Cuidar, berço do humano: reflexões sobre a clínica da perinatalidade
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- 28 de out.
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Este artigo foi publicado em 2025 na revista Primórdios do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
Autores: Renata Rocha Lima de Almeida Orlando e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro.
Resumo: Este artigo busca discutir os elementos fundamentais que devem comparecer na clínica da perinatalidade, para além das diferentes especializações. O artigo se inicia com o relato de um parto acompanhado por uma das autoras como doula e psicanalista. A análise começa problematizando a assistência obstétrica no contexto brasileiro, permeada por atuações embasadas em ideologias provenientes da polarização entre atuações mais e menos intervencionistas. A reflexão segue investigando a insurgência da doula em busca de compreender os elementos que a propiciaram. Por fim, através de exploração de base psicanalítica e em contato com o campo da ética do cuidado, investigamos as bases fundamentais do cuidar na clínica perinatal.
Palavras-chave: Clínica perinatal. Ética do cuidado. Doulagem. Psicanálise.
ÍRIS [1]
O plano era: um parto hospitalar com uma equipe obstétrica particular humanizada [2] de São Paulo. Quando as contrações estivessem ocorrendo de dez em dez minutos eu iria para a casa da gestante. Posteriormente, quando o trabalho de parto estivesse em uma fase mais ativa, com aproximadamente cinco minutos de intervalo entre as contrações [3] , viria a obstetriz [4] . Esta auscultaria o coração do bebê e, se necessário, faria um exame de toque para medir a dilatação, ou seja, compreender os parâmetros fisiológicos do processo. Assim, quando todos achassem pertinente, iríamos ao hospital. Lá, encontraríamos a médica obstetra e ficaríamos na sala de parto humanizado [5] até o bebê nascer.
No dia não foi assim. Verdade seja dita, os partos são sempre distintos do que se imagina. Serão qualquer coisa que nunca espelhará precisamente a prévia imaginação dos que os vivem. Mas este – o primeiro que acompanhei – foi especialmente incomum. Diferentemente de todos os outros que vieram de pois (ao longo dos 10 anos subsequentes em que trabalhei como doula [6]), nesse dia o restante da equipe não chegou.
Íris era uma mulher alta, esguia e chamava atenção por sua beleza. Vivia a sua primeira gestação. Este parto, o nascimento de Antônio, marcou uma divisão clara entre a vida que levava antes e a que passou a ter depois que seu filho nasceu. Tatuou em seu braço a data e o horário do parto. Sua trajetória profissional transformou-se e consolidou-se nos anos que se seguiram, tornando-se referência em educação antirracista, prática ancorada em situações e preconceitos que ela mesma vivenciou em sua infância, sendo uma das únicas crianças negras na escola particular tradicional onde estudou.
Íris participava de um grupo de trocas entre mulheres facilitado por mim e algumas colegas em uma ONG em São Paulo; foi lá que a conheci. Tínhamos um vínculo forte e em um dado momento, no final do segundo trimestre de gestação, me disse: “Eu gostaria que você estivesse no meu parto, veja como soa essa ideia para você”. Respondi que essa possibilidade me encantava muito, entretanto, ponderei: “Mas não sou doula”. Coincidentemente, fazer a formação em doulagem já era uma vontade minha, apesar de ela não saber disso. Contei sobre este meu interesse e começamos a pensar nos caminhos possíveis.
Durante a gestação, fui junto com Íris a uma consulta com a obstetriz e em outra com a médica obstetra, para conhecê-las e entender como trabalhavam. Na ocasião, a médica orientou, sobre o dia de trabalho de parto: “Nas comunicações, você se reporta à obstetriz e a obstetriz se reporta a mim.”
A gravidez não fora planejada e desenvolveu-se atravessada por rupturas e reconciliações entre ela e Mauro, o pai do bebê. Desentendimentos e questões referentes ao abuso de álcool e drogas por parte dele conturbavam o relacionamento. Chegamos a vislumbrar a possibilidade de contratação de uma doula e eu ocupar o lugar de acompanhante [7].
Ao final da gestação, pai e mãe estavam juntos e combinaram que ele estaria presente no dia do nascimento. Após esta decisão, encontrei-os um dia para conhecê-lo e falarmos sobre o parto.
Poucos dias passaram dessa conversa e Íris entrou em trabalho de parto.
Era madrugada, de uma noite de lua cheia, quando recebo um SMS: as contrações estavam começando. Eu havia finalizado o curso de doula quatro dias antes. Por saber que o bebê poderia nascer a qualquer momento, tomara muitas notas e participara das aulas com toda a minha atenção.
Após algumas trocas de mensagens, em um dado momento Iris me disse que as contrações estavam acontecendo de dez em dez minutos; havia um ritmo. Decidi arrumar as minhas coisas para ir vê-la. Reportei à obstetriz tudo o que a gestante havia me dito e informei que eu estava indo para a casa de Íris.
Eu morava em uma região de alta altitude da cidade de São Paulo. As nuvens amarelas e brancas brilhantes no horizonte e a imagem do sol nascendo laranja atrás dos prédios ainda é uma memória viva daquela manhã.
Mauro, o pai do bebê, era seu vizinho e tinha passado a noite com ela – foi ele quem me recebeu, agitado e alegre, quando toquei a campainha. A mãe de Íris estava na sala. Era possível notar a sua tensão pelo seu tom de voz e sua organização corporal. Conversei um pouco com ela, que me perguntou se não era a hora de ir ao hospital. Respondi que eu iria vê-la, contar o tempo das contrações e passaria tudo para a obstetriz; que conversaria com a médica e então elas nos orientariam sobre o momento de irmos.
Bati na porta do quarto e Íris me recebeu com um leve sorriso e um olhar cansado de quem já sentia dor há um tempo. Perguntei como ela estava e me respondeu que estava bem, mas com muita dor e que ainda precisava arrumar sua mala de maternidade. Falei que a ajudaria com isso e que mediria a duração das contrações e o tempo de intervalo entre elas para passar ao restante da equipe.
