar seus próprios afetos. Para ser o filho cativante dos pais ele precisava ser perenemente complacente e jamais reclamar atenção para o que necessitava. É isso que é representado em seus sonhos: ele não pode jamais se satisfazer. É com base nisso que reafirmamos que a falha básica é uma falha estética. Reafirmamos isso considerando que o que se dá na relação precoce é uma transmissão da estética, da forma/ paradigma de cuidados parental, não de um conteúdo (Bollas, 1987/2015). Levando em conta as postulações de Balint (1968/1993), podemos considerar que o conteúdo será transmitido principalmente no nível edípico, quando aquilo que os pais transmitem em nível simbólico se tornará cada vez mais relevante. Na relação primordial há uma falha estética do entorno. O ambiente falhou com Jonathan, potencializando a falha básica e transmitindo a ele uma estética de cuidados que é falha. Desse modo, a maneira como Jonathan cuida de seu próprio self como um objeto (inclusive nos seus sonhos) carrega essa estrutura falha, na medida em que é uma estrutura que exclui parte de suas próprias necessidades.
Nesse ponto retornamos a Jorge. Identificamos algumas semelhanças entre ele e Jonathan, guardadas, evidentemente, as devidas proporções. Jorge também não vai ao encontro da satisfação de suas necessidades. Ele está em um ambiente (institucional) que se propõe a cuidar dele, apresentando-lhe uma série de ofertas que podem, eventualmente, satisfazê-lo. É claro que Jorge aproveitava algumas delas, como a própria poltrona onde ele frequentemente se instalava, a alimentação oferecida, o espaço acolhedor e os grupos que, com alguma insistência, ele terminava por participar, assim como Jonathan também aproveita parte do que o analista lhe oferece. No entanto, tal como Jonathan em seus sonhos, Jorge permanece à margem de parte do que está à sua disposição, como se não pudesse beber a água simbólica que está ali disponível.
Talvez a minha insistência em, amorosamente, convocá-lo a participar do grupo, tenha permitido que ele depositasse em mim o ímpeto de aproveitar o que de bom lhe era oferecido. Aqui recordo-me de Klein (1946/1991) e sua teoria da identificação projetiva, particularmente quando a criadora da análise infantil afirma que muitas vezes o paciente deposita no outro suas partes boas para serem cuidadas fora dele, em um ambiente (o mundo interno do outro) que é sentido como menos hostil do que o seu próprio. Talvez Jorge tenha depositado em mim, parcial e temporariamente, parte de sua capacidade de cuidar de si mesmo, processo que talvez tenha sido permitido em função de eu expressar constantemente e genuinamente que me interessava por ele e gostaria que ele estivesse no grupo.
Se, como dito, a falha ocorrida com Jorge, assim como supomos, foi de natureza estética, o tratamento também deve ser da mesma natureza. Se houve uma falha na relação com os objetos transformacionais primários, que transmitiram uma estética falha, logo, é necessário que o tratamento proceda a uma reparação estética.
O próprio Bollas (1987/2015) associa a busca pelo objeto transformacional na vida adulta ao conceito de falha básica, afirmando que essa busca seria movida pelo anseio de estabelecer uma relação objetal específica que repare a falha. Associando essa busca ao reconhecimento, por parte do sujeito, de uma deficiência na experiência egoica, ele afirma: “A procura [do objeto transformacional] (...) é (...) um ato semiológico que significa a busca da pessoa por uma relação objetal específica, que está associada à transformação e à reparação da ‘falta básica' [5]” (p. 54).
Em outro momento, referindo-se particularmente ao trabalho com pacientes narcísicos e esquizoides, Bollas enfatiza a dificuldade de esses pacientes se relacionarem com o analista enquanto um outro real, dificuldade que convive, no entanto, com uma grande possibilidade de eles manterem uma relação intensa com o analista como objeto transformacional: “esses pacientes buscam um ambiente especial com o analista, em que as interpretações deste são inicialmente menos importantes por seu conteúdo e mais importantes pelo que é vivenciado como presença materna, uma resposta empática” (p. 58). Poderíamos traduzir esta afirmação dizendo que, nesses casos, o que importa para o paciente é a natureza do encontro estético, isto é, a maneira como o analista o afeta sensivelmente, tal como a mãe afeta o seu bebê. Algumas páginas adiante, apontando que a busca por transformação que encontramos em ideologias extremistas e revolucionárias estaria relacionada ao objeto transformacional, Bollas utiliza o conceito de falha básica de modo relativamente expandido, referindo-se a uma “certeza coletiva de que sua ideologia revolucionária fará uma transformação ambiental total, que libertará cada um de uma série de faltas básicas: pessoais, familiares, econômicas, sociais e morais” (Bollas, 1987/2015, p. 63).
Tudo isto leva-nos a pensar nas possíveis falhas básicas sofridas por Jorge, e o espaço institucional, o do grupo de música e os demais que ele participava6, a própria relação comigo, com a música e com os instrumentos, como possibilidades de reparar suas falhas básicas/estéticas.