Fui me dividindo entre massageá-la e acalmá-la no momento da contração, marcar a duração e os intervalos entre as mesmas e solicitar a sua mãe e ao Mauro os itens que era preciso separar e colocar na mala de maternidade, tais como documentos, roupas etc. Eles estavam aflitos e dispersos com toda a situação – e por vê-la sentindo dor; então, eu tentava tranquilizá-los enquanto os ajudava a separarem as coisas que levaríamos para o hospital.
Depois de marcar alguns minutos, com mais de quatro contrações anotadas, liguei para a obstetriz para informá-la sobre os parâmetros. Ela me respondeu: “Veja, Renata, não há ritmo ainda apesar de estarem próximas entre si. Isso provavelmente é pródromo, proponha que ela tome um banho”. Íris estava vocalizando alto durante as contrações de forma que a obstetriz pôde ouvi-la através do telefone e disse: “Nossa, essa gestante está assim desde já, vai nos dar trabalho! Relembre a ela que a média de duração dos trabalhos de parto é 10 horas e que estamos apenas no começo”. Transmiti à Íris, ao pai do bebê e à sua mãe o que a obstetriz havia dito, retirando a parte que dissera, de que nos daria trabalho, obviamente, por entender que isso poderia desorganizar ainda mais o ambiente e abalar a confiança de Íris na obstetriz, o que no meu entendimento poderia ser muito prejudicial para o trabalho de parto.
Ela foi para o banho e segui dividindo-me entre o banheiro, para ajudá-la a lidar com as dores, e a arrumação da mala de maternidade nos intervalos. Depois de um tempo, saiu do chuveiro, irritada e séria, e disse: “Se forem 10 horas disso aqui eu não vou aguentar! Preciso saber se está tudo bem e com quanto de dilatação eu estou, está doendo demais! 10 horas disso aqui eu vou pedir uma cesárea”. Eu, como doula [8] , não poderia dar essas informações a ela. Então liguei para a obstetriz novamente: “Ela está com muita dor e sem saber se está tudo bem com os parâmetros dela e do bebê, está querendo ter uma noção da dilatação. Como doula, não posso garantir isso para ela”. Continuei para a obstetriz: “Talvez seja importante examiná-la mesmo que ainda esteja no começo, pois não saber está deixando-a ansiosa, viver o processo sem estas informações está impedindo que ela confie e se entregue ao processo…mesmo que ainda não haja tanta dilatação”.
A obstetriz disse que iria tentar se ajeitar para ir nos encontrar, mas que estava com algumas questões pessoais e caso não conseguisse ir, mandaria uma colega. Mais uma vez ouviu os lamentos de dor de Íris e reclamou de sua postura: “Nossa, mas essa gestante não se informou? Ela não sabe que isso é apenas o começo?”. Lembro de me sentir indiretamente questionada neste momento, pois está entre uma das atribuições da doula o fornecimento de explicações sobre a fisiologia e dinâmica do trabalho de parto. Resolvi não responder ao seu apontamento; o foco era tentar dar um jeito de Íris ser examinada. De todo modo, Íris era bem estudiosa, lera muitos livros e assistiu a muitos filmes sobre o universo da parturição. Além das conversas que tivemos sobre fisiologia, frequentou rodas de gestantes com diferentes especialistas [9].
Falei para Íris que a obstetriz viria ou mandaria alguém em seu lugar. Ela concordou com a cabeça, aliviada. As contrações seguiram fortes; ela estava séria e silenciosa. As dores se intensificaram e Íris começou a se apavorar. Apoiei minhas mãos em seus ombros e falei firme: “Sua gestação foi muito saudável, confie. É intenso, sabíamos que seria. Em breve será examinada e Antônio chegará”. Essa firmeza me parecia importante naquele momento. Ao mesmo tempo, eu também precisava saber se estava tudo bem, justamente para seguir oferecendo-lhe apoio e segurança. Saí do quarto e decidi ligar mais uma vez para a obstetriz.
A profissional disse para irmos ao consultório da obstetra, que ficava bem próximo da residência, dizendo que lá a médica a examinaria e completou: “Tenho praticamente certeza de que ela mandará vocês de volta para casa após examinar, mas se ela achar que é o caso de já ir ao hospital, encontrarei vocês lá. Avisarei a médica que estão indo”.
Ao desligar o telefone, falei o que a obstetriz havia dito e perguntei se ela queria que eu ligasse para Mauro, pai do bebê para ir com a gente (ele havia ido tomar um banho em sua casa, que era ao lado; passara a madrugada ajudando- -a). Íris pediu apenas que eu lhe avisasse que estávamos indo à clínica com o pai dela, o avô do bebê, e disse que após ter sido examinada, lhe avisaríamos se voltaríamos para casa ou se ele iria nos encontrar no hospital. Assim fiz.
Antes de sair, Íris foi ao banheiro e ao voltar disse que a bolsa havia rompido. Avisei a obstetriz e com a mala de maternidade pronta fomos, Íris e eu, no banco de trás do carro, com o avô do bebê dirigindo. Ainda no carro, a vocalização de Íris mudou de padrão e o gemido que anteriormente era um lamento de dor, transformou-se em um som de quem faz força, o que poderia indicar o início do período expulsivo.
Nesse momento, me lembrei de uma professora, médica obstetra do curso que eu havia feito, que nos contou que orientou o acompanhante de uma gestante, sua paciente, em um parto emergencial através do viva-voz do celular. Este pensamento me fez ligar para a médica, rompendo a hierarquia que ela havia proposto (de me reportar apenas à obstetriz). A médica atendeu e contei que Íris estava fazendo força. Me respondeu apenas: “Renata, só posso examiná-la se ela estiver aqui”.
A clínica era realmente perto, o trajeto todo foi muito rápido, deve ter durado menos de cinco minutos, mas a sensação foi de uma eternidade. Estacionamos e fui rápido até a recepção explicar a situação, a recepcionista disse que ligaria para a médica. Voltei para pegá-la no carro e nos direcionaram até uma sala de atendimento que estava vazia, onde ficamos aguardando a médica. O pai de Íris preferiu ficar na sala de espera, juntando-se a pessoas que aguardavam para serem atendidas.
Entramos na sala apenas nós duas e ela logo apoiou-se em uma maca, colocando-se na posição de quatro apoios, evacuou um pouco. Fui ao banheiro, peguei álcool e papel-toalha para limpar a maca e me lembrei que aprendi em uma das aulas que era muito comum a mulher evacuar no período expulsivo, pela pressão que a cabeça do bebê exerce sobre o reto. Falei para ela que eu iria mais uma vez à recepção para saber da médica.
Voltei para a sala e Íris estava tendo outra contração. Reparei por sua postura corporal que tentava segurar o movimento de saída do bebê. Estava com a mão na saída de sua vagina e os ombros altos em oposição à saída do bebê, o corpo todo tensionado. Aquilo não me parecia certo.
“Eu senti o cabelo dele”, me disse. Respondi que iria avisar mais uma vez a recepcionista. Fui correndo ofegante até a recepção e falei enfaticamente do outro lado da sala de espera – o que fez com que os pacientes que aguardavam olhassem para mim assustados: “Ela sentiu o cabelo! Fale para a médica descer agora, por favor!”.
Voltei correndo para a sala e uma senhora, muito doce e simpática, funcionária da clínica, estava ajudando Íris. Naquele intervalo, que deve ter durado entre um e dois minutos, avisei a gestante que eu havia informado na recepção que ela sentira a cabeça do bebê.
A funcionária disse enquanto prendia o cabelo de Íris: “Nossa! e estamos na lua cheia, hein…”. Sorri e contei sobre o lindo nascer do sol que eu vira naquela manhã e brinquei: “É cabeludo, então, o Antônio?”, rimos as três. Eu sabia que me desesperar diante de Íris não ajudaria. Eu sentia que precisava preservar o ambiente em torno dela e garantir-lhe que eu estava fazendo tudo ao meu alcance para que a médica viesse.
Outra contração começou e a funcionária saiu da sala. Íris voltou a fazer os mesmos gestos que fizera na contração anterior, em oposição ao nascimento. Falei então: “A médica já está mais do que avisada, estamos em uma clínica cheia de médicos, não está certo este movimento de impedir o nascimento, respeite o seu corpo, deixe ele vir, deixe que a dor te conte o caminho para ele nascer”.
Ela olhou em meus olhos: “Tem certeza?”, “Sim, Íris, ela já está chegando e eu estou aqui, vá fazendo as posições que seu corpo estiver pedindo, não segure mais”. Começou a procurar posições em cima da maca. Fui incentivando a sua busca e oferecendo suporte até que se estabilizou. Sola do pé esquerdo e joelho direito apoiavam na superfície da maca: meio de joelho, meio de cócoras. Vestia um vestido longo, cuja barra torci colocando dentro do top que usava. Me me sentei em uma escadinha baixa de dois degraus ao lado da maca, para que eu pudesse ver a saída do bebê.
Um grito gutural e libertador.
Gradualmente, vi a cabeça começando a sair até que ficou toda para fora. Contei para ela sorrindo: “A cabeça, que é o mais difícil, já saiu. Antônio está aqui, ele está falando!” – ele emitia uns sonzinhos que ela também ouviu, demos risada emocionadas. Mais um intervalo, o último: “Espere a próxima contração e faça força para sair o corpinho, mas a maior força você já fez”. Eu havia assistido muitos vídeos de parto e sabia deste intervalo entre a cabeça e o corpo do bebê. Ela me perguntou: “Você segura ele, Rê?”, “claro que seguro.” – respondi com as minhas mãos posicionadas.
Na contração seguinte, o corpo de Antônio deslizou e minhas mãos o ampararam. “Deixa eu ver, deixa eu ver!” – ela disse. Acomodei-o em seu peito. Retirei a barra do vestido que estava dentro do top e usei-a para envolvê-lo. Ajudei-a a sentar-se e apoiar-se na parede em que a maca estava encostada. Os dois estavam bem. A feição dela era suave e afetuosa, estava serena conhecendo o filho em seu colo. Sentei-me ao lado. Nos olhamos profundamente em cumplicidade e arrebatamento – sorrimos aliviadas e emocionadas.
A médica então entrou na sala e nos viu sentadas com o bebê; falou abismada: “Nasceu???”. A resposta era óbvia. Me pediu que fosse até seu consultório e pegasse uma lista de coisas para a saída da placenta. A funcionária, que antes tinha estado na sala, voltou com um dos pediatras que trabalhava na clínica. Examinaram o bebê e tiraram as suas medidas, estava tudo bem.
Orientaram que ela e Antônio ficassem lá por algumas horas, em observação, e depois poderiam voltar para casa, caso tudo continuasse bem. Disseram que se fôssemos ao hospital, provavelmente fariam uma série de exames protocolares desnecessários e invasivos para o bebê.
Íris pediu que eu avisasse Mauro e que seu pai ligasse para a sua mãe e seus irmãos, que começaram a chegar pouco a pouco para conhecer Antônio. Ficamos naquela mesma sala e a médica e o pediatra vinham, eventualmente, vê- -los entre um paciente e outro e ajudar com o posicionamento do bebê no peito.