A esse respeito, observamos que embora Balint (1968/1993) não aborde diretamente a questão da falha básica pela perspectiva da estética, ao discutir o tratamento de pacientes em regressão a essa área, suas considerações a respeito do tipo de relação que precisa ser construída nestes casos podem ser lidas como indicações da importância de um encontro que é, fundamentalmente, estético. Ao apontar a inconveniência do método interpretativo na abordagem dos momentos de regressão, por exemplo, e ao focalizar a importância da relação com o analista, Balint enfatiza a pertinência de certos aspectos que, ele admite, são nebulosos e difíceis de descrever adequadamente, como atmosfera e clima. Ele afirma que enquanto o insight surge como consequência de uma interpretação correta, estando mais relacionada com o “ver”, “a criação de uma relação adequada é decorrente de uma ‘sensação’ (...) a ‘sensação’ está relacionada com o tato, isto é, com a relação primária” (p. 149). Parece, portanto, que ele está se referindo ao campo da aisthesis.
Voltando a Jorge, parece-nos adequado supor que a relação comigo, com o grupo de música, com os demais grupos e mesmo com a instituição como um todo, pode ter sido vivida por ele como um retorno a um momento anterior à falha básica. Esses elementos estavam lá para ele, convidando- o à vida pela oferta de um espaço que o suportava, tal como “a água suporta o nadador, ou a terra, o caminhante” (Balint, 1968/1993, p. 154), isto é, oferecendo apenas o “atrito suficiente para o avanço” (p. 154), a resistência essencial para que ele pudesse se sentir em movimento, mas não muito mais, o que tornaria o progresso “muito difícil, devido à resistência do meio” (p. 155). Aliás, talvez possamos pensar que o próprio fato de o entorno sustentá-lo no seu sono, permitindo que ele repousasse calmamente nas poltronas do saguão, suportando-o de modo “calmo, pacífico, seguro e não importuno” (pp. 165-166), tenha tido um papel fundamental no estabelecimento da confiança em mim e no grupo de música.
Considerações finais
Para finalizar, evocamos uma citação de Bollas (1987/2015) que, recorrendo novamente ao conceito de falha básica, afirma que a regressão do paciente a esse nível “aponta para a região da doença dentro da pessoa, [e] sugere a demanda da cura” (p. 58). Ele prossegue, afirmando que, para o bom andamento do tratamento, é necessária “uma experiência inicial de sucessivas transformações do ego que sejam identificadas com o analista e com o processo analítico” (p. 58). Bollas parece estar se referindo, indiretamente, ao que Balint (1968/1993) chamou de “o poder cicatrizante da relação” (p. 147). Algo dessa ordem parece ter ocorrido na experiência com Jorge. Considerando que o encontro com o objeto transformacional é um encontro estético e que a busca pelo objeto transformacional é uma busca por um objeto que repare a falha básica (Bollas, 1987/2015), podemos concluir que a busca é, fundamentalmente, por um encontro estético. O encontro com Jorge parece ter sido dessa natureza, o que parece ter propiciado algum nível de reparação/cicatrização de sua falha básica/estética.
Notas
1 Nome fictício.
2 O paciente foi atendido por apenas um dos autores deste artigo, de maneira que ao abordarmos esta experiência nos referimos no singular.
3 O objeto subjetivo é o objeto criado pelo próprio bebê, o objeto que surge da necessidade do bebê, estando sob o controle onipotente dele (Winnicott, 1962/1983). No entanto, o objeto é o próprio bebê, já que nesse momento ele ainda não é capaz de se relacionar com um mundo fora de si mesmo. Para exemplificar este paradoxo Fulgêncio (2011) propõe a imagem de uma linha curva que forma ao mesmo tempo o côncavo (o self do bebê) e o convexo (o objeto subjetivo, o seio). Quem faz o traço que origina o self e o objeto é o próprio bebê em sua necessidade nos estados de inquietude, desde que haja a adaptação adequada do ambiente.
4 A ausência de associações tinha a ver com a própria cisão efetuada por Jonathan, em função da necessidade de manter a aparência do self amadurecido.
5 A expressão basic fault presente no texto original de Balint é traduzida por alguns tradutores como falha básica e por outros como falta básica. Na tradução do livro de Bollas que estou utilizando nesta tese, o tradutor optou pela última versão.
6 Durante todo este artigo estamos focalizando a participação de Jorge no grupo de música e a relação que estabelecemos. No entanto, Jorge estava na instituição muito antes de minha chegada nela, de modo que as transformações observadas em Jorge não podem, de modo algum, serem atribuídas somente à participação no grupo de música e à nossa relação. Evidentemente, para uma apreciação mais completa dessa transformação precisaríamos incluir nesta reflexão as demais relações que ele entretinha na instituição, sua presença nos demais grupos etc. Uma investigação desta envergadura foge, no entanto, de nossas possibilidades, pois o que temos como elementos observáveis são aqueles oriundos do encontro com ele.
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