Após um tempo, a obstetriz chegou também. Ela e a médica nos diziam: “Que parideira você, hein? Maravilhosa! E você como doula, que estreia!”. Um dos irmãos estava tirando algumas fotos e Íris pediu: “Nada de redes sociais, hein?”. A médica disse então efusiva: “Ah, eu já postei! Não falei seu nome e nem coloquei foto, falei apenas que aconteceu um parto acidental aqui na clínica e que o bebê Antônio chegou!” – nesta postagem, que teve muitos comentários, a médica dava a entender que ela havia assistido o parto.
Íris e o bebê voltaram para casa. Eu e Íris tivemos alguns encontros nas semanas que se seguiram. Em um deles, disse que começou a se dar conta da dimensão da situação apenas um tempo depois. Falou ter se sentido incomodada com a postura da equipe obstétrica. A médica cobrou pelo parto. Quando Íris tentou negociar, a profissional foi irredutível em relação ao pagamento, alegando que o trabalho de parto não é apenas da saída do bebê, mas também a da placenta. A puérpera tentou conversar sobre a forma como os acontecimentos se deram, mas disse que a médica não deu abertura para desenvolverem o assunto e, por conta de tudo que estava passando, falou não ter forças de questioná-la, mas disse sentir muita coisa entalada.
O relacionamento com o pai do bebê continuava difícil e Íris decidiu afastar-se, mudando-se ainda no primeiro mês para o litoral de São Paulo, para casa de sua avó paterna, de quem Íris era bem próxima. Ela cuidava da puérpera e ajudava-a muito nos cuidados com Antônio. Por volta de sete meses depois, encontrei-a em uma de suas vindas a São Paulo, quando me disse: “Sabe aquela coisa que todo mundo fala de que puerpério é horrível, aquela sobrecarga? Eu não vivi isso. Claro, fiquei muito sensível, foi um período em que fiquei muito mexida, mas me sentia muito protegida e cuidada pela minha avó, em um ninho. A praia também me fez muito bem”.
Íris conheceu Miguel e casou-se com ele quando Antônio ainda era bebê. O novo companheiro construiu uma relação muito próxima e íntima com Antônio, o qual o chama de pai. Posteriormente, o casal veio a separar-se, mas mantém uma relação de muito respeito e amizade e compartilham a guarda da criança. Atualmente, Miguel tem a intenção de colocar o seu nome ao lado do do pai biológico no documento de Antônio, por meio da possibilidade de reconhecimento da paternidade afetiva.
ASSIMILAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A experiência vivida neste primeiro parto e todas as compreensões que vieram com ela foram de tal intensidade que qualquer tentativa de teorizar não cessa de me escapar. Algo no sentido do que diz Simone Weil (2020, p. 163): “Nós sabemos, por meio da inteligência, que é mais real aquilo que a inteligência não apreende do que aquilo que ela apreende”
Paradoxalmente, a forma contundente como os acontecimentos se deram levantou questões que me acompanharam ao longo da minha trajetória como doula e que podem ajudar a refletir sobre a clínica [10] perinatal.
Essa primeira vivência, com uma equipe que se dizia humanizada, permitiu que eu problematizasse o campo sem aderir cegamente a nenhuma ideologia. A partir desse posicionamento, minha intenção é contribuir com o movimento da humanização pelo parto através de um lugar cauteloso e não maniqueísta.
Iaconelli (2013) aponta para o fato de que frequentemente as pautas do movimento da humanização generalizam questões complexas, transformando-as em protocolos. Pregam, por exemplo, a superioridade do parto natural em comparação a um parto com intervenções; a expectativa fixa de que a puérpera amamente, dentre outros tantos ideais.
Esses princípios são embasados em evidências científicas e têm fundamentos importantes. Mas ocorre que frequentemente essas bandeiras tornam- -se cobranças enrijecidas e qualquer desvio do que seriam essas normas, acaba sendo vivido pelas puérperas como fracassos, o que gera sofrimento.
No parto narrado, a impressão que tenho é de que as profissionais pautaram suas ações seguindo uma cartilha própria da lógica da humanização. Estavam fixadas no que seria o tempo padrão esperado de trabalho de parto e o momento certo de examinar a gestante, assim como pareciam ter preconcepções sobre a forma adequada de a parturiente se portar. Na medida em que Íris se afastava dessa lógica, as profissionais não se mostravam disponíveis para atendê-la em suas particularidades e demandas específicas. Com o desfecho dando-se da forma como se deu: um parto natural e sem intervenções, a mãe torna-se então uma parideira, adequando-se aos modelos da linha da humanização.
Se por um lado, a assistência intervencionista ignora as subjetividades a partir do excesso de intervenções que em geral são empregadas de maneira universal e protocolar; no relato apresentado, a parturiente tampouco foi escutada pela equipe obstétrica, nesse caso por uma lógica não intervencionista. Nos diz Iaconelli (2013, p. 73):
Os movimentos de humanização do parto, herdeiros da ofensiva das mulheres contra a repressão na parturição promovida por movimentos sociais que se rebelaram contra a ingerência médica, funcionam como pendulares, alcançando o outro extremo, mas revelam-se suspensos pela mesma corda: ambos os movimentos, da humanização e da biotecnologia, operam a supressão da subjetividade, em nome de uma humanização (que seria algo generalizável) e de um saber (sobre o corpo) que ignora o sujeito.
O surgimento da doula no cenário de assistência perinatal é fruto desses movimentos e compreendo que a chegada dessa profissional carrega em si uma função social importante. Ao mesmo tempo, há de se cuidar para que os modos de atuação das doulas e dos demais profissionais não incorram em novos protocolos, conforme a citação supracitada de Iaconelli (2013).
Para desenvolver essas questões, a seguir investigaremos a função social da doula a partir da análise sobre os aspectos que propiciaram a aparição dessa nova personagem no cenário perinatal, ou seja, os aspectos que a demandaram.
Refletir sobre esse surgimento pode nos auxiliar na compreensão sobre o que está em defasagem na assistência na atualidade, o que pode nos ajudar a pensar sobre as atuações dos profissionais perinatais, em suas diferentes especialidades.
O SURGIMENTO DA DOULA E SUAS RAÍZES
Encontramos o primeiro registro de nomeação da palavra doula no artigo The Midwife as Doula: A Guide to Mothering the Mother [11] escrito pela antropóloga médica americana Dana Raphael (1981). O termo doula, explica a autora, foi emprestado de uma tradição presente no mundo grego antigo que se referia à mulher que ia à casa da puérpera quando um bebê nascia e se ocupava com as outras crianças, cozinhava, trocava o bebê, e ajudava-a com as questões referentes ao pós-parto. A antropóloga remete à escolha desse termo para designar esse tipo de cuidado, o qual ela deseja explorar.
Em seu artigo, a autora busca compreender uma problemática (a qual também observei em minha prática clínica) que se relaciona à dificuldade de algumas mulheres em amamentar. Diante desse fenômeno, a autora estuda 278 artigos antropológicos sobre a amamentação em diferentes culturas ao redor do mundo, entrevista centenas de mulheres e encontra um denominador comum nas diferentes experiências: para que ocorra a amamentação e vinculação da mãe com o bebê, é crucial que alguém se preocupe com a mãe. Este alguém, Dana Raphael chamou de doula.
No artigo, o uso do termo não se relaciona ao surgimento de uma nova profissão, mas refere-se a uma qualidade de cuidado que a autora julga ser fundamental, à qual nomeou “maternar a mãe” [12]. Para que isso aconteça, propõe um guia direcionado a parteiras e obstetras com orientações de atitudes de cuidado que extravasam atribuições técnicas, como por exemplo a preocupação em ligar e escutar a puérpera e fazer visitas, ou seja, formas de oferecer um suporte contínuo e afetivo após o nascimento.
A conclusão da autora em relação às raízes das problemáticas investigadas foi de que fatores como pouca informação sobre amamentação durante a infância, o desaparecimento das famílias estendidas e a distância ou isolamento das famílias contribuem para a dificuldade de vinculação mãe-bebê. Outro problema assinalado foram as rotinas das maternidades, que em seus protocolos e dinâmicas tinham efeitos prejudiciais para a relação da dupla mãe-bebê, com práticas protocolares que ela nomeou como “anti-doula”.
A ocupação começa a se formalizar e ganhar força a partir dos estudos de dois irmãos e médicos americanos na década de 1990, Klaus e Kennell (1997). Eles diziam que uma pessoa sem função obstétrica técnica durante o trabalho de parto, além do acompanhante, com atenção voltada ao suporte emocional e físico da parturiente reduzia significativamente tanto o tempo de duração do trabalho de parto como o uso de analgesia, aumentava a incidência de parto vaginal e contribuía para a vinculação mãe-bebê. Os irmãos também a nomeiam como doula e entendem que a sua presença no parto é o redescobrimento de um ingrediente essencial ao cenário da parturição que se encontra em falta no modelo assistencial hospitalar vigente. Esse foi o começo de uma série de estudos a esse respeito, de forma que cada vez mais as doulas têm angariado espaço no cenário da assistência perinatal e na produção científica sobre perinatalidade.
Tanto no artigo de Dana Raphael (1981), quanto no trabalho de Klaus e Kennell (1997), o termo é usado para designar um tipo de cuidado oferecido à parturiente/puérpera que se distancia de um fazer técnico e protocolar. Em ambas as propostas, os autores o relacionam ao resgate de algo que se perdeu na contemporaneidade e que precisa ser resgatado.
Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista inglês, nessa mesma direção, desenvolve a sua teoria entre as décadas de 1940 e 1970 dando grande ênfase na problematização da entrada dos especialistas na relação mãe-bebê. No texto intitulado “A cura”, fruto de uma palestra ministrada a médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, o autor propõe-se a pensar sobre o cuidar problematizando o excesso de especialização. Inicia a comunicação discorrendo sobre as raízes etimológicas da palavra cura.
Brinca Winnicott (1970/1999, p. 105): “[As palavras] como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade”. O autor explica que, em suas raízes, o significado de cura estaria atrelado a cuidado, mas que com o passar dos séculos passou de cuidado para um outro extremo, o de tratamento. Na concepção de tratamento, o que está em jogo é a erradicação da doença, perspectiva que se sobrepôs à de cuidado com o passar dos anos. Essa transformação, segundo o autor, está diretamente associada à tecnicização do saber médico, que cada vez mais torna-se especializado, fenômeno que, para o autor, é inevitável, devido à vastidão do campo.
No texto, o pediatra inglês entende a importância de que estes dois elementos estejam presentes na prática clínica: tanto o cuidado-cura, como denominou, quanto o cuidado-tratamento. Refletindo sobre a questão do excesso de tecnicização que vivemos, Winnicott (1970/1999, p. 113) nos diz que o conceito de cuidar-curar, precisa ser recuperado: “Em termos da doença social, o “cuidar-curar” pode ser mais importante para o mundo do que a “cura-tratamento” e do que todo diagnóstico e prevenção que acompanham aquilo que geralmente se denomina abordagem científica.”
O autor abre então os seguintes questionamentos à audiência: “O que as pessoas querem de nós, médicos e enfermeiros? O que queremos de nossos colegas, quando somos nós que ficamos imaturos, doentes ou velhos?” (WINNICOTT, 1970/1999, p. 106). Discorre então, sobre os pontos fundamentais para que a atuação se assente no que denominou como cuidado-cura.
Winnicott esclarece que os assuntos centrais da sua palestra são a dependência e a confiabilidade, fenômenos que se apresentam sempre que necessitamos do cuidado de alguém, em diferentes momentos de nossas vidas. Entendemos a perinatalidade como um desses momentos.
O autor esclarece que o uso da psicanálise para pensar sobre o cuidado-cura não se resume à interpretação do inconsciente reprimido, mas sim a compreensão da transferência como possibilidade de que se estabeleça um contexto profissional para a confiança.
Em seu texto As contribuições da psicanálise para a obstetrícia, Winnicott (1957/2020), ao falar sobre a experiência de parto, assinala a importância de os profissionais aceitarem a dependência da gestante em relação a eles, para que a partir daí se estabeleça uma relação de confiança. Segundo o autor, a confiança está ligada à compreensão de que, se houver algum erro, há a possibilidade de perdão. Para isso, os profissionais devem permitir serem conhecidos.
Parece-me que no parto de Íris, em algumas situações que demandavam que lidássemos com a sua dependência, a obstetriz esquivou-se. Ainda, as profissionais tiveram pouca abertura para se afetarem com o que a gestante manifestava e para manterem uma relação de horizontalidade e porosidade. Desconfiaram e, em alguns momentos, julgaram o que ela dizia.
Winnicott (1970/1999, p. 110) reflete a respeito dos efeitos sobre nós, cuidadores, ao adotarmos um posicionamento ancorado no que denominou como cuidado-cura, em mutualidade e horizontalidade. Nos diz que se trata de estarmos expostos e vulneráveis, recomendando que sejamos honestos e verdadeiros, dizendo que não sabemos quando realmente não soubermos de algo, alertando que “uma pessoa doente não suporta nosso medo da verdade”.
No parto narrado, em um dado momento, ao perceber que não poderia ser ofertado à Íris o cuidado de que ela necessitava a partir da posição de doula, a atitude foi ligar para a obstetriz e falar justamente isso. O mais importante era que ela fosse examinada. Isso estava para além dos parâmetros fisiológicos (obviamente, os incluía) mas era importante também pela referência que os dados poderiam fornecer, dada a forma aflita como a parturiente vivia aquela experiência, aquilo estava excessivo para ela. Em nosso entendimento, a equipe deve adaptar-se à parturiente, e não o oposto, esse é um importante aspecto que garante a confiabilidade.
Winnicott (1970/1999, p. 109) problematiza a questão das hierarquias no cuidar, nos dizendo que quando estamos face a face com alguém, as hierarquias devem cair. Segundo o autor: “Há um lugar para hierarquias na estrutura social, mas não no confronto clínico”.
O autor, entretanto, faz uma ressalva: a de que essa postura (de mutualidade, horizontalidade e dizer que não se sabe quando não se sabe) não deve alienar-se do fato de que há ali um paciente e um cuidador, o que não implica sentido de superioridade, mas sim de reconhecimento da dependência, sendo fundamental nos despirmos de moralismos e não julgarmos os nossos pacientes em condição de vulnerabilidade, uma postura por parte do profissional que deve responder às necessidades de seu paciente a partir da adaptação e da confiabilidade.
Para tal, Winnicott diz que é preciso que protejamos os nossos pacientes de imprevistos. Não se trata de adotarmos uma postura onipotente, mas sim de resguardo e proteção para com eles. No acompanhamento de Íris, era primordial a preservação de seu entorno, protegendo-a de possíveis elementos que pudessem desequilibrá-la demasiadamente, de forma a desestabilizá-la. A esse respeito, Winnicott (1970/1999, p. 110) diz: “Atrás da imprevisibilidade está a confusão mental e, atrás dela, pode-se encontrar o caos, em termos do funcionamento somático, isto é, uma ansiedade impensável que é física” – afirmação que é embasada pela teoria do desenvolvimento emocional primitivo (1945/2000).
A atuação direcionou-se no sentido de garantir uma mínima estabilidade para Íris, dentro do que fosse possível e de toda a intensidade inerente da experiência de parto e da forma que os acontecimentos transcorriam. Desesperar-se diante de Íris (da forma como ocorria na sala de espera) poderia afetá-la negativamente, ela que se encontrava em situação de vulnerabilidade e dependência. Manter-se firme, como referência de cuidado, era muito importante.
Winnicott (1956/2000), trouxe uma grande contribuição à psicanálise ao relacionar o cuidar intrinsecamente ao ambiente do bebê, e não o restringir apenas à mãe, o que é observável no relato nos manejos com o pai e avós do bebê e na constante atenção ao contexto.
O olhar esteve permanentemente voltado à compreensão de como Íris e os familiares estavam vivendo aquele momento: é possível se distanciar? Melhor se aproximar? Como apoiar o desenvolvimento do trabalho de parto? Como garantir que estejam seguros e amparados?
Questionamentos como esses atravessavam e guiavam as ações, a partir do discernimento do que seria importante para Íris e o ambiente como um todo, tentando assegurar que o entorno da gestante estivesse preservado e buscando qualquer tipo de estabilidade dentro do caos, da maneira que fosse possível. Uma atuação que só é possível a partir de um cuidado que esteja amparado no que Winnicott (1970/1999) denominou como cuidado cuidado- -cura.
Como Winnicott, outros autores têm pensado sobre as dimensões fundamentais do cuidado. Alguns chamaram o campo de “ética do cuidado”. Não se trata de propor a psicanálise como linha de atuação, mas sim compreender sobre os aspectos fundamentais do cuidar a partir de uma investigação de base psicanalítica.
ÉTICA DO CUIDADO
Partindo da mesma problemática que instigou os autores anteriormente trazidos, o campo desenvolve-se diante da problematização do excesso de tecnicização e os seus efeitos clínicos. Figueiredo (2007) reflete sobre a questão lembrando como é comum a experiência de ter um parente ou amigo internado no hospital e a insatisfação com a forma que o cuidado se deu, apesar de todos os aparatos e recursos tecnológicos.
Segundo Figueiredo (2013), a exploração sobre uma ética do cuidado aposta no potencial do pensamento psicanalítico para além das formas e enquadres tradicionais, propondo interface com outras disciplinas. O enfoque é a atenção aos elementos essenciais que devem ser preservados nas diferentes práticas a partir do entendimento de que essa reflexão pode fornecer uma plataforma básica para diferentes frentes que envolvem o cuidar. O próprio surgimento da doula como profissão me parece uma tentativa de restabelecimento das bases essenciais do cuidado na assistência perinatal.
Safra (2004), desenvolve sua teoria em busca da compreensão dos elementos fundamentais que devem comparecer na clínica psicanalítica contemporânea a partir do contato com os sofrimentos que os seus pacientes vivenciam na atualidade. O autor entende que em alguns momentos históricos a condição humana é aviltada, e, quando isso se dá, vive-se uma fratura ética, afirmando que vivemos em um desses momentos.
O autor alerta que as problemáticas apresentadas pelos pacientes na atualidade colocam como foco e urgência uma clínica que restabeleça o ethos, ou seja, que possibilite o acontecer da condição humana a partir da compreensão do que é ontológico no ser humano. Exploremos esses conceitos para compreender do que fala o autor.
Comecemos pelo conceito de ethos. Safra (2004) apresenta esta palavra a partir da etimologia da palavra ética que, proveniente do grego, pode ter dois sentidos: o primeiro é o de práxis, costume; o segundo refere-se a morada, pátria. O segundo sentido é o que o autor adota.
A partir dessa perspectiva, buscou compreender as condições necessárias para que o ser humano encontre morada no mundo, investigando “os elementos fundamentais que possibilitam, ou não, ao ser humano morar no mundo entre os homens” (SAFRA, 2004, p. 26). Nos diz o Safra (2004, p. 27): “A fragmentação do ethos-morada leva a um tipo de sofrimento que, apesar de alcançar o registro psíquico, não tem sua origem no psíquico. São sofrimentos que acontecem no registro ontológico!”.
Para que possamos compreender do que fala o autor, é importante discriminarmos o conceito de ontológico do de ôntico. Safra (2006) faz essa diferenciação na companhia de Heidegger, a partir da diferenciação entre os registros de ser e de ente, respectivamente. O ôntico refere-se aos fatos da existência humana, aos acontecimentos biográficos vividos ao longo da vida, enquanto o ontológico diz respeito às estruturas a priori que definem as possibilidades realizadas em cada existência humana, ou seja, a condição originária. Nos diz Safra (2006, p. 22):
O ser humano tem em seu modo de ser a possibilidade de mover-se continuamente em meio aos acontecimentos de sua vida ao longo do tempo (registro ôntico), ao mesmo tempo em que a sua própria condição original lhe revela os fundamentos de si mesmo (registro ontológico). Desse modo o ser humano pode ser visto como um ente ôntico-ontológico.
A partir daí, o autor afirma que o profissional deve situar-se em registro ôntico-ontológico. Ou seja, nos situando entre os acontecimentos biográficos e particulares que nos são apresentados, mas sem perder de vista a dimensão humana, que transcende as contingências. No trabalho clínico feito a partir desse viés, nos colocamos frente ao paciente de modo a deixar-nos ensinar pelo que ele apresenta, nos posicionando como humanos.
Trata-se de um paradoxo: ao mesmo tempo que estamos diante da singularização, estamos também diante de aspectos fundamentais da existência de todos. O autor entende que o encontro ético é possibilitado na medida em que reconheçamos o universal no singular.
A partir desse paradigma, Safra afirma que o único modo de atuação possível que contemple a condição humana é uma perspectiva que acolha a dimensão paradoxal da existência, alertando sobre o perigo das teorias e discursos universais, entendendo-os como uma forma de doutrinação e de violência, promovendo fraturas éticas e aniquilamento do ser. Nos diz: “Onde há o achatamento do dizer singular, do gesto e do idioma pessoal do Outro há um abuso de poder” (SAFRA, 2004, p. 123).
A TRANSFERÊNCIA ASSENTADA NA EXPERIÊNCIA, NO CORPO E NA CONFIANÇA
Safra (2004) e Guerra (2013), ao pensarem sobre a ética na experiência clínica, a exploram em contato com o que chamam de experiência estética. Tomam esse conceito a partir da etimologia do termo estética: proveniente do grego, aisthesis, que significa percepção.
Compreendem a experiência estética como experiências corpo-sensoriais muito primitivas ancoradas em um sistema de comunicação pré-verbal. Safra (2004, p. 50-51) entende o fenômeno como uma resposta sensível do indivíduo ao ambiente:
Quando estamos diante de alguém, estamos em presença da maneira como essa pessoa organiza o espaço, o tempo, a relação com o outro. Os sons, os cheiros, enfim, tudo contribui para que possamos “intuir” o jeito do outro, seus sofrimentos, pois todas essas organizações plásticas nos afetam em nosso corpo.
No parto narrado, entendemos que a atenção intuitivamente voltava-se para as comunicações, verbais e não verbais, que Íris veiculava, ou seja, as suas experiências estéticas. O termo intuição a partir da concepção de Gilberto Safra (2005) é compreendido como algo que não deve ser tomado como enigmático ou dependente de um estado de graça para ser alcançado. O uso da intuição no encontro clínico se relaciona a uma leitura que é feita a partir da corporeidade de alguém, a qual expressa os símbolos do seu self.
Trata-se da veiculação de experiências pré-verbais e muito primitivas que são ancoradas no registro ontológico e não psíquico. Diante das experiências estéticas, devemos nos posicionar a partir de um referencial ontológico e não apenas como um outro subjetivo, mas como alguém representante da humanidade, assentado no que o autor chama de comunidade de destino:
Trata-se do fato de que o ser humano é ontologicamente nós! Na clínica, ao acompanharmos um analisando estamos, ao mesmo tempo, ontologicamente, frente a uma família, a gerações, à comunidade, à humanidade! Respondemos, em nosso ofício, como ser singular, mas pertencentes a uma família, a uma comunidade, à humanidade. A fundação da situação transferencial ocorre, em registro ontológico, em comunidade de destino (SAFRA, 2004, p. 68-69).
O autor (2005) entende que a partir da experiência estética cria-se uma forma imagética e sensorial que veicula sensações de agrado, encanto, temor, horror etc. Essas imagens, quando utilizadas na presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos ou aspectos de seu self, podendo então existir no mundo humano. Neste paradigma, a clínica é compreendida pelo autor como campo constitutivo, de acontecimento, em detrimento de uma clínica com ênfase na interpretação e no saber sobre.
Safra diz que a ética da clínica situada em comunidade de destino demanda alteridade e comunidade. Para Safra (2004, p. 73), estar em comunidade de destino com alguém é estar posicionado, solidariamente, frente às grandes questões existenciais próprias do destino humano: “A instabilidade do outro, a ignorância frente ao futuro, o sofrimento decorrente do viver, a mortalidade, entre outros”.
Na clínica perinatal, entendemos que as vivências contundentes que envolvem o nascimento de um bebê são grandes oportunidades e um campo fértil para que se possa dar seguimento ao processo de amadurecimento. Isso desde que haja alguém que oferte essa qualidade de cuidado, em falta na atualidade. São possibilidades que se efetivam desde que quem cuide coloque-se em alteridade e comunidade, possíveis apenas se em estado de vulnerabilidade, e fornecendo contexto para que o campo clínico seja lugar de acontecimento e insurgência do inédito.
No dia do parto, as experiências estéticas expressaram-se na materialidade do corpo e suas sensações. Diante da urgência do tempo, da vivência das dores das contrações e seus intervalos e de tantos elementos que nos atravessaram. A atenção a elas possibilitou que os caminhos de cuidado fossem intuídos.
Muitos nascimentos aconteceram naquela manhã: o de Antônio, o de Íris- -mãe, o meu como doula: campo constitutivo. Seguiram-se abertos a um devir permeado pelo cuidado que a puérpera recebeu de sua avó e que lhe deu força para se desvencilhar de uma relação que tanto a consumiu e enredou durante a gestação; pela linda trajetória profissional que se desenvolveu nos anos seguintes; pela relação que estabeleceu com Miguel e também pela trajetória de doula que se desenvolveu permeada por muitas questões que acompanharam e inquietaram ao longo dos últimos anos, provocando reflexões sobre a perinatalidade na contemporaneidade, dentre elas algumas expressas neste trabalho.
Notas
1. Para que as identidades fossem preservadas, as experiências foram ficcionalizadas de tal forma que os envolvidos não pudessem ser reconhecidos e, concomitantemente, os elementos a serem trabalhados fossem mantidos – como, por exemplo, as experiências emocionais, as questões referentes à assistência obstétrica e situações culturais próprias da contemporaneidade. As vinhetas clínicas apresentadas a partir deste viés enquadram-se na resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde.
2. As equipes obstétricas que se dizem “humanizadas” se alinham a um movimento político mundial intitulado Movimento pelo Parto Humanizado que teve seu início por volta da década de 1950 e segue até os dias atuais. Essa corrente vem promovendo mudanças significativas no modelo tecnocrático de assistência obstétrica.
3. O desenvolvimento do parto é marcado por fases: pródromos, fase latente, fase ativa, período expulsivo e saída da placenta. Os pródromos são marcados pelas primeiras contrações (podendo ou não desencadear de fato um trabalho de parto). Na fase latente, as contrações já têm um ritmo e já há certa dilatação do colo do útero. Na fase ativa, as contrações duram mais de um minuto, a dilatação passa dos 5 centímetros, o intervalo entre as contrações é menor e a dor costuma ser mais intensa. No período expulsivo, acontece o nascimento do bebê e em seguida a saída da placenta. Estas fases sofrem variações de pessoa para pessoa, mas alguns elementos são comuns a todos os trabalhos de parto que atingem todas essas fases mencionadas.
4. As obstetrizes compõem a equipe perinatal. Podem ter formação em obstetrícia ou em enfermagem com especialização em obstetrícia. Podem assistir a partos domiciliares e em casas de parto sem que haja a presença de um/uma médico/a. Nos hospitais, devem sempre atuar em conjunto com os/as médicos obstetras.
5. Estas salas possuem uma série de elementos para facilitar o trabalho de parto, como por exemplo regulagem de luz, caixas de som para música, aparatos corporais, banheira. Além desses, há toda a aparelhagem técnica médica.
6 A doula é uma profissional que promove amparo emocional, físico e informacional às famílias que vivem a chegada de um bebê e os fenômenos próprios do ciclo gravídico-puerperal.
7 A Lei 3.367/2022 prevê que a assistência da doula durante o trabalho-parto não impede a presença de um acompanhante, garantido que ambos possam estar nas instituições acompanhando a gestante durante todas as fases de parto e pós-parto.
8 Não é parte da alçada da doula medir os parâmetros fisiológicos das gestantes e dos bebês.
9 A informação, em especial sobre o contexto obstétrico brasileiro e sobre os processos corporais, costuma ajudar. Entretanto, em nosso entendimento, não consideramos que estudar deva ser uma prerrogativa para quem está gestando. E ainda mais, notamos que, em alguns casos, informações em excesso eventualmente podem atrapalhar.
10 A partir da teorização sobre objetos e fenômenos transicionais, transpostos para a clínica através do conceito de espaço potencial, Winnicott (1975) desprendeu-se dos settings tradicionais permitindo que a clínica se ampliasse a outros enquadramentos. A partir desta conceituação, o fundamental é que a experiência clínica se constitua como campo de acontecimento, para além de representações.
11 Em tradução livre, “A parteira como doula: um guia para maternar a mãe”.
12 . “Mothering the mother”.
Referências
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